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quinta-feira, 20 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23723: Casos: a verdade sobre... (30): Pansau Na Isna, o "herói do Como" (1938 - 1970), entre o mito e a realidade - Parte I: Visto do lado de cá


Efígie de Pansau Na Ina (1938-1970), na nota de 50 pessos emitida em 1990 pelo Banco Central da Guiné-Bissau. Já agora, chamamos a atenção para o valor de cada nota, com a efigie dos heróis da Guiné-Bissau, a seguir à independência: o Domingos Ramos aparece na nota de 100 pesos, o Francisco Mendes (o Chico Tê) na de 500 pesos... O Amícar Cabaral deu a cara nas notas de 1000 pesos (1990), 5000 pesos (1993) e 10 mil pesos (1990)... O peso foi a moeda da Guiné-Bissau de 1975 até 1997, sendo então subtituido pelo franco CFA.


Guiné-Bissau > Bissau > Fortaleza da Amura (ou de São José da Amura> Talhões dos Heróis da Pátria, ao lado do Mausoléu de Amílcar Cabral > Túmulo do Pansau Na Isna  (1938-1970), o "herói do Como".

Foto (e legenda): © Luís Graça (2008). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


A Av Pansau Na Isna é uma das principais artérias da parte histórica, colonial, da cidade de Bissau. Em 20 de janeiro de 1975, a antiga Av Almirante Américo Tomás foi "rebatizada" pelo novas autoridades do país, passando a chamar-se Av Pansa Na Isna: é lá que se situa o hospital nacional Simão Mendes. 

O mesmo aconteceu com outros topónimos: (i) a Av República passou a designar-se por Av Amílcar Cabral); (ii)   a Av Governador Carvalho Viegas  é hoje a Av Domingos Ramos, e (iii) a Praça do Império, obviamente, teria que ser a Praça dos Heróis Nacionais.

Fonte: Adapt de António Estácio - "Nha Bijagó: respeitada personalidade da sociedade guineense (1871-1959)" (edição de autor, 2011, 159 pp., il,). Com a devida vénia..


Guiné > Bissau > c. 1960/70 > Vista aérea de Bissau. Ao centro, o Palácio do Governo e a Praça do Império. Bilhete Postal, Colecção "Guiné Portuguesa, 118". (Edição Foto Serra, C.P. 239 Bissau. Impresso em Portugal, Imprimarte - Publicações e Artes Gráficas, SARL). Coleção do nosso camarada Agostinho Gaspar.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2019).

Legenda:  1=Av República (depois de 1975, Av Amílcar Cabral); 2=Av Alm Américo Tomás (hoje, Av Pansau Na Isna); 3= Av Governador Carvalho Viegas (hoje, Av Domingos Ramos); 4=Praça do Império (hoje. Praça dos Heróis Nacionais)


1. Quem foi Pansau Na Isna (1938-1970) (*) 

Recordo-me de ter perguntado, nos primeiros anos do 3.º milénio, a um médico, guineense, meu aluno, filho de um antigo comandante da guerrilha, que actuou no Morés, entre 1963 e 1974, quem era o Pansau Na Isna, ou se sabia, mais exatamente, quem tinha sido.

  Sim, sei que é um dos nossos heróis nacionalistas, um dos nossos grandes combatentes da liberdade da Pátria. Era balanta.

– Sabe quando e onde morreu? E em que circunstâncias?

– Infelizmente, não sei…

O meu aluno estava a frequentar o curso de saúde pública, e não era seguramente balanta. Para a população, então ainda fracamente escolarizada,  da Guiné-Bissau , e sobretudo para os mais jovens, já sem  quaisquer memórias da luta pela independêbcia, o Pansau Na Isna seria apenas o nome de uma das principais avenidas da capital, Bissau (onde, por exemplo, a OMS tem a sua representação e onde fica o Hospital Nacional Simão Mendes, e a sede de diversas outras  organizações nacionais e estrangeiras).

Eu também não sabia na altura responder à pergunta, para vergonha minha… De facto, nunca tinha ouvido o nome dele, no meu tempo de Guiné, 1969/71; e a batalha do Como, onde se terá notabilizado, já havia ocorrido há meia dúzia de anos, em 1964, e ninguém sabia localizar, com precisão, no mapa, onde ficava essa ilha... Minto: tinha ouvido umas vagas "estórias" deste homem, que seria uma figura bizarra, vestindo-se à cobói e alvejando, com a sua Kalash, os helis dos tugas... Numa destas bravatas terá encontrado a morte... Claro, nunca consegui confirmar a "estória".

Foi através do episódio da série "A Guerra", que passou na RTP 1, no dia 18 de dezembro de 2007, que eu soube que o Pansau Na Isna era um dos três comandantes do PAIGG que combateram os portugueses, na Ilha do Como, durante a Op Tridente. Mas esta era outra versão, nova, para mim. Nunca voltei a ver este episódio, desde então.

De origem camponesa e de etnia balanta, lá teria  encontrado a morte, na ilha do Como. Ele e outro comandante. Percebi isso do depoimento do único sobrevivente dos três, cujo nome não retive.

Fiquei com a ideia de que o Pansau Na Isna terá sido morto pelos fuzileiros navais. Os seus restos mortais (?) repousam hoje, no Forte da Amura, ao lado  do mausoléu de Amílcar Cabral, e dos túmulos de outros míticos guerrilheiros Domingos Ramos e Titinha Silá. Esse mausoléu pelo menos eu vi-o com os meus próprios olhos, em Bissau, na Amura, em 7 de março de 2008, na primeira (e única vez) que voltei à Guiné.

Rapidamente este  guerrilheiro balanta tornou-se uma lenda. Foi, por exemplo,  tema (e título) de canção, criada e interpretada pelo popular conjunto musical, dos anos 70/80, Super Mama Djombo, no seu álbum Super Mama Djombo (2003, etiqueta: Cobiana). Muito acarinhado pelo regime de Luís Cabral (mas não pelo do seu sucessor), manteve-se vivo até hoje, apesar das muitas mudanças por que passou o país e a própria banda (Vd. aqui a sua página no Facebook).

Este grupo musical, sob a liderança inicial de Adriano Atchutchi, estilizou a música tradicional guineense e deu ao conhecer ao mundo (e às gerações mais novas da população da Guiné-Bissau), ao ritmo do estilo Gumbé, o que foi o sonho de Amílcar Cabral, a luta de libertação e a esperança dos guineenses no futuro... A origem do grupo remonta ao início dos anos 70...

 
Retomando o 9.º e último episódio da 1.ª Série do programa A Guerra (1):


Do lado português, bem gostaria de ter ouvido o testemunho do meu querido amigo e nosso camarada Mário Dias, que tem, no nosso blogue,  três notáveis textos sobre a Op Tridente. 

Joaquim Furtado e a sua equipa privilegiaram  os depoimentos dos militares portugueses de alta patente, a começar pelo homem, que comandou as nossas forças terrestres, o tenente-coronel Fernando Cavaleiro (1917-2012), coronel de cavalaria na reforma, entretanto já falecido. Na altura da Op Tridente era também o comandante do BCAÇ 490.

A justificação para a mobilização de vastos meios terrestres, aéreos e marítimos, numa operação de dois meses e tal (14 de Janeiro de 1964 a 24 de Março de 1964) teria a ver com a necessidade de impedir, ao PAIGC, a autoproclamação da República Independente do Como…

A ilha, o melhor, o conjunto de ilhas (Caiar, Como, Cantungo), era um intrincado puzzle de rias, braços de mar, bolanhas, lalas, ilhotas, floresta-galeria, tarrafo, de cerca de 200 Km, onde o PAIGC não teria mais do que 400 homens armados (300, segundo o Mário Dias), controlando no entanto uma vasta população e os seus recursos.

A ilha do Como era farta em gado e arroz, como muito bem frisou o almirante Ribeiro Pacheco. Talvez ainda mais importante, o Como era um ponto vital para as linhas de reabastecimento do PAIGC, dada a sua proximidade com a Guiné-Conacri. E o seu controlo afectava seriamente o reabastecimento das posições portuguesas na região de Tombali.

Outro oficial da Marinha entrevistado foi o comandante  José Luís Gouveia, dos Fuzileiros, que também participou na batalha do Como. Um dos mitos que caiu por terra era existência de bunkers, de cimento armado, onde os guerrilheiros do PAIGC se entrincheiravam e resistiam aos bombardeamentos da aviação e da marinha portuguesea. Não havia bunkers nenhuns… Dos meios navais, retive que eram compostos por uma Fragata (Nuno Tristão), 4 Lancha de Fiscalização, 4 LDP e 2 LDM.

'Nino' Vieira, que também foi entrevistado, era o comandante militar da Região da Sul, mas não participou directamente na batalha do Como, por se encontrar hospitalizado, na Guiné-Conacri, segundo percebi. Ora, ele é muitas vezes apresentado, indevidamente,  como o herói do Como: isso não corresponde à verdade histórica... 

