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sexta-feira, 8 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24633: Notas de leitura (1614): "Uma História do Mundo em 100 Objetos", por Neil MacGregor; Temas e Debates e Círculo de Leitores, 2014 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Novembro de 2021:

Queridos amigos,
Esta História do mundo em 100 objetos ocupa-se, de uma maneira totalmente original, de abordar 100 objetos que nos conduzem numa viagem no tempo e no espaço, dando-nos a conhecer como a Humanidade moldou o mundo, desde a Pré-História a este emergente século XXI. Se começamos em África de há dois milhões de anos a ele regressamos no início do presente século para ver uma escultura patente no Museu Britânico feita de armas que nos falam da Guerra Fria, da luta de libertação, de choques interétnicos, da incapacidade dos países recém-independentes terem sabido reconciliarem-se e caminharem juntos, pacificamente, para uma via de progresso, de equidade e bem-estar.
Dos 100 objetos escolhemos o Trono de Armas como marcante de um projeto de reconciliação que fizesse retirar milhões de armas do meio familiar, fazer desaparecer as crianças-soldados, remover as minas, dando como contrapartida a todos aqueles que entravam neste projeto-paz e restituiam as armas, enxadas, máquinas de costura, bicicletas e material de construção civil. Esta escultura feita de pedaços de armas forçosamente que nos perturba, de uma peça de destruição fez-se alegoricamente um trono, a tecnologia tem destes prodígios, de uma hora para a outra a fábrica de eletrodomésticos pode transformar-se numa construtora de armas sofisticadas. É o estupor desta fragilidade de que este trono também fala.

Um abraço do
Mário



Um registo da guerra que dá pelo nome de trono de armas, tragédia e triunfo humanos

Mário Beja Santos

Uma História do Mundo em 100 Objetos, por Neil MacGregor, Temas e Debates e Círculo de Leitores, 2014, é uma estimulante aventura em que os objetos ajudam a compreender a história mundial. Neil MacGregor usou da faculdade de Diretor do Museu Britânico para fazer palestras na BBC e dar à estampa esta admirável viagem encetada na Pré-História e que vem ao quase presente, permitindo ao leitor olhares sobre a hominização, o que aconteceu depois da Idade do Gelo, como tudo mudou com as primeiras cidades e estados, a alvorada da Ciência e da Literatura, os pensadores orientais, os construtores de impérios, os primeiros protocolos e formas de distinção, a ascensão das religiões mundiais… Um itinerário que nos leva até à sociedade de consumo, a emergência de guerras étnicas depois da descolonização, a importância que tem hoje o cartão de crédito e os mais prementes desafios energéticos.

Este Trono de Armas é inquietante e avassalador, é uma cadeira feita com partes de armas produzidas em todo o mundo e exportadas para África. Temos procurado muitas definições abrangentes para todo o século XX, é verdade que prepondera a ideia de que foi o século da mulher, mas não escapa a algumas interpretações a matança em massa que se praticou em duas guerras mundiais, nas purgas estalinistas, no Holocausto, nos arrasamentos nucleares, nos campos de morte do Camboja, nos massacres do Ruanda, é uma lista praticamente infindável. Este trono é um monumento a todas as vítimas da guerra civil moçambicana. Desapareceram os impérios, pareciam prosperar ideologias globais e afinal tudo caiu em disputas sangrentas. Faltou previsão aos dirigentes dos movimentos nacionalistas e mesmo aos líderes coloniais para com tempo criarem competência para as novas experiências governativas, EUA e URSS, os Aliados eram manifestamente indiferentes a este desafio de organização do Estado que gerasse soberania e fizesse calar as etnicidades exacerbadas. A guerra civil em Moçambique foi uma das mais sangrentas e parece que ainda não estancou.

As armas que dão forma a esta cadeira traçam a história do século XX moçambicano. As mais antigas, no espaldar, são duas velhas G3 portuguesas. A FRELIMO era apoiada pela URSS, e isso explica que todos os outros elementos da cadeira sejam armas desmembradas produzidas pelos comunistas: os braços são da AK-47 soviética, o assento de espingardas polacas e checas, e uma das pernas da frente é um cano de uma AKM norte-coreana. Como enfatiza Neil MacGregor: “Trata-se da Guerra Fria em forma de peça de mobiliário, o Bloco de Leste em ação, lutando pelo comunismo em África e em todo o mundo”. Em 1975, o novo Moçambique apresentava-se como um Estado marxista-leninista, em resposta, os rodesianos e os sul-africanos criaram e apoiaram um grupo oposicionista, a Renamo, com o intuito de destabilizar completamente o país, as primeiras décadas da independência moçambicana foram tempos de derrocada económica e sangrenta guerra civil. Isto para sublinhar que as armas do trono participaram na guerra civil: um milhão de mortos, milhões de refugiados e 300 mil órfãos de guerra. A paz só veio em 1992, mas embora a guerra tivesse acabado, havia armas por todo o lado. O maior desafio que se pôs a Moçambique foi a destruição de milhões de armas e refazer a vida dos antigos soldados e das suas famílias.

O Trono de Armas tornou-se um elemento inspirador neste processo de recuperação. Fez parte de um projeto de paz chamado “transformar armas em ferramentas”, e no qual as armas usadas pelos dois lados eram entregues em troca de amnistia e ferramentas úteis, como enxadas, máquinas de costura, bicicletas e material para telhados. Entregar as armas era um ato de verdadeira bravura por parte destes antigos combatentes e teve projeção em todo o país, pois ajudou a romper o apego pelas armas e pela cultura de violência que atingira Moçambique durante tantos anos. Desde o início do projeto, mais de 600 mil armas foram entregues e transformadas em algumas esculturas. Graça Machel patrocinou o projeto que tinha o objetivo de “retirar os instrumentos de morte das mãos dos jovens e dar-lhes uma oportunidade de desenvolverem uma vida produtiva”.

Este trono, patente no Museu Britânico, foi criado por um artista moçambicano de nome Kester. Escolheu fazer uma cadeira e chamou-lhe trono, são raras nas sociedades tradicionais africanas, estão reservadas aos chefes tribais, príncipes e reis. O peso alegórico é inequívoco: é um trono em que ninguém se vai sentar, não está destinado a uma realeza ou a um senhor do mando, é a expressão de um espírito do novo Moçambique, é um marco da reconciliação. Como escreve MacGregor, há algo de particularmente perturbador numa cadeira feita com armas concebidas especificamente para matar, mutilar, anular. Kester deu uma explicação: “Não fui afetado diretamente pela guerra civil, mas tenho dois parentes que perderam as pernas. Um pisou uma mina e perdeu a perna, e o outro, um primo, perdeu uma perna a lutar pela FRELIMO”.

Kester fez deste trono uma mensagem de esperança. “Dois canos de espingarda formam as costas da cadeira. Se olharmos com atenção parecem ter caras, dois orifícios de parafusos para os olhos e uma ranhura para a boca. Até parecem estar a sorrir". Foi um acidente visual que Kester aproveitou e decidiu incorporar na peça, negando às armas o seu propósito primário e dando à obra de arte um forte sentido: “Não esculpi o sorriso, faz parte da coronha da espingarda. Aproveitei os orifícios de parafuso e a ranhura onde se fixava a bandoleira. Escolhi as armas mais expressivas. No cimo podemos ver uma cara sorridente. E há outra cara sorridente: a outra coronha. Parecem estar a sorrir uma para a outra felizes para paz e liberdade que chegou”.

No seu todo, este original livro que nos conduz da África de há dois milhões de anos para a aurora do século XXI, dotado de uma escrita admirável e estimulante, é verdadeiramente uma História do mundo. Uma leitura imperdível, onde um Trono de Armas põe um antigo combatente, como eu, a pensar como devemos contribuir para recordar os horrores da guerra ao serviço da reconciliação dos homens, naquelas parcelas africanas onde combatemos.


Neil MacGregor
Imagens de cadeira feita com peças de armas, Maputo, Moçambique, peça no Museu Britânico
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Nota do editor

Último poste da série de 4 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24618: Notas de leitura (1612): Guiné, Operação Irã (maio de 1965) e Operação Hermínia (março de 1966), no fascículo 2 de "As Grandes Operações da Guerra Colonial", textos de Manuel Catarino; edição Presselivre, Imprensa Livre S.A. (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 22 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23450: A nossa guerra em números (18): o consumo de munições e granadas pelo exército

A granada defensiva M26A1
m/63 (
Luís Dias, 2010) (**)
 

1. Quantos milhares de toneladas de munições,  granadas, minas, bombas e outros engenhos mortíferos consumiu a guerra do ultramar / guerra de África / guerra colonial (1961/74) ? (*)

Ninguém saberá responder a essa pergunta, nem do nosso lado nem muito menos do lado do IN de outrora...  

Quando muito,  há dados  parciais das NT, para alguns anos e teatros de operações (nomeadamente, Moçambique, 1970, 1971 e 1972), no que respeita ao número e tipo de munições e granadas consumidas por (e/ou fornecidas a) o exército.

