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domingo, 10 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P24938: Estórias do Zé Teixeira (61): Crónica de uma tarde, em sábado de Festas Natalícias (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

1. Mensagem do nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70), com data de 9 de Dezembro de 2023:

Olá Carlos e Luís
Espero que este sábado esteja a correr bem - é Natal.
Junto uma crónica do que me aconteceu hoje ao sair da Tabanca de Matosinhos depois do nosso almoço de Natal.
Se entenderdes que merece ser publicada, estai à vontade.

Aproveito para dar a infausta notícia da morte da Zélia Neno, a ex-esposa do falecido Xico Allen.

Um Grande abraço e continuação de bom fim de semana.

José Teixeira


Crónica de uma tarde, em sábado de Festas Natalícias

Não sei se a culpa foi do “pisca” que se recusou a acender, se foi do automóvel que usualmente por defeito, costuma não trazer “piscas” ou… talvez os seus condutores não se lembrem que os “piscas” são para usar sempre que necessário. Talvez tenha sido o homem que orgulhosamente, pensou que os “piscas” são para os outros usarem… Talvez não tenha acontecido nada disto.

O certo é que, deparei com dois carros parados, com os piscas apagados, atravessados na autoestrada, ao sair da cidade e dois homens engalfinhados na relva húmida da berma. Uma outra viatura, tinha parado. Vi dois/três homens a aproximarem-se e parei. Saltei da viatura e juntei-me ao grupo, com os meus respeitáveis setenta e tantos anos, e conseguimos afastá-los.

As línguas soltaram-se e espalhavam brasas por todo o lado:
- Seu filho deste… olha o pisca… (e mais uma tentativa de aproximação).
- O pisca, o carvalho, seu fils de…

Ora agora, insultas tu, ora agora, insulto eu, num vai e vem de palavras, que não constam no dicionário por serem ocas e vazias de sentido, mas que ferem e incendeiam o ego… e matam… se matam!

- Olha que eu, …seu (ver no dicionário) – e mais uma tentativa de chegar a roupa ao pelo do outro… mais uma corridinha… mais uma barreira. – O pisca está lá é para se usar! Seu…

Logo de seguida trava-se uma investida do outro, que está muito nervoso. Leva tudo à frente, mas… é melhor parar e dar mais duas de língua.
Qual deles está com mais medo? Não sei. Estranhamente, eu sinto-me sereno, como quando estava na Guiné, depois de apanhar com as primeiras, que me atiravam para o chão.

- Calma! Calma! Vamos ficar por aqui! Não estrague a sua vida… entre para o carro… vá, vá-se embora... despreze quem não respeita a Lei.

…E havia no meio de tudo isto havia um “pisca” de um dos carros que não tinha acendido na devida altura. Pelo andar da contenda, creio que o proprietário continuava sem saber que o “pisca” estava lá nos comandos da viatura para ele utilizar.

No meio de tudo isto, havia dois carros parados no meio da estrada, sem se tocarem, a olhar espantados para tudo isto, a apreciarem este espetáculo.
E o raio dos “piscas” continuavam apagados.

O mais gratificante para mim, foi sentir a gratidão de um dos contendores, que ajudei a acalmar. Ao partir, já mais sereno, olhou-me nos olhos e disse: OBRIGADO.

Entrei no meu carro. Dei dois murros no volante e deixei-me invadir pela comoção.

9 de dezembro, depois de um almoço de Feliz Natal na Tabanca de Matosinhos.
José Teixeira

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Nota do editor

Último poste da série de 9 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23602: Estórias do Zé Teixeira (60): O Senhor Augusto - Parte III (Conclusão) (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

sexta-feira, 9 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23602: Estórias do Zé Teixeira (60): O Senhor Augusto - Parte III (Conclusão) (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

1. Conclusão da estória do Senhor Augusto, enviada ao blogue pelo nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70) em 1 de Setembro de 2022.


O Senhor Augusto

José Teixeira

Parte III (Conclusão)


Um dia, em pleno verão, passou pela aldeia um médico novo, sobrinho da patroa. Levava um casaco branco vestido e montava um lindo cavalo branco. Atrás dele, juntou-se logo um magote de rapazes que o seguiram até entrar na porta da quinta. Eu tive mais sorte. Estava no quinteiro quando ele chegou. Escondi-me com medo do cavalo, e vergonha, mas ele sorriu-me. Deu um beijo à tia e perguntou-lhe se podia ir dar uma volta pela quinta. Ela sabia que ele gostava muito de uvas e disse-lhe:
– Vai e leva o rapaz. Ele que te diga onde estão as melhores uvas.

Colocou-me em cima do cavalo, à sua frente, e lá fomos nós, todos lampeiros, para a vinha, onde estava o meu amigo. O senhor Augusto viu-nos ao longe e desceu ao carreiro de cabeça descoberta a saudar os visitantes. 
Claro que foi ele quem me indicou onde podia ir buscar as uvas para o senhor doutor, enquanto eles ficavam a conversar.

Foram uns dias maravilhosos para mim, os poucos em que o médico por lá ficou. Não havia tarde que não saltasse para a garupa do cavalo, com o senhor doutor atrás, para irmos visitar o guardador da vinha. Também ele se apaixonou pelas histórias. O senhor Augusto contou-lhe os seus padecimentos. O nosso amigo médico quando partiu, prometeu que ia ajudá-lo, e voltaria em breve.

E assim foi. Um domingo de manhã, o doutor chegou à aldeia. Vinha num automóvel, uma arrastadeira da Citröen, preta, como nunca se vira por aquelas bandas, e onde havia apenas um automóvel, o do embaixador da quinta de Padões, que aparecia na aldeia no tempo das colheitas.