A haver um herói - e os movimentos nacionalistas e os povos que lutam pela sua identidade, emancipação e liberdade precisam, historicamente, de heróis e de mitos - foi o Pansau Na Isna e os seus guerrilheiros-camponeses... 

'Nino' Vieira, de qualquer modo, terá sido, à distância, o principal responsável pela estratégia de defesa da Ilha do Como. Enfim, os louros da vitória (a havê-la, para um lado ou para o outro) terão que ser analisados e discutidos, com objectividade e rigor, pelos historiadores.

Ao que parece, em balanta, Pansau Na Isna (ou N'Isna) quererá dizer a tabanca que está a morrer. Pansau era muito próximo de Amílcar Cabral, mas analfabeto (isto é, sem qualquer grau de escolaridade formal). Também li algures que ele não morreu no Como, mas mais tarde, em Nhacra, em 1970, num bombardeamento da aviação portuguesa. 

A ter morrido em Nhacra, morreu como ele teria gostado de morrer: vestido de maneira excêntrica, cheio de roncos, de cores garridas, muito ao gosto dos balantas, segundo as versões mais ou menos fantasistas que há anos memorizei... Enfim, provavelmente é mais um lenda, tal como aconteceu com outros combatentes de um lado ou do outro ('Nino' Vieira, Marcelino da Mata, etc.).

De qualquer modo, a versão da morte do Pansau Na Isna em Nhacra, posteriormente à batalha do Como, não bate certo com o depoimento que ouvi no 9.º episódio do programa da RTP...

Na batalha do Como, o grande inimigo dos portugueses terá sido  a falta de água potável, as dificuldades de reabastecimento, as rações de combate, os mosquitos, o terreno… Muitos militares portugueses já não podiam com a intragável carne de vaca à jardineira, que faziam parte da invariável ementa das NT... Valeu-lhes, de alguma maneira, o suplemento de carne de vaca, porco e cabrito que abundava pela ilha, deixada para trás pelas populações em fuga,  estratégica ou não...

A G3, que fez a sua estreia em combate, também não se portou muito bem: era muito sensível, às poeira, à areia, etc... A densa floresta-galeria com árvores de grande porte, seculares, frondosas, tornou praticamente inofensivos os bombardeamentos da aviação portuguesa, à parte o terror que as nossas bombas inspiravam, sobretudo nas mulheres, crianças e velhos…

Por outro lado, os guerrilheiros cedo aprenderam a defender-se dos bombardementos, escondendo-se atrás de bagas-bagas. Alguém confirmou que foram utilizados aviões da NATO (F86 e PV2 e 2-5), operando a partir de Cabo Verde. Não ficou claro o uso de napalm. A FAP fez cerca de 850 missões, largou mais de mil bombas.

O PAIGC terá perdido 150 homens e 6 armas. O Mário Dias fala apenas em 7 dezenas de mortos confirmados. Os mais de 1200 militares regressaram a Bissau, depois da mais cara e mais longa operação, levada a cabo na Guiné-Bissau. Os oficiais portugueses entrevistadaos consideram-na como uma operação que teve um sucesso absoluto.

O PAIGC, por sua vez, transformou em mito a batalha do Como. Para Luís Cabral,  a Ilha do Como foi a primeira região libertada. Usando as clássicas tácticas da guerrilha, o PAIGC evitou afinal o confronto directo com as NT, pondo a sua população a recato.

Pelo lado do PAIGC também foi entrevistado o comandante Gazela, entretanto falecido, em Portugal. Também foi dado o testemunho do médico da CCAÇ 557, entretanto falecido, o Rogério Leitão (1935-2010), membro da nossa Tabanca Grande a título póstumo.

Segundo a Comissão para o Estudo das Campanhas de África (2014), o Pan Sau (sic) não seria mais do que um 2.º chefe ou adjunto:

(...) Situção > Forças inimigas (...)

Há notícias que referem:

- Ilha do Como - Chefe Saja e 2.° Chefe Pan Sau.

- Ilha de Catunco - Chefe Sumba Na Quedum, tendo como subchefe Imbali Na Noi e Sia Na Ba.

- Ilha de Caiar - Chefe Bacar Sambu (beafada), Abdu Sandem (beafada) e Ansumane Indjai (nalú). (...)

Fonte: Excertos de: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 6.º Volume - Aspectos da Actividade Operacional: Tomo II: Guiné: Livro 1. 1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2014, pp. 199/200.

Na segunda parte, veremos o ponto de vista de um "intelectual balanta" sobre esta figura lendária (para os balantas e para o PAIGC), prematuramente desaparecida, o Pansau Na Isna. (**)


2. Comentário de Pezarat Correia a este último episódio, o nono, da 1.ª série do programa RTP sobre a guerra colonial:

(...) Creio que chegou ao fim a 1.ª série do programa “A Guerra”, de Joaquim Furtado, na RTP 1. Estamos já em condições de fazer um primeiro balanço e penso que a “expectativa positiva” que registei no meu “Giro do Horizonte 6” de 17 Out, se justificou. O programa, no conjunto dos 9 episódios, merece-me um julgamento favorável.

Encerrou bem com a “Operação Tridente” na ilha do Como, T.O. da Guiné, em que o confronto entre opiniões dos responsáveis portugueses e do PAIGC puseram em destaque um paradigma da guerra colonial. Tinham razão os primeiros quando, na sua perspectiva, diziam que a operação tinha sido um sucesso, pois cumpriram as missões atribuídas, apesar dos insignificantes resultados em baixas ao IN e material capturado. Mas foram ao objectivo e, naquelas operações, os objectivos não eram para se conquistarem, eram para se ir lá. Tinham também razão os segundos quando se congratulavam por, afinal, depois da operação as tropas portuguesas terem retirado e os guerrilheiros reinstalado no terreno, tornando insustentável a vida da reduzida guarnição portuguesa que lá ficou num extremo da ilha, sem poder sair do seu buraco.

Esta controversa foi paradigmática da guerra, disse eu, porque, de facto, esta foi, para nós, militares portugueses, um somatório de sucessos de operação em operação, até ao inevitável insucesso final.

Os sucessos que os responsáveis pelas três maiores operações nos três TO  reclamaram, “Tridente” na Guiné, “Quissonde” em Angola e “Nó Górdio” em Moçambique, às quais poderemos acrescentar a “Mar Verde” na Guiné com a particularidade de esta ter ocorrido em território da Guiné-Conakri, foram, afinal, rotundos fracassos estratégicos.

Aqui reside o fulcro da questão guerra ganha/guerra perdida, que me parece que este programa ajuda a esclarecer. Este será um dos seus méritos. (...)


Extractos de: Blog A25A > Pezarat Correia > 19 de dezembro de 2007 > Giro do Horizonte 17 - Guerra Colonial 2 (conteúdo já não disponível "on line", nem no Arquivo.pt)


3. Comentário de Virgínio Briote:

(...) Não se pode falar da Guerra na Guiné sem evocar Pansau Na Isna. Tal como muitos homens da guerrilha, de Pansau Na Isna sabe-se muito pouco e do que se sabe, muito é lenda.

Os tempos difíceis, como são sempre os inícios, tornam-se propícios a figuras que, de uma ou outra forma, deem nas vistas. De tal forma a sua figura é lendária que, até na morte pairou muito tempo a dúvida, de quando e onde ocorreu. 

Enquanto alguns ainda insistem ter sido um dos mártires da guerra do Como, outros juram que o fim de Pansau ocorreu muito tempo depois e bem longe dali. Pansau Na Isna (ou N’Isna), nome que em Balanta significa “morrer na aldeia”, foi, apesar de analfabeto (aprendeu a ler no decorrer da luta, em acampamentos da guerrilha), um valioso combatente e um dos braços direitos de Amílcar Cabral nos primeiros anos de luta.

O nome de Pansau ficou para a história por ter sido um dos comandantes da resistência na batalha de Como, que se travou nos primeiros meses de 1964. Apesar de, ao fim de cerca de 72 dias de combate, as tropas portuguesas já não encontrarem resistência significativa, a batalha do Como foi considerada pelo PAIGC como uma grande vitória. Porque conseguiram sobreviver ao constante bombardeamento a que estiveram sujeitos e porque, com a saída das tropas portuguesas (ficou apenas uma unidade no Cachil) foram retomando o controle do arquipélago.

O combate do Como foi de enorme importância para o PAIGC, especialmente no capítulo da propaganda interna e externa e Pansau Na Isna foi um dos heróis mais visíveis, ganhando com essa batalha enorme respeito e prestígio entre os camaradas da luta. Não poucos, dos que com ele lutaram, partilham a ideia de Aristides Pereira (que foi secretário-geral do PAIGC), que o descreveu como um lutador excepcional.

Diz-se que Pansau era algo excêntrico, devido às roupas brilhantes e à fita rosa que amarrava à cabeça. E a história mistura-se com a lenda, aceitando como realidade (os que afirmam não ter ele morrido no Como) que foi pelo brilho e cor da roupa que viu os seus dias acabarem no terreno enlameado de Nhacra (entre Bissau e Mansoa).