Lá teremos que recorrer, mais uma vez, a um estudioso como o ten cor na reserva, Pedro Marquês de Sousa, doutorado em história pela FCSH / Universidade NOVA de Lisboa (2014), autor do livro "Os números da Guerra de África"(Lisboa, Guerra & Paz Editores, 2021, 381 pp.).  Escreve o Pedro Marquês de Sousa (op. cit., pág. 300): 

" O fornecimento de munições às tropas era um dos grandes desafios para a logística militar, pelo elevado peso e volume deste tipo de cargas, cujo transporte exigia ainda medidas especiais de segurança." 

Sabe-se, por outro lado, que "os depósitos de armazenamento em cada uma das frentes tinham de manter os níveis adequados em face do consumo elevado (sic) pelas unidades de combate".  Só em Moçambique, por exemplo, existiam oito complexos logísticos (Lourenço Marques, Beira, Tete.Vila Cabral, Mocuba, Nampula, Porto Amélia e Mueda), cada um deles devendo ter um "stock" crítico de material de guerra (munições, granadas e minas) (Op cit., pág. 302).

Ignora-se, por exemplo, quantos complexos logísticos deste tipo (ou depósitos de munições) existiam no TO da Guiné e onde estavam localizados... Pelo menos, deveria haver um ou mais em Bissau...

2. Ficamos com uma ideia aproximada dos consumos médios de munições e granadas, também por via dos  fornecimentos. 

Veja-se, por exemplo, para o caso de Moçambique, e para o ano de 1972, um resumo das quantidades das principais munições e granadas fornecidas, em milhares de unidades (por arredondamento por excesso ou defeito) (Adaptado por nós, op cit, pág.301):
  • Munições 7,62 mm > 2152,3
  • Granadas de mão defensivas > 4,2 
  • Granadas de mão ofensivas > 41,8
  • Granadas de morteiro 60 mm > 6,3
  • Granada de morteiro 81 mm > 5,7
  • Minas A/P (antipessoais) > 43,2 
No entanto, o consumo em operações era muito superior a estas quantidades (Vd. Quadro 1)_




Com base nestes números (Moçambique, em 1970 e 1971), o autor faz (indevidamente, quanto a nós, já que a média estatística pode ser altamente enganadora) uma estimativa do consumo médio anual de munições e granadas de uma "companhia operacional do Exército" (tipo "companhia de caçadores") (Op cit., pág. 302):

  • Munições 7,62 mm > 34000
  • Granadas de mão > 260
  • Granadas de morteiro > 200
  • Granadas foguete bazuca 8,9 > 30
Embora o autor ressalve que estes "valores médios" (sic)  "variavam naturalmente conforme a zona e a (...)  condição"  da unidade ou subunidade operacional  (companhia de intervenção, companhia de quadrícula, etc.), achamos que são valores que tanto podem pecar  por excesso como por defeito...  Não nos parece, todavia,  que se possam extrapolar, facilmente  para um teatro de operações na Guiné, com as suas especificidades... 


3. O consumo de munições podia variar conforme o tipo de acção  do IN e a sua duração, o treino, a disciplina de fogo das NT,  o armamento, a missão, etc.

Por exemplo, numa emboscada de vinte minutos, no mato, numa picada ou numa estrada, uma companhia ou destacamento (em geral, três grupos de combate), 60/70 (e nunca 90) G3 podiam despejar no máximo 4 carregadores de 20 cartuchos cada uma, o que daria uma média de 4800/5600 cartuchos...  

Depois havia, por cada grupo de combate (estou a pensar numa companhia de intervenção como a minha, a "africana" CCAÇ 12),  mais as seguintes armas com os respetivos apontadores e municiadores (estes também equipados, em geral, com a G3, enquanto o apontador levava uma pistola Walther 9mm):

  • 3 apontadores de dilagrama (um por secção de 9 ou 10 elementos);
  • 1 apontador + 1 municiadores de metr lig HK 21 (de fita);
  • 1 apontador + 1  municiador de LGFog 8,9;
  • 1 apontador + 1 municiador de LGFog 3,7;
  • 1 apontador + 1 municiador de morteiro 60...

Em resumo, três Grupos de Combate (mesmo completos) nunca queriam dizer 80 ou 90 espingardas automáticas G3, uma arma poderosa e fiável, melhor que a AK47, na opinião do antigo sargento 'comando', com 4 comissões, na Guiné e em Angola, o nosso querido amigo e camarada, Mário Dias (***), e que tinha com uma cadência  (teórica) de 600/650 tiros por minuto (****).

Por sua vesz, e desde que não encravasse, a HK 21 (melhor só a MG42, mas muito mais pesada, c. 12 kg.) podia despejar  centenas de munições 7,62 mm na resposta a uma emboscada... Mas em geral a malta tinha que saber  gerir as munições, para poder chegar ao quartel com segurança...

Já na resposta aos ataques ao quartel, destacamento ou tabanca em autodefesa, de uma hora, cada G3 podia facilmente consumir 8 ou mais carregadores, de 20 munições cada... Milícias e civis em autodefesa tinham muito menos disciplina de fogo do que os miliatres... 

Por outro lado, nas flagelações à distância (com morteiro 82 e 120, canhão s/r,  foguetões 122 mm), era disparatado fazer tiro com a G3 (cujo alcance prático era de 300 metros)... Mas a verdade é que não havia cão nem gato (sem ofensa para nenhum camarada...)  que não aproveitasse para fazer o gosto ao dedo, entrincheirado nos abrigos ou valas...

No mato, nos golpes de mão ou ataques das NT a objetivos IN (acampamentos, bases, etc.), a história era outra, e a disciplina de fogo era fundamental.

E depois havia a instrução e o treino na carreira de tiro... Não me lembro de alguma vez ter sido feito tiro na carreira de tiro de Bambadinca, depois de nós termos vindo do Centro de Instrução Militar de Contuboel em 18 de julho de 1969... Nem me lembro, no meu tempo,  de haver restrições ao consumo de munições 7,62 mm... Tal como não me lembro quantas munições 7.62 mm levava (e quanto pesava) o respetivo cunhete de madeira... Pode ser que algum dos nossos quarteleiros se lembre... (e tenha fotos que nos possa facultar).

Pedro Marquês de Sousa cita, nas páginas 302/303 do seu livro, a Op Nó Górdio, que decorreu no Norte de Moçambique,  de 1 de julho e 6 de agosto de 1970, que terá envolvido mais de 8 mil militares, e uma complexa logística. Aponta para os seguintes consumos nessa operação:
  • Géneros alimentícios >  590 toneladas;
  • Rações de combate > 260 toneladas / 130 mil rações;
  • Gasolina > 340 mil litros;
  • Gasóleo > 460 mil litros;
  • Munições > 158 toneladas.

4. Sabe-se que uma companhia (160 homens, em média) precisava de cerca de 880 toneladas de abastecimentos ao fim de uma comissão de 22 meses (40 em média por mês), incluindo 15,4 toneladas de munições (0,7 t por mês), o que em termos relativos representava apenas 1,75% do total (*****).


 Enfim, ainda falando de consumos de munições, granadas, minas, etc., não temos números relativamente à artilharia no CTIG (no final da guerra, havia mais de uma centena de obuses 10,5e 14  e peças de artilharia 11,4, espelhados pelo território), nem relativamente à FAP e à Marinha...  

Pode ser que alguma camarada destas armas satisfaça a nossa curiosidade (que é meramente intelectual, ao fim destes anos todos)...

Falaremos, entretanto,  de alguns consumos parcelares  da FAP (bombas, cartuchos, foguetes, napalm...) num próximo poste desta série.

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(...) É muito vulgar e frequente tecerem-se comentários depreciativos à espingarda G3, quando comparada à AK47. Em minha opinião, nada mais errado. Analisemos, à luz das características de cada uma e da sua utilização prática, os prós e contras verificados durante a guerra em que estivemos empenhados em África:

Comprimento: G3 - 1020mm |  AK47 - 870mm;

Peso com o carregador municiado: G3 - 5,010Kg |  AK 47 – 4,8Kg;

Capacidade dos carregadores: G3 – 20 cartuchos | AK47 – 30 cartuchos;

Alcance máximo: G3 – 4.000m |  AK47 – 1.000m;

Alcance eficaz (distância em que pode pôr um homem fora de combate se for atingido):
G3 – 1.700m |  AK47 – 600m;

Alcance prático: G3 – 400m |  AK 47 – 400m

(...) Se, por um lado, temos mais tiros para dar sem mudar o carregador, por outro lado esse mesmo facto leva-nos facilmente, por uma questão psicológica, a desperdiçar munições. E todos sabemos como o desperdício de munições era vulgar da nossa parte apesar de os carregadores da G3 serem de 20 cartuchos.

O usual era, infelizmente, “despejar à balda” sem saber para onde nem contra que alvo. Sem pretender criticar a maneira de actuar de cada um perante situações concretas, eu, durante todas as acções de combate em que participei ao longo de 4 comissões, o máximo que gastei foi um carregador e meio (cerca de 30 cartuchos). Por tal facto, em minha opinião, a dotação e capacidade dos carregadores da G3 é mais que suficiente, além de que os próprios carregadores são mais maneirinhos e fáceis de transportar que os compridos e curvos carregadores da AK47. (...)