Ao fim da tarde partiu de novo. Sentado ao seu lado, seguia o amigo Augusto que tivera o cuidado de tomar banho e vestir roupa lavada, antes de se apresentar, e partiram os dois para a cidade.
Voltou três meses depois, no comboio das cinco. Reconheci-o pelo andar quando ainda vinha longe. Era ele, o meu amigo, mas parecia outro. Abraçou-me ternamente e caminhámos monte acima. Agora, as histórias eram diferentes, eram histórias reais, e deixavam-me espantado. Recordo a da casa amarela com muitas janelas e um pau no telhado que corria pela rua fora cheia de gente…

Estava gordo, e vendia saúde. Afinal, não era assim tão velho com os seus sessenta e cinco anos. O nosso amigo médico internou-o às suas custas no hospital, onde foi tratado como um general. Foi operado à perna e recuperou bem, sobretudo deixou de ter dores ao movimentar-se. Fez outros tratamentos em que teve de tomar muitas mixórdias, e “picas” no rabo. A coluna já não doía. Era um homem novo. Sentia-se cheio de vigor, e com vontade de trabalhar.

No dia seguinte, apresentou-se na quinta e disse à patroa que se sentia como novo e queria voltar de novo para a labuta, no campo. E assim aconteceu, para alegria dos colegas que viam no Augusto um verdadeiro companheiro de trabalho.

Eu completei a escola primária, perdi-me na cidade à procura de um futuro melhor, e o meu amigo Augusto ficou pela aldeia. A luta pela vida afastou-nos. Sei que ainda viveu vários anos. Do que tenho a certeza é que, quando partiu para a sua última morada, teve muitos amigos a acompanhá-lo.

O senhor Augusto era um homem bom, e foi o meu melhor amigo quando eu ainda era uma criança.

Zé Teixeira

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Notas do editor:

Vd. postes de:

7 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23598: Estórias do Zé Teixeira (58): O Senhor Augusto - Parte I (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)
e
8 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23600: Estórias do Zé Teixeira (59): O Senhor Augusto - Parte II (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

quinta-feira, 8 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23600: Estórias do Zé Teixeira (59): O Senhor Augusto - Parte II (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

1. Em mensagem do dia 1 de Setembro de 2022, o nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70) enviou-nos a estória do Senhor Augusto, de que publicamos hoje a segunda de três partes.


O Senhor Augusto

José Teixeira

Parte II


Veio o tempo das uvas maduras. O senhor Augusto passava o dia sentado à sombra de um castanheiro, na borda da vinha, bem lá no alto, e a noite numa palhota construída com canas de milho seco, junto ao muro. Vigiava para impedir que as uvas da patroa fossem parar ao lagar de outrem, pois havia, na aldeia, quem gostasse de provar vinho doce em primeira mão, com as uvas alheias.

Eu deixava a minha mãe no campo e ia para a beira dele fazer-lhe companhia e ouvir as suas histórias. Eram as cobras que falavam; os ratos que caçavam gatos; o Gato das Botas de cano alto, ou a do “Pedro Pedrinho, Pedro Pedrão que, depois de burro, foi Sabichão”, contos a que ele aumentava sempre um ponto, para delícia minha, mas a de que gostei mais foi a das rãs que caíram dentro de um tacho cheio de claras de ovos. Uma sentiu-se perdida, desistiu de lutar e morreu afogada. A outra bateu tantas vezes com as patas, que as claras se transformaram em castelo e ela se salvou. História intricada, essa, que me punha a pensar como é que as claras de ovos, com que a minha mãe fazia o bolo quando havia festa na quinta, ou os filhos da patroa vinham almoçar, serviam para fazer castelos dentro de um tacho. Uma coisa me ensinava ele! Nunca se deve desistir dos nossos sonhos e de lutar pela vida.

E tantas outras histórias que ele tirava da sua memória, em que estavam guardadas e cheias de pó. Segundo ele, só eu tivera a ousadia de lhas ir buscar ao velho sótão, cujo telhado, os seus cabelos que nunca conheci, se perdera com os ventos do tempo.

Sabia onde havia as mais doces uvas naquela imensa vinha que enchia meia dúzia de pipas de saboroso mosto, um verde de categoria. Então, mal eu chegava, dizia-me:
– Ó meu rapaz, vai ao bardo da leira debaixo, lá bem no fundo há umas uvas brancas de estalo. Come até te fartares. Se a patroa vier, eu tenho um ataque de tosse, e tu foges, ouviste!

Situação que se foi repetindo durante o verão, ora na leira debaixo, ora na latada, ora… (O mestre é que sabia!). Voltava, então, para junto do simpático velhinho para ouvir mais uma história.

Até que cheguei à idade de ir para a escola.

Começou o princípio do fim da minha meninice, em que misturava o trabalho de guardar os ovelhas da patroa com as brincadeiras com os rapazes da vizinhança, com brinquedos e casinhas, construídos na nossa imaginação, ou pela nossa imaginação, como naquela tarde em que descobrimos uma forma de andar de carro por uma ribanceira, transformando um ramo de carvalho em moderno meio de transporte, com um garoto sentado e outro a fazer de burro, puxando, numa correria desenfreada, até chegar ao carreiro novo. Como consequência, foram-se os fundilhos das calças e choveram umas vergastadas no traseiro, com uma fina vara de mimosa.

E quantas vezes, abandonava os meus colegas de brincadeira e ia à procura do meu amigo velhote. Havia sempre fruta fresca e madura, e mais uma história por detrás de um sorriso maroto e profundamente cativante, ou, então, a repetição de uma já conhecida, mas com novos intervenientes, pois o senhor Augusto acrescentava sempre um novo pormenor para lhe dar outro sabor.

O meu velho amigo tinha uma arma de carregar pela boca. Era a sua companheira na barraca onde se acolhia durante a noite, num dos cantos da vinha à sua guarda. A patroa mandava-o carregar a arma com zagalotes. Ele garantia-lhe que sim, mas carregava a velha espingarda com muita pólvora seca, para que fizesse muito barulho e poucos estragos.

Uma noite de pouco luar, apareceram por lá os amigos do alheio. O vigia estava atento. Seguiu-os à distância. Apontou a arma para o alto e disparou. O estrondo foi tão grande que se ouviu em todo o lugar.