Fonte: Nota do editor ("copydesk") originalmete elaborada para o livro de Amadu Bailo Djaló, "Guineense, Comando, Português" (Lisboa Associação de Comandos, 2010, 229 pp.), Consta do "manuscrito" a que tivemos acesso, por cortesia sua, mas não do livro impresso.

(Continua)
___________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 12 de janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2435: PAIGC - Quem foi quem (6): Pansau Na Isna, herói do Como (Luís Graça)

(**) Último poste da série > 5 de outubro de 2022 > Guiné 61/74 - P23664: Casos: a verdade sobre... (29): os fotogramas do vídeo com a visita da delegação do Movimento Nacional Feminino a Cufar, no início de fevereiro de 1966 (Mário Fitas / Sílvia Espírito-Santo / António Murta / João Crisóstomo / Joaquim Mexia Alves / Miguel Rocha)

quarta-feira, 18 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23274: (In)citações (205): Os nossos livros são as memórias da nossa vida e da nossa passagem pela guerra da Guiné (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616 / BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), com data de 16 de Maio de 2022:

O Zamith Passos, de há cinquenta e dois anos é um homem e um amigo que eu estimo e considero especialmente. Ele como furriel e eu como alferes, comandámos o 2.º pelotão da CCaç 2616, o melhor que pudemos, conjugando as experiências e conhecimentos de um e do outro.
Depois de anos sem contactos pela turbulência da vida, há alguns anos que nos reencontramos como velhos amigos e camaradas para lembrar as longas caminhadas pelo Chinconhe, pela Bolanha dos Passarinhos, outros locais arborizados, quentes e húmidos, pelo bar de sargentos e oficiais e outros locais que nunca esqueceremos.

Ele tem sido o organizador, nos últimos anos, dos almoços da Companhia. Convocou mais um que se realizou no passado dia 7 de Maio, na esplanada de um restaurante em Lisboa, na Zona da Expo/98, com boas vistas sobre o rio Tejo. O anterior, em que não pude estar presente, foi antes da pandemia em 2019 e estiveram presentes mais de cinquenta pessoas, entre ex-militares e familiares. Este ano havia somente 30 comensais, alguns foram morrendo, como o Paulo Fragoso, vítima de covid (meu grande amigo. Trocamos muitas mensagens e telefonemas), outros estão adoentados, outros menos sociáveis e mais recolhidos pelos três anos deprimidos, em que temos vivido.

Entre os camaradas, esteve também o General Pezarat Correia, distinto militar do 25 de Abril, do Conselho de Revolução, com obras relevantes editadas, de índole histórico e político-militar, doutorado pela Universidade de Coimbra, convidado por ter sido o Major de Operações do Batalhão 2898, a que pertencia a nossa companhia.
Gostei de me ter distinguido com um grande abraço, quando, através do Zamith Passos me identificou, não por feitos militares, mas por ter lido um artigo do livro "Cartas de Amor e de Dor" da escritora Marta Martins Silva, que ele prefaciou em que me dá um elogio tão grande, que eu só consigo justificar pela amizade e camaradagem pelos militares que comandou.

Buba > Eu e o Zamith Passos
Um abraço entre camaradas
Aspectos do convívio


Prefácio de Pedro Pezarat Correia no livro “Cartas de Amor e de Dor”, de Marta Martins da Silva; pp 17 e 18:

É nas cartas de alguns graduados, oficiais e sargentos milicianos, como Lobo Antunes, Francisco Baptista, Beja Santos, Graça de Abreu, Bação Leal, que aquela tomada de consciência é mais expressiva. A correspondência de Bação Leal tornou-se icónica: “Estou farto deste carnaval de cadáveres […] a única porta é o suicídio”. Não se suicidou, mas viria a morrer em operações em Moçambique. Francisco Baptista, quando em Março de 1970 embarcou para a Guiné, ia já “plenamente convencido da inutilidade dessa guerra”[2] António Graça de Abreu faz uma premonição reveladora de uma consciência avançada: “Aí em Portugal é que o PAIGC vai ganhar a guerra”. O contributo da luta dos movimentos de libertação para o que viria a ser o 25 de Abril, que ainda não está suficientemente estudado, é incontroverso.

[2] - Francisco Baptista, alferes miliciano, foi integrar a CCAÇ 2616 em Buba, que pertencia ao meu Batalhão, o BCAÇ 2892 com sede em Aldeia Formosa, no qual eu era oficial de operações, onde substituiu um alferes morto em operações, o que me permite confirmar inteiramente as situações que ele relata.

Agosto de 2021
Pedro de Pezarat Correia


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Os mortos sozinhos na capela (quem rezava por eles?)

Francisco Baptista embarcou para a Guiné a sentir-se "politicamente derrotado pois estava plenamente convencido da inutilidade dessa guerra", pelo que os dois anos de comissão foram-lhe muito penosos. "Antes da minha partida, tinha bem a noção das mortes que ocorriam nas três frentes da guerra, pois, pouco tempo antes, tinha estado durante três meses no Quartel-General de Lisboa, para onde eram comunicados diariamente os mortos. Os mortos da Guiné, um, dois, três, por dia - por vezes mais -, eram sempre em maior número. Tendo em conta o número de mortos, fiz um cálculo e, segundo as leis da probabilidade, achei que teria mais hipótese de regressar com vida do que o seu contrário, mas com cálculos ou sem eles os transmontanos que eu conheci não fugiam à guerra, pelo contrário; os rapazes que tinham emigrado, a salto, para a Europa, vinham todos à inspecção militar e a "dar a tropa", conforme expressão deles, muitas vezes já casados e com um grande prejuízo financeiro", começa por dizer Francisco Baptista.

As probabilidades estiveram efectivamente do lado de Francisco, que partiu para a Guiné no dia 19 de Março de 1970, no navio Alfredo da Silva, integrado na Companhia de Caçadores 2616 do Batalhão de Caçadores 2892. Ele voltou com vida, mas nem todos tiveram essa sorte. "Os momentos mais difíceis para mim, como para os outros, eram a morte de camaradas. Foi difícil, ainda dói, a morte do Albano, tão bom camarada, a morte do furriel Ferreira, éramos amigos, a morte de dois soldados milícias africanos, ao meu lado, sendo eu o responsável por essa força de combate", partilha.

Era impossível não sentir, mesmo quando - e foi o caso de Francisco - se nasceu nuyma aldeia do interior, "com costumes ancestrais onde a morte era tão natural como a vida". "Lembro-me de ir desde criança, ainda antes mesmo da idade escolar, aos funerais dos meus primos aina meninos, muitas vezes a ajudar a levar as urnas para o cemitério. Com dez anos assisti à morte do homem que mais amei, o meu avô paterno, lembro-me de tudo, da da minha mãe e das outras mulheres à volta da cama dele, da minha avó paterna a rezer orações antigas, que só ela conhecia, da respiração ofegante dele e do estertor da morte. O meu avô, o meu grande amigo, quis-me dizer como morre um homem, para eu saber enfrentar a morte com coragem. Na minha memória afetiva guardo esse dia com saudade mas sem mágoa, e com a mesma naturalidade como outros dias que passei com ele a regar a horta, ou à noite, nos serões da lareira". Mas na guerra a morte não era tão natural.


Texto de Francisco Baptista publicado no livro "Cartas de Amor e de Dor, de Marta Martins da Silva, pág. 262

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O último semestre da CCaç 2616, em Buba, foi um tempo malfadado. Todos os tipos de azares e desgraças, aconteceram. Além dos habituais ataques de armas pesadas ao aquartelamento, que dado os abrigos e valas existentes, não representavam grande perigo, houve toda a sorte de acontecimentos funestos. A Companhia sofreu com tudo isso quatro mortos e cerca de 20 feridos, alguns graves.

Em abono da verdade um morto e muitos feridos pertenciam a um Pelotão doutra Companhia do Comando de Aldeia Formosa que estava a reforçar a nossa. Este acidente foi provocado por uma granada de lança-granadas-foguete que depois de se lhe retirar a segurança para a introduzir na arma, com alguma inclinação a um metro e pouco do chão podia explodir. Foi isso que aconteceu junto à arrecadação do material provocando a morte imediata dum soldado e ferimentos, alguns muito graves, em cerca de quinze outros camaradas. Essa granada, penso que fabricada no Braço de Prata, teve poucos meses de utilização pois terá provocado outros acidentes noutros quartéis.

Houve de tudo, desde minas anti-pessoais e anti-carro a reencontros com a guerrilha no mato a três acidentes graves com diferentes tipos de granadas.
Este rol de desgraças penso que começou quando o Albano morreu e dois amigos dele ficaram gravemente feridos com a explosão de uma granada de mão.
Deste acidente penso que terá havido duas versões pelo que me abstenho de contar qualquer delas. Foi um acidente infeliz como houve tantos na Guiné.

Muitas armas e material explosivo, por vezes pouco seguro, deficiente instrução militar. Meses de relativo relaxe em que parecia que a guerra já tinha acabado, alternados com dias agitados por disparos e rebentamentos. Meses dum sol tropical escaldante alternados com meses de aguaceiros sem fim. A maior parte dos camaradas confinados durante quase dois anos a viver no aquartelamento, sem possibilidade de poderem gozar férias. Tudo isto criava condições propícias a todo o tipo de acidentes.