(****) Vd. poste de 23 de janeiro de 2010 > Guiné 63/74 – P5690: Armamento (2): Pistolas, Pistolas-Metralhadoras, Espingardas, Espingardas Automáticas e Metralhadoras Ligeiras (Luís Dias)

(*****) Vd. poste de 11 de novembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22707: A nossa guerra em números (4): Cada militar necessitava em média, por mês, de 240 kg de abastecimentos (no essencial, víveres e artigos de cantina, mais de 70%)... O consumo "per capita" mensal de outros artigos era o seguinte: 50 kg de combustíveis; 4,4 kg de munições; 3,1 kg de medicamentos; 1,6 kg de correio... E, miséria das misérias, tínhamos direito a... 520 gramas de víveres frescos por dia!

quarta-feira, 13 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22626: "Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar" (texto cedido pelo escritor ao José Martins para publicação no blogue) - Parte V: Do Tejo ao Geba (17 de Abril de 1965/25 de Maio de 1965)


N/M "Ana Mafalda" (1951-1975): navio misto (mercadorias e passageiros), que tinha o comprimento (fora a fora) de um campo de futebol... Alojamentos para 16 passageiros em primeira classe, 24 em segunda e 12 em terceira classe, no total de 52... Nº de tripulantes: 47...


1. Continuação da (re)publicação do "Diário de Guerra" (*), do nosso camarada açoriano e escritor Cristóvão de Aguiar (1940-2021), que faleceu na passada  dia 5, aos 81 anos (*). Organização: José Martins; revisão e fixação de texto (para efeitos de publicação no nosso blogue): Virgínio Briote. 

Estes excertos, que o autor cedeu amavalmente ao José Martins, para divulgação no blogue,  fazem parte do seu livro "Relação de Bordo (1964-1988)" (Porto, Campo das Letras, 1999, 425 pp). (**)



Cristóvão de Aguiar.
Foto: Wook (com a devida vénia...)


Diário de Guerra

por Cristóvão de Aguiar


(Continuação)

1965

Lisboa, 17 de Abril 1965 - Sábado de Aleluia

Com repiques ao contrário den­tro de mim. Acabei de embar­car com a minha Companhia Independente de Caça­dores número oitocentos. Vamos com destino marcado para a Guiné. O "Ana Ma­falda" vai cheio de carne para canhão e ainda se encontra atracado no Cais da Ro­cha.

São três as companhias de caçadores e parte de uma de coman­dos e serviços de um batalhão. No salão de primeira classe, há pouco, houve discursos e vinho do Porto e uísque e sal­gadinhos.

Uma falta de respeito. Mal acabou a cerimónia, en­fiei-me no meu ca­ma­rote de primeira, pois en­tão! Morra Marta, mas morra farta! Estou para aqui so­zi­nho, la­vado em lágrimas, en­quanto os outros oficiais meus ca­ma­radas, talvez mais corajosos, se en­contram na amu­rada do navio nos últimos acenos de despedida. Puta de Pátria a minha!

Já fora Barra do Tejo, no mesmo dia, à noite

BARCO DE ESPERANÇA

Fizeste um barco de esperança e partiste
Ao longo de um mar verde de ternura.
Ficou no cais ainda o eco triste
Do mar acalentando a aventura...

Geme agora o mar contra a noite escura,
Num beijo sincopado de segredo...
E a alma num alentejo de secura
Cai de joelhos tran­sida de medo.

Medo da longa noite onde me canso,
Comprida noite onde nunca há descanso,
Nem estrela, nem barco ou gaivota...

E o mar que nos meus olhos cabia inteiro,
É agora um soluço de guerreiro,
Caindo em duas lágrimas de derrota.


18 de Abril - Mar e céu

Neste Domingo de Páscoa triste, cele­brada com amêndoas amargas que nos serviram à sobremesa do almoço para que hou­vesse sabor a festa. O navio não dá um balanço sequer. No porão, os soldados jo­gam às car­tas e fazem algazarra. Ouço-os do deque de primeira. À mesa, o capitão só diz as­neiras com ar compenetrado e sábio.

22 de Abril - Véspera de chegada.

Ainda se não adivinha terra nem rumor dela. Após a última refeição, passeio no deque, obstinada­mente, como um burro à roda da nora. Houve mudança súbita de ventos, o que fez com que logo cor­resse o boato de que estaríamos mudando de rumo.

Ainda se não perdeu a crença num súbito milagre que nos leve à Ilha do Sal, nosso primordial destino! Só assim, so­n­han­do, se aguenta esta patriótica estopada.


23 de Abril - Bissau

Evola-se desta terra avermelhada e ressequida um bafor que se transmite ao corpo e o faz destilar rios de suor. Logo após o de­sem­bar­que e com as tropas já aquarteladas na Amura, fomo-nos apresentar ao co­mando mili­tar. Desconhe­cia pura e simplesmente a nossa existência. Que não nos des­tiná­vamos a esta guerra, mas à da Ilha do Sal − foi-nos dito na secre­taria, antes de apresentarmos cumprimentos ao comandante.

Ainda olhámos uns para os outros com um pequeno clarão nos olhos, mas depressa nos desiludiu SEXA, refastelado no seu gabinete, com ar condicionado, onde pouco depois entrámos, perfilados. Ti­nha na verdade havido um pequeno deslize de informação, mas iria ser ime­diata­men­te remediado. Ficaríamos, para compensar, à or­dem do comando-chefe. Uma honra para a nossa com­panhia, que tinha vindo da me­trópole para defender este tão pátrio chão.

26 Abril - Carreira de tiro

Fomos todos para a carreira de tiro treinar a ponta­ria e experimentar pela primeira vez as espingardas G3, que se utilizam nesta guerra. Nos cur­sos de preparação, em Mafra, Tavira e Santarém ainda se treina o pessoal com a Mauser da última guerra mundial. Que se divide em dez partes, a saber: cano com es­trias, coronha, gatilho, guarda-mato, etcetra e tal.

29 de Abril - Ordem unida na Amura

Houve tentativa de levantamento de rancho na nossa companhia. Como ninguém se tivesse acusado como cabecilha da frustra­da rebelião, o capitão, furioso por não ter bode expiatório, deu como castigo aos três pelotões ope­ra­cio­nais, neles incluindo cozinheiros e outras especialidades não béli­cas, oito horas se­guidas de ordem unida, entremeada com passo de corrida.

Para que não hou­vesse que­bra de ritmo nem de suor, ordenou que os quatro alferes des­sem, à vez e na ordem in­versa da sua antiguidade, duas horas de in­s­trução cada um. Ainda se acre­dita pia­mente, na tropa, que a ordem unida é a mãe de todas as virtu­des mili­tares, sobretudo da disci­plina.

No quartel da Amura, os velhos de caqui amarelo, que aguardam em­bar­que de regresso após dois anos de comissão, olharam para nós, maçaricos, vesti­dos de verde-bilioso-vomitado, como se pertencêssemos a outra ga­lá­xia.


5 de Maio - Primeiras baixas, nos arredores de Bissau

O nosso capitão e o seu guarda-costas foram feridos numa operação-treino nos arredores de Bissau. Foram ambos transportados de ur­gên­cia, de helicóptero, para o hospital militar. O primeiro, com estilhaços fin­ca­dos por todo o corpo; o último, sem as duas pernas dos joelhos para baixo e com as tri­pas de fora e sujas de terra. Como oficial mais antigo, tomei o co­mando da com­pa­nhia.


8 de Maio - Em Bissau, como Cmdt da CCaç 800


Recebi um rádio do gabinete do comando-chefe, anun­ciando a transferência para a metrópole do capitão e do seu soldado guarda-costas. Es­tou fragilizado e com muito medo. Não nasci para comandar tropas.

Para me sen­tir mais aconchegado e protegido no meio de toda esta engrenagem de insegurança e de morte pressentida, escrevi uma longa carta a meu tio Fran­cisco, que mal conheço, de­vido às zangas fraternais entre ele e meu Pai que se estenderam du­rante quase toda a minha vida. Agora estão de bem um com o outro. Fizeram as pa­zes há cerca de dois meses, após meu tio ter frequentado, durante três dias, um Curso de Cris­tan­dade na Ilha, na estância termal do vale das Furnas.

Soube-me bem acolher-me ao robusto tronco fami­liar, durante as duas breves horas de escrita epistolar, regada a lágrimas sa­borosas. Pressinto a morte, muito perto, rondando-me os gestos, as pa­la­vras e os pas­sos.


10 de Maio de 1965 - No HM 241


Hospital Militar de Bissau, para uma pequena in­ter­venção cirúrgica. Circuncisão, isto é, um corte no freio, que tinha dificuldade em arregaçar.

Se tivesse nascido judeu, ter-me-ia poupado ao incómodo nesta idade de quase um quarto de século. Saí do hospital pouco depois e vim para o quartel da Amura, sem sequer sentir necessidade de me ir recostar na tarimba. Fui antes para o bar dessedentar-me e dar umas boas tragaças, que o cigarro tem sido para mim um ex­celente camarada de armas...