No dia seguinte, o meu amigo, logo que me viu, disse-me:
– Ó meu rapaz, tu nem sabes o que me aconteceu esta noite… Levei cá um coice!
Fiquei atarantado, e na minha inocência, comentei:
– Mas… o senhor Augusto não tem burro!
– Ó rapaz, foi o canhangulo que me deu um coice – e apontava para a arma encostada ao castanheiro, sorrindo.

De seguida, contou-me os acontecimentos da noite.
– Apareceram dali, daquele lado, estás a ver aquele tronco de carvalho? Eram dois homens com uma cesta. Foram por ali, rodearam aquela borda e saltaram para vinha, e eu a segui-los. Passaram para parte de dentro do bardo e começaram a colher uvas. Os malandros sabiam onde é que as uvas estavam maduras, mas eu também sabia. Aproximei-me de mansinho. Apontei a arma para o alto, e pum! O fumo foi tanto que quando passou, já não se via ninguém. Mas, assustados, foram-se, e não voltam, podes crer.

O que mais me intrigara foi saber que as armas davam coices.

(Continua)

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Nota do editor:

Último poste da série de 7 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23598: Estórias do Zé Teixeira (58): O Senhor Augusto - Parte I (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

quarta-feira, 7 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23598: Estórias do Zé Teixeira (58): O Senhor Augusto - Parte I (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

1. Em mensagem do dia 1 de Setembro de 2022, o nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70) enviou-nos a estória do Senhor Augusto, de que publicamos hoje a primeira de três partes.


O Senhor Augusto

José Teixeira

Parte I

Toda a gente tinha uma grande estima por aquele velhinho alegre. Depois de uns anos em França, onde participara na tristemente célebre batalha de La Lys, durante a Primeira Guerra Mundial, regressou à sua terra natal e por lá ficou, como moço de lavoura.

Os caminhos da vida e a doença óssea que o sacrificava, uma sequela da sua alimentação deficiente durante os anos em que estivera envolvido na guerra, foram-lhe roubando as forças para trabalhar, mas não a vontade. Vivia da compreensiva caridade das gentes do povoado. No verão, era contratado pelos proprietários das terras para guardar os pomares e as vinhas. Mas o seu maior prazer era a conversa, e toda a gente o ouvia respeitosamente, até as crianças gostavam das suas belas histórias, sempre acompanhadas de ruidosas gargalhadas.

Habitava um casebre no cimo do lugar Novo, construído com pedras mal talhadas, coberto a colmo. No inverno, o vento invadia o compartimento, assobiando pelos buracos. A chuva acossada pelo vento escorria pelas paredes, transformando o chão térreo num lamaçal. No verão, aquela porta era a janela do seu mundo que nem de noite se fechava. De lá, o seu olhar viajava pela encosta que se estendia até ao rio, atravessada por caminhos e carreiros, ora protegidos pelas sombras de frondosos castanheiros, bem lá no fundo, ora por eucaliptos que trepam rapidamente às alturas, sugando o húmus da terra, tão necessário para a manter produtiva. Casas aos magotes davam forma aos lugares em redor das quintas dos senhores da terra, com as suas vinhas e prados que matizavam o ambiente ao sabor das estações do ano. Estradões de terra batida partiam das casas senhoriais e, serpenteando pela encosta, perdiam-se lá longe, na estrada que nos transportava à vila. Os matos agrestes e as giestas abriam-se na primavera, dando um toque colorido de amarelo àquele ambiente carregado, com a esperança dos prados.

A minha relação com ele não começara da melhor maneira.

Estava eu, no campo, a guardar as ovelhas da Dona Aninhas, a patroa, quando vi a aproximar-se aquele velhinho curvado pelos anos, de pernas arqueadas, cobertas por umas calças rotas que de tão sujas não tinham cor, a arrastar-se nuns grossos tamancos, apoiado num arrocho. De nariz adunco e boca sem dentes, com uns restos de cabelo branco a roçar-lhe o pescoço, e duas lanternas verdes focadas em mim. Parecia-me um sorridente fantasma naquele cair da tarde fria de maio.

Parou no meio do íngreme caminho que o levava a casa para descansar um pouco, e esboçou um cândido sorriso, mas eu estava de tal modo assustado com a sua figura, que tremia como varas de junco verde, tocadas pelo vento de inverno.

Alargou o seu sorriso e perguntou-me:
– Ó rapaz, tu sabes porque é que as galinhas não têm dentes?
– Não senhor… – Respondi com voz trémula e abafada, com os olhos fixos no chão, encolhido dentro de mim.
– Eu também não sei, mas um dia vou saber. Quando elas falarem, vou perguntar-lhes e elas vão dizer-me, podes crer – e deu uma sonora gargalhada.

Continuou o seu rape-rape pela encosta acima e eu fiquei a matutar. Como é que as galinhas falam, se eu só ouço o có-có-ró-có-có do galo pela manhã, tão cedinho, que, às vezes, até me acorda? Bem, as galinhas cantam. A minha mãe a cada passo me diz: A galinha está a cantar é porque tem ovo no cu, ou então, a galinha já cantou, vai buscar o ovo, rapaz! Se cantam…

Certo é que, nesse dia, quando a minha mãe me foi chamar para a ceia, encontrou-me no poleiro a falar com as galinhas, sem, contudo, obter resposta, a não ser o seu cacarejar por sentirem um intruso por perto.

Com o tempo, fui-me habituando àqueles olhitos marotos, de um verde que, noutros tempos, ofuscaria qualquer cachopa casadeira, e a que o cansaço das agruras da vida tirara todo o brilho, mas não a alegria de viver sorrindo.

Veio mês de junho, com as frutas no pomar. Um convite aos amigos do alheio para encherem os bolsos e a abada. A patroa chamou o senhor Augusto e deu-lhe a tarefa de se sentar por lá, para afugentar os mais audaciosos, em troca de uma tijela de caldo e a ceia regada com um copito de verde tinto.