O Albano era pescador de Setúbal tal como os outros dois camaradas. Era discreto, diligente, trabalhador, popular entre todos os militares do quartel. Era um tipo de homem capaz de se relacionar com todos os outros, acima ou abaixo da sua escala hierárquica ou social, sem fazer concessões a ninguém. Só homens superiores conseguem ter este comportamento, porque para lá dos seus conhecimentos literários, técnicos ou artísticos, conseguem ter a visão correta da miséria e da grandeza dos seus semelhantes.

Tendo a idade da maioria de todos nós revelava já ser um homem mais maduro. A isso não seria alheio o facto de já ser casado e ter duas filhas e como tal ter tido cedo responsabilidades que obrigam um homem a crescer.

Lembro-me do seu corpo estar depositado na pequena capela do quartel a aguardar transporte para Bissau. Penso nisso, no choque que a sua morte provocou em todos e apesar disso na solidão de morte do seu corpo, sozinho na capela, abandonado por todos. Olho para o monitor do computador e parece que me revejo a passar próximo da capela, que ficava ao lado da estrada que levava ao cais, em frente à messe de oficiais, a pensar que o meu comportamento e o dos outros não estava a ser correcto em relação o Albano.

Vinha-me à memória a morte dos meus avós e do meu padrinho, velados em casa sempre com tanta gente à sua volta, toda a aldeia, parentes e amigos das terras próximas a entrar e a sair para nos cumprimentar e rezar pelos morto. Lembrava-me principalmente do meu avô materno Francisco, um homem calmo, meigo, amigo de tratar da horta, e de ir à "venda" beber um copo com os amigos. Para mim foi o melhor homem que alguma vez conheci e sempre ouvi os maiores elogios acerca dele, bom homem e um lavrador dos melhores.

Assisti à sua morte, recordo tudo, desde o quarto em que estava deitado, às rezas antigas, que não conhecia, que a minha avó paterna fez. Recordo também que quando expirou, a minha avó mandou vir um pão (dos grandes pães que a minha mãe cozia) e foi partido em duas partes para dar a dois pobres. Depois do funeral a minha mãe mandou dar um quartilho de azeite a todas pessoas da aldeia que dele precisassem. Não sei ou já esqueci qual o significado daquele pão.

Lembro-me dessas noites longas de velório com a minha mãe, tias, primas e outras mulheres sentadas em redor da urna sempre a rezar terços. Os homens demoravam-se pouco, saiam e depois ficavam na rua a falar das colheitas, dos animais, enfim das vidas em geral.

Na morte do camarada Albano, em Buba, faltou o amor e compaixão das mulheres para dar sentido e dignidade à despedida.
Éramos homens e jovens, não dávamos valor às cerimonias e rituais que existem e sempre existiram em todos os tipos de sociedades e têm um papel importante para repor a paz e a harmonia entre os vivos e os mortos.

As mulheres conhecem todos esses mistérios, sabem falar com os mortos e não têm pudor em chorar e em manifestar as suas crenças e a sua fé. Como dizia o poeta Louis Aragon, a mulher é o futuro homem. Eu diria que ela é o princípio e o fim do homem pois é ela que lhe dá a vida e que no final o entrega e recomenda aos deuses.

Em Buba não tínhamos padre e não me recordo de alguém que o substituísse com uma mensagem de despedida que reunisse todos os militares do quartel ou pelo menos a Companhia. Sei lá, esse ou outro gesto, como toda a Companhia formada em silêncio em frente à capela onde estava o corpo.


(Francisco Baptista, texto publicado a 21 de março de 2014 no blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné)

Texto de Francisco Baptista publicado no livro "Cartas de Amor e de Dor, de Marta Martins da Silva, pp. 263 e 264

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Com textos meus, editados no Blogue do Luís Graça e com outros textos, editei um livro que tem este e muitos outros textos, sobre a minha vida na Guiné e em Brunhoso, uma aldeia pobre de Trás-os-Montes, onde nasci e me criaram.

No próximo dia 19, irei com alguns camaradas do Porto, ao almoço da Tabanca da Linha, que tendo como Régulo, o camarada Manuel Resende, cada vez ganha mais fama pelos bebidas e cozinhados que revigoram o corpo, aquecem a alma e ajudam a criar um alegre convívio, que todos os ex-combatentes da Guiné apreciam.

Tal como eu dois outros camaradas levaremos livros , eu já li os três e gostei muito, experiências diferentes, estilos diferentes, mas todos interessantes.

Abraço
Francisco Baptista


Eis as capas dos livros:
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Nota do editor

Último poste da série de 24 DE ABRIL DE 2022 > Guiné 61/74 - P23196: (In)citações (204): As comemorações do dia 25 de Abril de 1974 (Victor Costa, ex-Fur Mil Inf)

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Guiné 61/74 - P18075: Notas de leitura (1022): “A caminho de Viseu”, por Rui Alexandrino Ferreira; Palimage, 2017 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Novembro de 2017:

Queridos amigos,
Rui Alexandrino Ferreira tem presença assídua nesta sala de conversa. No seu livro "Rumo a Fulacunda" ofereceu-nos páginas impressivas, tanta da sua guerra da Guiné como da sua vivência angolana. Este livro é um encontro de amigos, tem o RI 14 por epicentro, mas o passado também anda à solta. Tem a língua afiada, e de vez em quando desembesta de mansinho, sai da sua rigidez peculiar. Vale a pena ouvir o que se partilha no anfiteatro das memórias sobre este homem.

Um abraço do
Mário


"A caminho de Viseu", memórias de Rui Alexandrino Ferreira

Beja Santos

Na encruzilhada da vida e em torno de uma vivência do Regimento de Infantaria n.º 14 (Viseu), ergue-se um rol de lembranças e várias pessoas se sentam à mesa da amizade, o pretexto é muito válido, todos concordam. Rui Alexandrino Ferreira [foto à direita] é já conhecido no blogue, saiu-lhe do punho um livro de páginas vigorosas, "Rumo a Fulacunda", voltará a escrever sobre a Guiné, ali houve duas comissões, ali se passaram situações insuperáveis. “A caminho de Viseu”, por Rui Alexandrino Ferreira, Palimage, 2017, é uma sala de conversa a pedido de um certo chefe de orquestra, que abre o desfiar das memórias recorrendo a dois versos de Fernando Pessoa: “Sinto mais longe o passado / Sinto a saudade mais perto”. Logo uma lembrança para um ausente da conversa, Manuel Cerdeira, que fora comandante do destacamento de Cabedu, algures no Cantanhez, e lança-se um abraço fraternal. Está lançado o mote.

Rui Alexandrino Ferreira foi alferes na Guiné em meados dos anos 1960, não se sentiu bem enquadrado na vida civil, em 1970 irá frequentar o curso para capitão, regressa à Guiné, e em 1973 volta a Angola de onde é natural, noutra comissão. Se na sua primeira comissão conheceu atribulações, a sua segunda comissão permitiu-lhe uma experiência distinta, foi nomeado para integrar as Forças Africanas, aquartelou-se em Aldeia Formosa. Discreteia sobre a formação do MFA e põe ênfase no que viu em Angola, assistiu ao horror da guerra fratricida pelo controlo da cidade de Luanda, num cenário de caos e morte e pilhagens, de gente a resgatar os seus bens antes de se porem em fuga, gente enlouquecida a disparar em todas as direções.

Exalta a sua amizade e admiração por Pedro Pezarat Correia, “um dos oficiais mais lúcidos e distintos e mais capazes entre os oficiais do quadro permanente”. Conheceram-se em Aldeia Formosa. Vêm depois pilhérias e facécias que vão desembocar a Viseu, entram testemunhos na ribalta, logo uma prova eloquente de consideração no depoimento do Tenente-General António Luís Ferreira do Amaral. O autor, quando pode, lança a sua ferroada, veja-se o que ele escreve a propósito do tenente Armelim Costa:
“Era e é um moço excelente. Quando se apresentou em Viseu, vindo do Regimento de Comandos, trazia consigo a cabeça cheia daquela propaganda de superioridade, que não tinha a mínima razão de ser. Nunca justificara em combate as extraordinárias atuações de que falavam. Na Guiné fartaram-se de entrar em situações algo nebulosas, inclusivamente uma das suas companhias tinha a fama de ouvir os tiros dos turras duas vezes. A primeira vez quando os tiros passavam por eles e a segunda quando eles passavam pelos tiros… Claro que isto é uma anedota, mas isto são histórias que não vêm ao acaso”.
O Major Sousa Figueiredo brinda-o com versos: 
"Ironia perversa do Destino, / Que manda p’ra Guiné um angolano / Criado em berço de Menino, / A brincar, na rua, com o massano; / Da Guiné regressa à nata terra, / Com o peito cheio de glória, / Mais duas cruzes de guerra, / Qual tributo fruto da vitória. / Capitão vai para o Uíge, / Desfiladeiros, florestas e Fazendas, / Novos feitos e vitórias atinge, / Na africana nova Caipemba; / No mês das águas mil; / Da Páscoa e do Agno de Deus / A revolução do 25 de Abril, / Em boa hora o trouxe a Viseu; / Cá, assentou arraiais, / Procriou, capitaneou e muito mais, / De muitos amigos se rodeou, / Por isso também cá estou.