24 de Maio de 1965 - Bambadinca


Veio a companhia por aí a cima, sob o meu co­mando, escoltada por outras tropas e por brigadas especializadas na de­tecção e le­van­tamento de minas e armadilhas, atravessando terra-de-ninguém de Man­soa até aqui, em não sei quantas viaturas, abarrotando de tudo quanto é ne­ces­sário para ins­talar uma companhia operacional no mato, desde tarimbas de ferro até tachos e pa­nelas, pas­sando por móveis para a secretaria, que, na guerra, a papelada tem grande impor­tân­cia. Chamam-lhe mesmo a guerra dos papéis, por vezes ainda mais renhida do que a sua irmã colaça.

Chegámos à margem esquerda 
[, o autor queria dizer direita.. ] do rio Geba, es­tava um capitão, Ga­briel Tei­xeira,  de sua graça, com duas secções à nossa es­pera. Pertencem ao batalhão ao qual vamos ficar logisticamente ad­s­tritos, uma vez que, operacional­mente, conti­nuamos à ordem do comando-chefe.

Ainda temos, porém, de atravessar tudo de jan­gada para a outra mar­gem  [, a esquerda...] , incluindo as viaturas, a fim de seguirmos para Bafatá e de­pois para Con­tu­boel, nosso des­tino. O rio Geba está su­jeito ao regime das marés, nesta altura vivas, aqui chamadas macaréu, de forma que vamos demorar muito tempo até nos passar­mos to­dos para o lado de lá.

Bambadinca, 25 de Maio de 1965

A TUA AUSÊNCIA

A tua ausência
É este estar nu por dentro,
E ter um rosto velho
Gretado de suor
Do sol dos prados
E das manhãs
Que nunca tive...

Em cada segundo te habito
Como a loira canção das abelhas
O indomável cio
Das flores abrindo-se
Loucas de tesão...

(Continua)
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Notas do editor:

sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

Guiné 61/74 - P20473: (In)citações (141): Morreu a G3, viva a G3 (, substituída agora pela SCAR) (fotos de Jacinto Cristina, e versos de Albino Silva)








Fotos do álbum  de Jacinto Cristina (Sold At Inf, CCAÇ 3546, 1972/74), membro da nossa Tabanca Grande, vive em Figueira de Cavaleiros, Ferreira do Alentejo,  Foi um sem-abrigo, viveu um ano e tal em cima de um tabuleiro da Ponte de Caium, com a G3 a seu lado... Tal como muitos  de nós, de resto, no TO da Guiné (*).














Versos (, sob a forma de quadras populares,) do Albino Silva, o "Bino", poeta   (ex-soldado maqueiro da CCS/BCAÇ 2845, Teixeira Pinto, 1968/70) (**)


1. Comentário do editor LG:  Morreu a G3, viva a G3...

A propósito do oportuno e sobretudo belíssimo, ternurento,  texto do Juvenal Amado, a fazer uma declaração de despedida à sua (mal) amada G3 (***), fomos respescar fotos e um texto poético relacionados com aquilo a que podemos chamar  a "erotização" da G3, "inseparável companheira" do combatente do exército português durante a guerra do ultramar / guerra colonial.

As fotos que acima (re)publicamos, de verdadeira declaração de amor à G3 e demais acessórios de qualquer atirador de infantaria (cinturão com 4 cartucheiras, com 20 munições cada, de calibre 7,62; baioneta; cantil; faca de mato; granada ofensiva e defensiva...), não são únicas, haverá centenas ou milhares de cópias em álbuns de camaradas nossos que passaram pelo TO da Guiné... Felizmente estas consegui-as "sacar" do álbum do camarada Jacinto Cristina, o famoso padeiro da Ponte Caium.

De facto, devem-se ter vendido milhares de fotos destas. Nunca tive álbum fotográfico, nem mandei, para a metrópole, nenhuma foto destas... Nem sei se a malta mandava fotos destas, pelo correio, às namoradas, madrinhas de guerra, irmãs, mães, amigas...não fossem elas ficar com ciúmes desta "bajuda".

Aqui a G3 aparece como um verdadeiro fetiche, um obecto que provoca excitação sexual, um talismã, um escudo protector, uma companheira inseparável... A mensagem é simples mas de um tremenda eficácia simbólica: "andámos juntos, fomos unha com carne na Guiné, amei-te muito, devo-te a vida, jamais te esquecerei!...

Em termos físicos, simbólicos, psicológicos e até culturais, a G3 era, antes de mais uma figura feminina, uma arma de defesa; foi uma "amante", mas também uma "mãe": não sei se a interpretação... algo freudiana, é abusiva; para outros combatentes, poderia ser vista também sob uma perspectiva mais falocrática: uma extensão do nosso corpo, a nossa "canhota", o nosso "pénis mortífero."

De qualquer modo, G3 morreu, já aí vem a SCAR, uma "gaja" belga, da FN - Fabrique Nationale, considerada a melhor arma automática de assalto do mundo... SCAR é o acrónimo, em inglês, da expressão "Special Operations Forces Combat Assault Rifle"...  Ao lado desta "flausina", a G3 parece uma "mastronço", dizem os entendidos... Ainda não a vi ao vivo, a FN_SCAR-L, a não ser aqui na Net... ou no "site" do fabricante... (LG)
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 19 de dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20470: Blogpoesia (651): A G3 e a ingratidão (Juvenal Amado, ex-1.º Cabo CAR do BCAÇ 3872)

quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

Guiné 61/74 - P20470: Blogpoesia (651): A G3 e a ingratidão (Juvenal Amado, ex-1.º Cabo CAR do BCAÇ 3872)

1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo CAR da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), autor do livro "A Tropa Vai Fazer de ti um Homem", com data de 2 de Dezembro de 2019:



A G3 E A INGRATIDÃO

Caros camaradas,

Vieram há tempos notícias de finalmente a G3 ia ser substituída no Exército Português.

A notícia tem o valor que tem, uma vez que a nós que carregamos com ela quase três anos isso agora para além do valor sentimental já não nos afecta. Decerto as milhares de G3, que foram usadas por nós já devem ter sido vendidas há muito tempo para alguns conflito regional, onde lhes continuaram a dar uso. Se assim não fosse muito me admiraria.

Tive três: Uma na recruta, outra na especialidade novinha em folha, finalmente a última com que privei na Guiné e fez precisamente no dia 1 de Dezembro 47 anos, que a usei com intuito de me defender de um ataque ao arame.

Por estranho que pareça a que me foi dada no Cumeré e que usei em zona de conflito, era a mais velha de todas com coronha mais protector do cano em madeira, a tinta preta mate que compunha a camuflagem evitando brilhos incómodos que já tinham passado por melhores dias. Julgo que era uma arma de 1962 por isso, com dez anos quando me chegou às mãos. Ao que julgo as armas também não se querem velhas.

Mas pronto, isto tudo para dizer que quando a entreguei foi um alívio e que até hoje não senti saudades. Compreenderei que este meu desprendimento cause a impressão de que eu sou mal-agradecido a muitos camaradas, que por alguma razão a idolatram por serviços prestados aos mesmos, mas opiniões são opiniões e eu, nunca escondi que preferia ter tido uma arma mais pequena, mais leve e com maior cadência de tiro para as eventualidades.

Será quase como ter saudades da caneta de molhar no tinteiro da escola primária, quando já temos uma caneta de tinta permanente mal comparado mas é um bocado assim. Mete algum dó ver os nossos militares em zona de conflito a correr atrás dos insurgentes em África, armados com aquele artigo já na linhagem dos canhangulos com dezenas de anos e não tem comparação com o moderno e sofisticado equipamento do exército, que parecem ombrear com a Guerra da Estrelas “Star Wars em amaricano” onde só os manhosos dos Jedi usavam uma arma “espada” que parece mais antiga que a G3.

Assim para quê mentir e dizer que não me juntava aos com ar guloso miravam as kalashnikov's com os seus carregadores curvos com mais doze munições que a G3, que de vez enquanto eram atavio de tropas de elite que nos visitavam em Galomaro? Quando fui entregar material de guerra a Bissau iam algumas na bagagem e, quando entrei no paiol onde eram guardadas, fiquei abismado com a quantidade delas reluzentes ao lado das PPSH e dos lança-roquetes, que eram para ali encaminhados depois de capturados.

Mas finalmente parece que é desta, tendo em conta que ainda lá estávamos e já se falava na sua substituição, se entretanto não for agora, será noutra altura, porque a esperança mesmo que legitima e a pressa não combinam.