Ao fim de algum tempo, eu, que também tinha direito ao caldo da patroa por lhe guardar as ovelhas, já me sentava no colo dele para comer o “modinho” da sua tigela, e ouvir-lhe as histórias que só ele sabia contar com uma ênfase gestual que me fazia rir às gargalhadas.

Calvo e sem dentes, é verdade, com os anos a pesar-lhe duramente nas suas peles encarquilhadas, mas sempre alegre. Era um prazer ouvi-lo. Até os criados mastigavam mais lentamente o parco conduto para ouvirem o velhote, como era conhecido.

Da guerra, nem falar, pois o nosso velhinho, irritado, dizia: – Isso não são histórias para cachopos. – E não se ouvia nem mais uma palavra da sua boca.

Um dia, com um copito a mais, abriu-se um pouco. Começou por perguntar-me se eu sabia porque é que os dentes lhe fugiram da boca. Como já me tinha caído um dente de leite, foi fácil responder-lhe.
– Bem, comigo não foi bem assim, mas diz-me o que aconteceu ao teu dente – quis saber.
– Caiu-me ao chão, e o galo comeu-o.
– Antes o galo que o rato. Estás com sorte, rapaz, vais dar um bom cantador.

Não me deu tempo para lhe perguntar porquê, e continuou.
– Pois eu, quando fui para a tropa, tinha a boquinha cheia de dentes, não me faltava nem um. A maldita guerra rebentou e levou-mos. Não ficaram lá todos, mas quando regressei a casa, depois de passar uns meses no hospital a curar esta perna maldita que me mata de dores, começou a cair um atrás do outro e fiquei assim, nesta figura. Careca, perneta e desdentado.

– Conte, conte histórias da guerra, devem ser as mais lindas que tem para me contar.
– Enganas-te, meu rapaz. (Gostava muito de me chamar “meu rapaz”). As histórias que vivi na guerra são muitas, e bem dolorosas, podes crer, mas irão comigo para a cova. Vou falar-te dos meus dentes, e é se queres. – Conte, conte.
– Estava na tropa quando rebentou a guerra…
– O que é uma guerra?…
– Chiu! Não faças mais perguntas, senão… Como te dizia, a guerra rebentou lá longe. Fomos logo metidos aos milhares num comboio, e só parámos quando já se ouviam os canhões.

Fez um longo silêncio. Parecia que as palavras se recusavam a sair-lhe da boca, enquanto as lágrimas lhe caíam suavemente pelas faces. Respirou fundo e continuou, limpando os olhos com as costas da mão.
– Passámos muita fome. Os franceses e os ingleses, ali ao lado, tinham comida todos os dias, e da boa. Nós manjávamos rações de combate, quando as havia. Até os freds! A gente via-os ao longe a cozinhar.
– Quem eram os freds?
– Eram os alemões, rapaz. Vá, deixa-me continuar. Enquanto eles comiam fruta em conserva todos os dias, nós, os portuguesitos, nem vê-la pelo cano da espingarda. Ficávamos ali entrincheirados meses e meses ao frio, ao calor, com fome… a morrer…
– O que faziam na guerra?
– Eu não te disse já que as histórias da guerra iam comigo para a cova? Tem juizinho!
– Agora só tenho as gengivas para mastigar a côdea seca do pão que a patroa me manda a meio da manhã para o mata-bicho.

(Continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 30 DE JULHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23474: Estórias do Zé Teixeira (57): Amores em tempo de guerra: III - Amores proibidos (3): Binta!... Binta!... (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

sábado, 30 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23474: Estórias do Zé Teixeira (57): Amores em tempo de guerra: III - Amores proibidos (3): Binta!... Binta!... (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

1. Terceira e última parte parte da história de amor entre Binta e o seu prometido Braima, combatente do PAIGC, enviada em mensagem de 27 de Julho de 2022, pelo nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70).


Amores em tempo de guerra III

AMORES PROIBIDOS

(3) - Binta!... Binta!...



Enlaçados nesse amor que os inebriava, deixaram-se adormecer, plenos da felicidade efémera, fora do tempo em que a guerra domina a mente, e abafa o sentimento que inunda o coração.

Já a noite ia alta quando o Braima deitado de braços cruzados olhava o céu da sua mente e tentava ouvir um coração endurecido pelo caminho que escolhera, mas que agora se desafazia em lágrimas de sangue, mas a decisão estava tomada. Tinha que se ir embora sem se despedir da sua amada.

Ele tinha consciência dos riscos da guerrilha. Não queria ver a sua Binta a carregar os armamentos que usavam para atacar os aquartelamentos tugas. Além da fome e da sede, o cansaço do peso que acartavam à cabeça e o tempo de marcha, havia o perigo das emboscadas, dos aviões, das granadas que explodiam, lançadas para retaliar os ataques dos nacionalistas guineenses. Quantas vezes tiveram de abandonar a barraca onde aquartelavam e esconderem-se no mato, deslocar-se de um lado para outro para evitar o confronto se estavam em minoria, ou apanhados de surpresa, o que acontecera algumas das vezes em mortíferas emboscada. Havia ainda outros perigos, pensou. Os camaradas que iam ver na Binta a mulher dos seus sonhos, que a cercariam na sua ausência, para obter os seus favores. Por muito amigos que fossem, e eram, porque a camaradagem construída na luta é a amizade mais profunda que se pode ter. A fome e o desejo de sexo, tornar-se-ia superior, porque muitos não tinham mulher. Ele sabia que era assim. Ele mesmo não conseguira resistir à mulher do Sissomo. Mulher para dois, como toda a gente sabia, até ele ser enviado para o sul.