É uma parada de testemunhos, oficiais, sargentos e praças não se cansam de exaltar amizades bem consolidadas. As histórias multiplicam-se, são como as cerejas, escolhendo uma bastante impressiva, sai do punho do autor a homenagem à classe médica na pessoa do Dr. Lino Ministro Esteves: “Sucedeu a determinada altura que recebi de Alcofra, terra de origem da família dos meus sogros, um telefonema da parte do tio da minha esposa, que pretendia fazer-se acompanhar de uns parentes afastados que pretendiam falar comigo.
Marcado o dia lá os recebi em minha casa. Segue-se uma história embrulhada e Rui Alexandrino replica que lhe falem claro ou então não vale a pena continuar a conversa.
Muito a custo e no meio de certa vergonha contaram-me então que um dos filhos de um dos primos se tinha enfiado na cama afirmando que ia morrer com a sida e ninguém o conseguia demover da condição de que estava doente. No meio disto tudo tinha sucedido que, quando tinha ido para o monte acompanhado de outro moço para o pastorício das ovelhas teriam tido relações sexuais e ao ouvir dizer que a sida era a doenças dos maricas convenceu-se de aquilo também lhe dizia respeito. E aí, para desespero dos pais deixou de comer e trabalhar e não saía da cama. Combinei então com o pai ir eu a Alcofra no fim de semana seguinte onde iria a sua casa para ter uma conversa sozinho com o moço e ver no que aquilo dava.
Da conversa, ao princípio um pouco contrafeito lá me contou o que lhe ia na alma. Posto isto fui-lhe explicando que sendo ele saudável e o outro também e que não tendo ambos relações com mais ninguém, não tendo usado quaisquer agulhas, para injetar drogas, que pudessem estar contaminadas, não tendo por isso relações de risco dificilmente podia ter contraído a doença e que o iria buscar pessoalmente à porta de armas no dia da incorporação e que o levaria ao médico para que lhe fossem feitas análises e exames que levassem à despistagem da doença.
No seguimento tive uma conversa particular com o Dr. Ministro Esteves a quem o entreguei pessoalmente pois fui busca-lo à porta da incorporação, e feitas as análises e as radiografias e tudo mais o que o doutor inventou, lá lhe demos a notícia de que estava são como um pero, saiu dali louco de alegria, passou-lhe a febre! Acabou por ficar como contratado na tropa”.

Em anexos, junta efemérides na história da infantaria do RI 14.
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Notas do editor

Vd. postes do lançamento do livro de:

20 de novembro de  2017 > Guiné 61/74 - P17990: Agenda cultural (606): Uma grande festa de amor, amizade e camaradagem, a do lançamento do livro "A Caminho de Viseu", do Rui Alexandrino Ferreira, nas instalações do RI 14, Viseu, em 4 do corrente - Parte I
e
20 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17994: Agenda cultural (608): Uma grande festa de amor, amizade e camaradagem, a do lançamento do livro "A Caminho de Viseu", do Rui Alexandrino Ferreira, nas instalações do RI 14, Viseu, em 4 do corrente - Parte II

Último poste da série de 8 de dezembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18061: Notas de leitura (1021): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (12) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 20 de novembro de 2017

Guiné 61/74 - P17990: Agenda cultural (606): Uma grande festa de amor, amizade e camaradagem, a do lançamento do livro "A Caminho de Viseu", do Rui Alexandrino Ferreira, nas instalações do RI 14, Viseu, em 4 do corrente - Parte I


Foto nº 1 > Viseu > Regimento de Infantaria 14 > 4 de novembro de 2017 > Sessão de apresentação do livro do Rui Alexandrino Ferreira, "A Caminho de Viseu" (Viseu, Palimage, 2017, 237 pp. ) > Da direita para a esquerda: o autor Rui Alexandre Ferreira, ten cor ref, e o apresentador, Pezarat Correia, maj gen.


Foto nº 2 >  Viseu > Regimento de Infantaria 14 > 4 de novembro de 2017 > Sessão de apresentação do livro do Rui Alexandrino Ferreira, "A Caminho de Viseu" (Viseu, Palimage, 2017, 237 pp. ) > Aspeto geral da mesa, vista da esquerda para a direita. O Rui conversa com o ten gen Ferreira do Amaral.


Foto nº 3 >  Viseu > Regimento de Infantaria 14 > 4 de novembro de 2017 > Sessão de apresentação do livro do Rui Alexandrino Ferreira, "A Caminho de Viseu" (Viseu, Palimage, 2017, 237 pp. ) > Aspeto geral da mesa, vista da direita  para a esquerda: em primeiro plano o cor inf Mário [João Vaz Alves de ] Bastos, recém empossado cmt do RI 14


Foto nº 4 >  Viseu > Regimento de Infantaria 14 > 4 de novembro de 2017 > Sessão de apresentação do livro do Rui Alexandrino Ferreira, "A Caminho de Viseu" (Viseu, Palimage, 2017, 237 pp. ) >  O ten gen ref Ferreira do Amaral, que também foi um dos oradores da sessão.


Foto nº 5 >  Viseu > Regimento de Infantaria 14 > 4 de novembro de 2017 > Sessão de apresentação do livro do Rui Alexandrino Ferreira, "A Caminho de Viseu" (Viseu, Palimage, 2017, 237 pp. ) > Aspeto parcial da mesa: da esquerda para a direita, o cor inf Mário Bastos, cmdt do RI 14, o cor Manuel Cerqueira e Jorge Fragoso, o  representante da editora Palimage


Foto nº 6 >  Viseu > Regimento de Infantaria 14 > 4 de novembro de 2017 > Sessão de apresentação do livro do Rui Alexandrino Ferreira, "A Caminho de Viseu" (Viseu, Palimage, 2017, 237 pp. ) >  O cor inf Mário Bastos, cmdt do RI 14, natural de Viseu, no uso da palavra. [Sobre o RI 14, ver aqui no sítio do Exército Portuguiês]


Foto nº 7 > Viseu > Regimento de Infantaria 14 > 4 de novembro de 2017 > Sessão de apresentação do livro do Rui Alexandrino Ferreira, "A Caminho de Viseu" (Viseu, Palimage, 2017, 237 pp. ) > O cor Manuel Cerqueira, no uso da palavra.


Foto nº 8 >  Viseu > Regimento de Infantaria 14 > 4 de novembro de 2017 > Sessão de apresentação do livro do Rui Alexandrino Ferreira, "A Caminho de Viseu" (Viseu, Palimage, 2017, 237 pp. ) >  Última página do discurso do cor Manuel Cerqueira em que se pede a reparação de uma injustiça:  o Rui Alexandrino Ferreira, detentor de duas cruzes de guerra (uma de 1ª classe, como alferes miliciano, e outra de 2ª classe como cap mil, no TO da Guiné), há 40 anos que a Pátria lhe deve a "Torre e Espada do Valor, Lealdade e Mérito"


Foto nº 9 >  Viseu > Regimento de Infantaria 14 > 4 de novembro de 2017 > Sessão de apresentação do livro do Rui Alexandrino Ferreira, "A Caminho de Viseu" (Viseu, Palimage, 2017, 237 pp. ) > O representante da editora, a Palimage, Jorge Fragoso. 


(Continua)


Fotos (e legendas): © Márcio Veiga / Rui Alexandrino Ferreira (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Seleção de fotos do Márcio Vieira que o Rui Alexandre Ferreira nos mandou (umas dezenas), sem legendas, relativas à sessão de lançamento do seu livro "A Caminho de Viseu", que decorreu no passado sábado, dia 4 de novembro de 2017 (sábado), pelas 10,30 horas, nas instalações do Regimento de Infantaria 14, em Viseu. (*)


A apresentação da obra esteve a cargo do major general na reforma Pezarat Correia. A sessão foi muita concorrida. Há muito sabemos que em Viseu, a sua segunda terra (onde reside desde 1976), tem muitos amigos e admiradores.  Percebe-se, pelas fotos, que o Rui contou com a presença de muitos camaradas, amigos e familiares. No final houve um almoço de "confraternização / debate" (com  inscrições prévias), no refeitório do RI 14.