Não verterei uma lágrima
Não tenho saudades de ti
Do desconforto do teu peso
Da forma como me sacudias o corpo
Do teu tamanho nada maneiro
Não prometeram melhor, bem sei
Mesmo assim dormi contigo na cama
Levei-te ao Libanês e comi contigo à mesa
Limpei-te e acariciei-te
Nunca esperei grandes veleidades
Só desejava que ao menos não me falhasses
Um dia meteste-me em trabalhos
Disparei-te sem querer
Surpreendias-me sempre com o teu estampido
Foi para o ar, mas mesmo assim imperdoável
Qual cavaleiro justiceiro o Castro, empunhou a bengala
Um brado ecoo pelo terreiro - estás lixado pá
Mas a bengala parou no ar
Castigado com reforços lá estiveste ao meu lado
Ingrato, entreguei-te para abate
A partir daí pude andar com as mãos nos bolsos
Nunca mais em ti pensei
Mesmo com o carregador sem balas
Imagem que perdura vi-te dar flor
Esta imagem que te reaproxima de mim.
No dia inicial e limpo*
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*Excerto do poema de Sofia de Mello Andersen, "25 de Abril"

Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo

Sophia de Mello Breyner Andresen, in 'O Nome das Coisas'
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Nota do editor

Último poste da série de 15 de dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20457: Blogpoesia (650): "Igreja Matriz", "Palavras perdidas" e "Diametralmente oposto", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

terça-feira, 20 de novembro de 2018

Guiné 61/74 – P19212: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (41): O Cama 16 que afinal não estava internado e uma G3 desaparecida no Cacheu

1. Em mensagem do dia 18 de Novembro de 2018, o nosso camarada José Eduardo Oliveira (JERO) (ex-Fur Mil Enf.º da CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), enviou-nos duas histórias, uma passada no HMP e outra já na Guiné, relacionadas com estranhos desaparecimentos.


O CAMA 16

A caminho dos 90 anos de idade – já fiz 78 – continuam-me a vir à memória os meus tempos da vida militar. Foram 4 anos que “nunca mais me largam”…
Confesso que estas tristes e recentes histórias de Tancos e Chamusca me “tocaram” desagradavelmente mas não é sobre isso que vou “falar” hoje.

Em termos militares fiz a minha recruta na EPC (Escola Prática de Cavalaria), de Santarém, em Agosto e Setembro de 1962 e nos 2 anos seguintes vi a “Estrela” quase todos os dias, pois era nessa zona de Lisboa que se situava o Hospital Militar Principal.

Nos meus tempos no HMP estive em Dermatologia cerca de um ano (entre Junho de 63 e Maio de 64) como Chefe de Enfermaria. Era caso singular no Hospital pois era o único militar fora do “quadro” (era “miliciano”), que desempenhava esse tipo de funções. Tinha ficado em 1.º lugar no meu curso do CSM e “calhou-me a sorte” dessas funções de chefia para as quais não estava minimente preparado.

Passei meia dúzia de dias junto do militar do “quadro” que ia substituir (por ter sido mobilizado para a guerra do Ultramar) e fui assinando “papéis” comprovativos da “carga hospitalar”, de que iria ser responsável nos tempos mais próximos.
A Enfermaria tinha 70 camas, o que correspondia em termos de “carga” a 70 colchões, 140 lençóis, travesseiros, almofadas, mesas de cabeceira, montes de seringas, instrumentos diversos para tratamentos e muito mais “coisas” que me dispenso de descrever para não fatigar o leitor.

Havia ainda uma sala de tratamentos e outra para as consultas de dermatologia, onde se sentavam o médico-chefe e um médico-estagiário para as consultas externas dos civis ligados a instituições militares (Manutenção Militar, Oficinas Gerais de Fardamento, etc). Era então director do HMP o Dr. Ricardo Horta Júnior.

Além destas responsabilidades tinha comigo uma equipa de cabos milicianos e alguns soldados que era suposto ajudarem-me no meu desempenho. Em poucos dias percebi que os meus camaradas milicianos era uns “sornas”, que entravam sempre tarde porque o ”chefe” era “miliciano” e não os iria castigar.
Entrava às 8 da manhã – estava “desarranchado” e dormia (por minha conta) num quarto de uma casa particular na zona de Campo de Ourique – e não tinha horas de saída…

No final do primeiro mês de “chefe” comecei a dar por falta de “coisas” que estavam descritas na “carga da enfermaria”, mas que só existiam no papel. Como é que eu me ia desenrascar!?
Depois de algumas noites mal dormidas lembrei-me de consultar o Sargento Enfermeiro Sineiro, que era meu conterrâneo. Já o tinha visto no Hospital e fui ter com ele e apresentei-me, dizendo quem era e a que família de Alcobaça pertencia.
Não podia ter tido melhor sorte.
Disse-me como me desenrascar pois já tinha muitos anos de vida hospitalar.
Se tivesse na “carga” 6 seringas e só tivesse uma em condições “partia” essa em 6 bocados e fazia um ”auto de aniquilamento”, descrevendo a “existência” de seis “avariadas”, e pedindo o seu abatimento na carga. Depois de deferido o seu “aniquilamento” tinha apenas que fazer a requisição de 6 novas seringas.
Desde que houvesse algum “bocado” do material em falta era só fazer o auto para apresentar os “bocados” do total do material a substituir.

Assim fiz e resultou inteiramente.
Respirei fundo e guardei para mim estes novos “saberes”. Passados alguns meses estava tudo em ordem no que respeita a material.
Mas surpresas das surpresas faltava-me um doente: o “cama 16”.
Fiquei para morrer. Como é que isso podia acontecer?
O encarregado anterior da Enfermaria já estava no Ultramar (julgo que em Angola) e ainda não havia telemóveis!!!
Encontrei o registo do “faltoso” e soube onde era a sua morada em Lisboa. Com diversas ajudas consegui contactá-lo através de telefone fixo e fui ao seu encontro. Ao vivo e a cores…

Era um rapaz de “famílias bem” que tinha “comprado” a sua estadia em casa ao anterior responsável da Dermatologia.
Ofereceu-me umas “massas” para manter o seu anterior estatuto. Mas não teve sorte nenhuma.
No dia seguinte queria-o na Enfermaria junto da sua “cama 16”. E assim aconteceu. Finalmente “carga completa”.

O tempo passou e já estava um mestre em gestão hospitalar quando fui mobilizado para a guerra. Tinha 2 anos de vida militar e pensava que regressaria a Alcobaça dentro em breve, como eu julgava que merecia.
Puro engano.
Fiz as malas sim mas foi para seguir para o RI 16 (Regimento de Infantaria 16), de Évora e em 8 de Maio de 1964 embarcava no “Uíge” a caminho da Guiné como Furriel Enfermeiro Miliciano da CCAÇ 675.
E mal sabia eu que os meus conhecimentos em fazer “autos de aniquilamento” iriam ajudar muita gente. Fora e dentro da minha Companhia.


UMA G3 DESAPARECIDA NO CACHEU

Mas para terminar o tema só vou contar mais uma história que, julgo eu, nunca foi contada e terá sido esquecida pelos seus principais intervenientes há muito tempo.
Não garanto todos os pormenores porque estão passados muitos anos mas penso que o que descrevo seguidamente estará muito próximo dessa realidade de há mais de meio século!
Quando faltava apenas um mês para terminar a nossa comissão e regressarmos a casa um soldado do tipo “Chico esperto” pediu emprestado a um nativo uma canoa e meteu-se no Rio Cacheu para caçar um crocodilo, cuja pele serviria para fazer uma mala e um par de sapatos para depois do regresso oferecer à sua namorada.

Está claro que se fez acompanhar da sua espingarda “G3”, porque os crocodilos não se apanham à mão. Deu umas remadas e nem ao meio do rio chegou.
A canoa virou-se e quando o “caçador de jacarés” veio ao de cima a sua “G3” estava desaparecida. Nadou para terra e algumas horas depois confidenciou aos camaradas o que lhe tinha acontecido.

Perder a arma de combate que lhe estava distribuída queria dizer que era candidato a algum tempo de prisão, que lhe faria perder o regresso a casa que estava tão próximo.
Por sorte o Comandante de Companhia estava em Bissau e o seu 1.º Substituto era o Alferes Mendonça, que era miliciano. Fez-se uma reunião nessa noite no “escritório” do 1.º Sargento Santos para tentar resolver a “bronca”.

Depois de muitas e variadas opiniões resolveu-se “inventar” um ataque do inimigo às 3 da manhã com granadas de morteiro, que iriam “cair” numa arrecadação que iria arder violentamente.
Quando o incêndio estivesse extinto tudo que nessa altura “faltava” na Companhia (colchões, lençóis, pneus e uma espingarda G3) teria sido consumido pelo fogo. O Furriel Enf Oliveira faria um auto de aniquilamento no dia seguinte para ser enviado para o Batalhão em Farim. E assim se fez.

Respirámos todos de alívio e um mês depois deixámos Binta e, via Farim com passagem pelo Oio, viemos para Bissau para embarcar no “Uíge” a caminho de casa. Já lá vão mais de 50 anos.

O crocodilo do Cacheu há muito que deve ter netos ou mesmo bisnetos!

José Eduardo Reis de Oliveira
JERO
Fur Mil Enf da CCAÇ 675
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Nota do editor

Último poste da série de 24 de outubro de 2012 > Guiné 63/74 – P10563: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (40): O avô da Matilde, um vizinho especial

quinta-feira, 26 de março de 2015

Guiné 63/74 - P14408: (Ex)citações (268): Emoção e bom senso (Juvenal Amado, ex-1.º Cabo CAR do BCAÇ 3872)

1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), com data de 25 de Março de 2015:


EMOÇÃO E BOM SENSO 

Nas nossas memórias, a intenção normalmente passa por transparecer emoções, racionalidade, por vezes agressividade, porque não vivemos numa redoma de vidro e somos afectatos pelo que se passa à nossa volta, tonando-nos alvos fáceis das chuvas ácidas e do Sol inclemente.