Não! Não podia levá-la consigo. Tinha de se ausentar silenciosamente, para junto dos seus camaradas acantonados mais a sul, na mata de Cantanhez. Ele sabia que não lhe era difícil transpor as dezenas de quilómetros que o separava da tabanca da Binta. Desde tenra idade se habituara a caminhar pela densa floresta virgem, atravessando as bolanhas. Sabia como defender-se dos animais selvagens, os quais começavam a escassear, devido à guerra, à caça desenfreada de que eram vítimas para alimentar as gentes que viviam no mato e muitos vezes para desporto dos militares europeus. Todavia os riscos de encontro indesejados com os soldados portugueses, as cambanças dos rios e das grandes bolanhas, eram temíveis empecilhos. E havia as razões de ordem pessoal e política. A sua vida pessoal, as suas visitas, mesmo clandestinas seriam controladas pelo comissário político e viveria sob pressão contínua para a trazer para a frente de combate, para um ambiente que ele detestava acrescido dos riscos que a luta contra o opressor acarretava. Preferia manter a situação e tentar uma fuga de vez em quando, para se encontrar com ela. A situação de luta iria mudar em breve, pensou. Os portugueses se hão de cansar. Esta terra será livre. Então voltarei para casa.

E. decidiu escapulir-se silenciosamente, depois de a beijar com toda ternura e cuidados para não a libertar do Morfeu.

Teimosas lágrimas inundaram a face da Binta quando acordou e não viu mais nada, a não ser o lago do céu noturno cravejado de estrelas. O seu Braima tinha ido embora sem a levar. O coração parou por momentos, sentiu-se desmaiar... A raiva, misturada com as lágrimas e o desespero de sentir que voltou a perder o seu amado, deixaram-na esvaída, sem forças, perdida…
A vontade de viver que sempre a animara, pelo amor que secretamente guardava bem dentro do seu ser, como que se apagou. Um coração cheio de saudade teimava em dizer-lhe que esta fora a primeira e talvez a única vez que as suas vidas se encontraram.

Deixou-se perder no tempo. Já o sol ia alto quando “acordou” para a realidade. Tinha saído da Tabanca no dia anterior. Era urgente voltar discretamente para junto de sua mãe e contar-lhe o seu segredo. Ao levantar-se, viu no chão um pequeno papel com algo escrito.
Ah, com ela gostava de ter aprendido a ler para saber ali mesmo a mensagem que Braima lhe deixara. Certamente era um eterno adeus. A luta, ultimamente, tornara-se muito dura. Os soldados andavam por todo o lado. Os paraquedistas que passaram na sua tabanca vinham carregados de armas apanhadas aos “bandidos” como chamavam aos guinéus que se tinha refugiado na mata. Ia perder o seu Braima, dizia-lhe o coração. De nada valeriam as novas armas contra os aviões. Agora tinha a certeza, do fundo do coração, os portugueses que ela já odiava, iam continuar na sua terra, e o seu Braima, esse… morreria como tantos outros!? Talvez não. Tinha de continuar a acreditar no que lhe dizia o coração e levantou-se cheia de energia e confiança.

Com o papel amarfanhado na palma da mão internou-se na mata e voltou para a tabanca. Ouviu o roncar da viatura militar que todas as manhãs ia buscar água à fonte e pensou nas suas amigas que, aproveitando-se da segurança que os soldados impunham com as suas armas, como ela fizera muitas vezes, vinham com as suas vasilhas em busca da água fresca e de melhor qualidade para dar de beber às crianças. Quando transpôs o cavalo de frisa, a sentinela nem se dignou olhar para ela. Respirou fundo e foi ter com uma mãe aflita. Explicou-lhe os acontecimentos da noite e correu a casa da Cadi. Só ela lhe podia dizer o que o Braima lhe tinha escrito.

Cadi tinha ido buscar água à fonte. Aguardou com ansiedade desmedida a sua chegada e, sem explicações, pediu-lhe para ler o papel.
- Ó mulher parece que visto o demónio. - Disse-lhe a Cadi. - Que te aconteceu?
- Diz-me o que está escrito no papel. - Ordenou-lhe a Binta.
- Tá bem, não te zangues. O papel não diz nada.
- Não diz nada!? Mas tem letras? - Retorquiu a Binta com o coração acelerado.
- No papel está escrito. “Aqui”. Que é que isto quer dizer? Nada!
- Deixa comigo – disse Binta – E pegando no papel seguiu para casa, a saltitar, como um passarinho: ela entendera a mensagem. Era naquele lugar onde o deveria esperar sempre que tivesse notícias.

E a vida continuou, só que a Binta deixou de ser a mesma que partira ao encontro do seu amado.

José Teixeira
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Nota do editor

Último poste da série de 29 DE JULHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23471: Estórias do Zé Teixeira (56): Amores em tempo de guerra: III - Amores proibidos (2): Binta!... Binta!... (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

sexta-feira, 29 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23471: Estórias do Zé Teixeira (56): Amores em tempo de guerra: III - Amores proibidos (2): Binta!... Binta!... (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

1. Segunda parte da história de amor entre Binta e o seu prometido Braima, combatente do PAIGC, enviada em mensagem de 27 de Julho de 2022, pelo nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70).


Amores em tempo de guerra III

AMORES PROIBIDOS

(2) - Binta!... Binta!...


A Binta ficou perdida naqueles olhos que a mantinham prisioneira, iluminados pelo luar que surgiu repentinamente, enlaçada no pescoço do homem que a envolvia com os seus braços, estreitando-a contra o seu corpo e a beijou ternamente na testa num longo segundo. 

Deixaram-se envolver pelo silêncio das palavras escondidas, esmagadas há tanto tempo nos seus corações. Braima inclinou-se para a beijar de novo e os seus lábios selaram-se ternamente. Sensações novas invadiram todo o seu corpo deixando-a eletrizada, perdida no tempo e no espaço. O passado deixou de existir naquele momento. Um novo presente nascia, há que vivê-lo!