O Rui teve a gentileza de pessoalmente me convidar, para esta sessão, enquanto editor do blogue, convite que infelizmente não pude aceitar por razões da minha agenda pessoal. De qualquer modo fico muito feliz pelo lançamento do terceiro livro do Rui, que me vai mandar um exemplar pelo correio. É sempre uma festa, o lançamento de um livro de um camarada, para mais de memórias. Que Deus, Alá e os bons irãs da Guiné o protejam e concedam ainda muitos anos de vida, com qualidade, para ele poder continuar a escrever,  a contar (e a encantar-nos com) as suas histórias de vida, não obstante os seus problemas de saúde. O Rui, membro sénior da nossa Tabanca Grande, é um exemplo extraordinário de coragem, determinação, resiliência e luta contra a adversidade (**) (LG)




2. Ficha Técnica do livro:


Título: A caminho de Viseu: memórias 

Autor: Rui Alexandrino Ferreira

Editor: Palimage, Viseu

Coleção:   Coleção Imagens de Hoje

Género:  Memórias

Ano: 2017

ISBN  978-989-703-185-4

Idioma Português

Formato brochura | 237 páginas | 160 x 23 cm

Preço de capa: 18 €

Sinopse

Aos oficiais, sargentos, praças e funcionários civis, que comigo serviram no Regimento de Infantaria n.º 14, em Viseu, e que na execução de tudo quanto lhes competia fazer com o melhor do seu querer e saber, assim contribuíram com a sua quota-parte para fazer desta unidade uma das melhores, senão a melhor, da infantaria portuguesa na atualidade. Sendo a sua última representante por Terras da Beira, onde reinando sobretudo a amizade, se provou que este é o sentimento mais lindo do mundo entre os Homens, o único capaz de o fazer movimentar.




3. Recorde-se aqui algumas datas importantes da vida  do nosso camarada e escritor, Rui Alexandrino Ferreira (que tem cerca de 7 dezenas de referências no nosso blogue),


1943 - Rui Alexandrino Ferreira nasce no Lubango (antiga Sá da Bandeira), Angola

1964 - Integra o último curso de oficiais milicianos que reuniu em Mafra a juventude do Império.

1965 - Rende, na Guiné-Bissau, um desaparecido em combate [CCAÇ 1420, Fulacunda, 1965/67].


1970 - Frequenta o curso para capitão em Mafra, seguindo em nova comissão para a Guiné-Bissau [CCAÇ  18, Aldeia Formosa/Quebo, 1970/72].

1973 - Regressa a Angola em outra comissão.

1975 - Retorna a Portugal.

1976 - Estabiliza em Viseu, onde continua a residir.

2000 - Publica, na Palimage,  o seu 1º  livro,  Rumo a Fulacunda: crónicas de guerra  


2014 - Publica o seu 2º livro. Quebo: nos confins da Guiné (2014), igualmente sob a chancela da Palimage.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Guiné 63/74 - P16783: Inquérito 'on line' (88): A malta fazia alguma batota a nível de pelotão, sobretudo no que dizia respeito aos locais de emboscada... [Mário Pinto, ex-fur mil at art, CART 2519 (Buba, Aldeia Formosa e Mampatá, 1969/71); e José Manuel Cancela (ex-sold apont metralhadora, CCAÇ 2382, (Bula, Buba, Aldeia Formosa, Nhala, Contabane, Mampatá e Chamarra, 1968/70)]


Guiné > Região de Tombali > Aldeia Formosa (Quebo) > ..CART 2519, "Os Morcegos de Mampatá" (Buba, Aldeia Formosa e Mampatá, 1969/71) > A primeira secção do fur mil at art Mário Pinto.

Foto (e legenda): © Mário Pinto(2009). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Dois comentários ao poste P16780 (*)


(i) Mário Pinto [ex-fur mil at art, 

CART 2519, "Os Morcegos de Mampatá" (Buba,  Aldeia Formosa e Mampatá, 1969/71)]

Não posso confirmar se alguma vez houve batota na ninha companhia, a  CART. 2519,  e se o que vou expor pode ser considerado batota.

No princípio da nossa comissão,  depois da construção da nova estrada Buba-Aldeia Formosa em 1969, fomos colocados em Mampatá e tinhamos como principal missão a contra-penetração do corredor de Missirá. 

Todos os dias um Gr.Com,  reforçado com milicias e uma secção do Pelotão de Caçadores Nativos, deslocava-se para um local previamente determinado afim de emboscar por um período de 24 horas. Ao princípio foi cumprido na integra,  apesar das contrariedades que tinhamos com várias situações que aconteciam ao longo do período que nos era destinado à permanência no local. (necessidades fisiológicas, ansiedades por diversos motivos, mosquitada, calor abundante, saturação, etc.).

Tudo isto e mais algumas coisas não permitiam que a emboscada tivesse sucesso porque,  derivado ao desassossego que se apoderava dos militares emboscados,  permitia ao IN detectar-nos a longa distância e assim abortare a passagem no local ou atacarem-nos, (facto que por acaso nunca aconteceu, não sei porquê). 

Quero dizer com isto que,  uns tempos mais tarde,  começamos por nossa iniciativa a contrariar as ordens da missão. Ficávamos no corredor as primeiras horas e retirávamos para outro local, quando o pessoal começava no desassossego, mas sempre próximos do nosso objectivo, local em que pudessemos controlar a área envolvente ao nosso objectivo. 

Até porque o comandante de operações de Aldeia Formosa, na altura o major Pezarat Correia,  tinha por hábito meter-se numa DO e ir inspeccionar o local onde se encontravam as tropas. ( Eu tinha por hábito dizer que o Major andava a mostrar ao IN onde nós nos encontrávamos emboscados, mas isso é outra história.)

Apesar deste esquema engendrado por nós, conseguimos ter vários êxitos de capturas de material, como consta no nosso historial. O nosso capitão  só veio a saber deste esquema quase no fim da nossa comissão, porque esteve sempre convicto que nós passávamos as 24 horas no local pré estabelecido.



(ii) José Manuel Cancela [ex-soldado apontador de metralhadora, CCAÇ 2382, Bula, Buba, Aldeia Formosa, Nhala, Contabane, Mampatá e Chamarra, 1968/70]

Havia batota a nível de pelotão.

Por mais que uma vez saíamos do Quartel, com chuva e trovão, para irmos emboscar a três
quilómetros.

Passada a pista de aviação,fora do arame farpado, embrenhávamo-nos na mata,e era aí que passavamos o tempo.

Parece-me que todos o faziam, a nível de pelotão.
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domingo, 12 de agosto de 2012

Guiné 63/74 - P10255: Bibliografia de uma guerra (62): Primeiro Capítulo do próximo livro "Quebo", de Rui Alexandrino Ferreira (3): Primeira parte do depoimento do Major General Pezarat Correia (2)

1. Fim da apresentação do primeiro capítulo do próximo livro, "Quebo", de autoria do nosso camarada Rui Alexandrino Ferreira* (foto à esquerda) (ex-Alf Mil na CCAÇ 1420, Fulacunda, 1965/67 e ex-Cap Mil na CCAÇ 18, Aldeia Formosa, 1970/72):


COMPANHIA DE CAÇADORES 18


2. A CCaç 18 em reforço do Sector S-2


Por Pezarat Correia

Foi neste ambiente geográfico, humano e operacional que, em Janeiro de 1971, se integrou a Companhia de Caçadores 18 (CCaç 18), comandada pelo Capitão Rui Alexandrino Ferreira e que tinha sido acabada de formar na própria Guiné. A atribuição desta companhia não ia constituir uma surpresa para o Comando do BCaç 2892, nem a área de actuação e a correspondente missão seriam novidade para grande parte do pessoal da Companhia.

O Comando do BCaç 2892 soubera, já não recordo através de que vias, que a CArt 2521, que lhe estava atribuída de reforço e que estava a terminar a sua comissão, iria ser rendida por uma companhia da guarnição normal, isto é, a formar na Guiné e, predominantemente na base do recrutamento regional, da etnia fula, portanto. Aliás isto era voz corrente na tabanca, onde muitos desses militares tinham família e o que se sabia na tabanca sabia-se no quartel e vice-versa. Tal significava que parte do pessoal seria oriundo da região do Quebo cujo regulado tinha sede em Aldeia Formosa. Alguns deles já tinham mesmo experiência operacional, pois haviam pertencido aos pelotões de milícias e caçadores nativos, sob controlo operacional do Comando do Sector S-2. Estavam intimamente familiarizados com o terreno e com as populações, conheciam as formas de actuar do PAIGC na região, não lhes era estranho o ambiente dentro do BCaç 2892 e das suas Companhias e a forma de actuação do seu Comando. Sabia-se ainda que o comandante da companhia era um capitão miliciano, em segunda comissão na Guiné e, portanto, voluntário, que na anterior comissão, como subalterno, se distinguira brilhantemente na sua actividade operacional tendo sido condecorado com uma Cruz de Guerra de 1.ª Classe. Havia, portanto, de parte a parte, uma expectativa positiva com a entrada em sector da CCaç 18.