Há dias que tudo nos agride e qual espoleta sensível, facilmente deixamos rolar as lágrimas, assim como respondemos violentamente a qualquer situação que em dias normais deixaríamos passar com sorriso nos lábios, ou com um encolher de ombros, denotando assim a pouca importância da questão.

Temos uma geração inteira que teve pouco tempo para ser criança e muito menos para ser jovem, passou pela ditadura e pela guerra, teve medos anseios e viu o que nenhum ser humano está preparado para ver. Há quem tenha visto demais e aí chegados, uns reagem de uma maneira tornando-os insensíveis enquanto os outros o horror, permanece para além do imaginável e desejável.

De uma forma de outra, uns e outros ficaram condicionados ao reflexo daquele tempo. Muitos de nós começámos a usar a G3 antes mesmo de termos feito sexo pela primeira vez. Digo sexo, porque fazer amor, só mais tarde descobrimos o que era isso. Depois alguns choraram a sua desdita e outros mataram antes de amar.

Assim como quem usa uma bengala muito tempo, há momentos que sente necessidade de a voltar a usar, também ao longo da vida, quem tivesse uma G3 teria impulso de a usar numa briga da vizinhança, num desaguisado na estrada ou lavagem da sua honra, sim porque a ocasião fez o ladrão e os resultados não seriam diferentes do que se passa nos países onde as armas são de livre acesso, onde por exemplo os veteranos têm a opção de adquirir a arma com que prestaram serviço, com resultados funestos que todos ouvimos falar.

Há tempos li que os crimes, acidentes, etc com armas de fogo, já custaram três vezes mais vidas do que as que os americanos perderam em todas as guerras em que foram intervenientes, inclusive na guerra civil. Mas é assim, a G3 é um símbolo dos tempos de guerra mas também da paz, da mudança, da liberdade, da alegria e da esperança, não discuto se concretizada ou não, pois cada um é livre de estar contente ou não e de o dizer livremente.

Quem não se lembra da emoção com que lhe pegou a primeira vez e mais tarde a usou quase como adereço? Nessa altura não sabíamos que a passaríamos a usar como um turista usa a máquina fotográfica, para captar coisas boas e coisas más. A G3 empunhada pelo povo fardado, também tem que ser símbolo da Justiça e da equidade entre cidadãos, que têm o direito de ser defendidos acima da própria vida, e mal vai um país que não tem orgulho nas suas forças armadas.

Num arremedo de poema escrevi uma alegoria intitulada “se eu tivesse uma G3”.(*)

Essa G3 representa um símbolo daqueles anos de juventude, de algum desencanto, assim como um grito de revolta, pois todos têm o dever de perseguir a felicidade e não se contentar com o que nos querem dar.
Sejam ousados e exijam nada menos que o impossível, porque o não, esse está sempre garantido! Mas eu estou de acordo que por estas e outras razões, ainda bem que nós por cá não podemos ter uma G3. Razão tinham os hippies que gritavam no auge do movimento, façam amor e não a guerra.

Um abraço para todos e boas amêndoas.
Juvenal Amado
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 Notas do editor

 (*) Vd. poste de 20 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14392: Blogpoesia (405): Paranóia ou lamentos de veterano - Ah! se eu tivesse uma G3! (Juvenal Amado)

Último poste da série de 18 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14383: (Ex)citações (267): Será que nós estamos escrevendo milhares de postes à procura da juventudo "perdida" na guerra? (José Manuel Matos Dinis)

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Guiné 63/74 - P13677: Inquérito online: Sim, fomos o exército do desenrascanço (António Pimentel, ex-alf mil rec info, CCS/BCAÇ 2851, Mansabá e Galomaro (1968/70)

1. Resposta do António Pimentel, grã-tabanqueiro da primeira hora, ao desafio lançado, em 29 de setembro,  pelos nossos editores: "Sem querer abusar da vossa paciência... 'Desenrasço' no TO da Guiné... é mesmo qualidade ? Ou é treta ?"


[António Pimentel, natural da Figueira da Foz, a viver no Porto; ex-alf mil rec info, CCS/BCAÇ 2851, Mansabá e Galomaro, 1968/70; foto de L.G., tirada no Palace Hotel Monte Real, em 8 de junho de 2013, por ocasião do VIII Encontro Nacional da Tabanca Grande]


Data: 30 de Setembro de 2014 às 16:28

Assunto: Sondagem: Fomos o exército do desenrascanço ?


Olá, Luís,

Eu acho que quase toda a nossa atividade militar durante a guerra colonial, não passava de uma série de desenrascanços (*).

A minha experiência é disso exemplo.

Como aspofmil [aspirante a oficial miliciano,], com a especialidade de reconhecimento e informações, e colocado no RI 6, no Porto, fui, em Dezembro de 1967, simultaneamente mobilizado para ir para a Guiné e convocado para seguir para Lamego para,  no CIOE, fazer o curso de Ranger.

Logo aqui se nota uma gritante falta de planeamento, já que atendendo à gritante falta de oficiais subalternos, me pareceu um desperdício fazer dois cursos em vez de um.

Além disso, sendo o teatro de operações em terras de África, não me pareceu ajustado fazer o dito curso em clima extremamente frio, como foi esse 1º trimestre de 1968.

Mas acabado o curso o que fui eu fazer?

Pois mandaram-me de volta para o RI 6 para dar instrução de reconhecimento a praças.

Mas eu não estava já mobilizado? Claro que estava, e o meu batalhão, que eu não sabia qual era, deveria estar em formação e instrução em qualquer sítio...

E eu a dar instrução a uma dúzia de rapazes que nunca mais vi, nem me lembro já quem eram. Isto a decorrer, até que recebo ordens para me juntar ao meu Batalhão, o BCAÇ 2851, no RI 1, na Amadora, pouquíssimos dias antes do embarque no T/T Uíge rumo à Guiné!

Chegados a Bissau, já bem de noite, fomos descarregados, é o termo, para um sítio ermo, e sem quaisquer condições, com o clima que bem conhecemos e a companhia de incontáveis mosquitos que nos deram as boas vindas. E assim passámos a primeira noite na Guiné, ao relento e em "boa" companhia. Creio que não é possível aceitar que esta ação de desembarque de tropas tivesse merecido qualquer planeamento. Seria mais lógico deixarem-nos passar a noite a bordo para sairmos de manhã cedo, por exemplo. O responsável por tal devia estar muito bem instalado em Bissau..

A meio da manhã, apareceu a escolta que nos iria levar ao nosso destino, Mansabá. Como eu era o alferes mais classificado, tinha a meu cargo o comando da companhia. Por isso procurei inteirar-me, minimamente, do que nos esperava. Fiquei impressionado, já Mansabá vinha a ser atacada todos os dias e os ataques às colunas eram frequentes, para além das minas, claro.

Então o alf Poças, da CCav 1749, disse-me ainda que não havia armas para nós. Depois as receberíamos em Mansabá... Eu pensei cá para comigo: "Então um gajo vem prá guerra e nem armas tem" ?...


A espingarda automática G3, a quem muitos militares no TO da Guiné chamavam "a minha namorada", por ser também uma arma muitop fiável.


Como já disse, fomos descarregados para um sítio ermo, mas para além de nós, géneros de todo o tipo, vinho, etc., e uns caixotes de dimensões consideráveis que me chamaram à atenção... Como já sabia que não havia armas para ninguém, a minha curiosidade adensou-se, e não demorei muito a abrir um deles, belos, de madeira muito branquinha, caixotes, que não traziam nada que desse para identificar o conteúdo, mas eu estava cá com um "feeling" ...

E não é que acertei?! Ali estavam elas, novas, reluzentes, ainda que desmontadas, as nossas queridas G3...

Mas quem passou pelos Rangers sabe que montar G3, até debaixo de água, se fosse preciso... Quem quis serviu-se... Por estranho que pareça, e a mim ainda hoje me parece muito estranho, as armas estavam sem qualquer vigilância

Munições não faltavam na coluna, claro...

Este foi o meu primeiro desenrascanço na Guiné.

Passados meses apareceu um pedido, muito tímido, a saber se alguém tinha dessas armas. Eu entreguei a minha, sem quaisquer  problema ou consequência, e não estou nada, nada arrependido!