Braima falou, suspirando:
–  Há muito tempo que sonho com este momento – enquanto a pousava suavemente no capim e se deitava a seu lado. Noites e noites sem dormir, vendo-te sem te ver, ouvindo-te sem te ouvir... sonhando contigo, mas a libertação do nosso povo meteu-se entre nós. Agora que não podemos derrotar o passado, que nos afastou um do outro, temos de conquistar o futuro, vencê-lo para que seja nosso, temos de conquistar a liberdade...
–  Braima, Braima, meu querido, esqueceste-te que sempre tivemos liberdade de ser o que somos, mesmo se isso aconteça apenas nas nossas cabeças – disse a Binta pousando os sequiosos lábios sobre a boca do Braima, enquanto lágrimas de emoção lhe lavavam a face. - O medo de te perder, desde o dia em que foste embora, atormenta-me a todo o momento, as notícias que de ti chegam, sempre tarde, são a razão do meu viver, porque o coração vai-me dizendo que continuas vivo e a amar-me. É esta a razão da minha vida, esperar por ti. Agora quero ir contigo. Não te vou perder, nunca mais.
-–  Não me perderás, juro por Alá,  o Misericordioso, louvado seja Ele. Não há bala que ouse tocar-me. Voltarei... voltaremos para viver o nosso amor. Mas tu não podes vir comigo. Os perigos não têm fim, nem escolha possível e é preciso saber fintá-los. Confia em mim e me basta - disse-lhe o Braima, olhos nos olhos, enquanto a cingia tentando fazer dos dois, um só corpo.

Binta estava sem forças. Pranteava e não sabia se de comoção, ou de fúria ao ouvir o Braima negar-lhe a companhia, na árdua luta que ele travava contra o colonialista de Lisboa e não conseguia entender tal recusa.

–  Não! Agora que te reencontrei vou contigo, quero ser tua, de mais ninguém, e a mais sábia maneira de o ser é acompanhar-te nos perigos da luta em que acreditas. Se há uma liberdade a conquistar, conquistemo-la juntos, se for necessário morrer, morramos juntos. Os dois seremos mais fortes. Vou contigo!
– Como eu gostava de te levar comigo, minha querida, ter-te sempre a meu lado, sentir o teu coração a palpitar! Como eu gostava de ter a presença do teu corpo, o teu sorriso, o teu olhar de criança apaixonada que me cativou, sempre a meu lado! Mas, não! Não posso comprometer o nosso amor. Não posso arriscar perder-te. Prefiro contemplar-te apenas com o coração e sonhar contigo a toda a hora. Acredita que esta luta não vai ser muito longa no tempo. Vamos ter uma Pátria nossa. Uma bandeira vai unir o nosso povo e seremos livres. Eu prometo regressar à tabanca, à minha terra amada, casar contigo e vamos ter muitos filhos. Vamos ser muito felizes, porque o amor que nos une tem de dar o seu fruto.
–  Ó Braima, meu tolinho. Ainda acreditas que os colonialistas nos vão deixar? Ainda acreditas que esta maldita luta pela libertação vai ter fim? Loucura a tua! Eles são muitos, estão sempre a chegar. Têm armas e canhões, têm dinheiro e boa comida, têm... A Metrópole ou Lisboa, deve ser o paraíso deles... E nós o que temos?! Tu! Onde dormes?... o que comes?... que dinheiro possuis para comprares arroz?
– Tens de acreditar em mim. Vamos receber armas para abater os aviões que massacram e impedem que avancemos na luta. Depois, atacaremos os quartéis na cidade. Cercaremos as suas posições nas tabancas. Vamos destruí-los e construir a nossa pátria gloriosa, mas esta luta não é para ti. Continua junto dos teus pais e confia.
–  Se acreditas tão piamente na vitória, porque não me deixas ir contigo? Braima, Braima, meu amor! Porquê? Porquê?

O calor de dois corpos unidos e sedentos de se amar pedia tréguas na conversa. Binta tremia num misto de dor, alegria e emoção. Não conhecera outro homem. Guardara-se para aquele momento com o seu Braima. Ela sabia pela mãe, que os primeiros ritos eram dolorosos para a mulher, mas precisava viver aquele momento. Queria entregar-se totalmente ao Braima, para lhe afirmar com a vida, que era dele, e só dele, mas tremia... sem medo.

O Braima não era um novato nestas coisas do amor. O coração, esse reservara-o para a Binta. Queria continuar a conversa para serenar a sua amada, mas o corpo pedia-lhe a entrega total...

–  Vai com calma, não te apresses, vive o momento – disse a si mesmo.

Sentindo que a Binta estava tensa, estendeu-se a seu lado, apoiado sobre o cotovelo, procurando cruzar ternamente o seu olhar. Voltou a pôr a boca sobre a dela e acariciou-lhe os lábios com a língua num roçar leve, ternurento. Depois contornou-lhe o rosto e mordiscou-lhe o lóbulo de uma orelha, cobrindo-lhe a face e a testa de beijos, enquanto a sua mão acariciava os mamilos enrijecidos.

 – O que é isto que me faz tremer como que estivesse com febre, estes arrepios deliciosos, que eu nunca senti e me fazem feliz? - Interrogava-se Binta, saboreando o momento, numa entrega total de si mesma.

O mundo à sua volta deixara de existir. O mundo, agora, eram eles os dois. Nada mais interessava que não fosse o amor que vibrava no seu corpo, transformando-a na mulher que sempre sonhara ser - a mulher do Braima. As mãos dele corriam-lhe o corpo num bailado estonteante de descoberta de sensibilidades e tensões que nunca sentira.

–  Como é maravilhoso sentir o teu amor! - disse a Binta ao ouvido do Braima no momento em que lhe mordia o lóbulo de uma orelha e pensava nas muitas vezes que os soldados tugas, abusadamente, lhe comprimiram os seios, sem que ela tivesse o mínimo prazer, pelo contrário... sentia ódio e raiva que expressava com o olhar de mulher que se sentia ofendida pelo abuso. Ah! Mas o alferes Barbosa respeitava-a muito e nunca a tocou. Esse era diferente, o Braima branco...

Binta impregnada de desejos libidinosos desapertara o pano que a cobria e afastara-o deixando o seu corpo ao luar, o que fez o Braima perder a respiração. – Oh, mulher! Era uma voz rouca, imbuída de desejos, que ele nunca experimentara. Sentiu que a sua virilidade se expandia desmedida sem controlo. Binta! Binta! Que mulher! – Com extrema fúria, beijou-a na boca entreaberta, enterrando, em seguida, o rosto entre os seis chupando ardorosamente a pele suave. Entontecido, parou e respirou fundo tentando controlar-se.