A Companhia chegou a Aldeia Formosa em 17 de Janeiro de 1971, na coluna logística que nesse dia regressou de Buba, onde chegara na véspera vindo de Bissau em Lancha de Desembarque Grande (LDG), da Marinha de Guerra. Era já noite e no Batalhão preparara-se uma recepção modesta mas, tanto quanto possível acolhedora. Depois de instalado todo o pessoal, reuniram-se os oficiais na velha e acanhada casa de tipo colonial que servia de messe de oficiais, com uns frugais aperitivos (a inevitável mancarra e castanha de caju em lata, insípidos bocados de queijo e fiambre de conserva) para acompanhar uns whiskies e cervejas e dar as boas-vindas aos recém-chegados. Mas as primeiras impressões foram algo frustrantes. Não pelos subalternos, naturalmente ansiosos, certamente desiludidos com as péssimas condições do aquartelamento, desordenado, mal iluminado, predominando o enquadramento operacional, arame farpado, torreões, trincheiras, abrigos. Os veteranos, todos com mais de um ano de comissão, olhavam sobranceiramente, como sempre se olhavam os novos “periquitos”. A frustração vinha do capitão, parecendo pouco comunicativo, mal-encarado, senão mesmo desconfiado. Deitámo-nos cedo, como habitualmente e o pessoal da CCaç 18 vinha “estoirado” e precisava de descanso. No dia seguinte as impressões alteraram-se radicalmente. Para melhor, muito melhor. O Capitão Rui (como rapidamente passou a ser conhecido), apareceu bem-disposto, conversador, irónico, cheio de iniciativa. Afinal ele vinha, na véspera, a sair de uma crise de paludismo que, com o cansaço da viagem, era o responsável pelo seu humor enganador. O dinamismo com que imediatamente começou a tratar da instalação da Companhia, a preparar metódica e eficazmente o treino operacional e a sobreposição com a CArt 2521, a integrar-se no ambiente geral e na missão que lhe ia ser atribuída, justificou as mais optimistas perspectivas. E rapidamente daria provas.

Consultando os registos de que disponho verifico que, em 19 de Fevereiro de 1971, ainda em período de sobreposição com a CArt 2521, a CCaç 18, a dois GC e comandada pelo seu Capitão, actuava pela primeira vez no corredor de Missirã. Os resultados foram significativos e revelaram uma boa acção de comando e uma conduta eficaz (aí estava mais um êxito de uma operação que fugia à rotina diária do GC emboscado passivamente). As tropas emboscadas detectaram um movimento no “carreiro”, verificando que era apenas um elemento isolado (no “carreiro” já se sabia, quem nele se deslocava e não fosse das NT era IN). Revelando uma serenidade notável para uma acção de estreia em que a tensão é sempre muito elevada e propiciadora de precipitações, o dispositivo deixou passar esse elemento concluindo que seria um explorador avançado e não se denunciou, o que só terá sido possível pela acção experiente do comandante se bem que, deve salientar-se, a Companhia contasse com combatentes já experimentados como milícias e caçadores nativos. Conseguiu manter a emboscada atenta e, passadas cerca de duas horas e meia, surge o grosso da coluna do PAIGC, com avultados reabastecimentos em material de guerra, logístico e diverso. Só então a emboscada foi desencadeada, desbaratando a coluna IN que, experiente em combate e conhecedora do terreno, reagiu pelo fogo e dispersou mas deixando no terreno a maior parte do material que era transportado por carregadores e não por guerrilheiros. Estes não perderam nenhuma das suas armas individuais. O Capitão Rui não considerou a operação terminada como, provavelmente, muitos outros o fariam, reorganizou as suas tropas e transferiu a emboscada para outro local mais adiantado em relação ao sentido de marcha do grupo do PAIGC que, entretanto, também se recompusera. Uma hora mais tarde verifica-se novo contacto de fogo em que a CCaç 18 causou baixas ao IN e lhe capturou armamento. A acção mereceu referências elogiosas do Comandante-Chefe, General Spínola.

Cinco dias mais tarde a CCaç 18 assumia integralmente a sua missão como unidade de reserva (intervenção) do Sector S-2. Em 30 de Junho um GC da companhia tem um novo contacto no corredor de Missirã e agora em missão de rotina na rede de emboscadas, com resultados menos favoráveis e sofrendo sete feridos ligeiros.

Quando o BCaç 2892 foi rendido pelo BCaç 3852, que assumiu a responsabilidade do Sector S-2 em 26 de Agosto de 1971, a CCaç 18 passou a reforçar o novo Batalhão e, já experiente e com provas dadas, constituiu para ele uma unidade fundamental. Em 13 de Janeiro e 8 de Fevereiro de 1972 voltou a registar vultosos resultados em novos contactos no corredor de Missirã, dos quais o Rui me ia mantendo informado através de correspondência que trocávamos.

Mas a acção do Capitão Rui e da sua Companhia não sobressaiu apenas na actividade operacional. Pela sua maneira de ser expansiva, relacionamento fácil e aberto, aproveitando muito bem a ligação que grande parte dos seus militares tinham com as populações locais, conseguiu estabelecer com estas relações estreitas, que lhe foram muito úteis no papel de relevo que desempenhou nas tarefas de reordenamento (escolha, planificação e construção de novos aldeamentos para as populações civis) na região de Aldeia Formosa, que constituiu uma missão importante do BCaç 2892.

O certo é que, muito justamente, em Junho de 1971, apenas 4 meses depois de ter assumido a sua missão no quadro do BCaç 2892, o Capitão Rui foi louvado pelo Comandante deste. E, ao terminar a sua comissão nos finais de 1972, foi condecorado com uma nova Cruz de Guerra de 1.ª Classe. Mas, atenção, Rui Alexandrino Ferreira, Capitão Miliciano, era um combatente de eleição mas não era um belicista sádico ou vingativo. Tinha sentido de missão, procurava cumpri-la bem, sem alardes ou exageros. Era racional e respeitava o adversário.

Justifica-se aqui uma breve reflexão que, excedendo a mera apreciação da actuação da CCaç 18, me parece oportuna. Cumprir bem as missões de combate, logo num contexto de guerra, isto é, fazer bem a guerra, não implica que se goste da guerra ou, mesmo, que se concorde com ela. E não há nada de paradoxal nisto.

Quem é mobilizado para combater numa guerra tem duas opções antes de se encontrar perante o facto consumado: ou recusa liminarmente o seu contributo e deserta, ou vai. Mesmo contrariado, até eventualmente revoltado, mas vai. Esta delicada questão colocava complexos problemas de consciência dadas as conexões políticas da guerra colonial. Evidentemente que todas as guerras têm conexões políticas (a guerra é a continuação da política por outros meios, Clausewitz dixit) mas a guerra colonial levantava o problema da legitimidade política, uma vez que era determinada por um regime político que não resultava de uma escolha democrática dos cidadãos, era uma ditadura assente na repressão e na recusa dos direitos fundamentais. A guerra colonial era a expressão dessa política ilegítima nas colónias e os militares eram seus instrumentos. Respeito os que assumiram desertar por convicções legítimas, por vezes forçados a rupturas radicais nas suas vidas, rupturas dolorosas, enfrentando riscos e situações muito precárias. Foram actos de coragem. Mas também sabemos que sob a capa de motivações respeitáveis houve quem desertasse por mero comodismo, porque dispunha de condições materiais para enfrentar um exílio dourado, sustentado pelas famílias que os visitavam com frequência, sem que tivesse sobre a guerra e a situação política qualquer objecção de consciência ou rejeição ideológica. Para os militares dos quadros permanentes a mera admissão da deserção era mais traumática e, em tempo de guerra, envolvia o anátema da traição, da cobardia, do abandono “perante” o IN, colocando por isso delicados dilemas no campo moral e ético. Era uma opção extremamente problemática, particularmente quando se tinha de deixar mulher e filhos cuja subsistência estava a seu cargo. Mesmo assim houve quem, honesta e temerariamente, fizesse essa opção.

Para quem não podia, ou não queria, seguir o caminho da deserção, a alternativa era só uma, ir à guerra. E, uma vez na zona de combate, em operações, face ao IN, cumprir e cumprir bem ou não cumprir e cumprir mal, podia significar a diferença entre sobreviver ou morrer, não apenas para o próprio mas para os que o acompanhavam. Isto era especialmente verdadeiro para quem tinha responsabilidades de comando, quando dos seus actos não dependia apenas a sua integridade pessoal, mas também a dos seus comandados. As decisões de um comandante em campanha não têm um mero alcance individual ou egoísta, envolvem sempre os seus comandados e, por isso, não tem o direito de, por não concordar com a guerra, recusar ou abrandar a actividade operacional, desmotivar-se a si e aos seus subordinados, dar, pela sua passividade, todos os trunfos ao adversário. Para além de profissionalmente condenável seria eticamente inaceitável que, por causa das suas convicções, por muito louváveis que as considerasse, pusesse em risco a integridade física, a vida dos homens que dependiam e confiavam na sua acção de comando. Este era um problema humano de uma enorme delicadeza, que se colocou a muitos oficiais e testemunho-o por experiência própria. O comandante não só tinha de cumprir e cumprir bem, como tinha que fazer com que os seus subordinados cumprissem e cumprissem bem.