 Felizmente a coluna deslocou-se sem incidentes de maior até Mansabá com passagem por Mansoa. Mas já depois de chegados a Mansabá,  tivemos as "boas-vindas" e a "festa" repetiu-se por quase todos esses dias de 1968!
Um abraço

António Pimentel

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Nota do editor:

(*) Vd. poste de 28 de setembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13659: Sondagem: "Desenrascanço é uma qualidade nossa. Na Guiné demos boas provas disso"... Falso ou verdadeiro ? Totalmente falso ou totalmente verdadeiro ?


sexta-feira, 27 de junho de 2014

Guiné 63/74 - P13337: Fotos à procura... de uma legenda (29): O menino... soldado de Madina do Boé, a G3 e a Kalash... (Manuel Coelho, ex-fur mil trms, CCAÇ 1589 / BCAÇ 1894, Nova Lamego e Madina do Boé, 1966/68)


Foto nº 1


Foto nº 2

Guiné > Região do Boé > Madina do Boé >  CCAÇ 1589/BCAÇ 1894 (Nova Lamego e Madina do Boé, 1966/68). > Foto nº 1 > O menino a fingir de soldado, empunhando a custo  uma G3; foto nº 2 > Uma Kalash, capturada ao PAIGC...  Duas fotos do álbum Fotográfico do nosso camarada Manuel Caldeira Coelho,  ex-fur mil trms,  CCAÇ 1589 (Nova Lamego e Madina do Boé, 1966/68).(*)... Duas fotos à procura de um boa legenda (**)...e da generosa  e espontânea colaboração dos nossos leitores que continuam a ser fiéis ao nosso blogue (a avaliar pelas 6 a 7 mil visualizações de página por dia).

Fotos: © Manuel Coelho (2011). Todos os direitos reservados [Edição: LG]
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Notas do editor:

domingo, 25 de agosto de 2013

Guiné 63/74 - P11978: O pós-Guiné (Veríssimo Ferreira) (4): O diacho da cicatriz

1. Em mensagem do dia 19 de Agosto de 2013, o nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422 / BCAÇ 1858, Farim, Mansabá, K3, 1965/67) enviou-nos mais um episódio da sua série Pós-Guiné:


O PÓS-GUINÉ 65/67

4 - O DIACHO DA CICATRIZ

E quando contei o acontecido ao meu "velho" ele apenas disse, lá do alto da sua sabedoria:
- Então não és tu, quem está sempre a ajudar os mais pobres do que nós? - E não é ao marido duma dessas, que dás as tuas roupas, mesmo já gastas?

Esclareço que o meu PAI era Homem trabalhador, Técnico Superior na área da construção civil e sem a sua mestria não se fariam ou consertavam casas.
Várias vezes o vi a preparar a massa de cimento, a que adicionava areia qb e água, que misturava com a enxada e a força dos seus braços. A pasta daí resultante, colava os tijolos um a um. Feita, pegava nela em baldes de lata, que transportava aos ombros e vertia junto aos pedreiros.

E estes sempre a pedir mais:
- Ó Manecas traz massa...
- Se queres pressas, vem fazê-la... porra.(não era bem esse o termo que utilizava, só que a minha "superior" cultura não me permite dizer a verdadeira palavra... começada por éfe).
Também caiava casas e ensinou a conduzir, pois que tinha sido condutor na tropa.

No dia em que regressei da minha Guiné, fez questão de fazer uma festa e convidar os que por mim lhe haviam perguntado e até o Senhor Padre Frederico esteve presente, vejam bem !!!
Comeram-se uns barbos apanhados à rede e à socapa, no rio Sôr, umas galinhas assadas na brasa de lenha de azinheira e até uns coelhos mansos, à caçadora, (com sabor a bravos que lhes era e é dado pela carqueja) nascidos e criados à moda antiga lá na capoeira do nosso quintal, onde e para além disso, também tínhamos umas rolas que tão boas eram, fritas em banha.

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Aqui na Enciclopédia que é e será o nosso Blogue, tenho aprendido (e só vou a meio)... muito e devido às publicações de quem por aqui vai dissertando.
Há quem opine, há quem descreva o que passou o que não é fácil... há quem discorde e quem concorde com a guerra, QUE NÃO FOMOS NÓS A INICIAR e também os que nunca desembainharam a espada e dizem o pior dos piores dos que lhe protegeram a vida.

Eu que e apesar de não ter sido voluntário, mas obrigado, (e como eu mais um milhão dos jovens que nunca admitimos a deserção embora o pudéssemos ter feito), apenas cumpri o Dever imposto e com muito gosto.
O que ansiava era regressar para junto das família que deixara aqui e tive sempre presente a frase um Senhor chamado De Gaulle, (pessoa que sendo tão alta, eu nunca convidaria para apanhar figos comigo) qu'até chefiou os destinos da França e que quando da partida das tropas francesas para a Argélia, disse:
- Na guerra, ou matas ou morres.

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E A GUINÉ... SEMPRE PRESENTE

Ao proceder a uns arrumos de caixotes de pau feitos, cheios de teias de aranhas (e até uma centopeia com mais ou menos 15 centímetros de lá saltou e que esmaguei impediosamente com o pé esquerdo pois que o direito mal mexe) encontrei duas fantásticas peças, sendo uma delas importante e de tal maneira me salvou de problemas, que julgo ter de lhe dedicar umas escassa palavras.

Então lá vai:

Quando pediram à minha CCAÇ 1422, para salvar a Pátria e nos colocaram no K3, foram-nos distribuídas armas novas em folha, desde a G3 especial distribuída aos graduados que era aquela, qu'até tinha bipé e fazia de metralhadora, e também virgens eram, os morteiros 60 de origem espanhola e que se revelaram falsos com'ó caraças.
Para quem não saiba, particularmente para os que nunca foram ao mato (mas que tão importantes foram, porque uma guerra sem uma boa retaguarda, não ata nem desata) e nem sequer usaram armas ou meteram uma bala na câmara (não deviam era orgulhar-se disso e há quem o faça) para esses sempre vos digo que o morteiro era:

Assim uma espécie de tubo, fechado num dos lados, e que fazia atirar para cima, uma granada (uma espécie de supositório, mas muito maior) depois de a pousarmos nas bordas desse mesmo tubo e a largarmos e no lado que estava aberto, naturalmente.
Ao chegar lá abaixo e já devidamente programada com uns adicionais para que fosse cair no chão e no local que pretendíamos, ou seja a 100 e por aí fora, metros, ao chegar lá abaixo, repito e ao bater num pinchavelho mais conhecido por percutor, ela (a granada) saía disparada que nem ginjas e lá ia na sua nobre missão de nos defender, qual remédio contra melgas, mosquitos e outros parasitas incomodativos assim "tipo" o IN.

Ao sair provocava um típico ruído, tal e qual como quando descalçamos um sapato apertado... daqueles que fazem calos no dedo mindinho. Era pressuposto fazer tiro a tiro e nunca tiro de rajada.
Devia estar assente em qualquer coisa rija mas não o prato base, qu'era pesado e não levávamos e por isso usávamos o capacete, embora nas bolanhas de pouco servisse, pois que mesmo assim acabava por se enterrar naquela porcaria lamacenta.

Pois e de acordo como lá em cima referi "falsos com'ó caraças", quis eu dizer que o percutor, que nos modelos que usara em treinos na Metrópole era b'óptimo, este, partia à terceira granada disparada, quando não logo à primeira, o que obstaculizava a eficiência da defesa, dado que tínhamos de mudar o dito cujo, usando para isso a tal peça com 10 centímetros de comprimento, que servia para desatarraxar o fundo e colocar um novo e que encontrei, guardei e a quem devo se calhar o facto de estar ainda por aqui.

Vai acompanhar-me d'ora em diante, aqui na minha pasta qu'uso a tiracolo.


FALEI-VOS DA MINHA AMADA CHAVE DE FENDAS.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 18 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11951: O pós-Guiné (Veríssimo Ferreira) (3): O bi-fascita da cicatriz

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10482: Álbum fotográfico do ex-1º cabo Manuel das Neves, o "Manuel da Canada", açoriano da ilha do Pico (CCAÇ 1438, 1965/67): Guileje: "Foi aqui que eu rezava todos os dias 3 e 4 terços, o helicóptero é que nos deixava cair a ração de combate, ele não podia parar"



Guiné > Região de Tombali >  CCAÇ 1438 (1965/67) >  Álbum fotográfico do Manuel do Canadá > Foto nº 1 > O Manuel das Neves, açoriano,   no regresso de Cacine, depois de uma operação de seis dias na Mata do Cantanhez. Na mão direita, uma ração de combate (?). E apresenta-se descalço. Em primeiro plano, espingardas G-3 (julgo tratar-se da versão original com punho e fuste de madeira, usadas ainda em 1965,  no TO da Guiné) (LG).

Guiné > Região de Tombali >  CCAÇ 1438 (1965/67) >  Álbum fotográfico do Manuel da Canada > Foto nº 1 > Legenda manuscrita  no verso.


Guiné > Região de Tombali >  CCAÇ 1438 (1965/67) >  Álbum fotográfico do Manuel da Canada > Foto nº 2 > Destacamento onde esteve o pelotão do Manuel da Canada e onde sofreu um  ataque ou flagelação... Topónimo ilegível [Nhacobá ?].


Guiné > Região de Tombali >  CCAÇ 1438 (1965/67) >  Álbum fotográfico do Manuel da Canada > Foto nº 2 > Legenda manuscrita no verso


Guiné > Região de Tombali >  CCAÇ 1438 (1965/67) >  Álbum fotográfico do Manuel da Canada > Foto nº 3 > Estrade de Guileje... Vejam-se as lianas atravessando a estrada, terraplanada, e aparentemente com bom piso...