– Alguma coisa errada? - Gemeu a Binta.
 –  Não. É apenas o meu desejo de te tornar minha. Quero fazer-te feliz e não sei se vou conseguir. És tão bonita, tão mulher...

O rosto de Binta abriu-se num sorriso acolhedor. Então, Braima beijou-a de novo, calmamente, acariciou-lhe o corpo, sentiu o seio farto e rijo, a cava da cintura, o quadril fazendo uma amena curva e a coxa forte e musculada de uma mulher de trabalho. Ela tremia a cada toque acariciador, tanto era o seu prazer. A mão dele continuou numa toada leve e lenta até encontrar os anéis do púbis que afagou com carinho. Sua boca procurou um mamilo. A língua tocou-lhe ao de leve, provocando um grito de prazer em Binta, que o medo de ser ouvido por alguém, logo abafou. A guerra continuava no meio deles, mesmo naquele lugar ermo, alta ia a noite.

...E o amor aconteceu.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 28 DE JULHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23467: Estórias do Zé Teixeira (55): Amores em tempo de guerra: III - Amores proibidos (1): Binta!... Binta!... (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

quinta-feira, 28 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23467: Estórias do Zé Teixeira (55): Amores em tempo de guerra: III - Amores proibidos (1): Binta!... Binta!... (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

1. Em mensagem do dia 27 de Julho de 2022, o nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70) enviou-nos, para a sua série Amores em Tempo de guerra, a continuação da história de amor entre Binta e o seu prometido, combatente do PAIGC.


Amores em tempo de guerra III

AMORES PROIBIDOS

(1) - Binta!... Binta!...

O coração deu um pulo. Já se tinham passado alguns anos, mas aquela voz estava-lhe gravada no coração. Era ele, o Braima, que a chamava do meio da floresta, ou estaria a sonhar?! Tinha de se manter calma e avisá-lo do perigo. Olhou na direção do som. Fez um sorriso e mexeu os lábios pedindo silêncio. Mal viu o Braima, mas sentiu-o a seu lado e o seu corpo vibrou de emoção. O coração quase a traiu. O alferes, que a cotejava, estava ali por perto a contemplá-la, enquanto lavava a sua roupa, no pequeno riacho que passava ao lado da tabanca.

O alferes adorava a bajuda. Tentara todas as formas possíveis para a conquistar. Binta defendia-se afirmando que estava comprometida com o filho do Mamadu, o chefe da tabanca vizinha que era também o sargento-chefe da milícia, sob o comando e orientação do Barbosa. Afirmava – mentindo – que o noivo era soldado do exército português e cumpria tropa em Bolama. Mantinha-se assim intocável e respeitada pelos soldados de quem era lavadeira para ganhar algum dinheiro e fazer o pé-de-meia para quando constituísse família com o Braima, a quem fora prometida nos tempos de criança. 

Sofria em silêncio e acreditava que a guerra acabaria um dia, ou fugiria para o mato ao encontro do seu amado. Tentou manter a calma. Acabou de lavar a roupa do alferes, enviou-lhe um sorriso matreiro e correu para casa. Pôs a roupa a secar, voltou ao rio para tomar banho e esperou o lusco-fusco. Então cobriu-se com o mais lindo pano, pôs o lenço mais garrido na cabeça e perfumou o corpo. Aproveitando a hora do rancho dos militares, abandonou a tabanca para ir ao encontro do seu amado.

O sol acabara de desaparecer. Os contornos das moranças e das árvores já se fundiam nas sombras da noite. Binta caminhava por entre as casas redondas de cana entrançada, chapeadas com lama, atenta a qualquer movimento vindo dos abrigos militares ou das moranças, que os oficiais e sargentos tinham arrendado a seu pai. 

Estava com medo de que o alferes tivesse notado algo de estranho no seu comportamento, no momento em que o Braima a chamara e estivesse a espiá-la. Dos furriéis e soldados não tinha medo. Ela cuidava da roupa do alferes e estava prometida em casamento pelo seu pai, sentia-se intocável e respeitada. Chegada à porta de saída, onde o arame farpado que rodeava a tabanca para impedir eventuais tentativas de invasão dos guerrilheiros, deixava uma brecha em aberto, a sebe deslocável conhecida como “cavalo de frisa” que fazia de cancela, notou que esta já estava fechado e hesitou. As pernas tremiam-lhe, o coração palpitava em demasia, a respiração tornou-se ofegante. Só a mente sabia o que fazer. 

A sentinela era o Gonzaga, de quem era também a lavadeira da sua roupa. Um bom rapaz que tentara, mais que uma vez, conquistar os seus favores. Recuara sempre face à sua firmeza e talvez porque era a protegida do alferes. Era altura de o testar. Decidida, chegou ao “cavalo de frisa” e arrastou-o o suficiente para passar.
- Alto lá, aonde vais,  minha boneca?
- Uma cabra fugiu para o mato, vou buscá-la e volto já.
- Anda aqui à minha beira. “Quero ter “conversa giro contigo”.
- Agora não,  que está noite e a cabra pode fugir. Mais logo, quando chegar. Posso ir…?
- Prometes? Oh! Já não acredito!
- Gonzaga, eu prometo. E desata a correr pela picada fora, penetrando na mata em busca de uma cabra que não tinha fugido.

Depois de andar largos metros na mata escura, voltou à picada que seguia para Falace. Picada quase absorvida pela densa mata, que ela conhecera bem em tempos, pois era perto da tabanca da sua falecida avó. Tantas vezes lá fora visitar os avós, os tios e os primos. A última vez foi no dia do funeral do tio, que morreu às mãos dos libertadores da pátria, como se afirmavam os guineenses que viviam na mata, quando incendiaram a tabanca e raptaram os jovens. Era ela uma criança.