Mas, então, e aqueles que já tinham, ou foram adquirindo consciência cívica, inteirando-se da injustiça da guerra e dos interesses reais que esta servia, da natureza perversa do sistema colonial e da ditadura na metrópole a que estava associado? Como conciliar estas convicções político-ideológicas com as suas obrigações de comandante? A solução só poderia ser aguentar os riscos materiais e os custos morais de uma guerra com a qual se discordava, exercer com sacrifício mas com honra a sua acção de comando e tratar de aproveitar o próprio paradoxo da guerra, as contradições que introduzia no sistema, para alimentar as fragilidades que iam minando o regime, tornando inevitável o seu derrube e, no momento oportuno estar no lado certo e com as pessoas certas para lhe aplicarem o golpe decisivo. As imposições éticas que tinham com os seus homens, com os seus comandados, não as tinham para com os responsáveis políticos nas alcatifas do poder que, como atrás assinalei, nem sequer era legítimo e era, esse sim, o responsável pelas verdadeiras causas e perversões da guerra. Em relação ao poder político ilegítimo e ditatorial, a obrigação do militar consciente era colocar-se do lado do povo, revoltar-se e derrubá-lo. E foi isso que veio a acontecer mas levou tempo a amadurecer. A própria guerra se encarregou de gerar os factores e os agentes que estariam na base do derrube do regime que levara à guerra e era agora dela prisioneiro.

Não estou a dizer que esta tipificação se aplicasse ao Capitão Rui Ferreira. O que quero dizer é que, em termos teóricos, é deslocado identificar, linearmente, bom combatente e apologista da guerra, bom combatente da guerra colonial e defensor do sistema colonial. A segurança e a vida dos seus homens, a mais importante obrigação de um chefe, obriga um comandante, uma vez que aceitou assumir o comando de uma unidade, a comandar bem. E nesse particular não tenho dúvidas, o Capitão Rui Alexandrino Ferreira foi um excelente comandante de companhia em campanha e um excepcional condutor de homens. Posso testemunhá-lo porque convivi com ele directamente durante oito meses, em ambiente de campanha e de guerra, acompanhei-o algumas vezes nas saídas para o mato e, afirmo-o convictamente, ao longo da minha experiência de trinta e seis anos de serviço militar efectivo, na grande maioria em contacto com as tropas e em todos os sucessivos escalões de comando, com seis comissões na Índia e em África desde alferes a major, o Capitão Rui Alexandrino Ferreira foi dos melhores condutores de homens que me foi dado conhecer.

Há uma característica da liderança que considero o tempero decisivo capaz de conferir virtude a determinados atributos de comando que, sem ela, podem tornar-se excessivos e transformar-se em defeitos perversos. Refiro-me ao bom senso, o equilíbrio moderador que impede que a coragem resvale para temeridade gratuita empurrando os seus homens para riscos desnecessários, que evita que o culto da disciplina dê lugar ao autoritarismo desumano, que a tolerância resvale para o laxismo, que o gosto pela decisão rápida caia na precipitação, que o excesso de ponderação conduza à hesitação. O bom senso confere sangue frio nas situações de pressão emocional, presença de espírito quando à volta se instala a ansiedade. É uma virtude que, normalmente se adquire com a idade, com a experiência, com a dimensão da responsabilidade. Mas, apesar da sua juventude, o Capitão Rui Alexandrino Ferreira aliava ao seu entusiasmo contagiante uma notável dose de bom senso, o que lhe permitiu aplicar a sua coragem, o seu sentido de disciplina, o seu gosto pela decisão, na medida e no sentido convenientes. Não estou a fazer um elogio fácil. Não devemos nada um ao outro nem pretendemos nada um do outro. Estou apenas a registar uma opinião madura e consolidada, que é a minha.

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Mas há ainda uma outra característica do Rui Alexandrino Ferreira que me interessa destacar. É a sua faceta humana, a facilidade para conquistar e cultivar amizades, a sua disponibilidade para conviver, para colaborar e para ajudar, o que também foi um trunfo na sua elevada capacidade de liderança.

Em Aldeia Formosa as instalações eram muito deficientes, nomeadamente as dos oficiais, bem piores do que as dos sargentos e as das praças, cujas casernas foram as primeiras a serem concluídas depois da chegada do BCaç 2892. Quando este foi rendido estava ainda em construção um novo edifício de quartos para oficiais que só veio a ficar concluído depois da sua rendição pelo BCaç 3852.

O Rui resolveu alugar uma casa rudimentar na tabanca, fora do perímetro do quartel e aí se instalou com os seus oficiais subalternos. Era pouco mais do que uma palhota melhorada, coberta a zinco, mas ampla e os seus novos residentes fizeram os arranjos possíveis, com cartazes (do tipo das motivações mais correntes em ambientes masculinos e bélicos), com boa instalação sonora, com um conforto mínimo. Era um oásis dentro de Aldeia Formosa e passou a ser o local de convívio para muitos oficiais, incluindo o Comandante, Segundo-Comandante e Oficial de Operações, que ali iam à noite beber uns copos, ouvir música (predominando a música da época, do pós-década de sessenta, de intervenção e contestatária), falar com liberdade de tudo, sem mesmo deixar de lado temas mais incómodos, culturais, sociais ou políticos. Às vezes chegava-se ali vindo de actividade operacional e saia-se a correr para responder às flagelações dos grupos do PAIGC.

O Rui tinha um relacionamento muito próximo com todo o seu pessoal, oficiais sargentos e praças, sem nunca ter sido beliscado o seu ascendente de líder natural. Mas também eram muito boas as suas relações com os camaradas das outras subunidades e com os oficiais superiores do Batalhão sem que daí resultasse a mínima perturbação para os condicionamentos hierárquicos. A “palhota” da CCaç 18 era um sítio onde todos se sentiam bem, desinibidos e descontraídos. 

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3. Para além da CCaç 18

Pela minha parte felicito-me por ter feito com o Rui uma sã amizade.

Depois do seu regresso da Guiné, finais de 1972 princípios de 1973, antes de nova mobilização minha, restabelecemos a nossa relação que, aliás, nunca interrompêramos completamente pois mantivemos alguma troca de correspondência. Ele pretendia continuar ao serviço do Exército e queria ir para Angola, de onde era natural, onde crescera até vir para Portugal para a tropa, onde tinha a sua família há várias gerações (na então cidade de Sá da Bandeira, actual Lubango) e onde queria fixar-se. Em meados de 1973 iniciei uma nova comissão em Angola, tendo sido convidado para ir chefiar o Gabinete das Forças Auxiliares na Zona Militar Leste (GFA/ZML) com sede na cidade do Luso (hoje Luena), que incluía as força estrangeiras catanguesas (nome de código Fiéis), zambianas (Leais) e os angolanos Grupos Especiais (GE). Convidei o Rui, que entretanto se tinha oferecido para nova comissão em Angola, para ir trabalhar comigo, isto é para, uma vez eu chegado a Angola propor a sua nomeação para um dos lugares de adjuntos no GFA/ZML, alguns dos quais eram destacados junto dos campos dos Fiéis e Leais. Aceitou, em princípio, mas ficou combinado que, assim que chegasse a Luanda entraria em contacto comigo. Assim fez mas, entretanto, ficou colocado em Luanda onde sua mulher – tinha acabado de se casar – também tinha aí emprego. Não fazia sentido que ele fosse para o leste nessas condições apesar de eu ter gostado muito de ter contado com a sua valiosa colaboração.

Estas palavras finais já ultrapassam o espaço temporal sobre o qual o Rui me convidou para contribuir com o meu modesto depoimento – aquele que cruzou as rotas da CCaç 18 e do BCaç 2892. Mas justifica-se porque invoca uma amizade que resultou desse cruzamento. Depois seguiram-se os anos, trinta e quatro longos, agitados e riquíssimos anos. Por vezes posicionámo-nos diversamente em relação a determinadas rupturas e evoluções posteriores a 1974 mas nunca, tenho a convicção disso, em relação aos fundamentos e aos princípios que de então para cá mudaram Portugal, o Mundo e a sua Terra, Angola. Mas estas já são outras matérias que excedem o objectivo destas linhas. Creio que temos dado provas, de parte a parte, que mantemos uma sólida amizade e nos respeitamos mutuamente. A CCaç 18 está na origem dessa amizade. A sua invocação ajusta-se plenamente neste livro em que o hoje Tenente-Coronel Rui Alexandrino Ferreira quis registar a memória da Companhia que, brilhantemente, formou e comandou, enquanto jovem Capitão, nas matas e bolanhas da Guiné.

PEDRO PEZARAT CORREIA
Dezembro de 2008

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Mapas a elaborar:

Mapa 1 - Guiné c/ localização do Sector S-2 e assinaladas as localidades onde estavam guarnições militares:
ALDEIA FORMOSA
CHAMARRA
PATE EMBALÓ
MAMPATÁ
NHALA
BUBA
EMPADA
Assinalar ainda:
CONTABANE
República da Guiné
Sectores limítrofes: S-1, S-3, L-1 e L-5
Mapa 2 - Sul da Guiné localizando os corredores de Guilege, de Missirã e de Buba e assinalando:
INJASSANE
XITOLE
Rio Grande de Buba
Rio Corubal
Mapa 3 - Guiné realçando a posição do Sector S-2 como tampão do sul do TO e assinalando:
CANTANHÊS
CANSEMBEL
Canal de Bubaque