Guiné > Região de Tombali >  CCAÇ 1438 (1965/67) >  Álbum fotográfico do Manuel d
a Canada > Foto nº 3 > Legenda manuscrita no verso


Guiné > Região de Tombali >  CCAÇ 1438 (1965/67) >  Álbum fotográfico do Manuel da Canada > Foto nº 4 > Tabanca de Guileje... No verso lê-se: "Foi  aqui que eu rezava todos os dias 3 e 4 terços, o helicóptero é que nos deixava cair a ração de combate, ele não podia parar".


Guiné > Região de Tombali >  CCAÇ 1438 (1965/67) >  Álbum fotográfico do Manuel da Canada > Foto nº 4 > Legenda manuscrita no verso.



 Guiné > Região de Tombali >  CCAÇ 1438 (1965/67) >  Álbum fotográfico do Manuel da Canada > Foto nº 5 >  Bandeira nacional e galardão da companhia, com os nomes dos lugares, à esquerda, por onde o pessoal andou (mais de um dúzia) e possivelmente os nomes dos camaradas, à direita,  que morreram (cino ?) (*)... No verso, lê-se apenas a seguinte legenda: "Esta foto foi de todos os lugares [em] que nós [es]tivemos em combate".


Guiné > Região de Tombali >  CCAÇ 1438 (1965/67) >  Álbum fotográfico do Manuel da Canada > Foto nº 5 > Legenda manuscrita no verso

Fotos: © AD - Acção para o Desenvolvimento (2007). Todos os direitos reservados [Fotos editadas por L.G.]

1. A CCAÇ 1438 foi mobilizada pelo BII17 – Angra do Heroísmo, Açores. Chegou à Guiné no dia 18 de Agosto de 1965 e regressou a 18 de Abril de 1967.  Passou por Bissau, Buba, Cumbijã, Colibuía e, por  fim, Quinhamel. Em Outubro de 1966 estava em Quinhamel. Foi seu comandante o cap inf Eugénio Batptista Neves.

Não temos nenhum representante desta companhia, independente, na nossa Tabanca Grande. Estas fotos fazem parte do nosso arquivo desde 2007. Foram-nos disponibilizadas pela ONG AD - Acção para o Desenvolvimento, no âmbito do projeto Núcleo Museológico Memória de Guiledge. O ficheiro onde estão contidas, de cerca de 2,5 GB, está na seguinte pasta:  Guiledje Visual > Acervo Visual Colonial > Guerra em Guiledje >  Fotos das Companhias > G- Manuel da Canada - C[CAÇ} 1438 (1965). São cinco ao todo, numeradas de 1 a 5, com legendas manuscritas no verso.

Não temos mais quaisquer elementos que nos permitam identificar este camarada, que se assina por "Manuel da Canada" [, e não do Canadá. como inicialmente pensei].  Só o Pepito nos pode explicar como é que estas fotos foram parar a Bissau, ao bairro do Quelelé... Na lista das 11 unidades que passaram por Guileje, elaborada por Nuno Rubim (Gráfico a seguir), não consta a CCAÇ 1438. Em 1966, a unidade de quadrícula era CCAÇ 1424, de que ele próprio. Nuno Rubim, foi comandante (o 2º de três). Esta companhia, que pertencia  ao BCAÇ 1858 (Bissau, Teixeira Pinto e Catió) passou por Bolama, Cachil, Guileje, Sangonhá e Bissau.

O nosso camarada Manuel da Canada assegura que esteve em Guileje. Não diz quando nem quanto tempo... (A CCAÇ 1438 sofreu pelo menos um morto em combate, em Guileje, em 9/10/1965)(*). Se ele nos estiver a ler, ele ou alguém da sua companhia, que nos esclareça. Já agora, teríamos todo o gosto em que o Manuel da Canada entrasse para a nossa Tabanca Grande. Pode contactar-nos através do nosso endereço de email: luisgracaecamaradasdaguine@gmail.com .

Desejamos-lhe muita saúde e longa vida.



Infografia: © Nuno Rubim (2008) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados

3. Correspondência recentemente trocada com o Pepito e o seu amigo açoriano Ernesto Ferreira:

(i) De Luís Graça para Pepito.

Pepito: Tens ideia de que te arranjou estas fotos ?... Esta companhia não esteve "oficialmente" em Guileje, mas teve lá pelo menos um morto em outubro de 65... Eram açorianos... Não tenho tido notícias do Nuno Rubim, estou preocupado, vou-lhe telefonar... Um abração (Por cá é feriado, o último 5 de outubro... Viva a República!)...

(ii) Do Pepito para L.G.:

Luís:  Estas fotos obtive-as quando fui aos Açores (ao Pico) e pedi a um colega e amigo meu de Agronomia que identificasse ex-militares que tivessem estado em Guiledje. Ele deu-me estas fotos com as legendas que conheces. Eu nunca estive com ele [, o Manuel do Canadá], mas quem o conhece é o tal amigo meu,  Ernesto Ferreira [...] que lá está.
abraços
pepito


(iii) Mensagem do engº agrónomo Ernesto Ferreira /que entretanto informara o Pepito de que o militar em questão já tinha falecido: "Caro amigo, tenho a comunicar-te que infelizmente esse amigo que me deu as fotos já faleceu há cerca de 5 anos de [doença][. Um abraço. Ernesto"):

Caro Luís Graça, não o conheço pessoalmente, mas teria muito gosto. Os amigos dos meus amigos, também meus serão, ainda mais sendo daqueles "do peito", como é caso!!!

Pois relembrando o Manuel da Canada (e não do Canadá), a cuja família informarei destas diligências e do vosso interesse, a seguir passo a descrever os seus dados:

Manuel Fernando Garcia das Neves, natural da freguesia da Candelária, Concelho da Madalena do Pico, Açores - Companhia 1438, 1.º pelotão, 1.º cabo n.º 415.
Aproveito para o informar que estes dados me foram facultados por outro ex-combatente da mesma companhia, por sinal meu compadre (o meu filho mais velho casou com a respetiva filha), cujos dados são: António Fernando de Oliveira Garcia, natural da freguesia da Criação Velha, Concelho da Madalena do Pico, Açores - Companhia 1438, 4.º pelotão, 1.º cabo n.º 416.
Anos- 1965 a 1967

Dado que o meu compadre estará disponível para mais alguma informação, não se coiba de me contactar.
Um abraço.
Ernesto Ferreira

(iv) De L.G, para Ernesto Ferreira: 

Meu caro engº Ernesto: 
Obrigado pelas fotos e pelas informações adicionais sobre o seu amigo e nosso camarada Manuel. Lamentamos a sua morte. E gostaríamos que a sua memória ficasse viva no nosso blogue. Seria também um homenagem aos restantes militares açorianos desta companhia, a CCAÇ 1438, de que não temos ninguém conhecido e registado. É possível saber o nome completo do Manuel da Canada ? Do seu posto, soldado, 1º cabo ? Naturalidade ?..

Fico-lhe muito grato. Luís Graça

(v) De L.G, para Ernesto Ferreira:

Meu caro Ernesto:

Aprecio muito essa franqueza e frontalidade, tipicas das gentes dos Açores!...  Temos, para já, um amigo em comum que é o Pepito. Aproveitando a sua amabilidade, peço-lhe que me explique a razão de ser do nome do Manuel Fernando... Manuel da Canada, e não do Canadá... Fui induzido em erro pelo estereótipo da emigração.. Muitos ex-militares açorianos, acabados de chegar da guerra do ultramar, emigraram para os States e para o Canadá...

Se a família nos autorizar, vamos fazer-lhe uma pequena homenagem do nosso blogue, que é um blogue de "partilha de memórias e de afetos"... É possível que eles tenham mais fotos, incluindo uma mais recente, antes do Manuel ter falecido... Já agora, em que ano terá ele nascido ?

Teríamos muito interesse, por outro lado, em acolher, no nosso blogue, o seu compadre e nosso camarada António Fernando... como um dos bravos da CCAÇ 1438... Será que ele tem um endereço de email para eu o poder contactar?

Um abração do Luís Graça
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Nota do editor:

(*) Identifiquei, através de pesquisa no nosso blogue, pelo menos 4 camaradas açorianos desta companhia, mortos em Combate, e que ficaram sepultados no cemitério de Bissau:

Manuel Correia Pedro, Soldado / CCaç 1438 / morto em 27.11.65, no Xitole, sa sequência de ferimentos em combate; era natural de Velas, S. Jorge, Açores / Cemitério de Bissau, Guiné;

Manuel Geraldo Teixeira, Soldado / CCaç 1438 / morto em 09.10.65, em Guileje, na sequência de ferimentos em combate; era natural de Santo Antão, Calheta, Açores / Cemitério de Bissau, Campa 1965, Guiné;

Manuel Silveira Reis, 1.º Cabo / CCaç 1438 / morto em 10.03.66, em Salancaur, na sequência de ferimentos em combate; era natural de Feteira, Horta, Açores / Cemitério de Bissau, Campa 277, Guiné;

Manuel Vieira Ferreira, Soldado / CCaç 1438 / morto em 11.03.66, em Salancaur, na sequência de ferimentos em combate; era natural da Praia da Vitória, Açores / Cemitério de Bissau, Campa 276, Guiné.