Nada mexia no silêncio do lusco-fusco que estava de partida. Era demasiado cedo para os animais noturnos começarem a sua faina. Só os pássaros pareciam ainda acordados, animando a Binta com o seu melodioso chilreio. Nesse mundo meio adormecido, o mínimo movimento parecia suspeito. Não parava de olhar para trás, com medo da sua fuga ter sido descoberta pelo alferes ou o Gonzaga a tivesse denunciado.

Então viu a lua aparecer majestática e colocar-se à frente do sol. Este, ao sentir-se recôndito, apesar de estar a caminho do ocaso, projetou os seus raios sobre a ela transformando-a numa gigante bola de fogo, a qual ao elevar-se no horizonte mais parecia a floresta, qual gigante, a abrasar-se num fogo sem fumo. Um panorama apavorante para quem nunca tinha tido a oportunidade de visualizar um eclipse do sol em África. Um belo e aterrador quadro, digno do Apocalipse que se foi eclipsando na medida em que o sol se deixava esconder pelo horizonte e partia a clarear outras partes do globo terrestre. A lua reveio à sua dimensão planetária e tomou o seu habitual esplendor a alumiar o céu e a terra, deixando as estrelas escondidas por detrás da sua suave alvura. 

Binta já tinha deixado para trás a fonte de água pura que servia a população nas suas necessidades. Também cobria as carências dos militares instalados na sua tabanca. Muitas vezes ela pedira boleia aos militares para ir buscar água fresquinha e de muito melhor qualidade sanitária que a água do poço que o pai tinha na tabanca. Ela sabia que era por ali perto que os homens da mata assestavam os seus canhões para atacarem os invasores portugueses. Aliás, sabia que a fonte também era usada pelos combatentes da liberdade. Tinha uma vaga esperança de que o seu amado andasse por perto, ou talvez eles ousassem atacar os militares nessa noite, mas não... nem sinal de qualquer presença humana…

O caminho parecia não ter fim. Nem vivalma, e a noite já era profundamente negra. A lua deixara-se encobrir por uma longa nuvem. Parece que as estrelas adormeceram no céu e o cerrado arvoredo transformava o caminho, uma estrada há vários anos encerrada, num pesadelo. Mal vislumbrava a clareira por onde sabia que tinha de seguir para chegar ao miolo da mata, onde eles, os conquistadores, possivelmente se acoitavam. O medo começou a apossar-se dela, mas a mente dizia-lhe que o Braima andava próximo e ia salvá-la do aperto de coração que começava a sentir.

A Binta caminhou mais uns metros e susteve-se amedrontada. Pareceu-lhe ouvir um ruido. Manteve-se em silêncio e atenta a qualquer movimento à sua volta. Longos segundos de palpitações apressadas numa mente baralhada. Estaria a cometer uma loucura. Talvez não tenha sido o Braima, mas um espião, como já acontecera outras vezes... Mas não, este chamara-a pelo seu nome, bem perto do arame farpado. Ela vira-o naquela tarde! Era ele mesmo, mais homem, barbicha comprida... e o mesmo sorriso...

Talvez fosse melhor voltar para trás. Acoitar-se junto de um tronco perto da sua tabanca e aparecer no dia seguinte. Só teria de se justificar ao seu pai e este compreenderia. Ao alferes diria que tinha ido à procura da cabra, o Gonzaga tinha-a visto sair. Ela justificar-se-ia bem: como a noite chegou rapidamente teve medo de ser confundida com o inimigo e ficou a dormir junto a um tronco, do lado de fora da tabanca até chegar o dia.

Tola era ela se não fizesse isso e continuasse o caminho! Cogitava, enquanto prosseguia no trilho sem fim. Era o coração que a comandava.

O quebrar de uma folha atormenta-a de novo. Nova paragem na silenciosa e atemorizadora escuridão da noite em que nem as rãs se ouviam.

Eis que uma voz suavemente cantante se faz ouvir:
- Binta! Binta, sou eu!

O coração sobressalta-se. A voz veio não sabe de onde, mas é ele, o seu prometido, o Braima. Esconde-se, de si mesma, junto a um tronco, tenta serenar o coração e a mente que se baralham e lutam entre si e aguarda, perscrutando em todas as direções.

Ouve-o de novo chamar pelo seu nome. Agora bem perto. Se dúvidas tivera desapareceram. Era ele que estava ali e vinha buscá-la.

(Continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 19 DE JULHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23443: Estórias do Zé Teixeira (54): Amores em tempo de guerra: II - Correspondência desviada (conclusão) (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

terça-feira, 19 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23443: Estórias do Zé Teixeira (54): Amores em tempo de guerra: II - Correspondência desviada (conclusão) (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

1. Em mensagem do dia 17 de Julho de 2022, o nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70) enviou-nos, como tinha prometido, a segunda parte da sua estória Correspondência desviada.


Amores em tempo de guerra II

Correspondência desviada (continuação)

Resumo da primeira parte(*)

O alferes José Barbosa foi acordado alta noite. Alguns soldados do seu grupo de combate discutiam. Levantou e foi verificar o que se passava. A discussão centrava-se no Joaquim Santos que ultimamente ao regressar do seu serviço de sentinela acordava os camaradas em altos berros e palavrões.

O alferes, perante as queixas dos camaradas,   dispôs-se a ouvir o Joaquim em privado. Descobriu um homem transtornado. Todas as semanas escrevia à esposa e vice-versa. Ultimamente a correspondência que ele enviava à esposa extraviava-se, o que estava a degradar a relação entre o casal.

O alferes orientou-o quanto à forma segura de fazer chegar a sua correspondência à esposa. Aconselhou-o a ir de férias à metrópole e em conversa com a esposa aclarar a situação e resolver o problema.



Férias bem merecidas

No dia seguinte o Joaquim escreveu à esposa, seguindo o estratagema aconselhado pelo alferes, informando-a que contava regressar de férias dentro de algum tempo para estar com ela. Certo, porém, que o pobre rapaz acalmou depois da conversa com o comandante.

O alferes recolheu os elementos necessários sobre a morte do irmão do Joaquim em Angola, e fez uma exposição ao Comando Chefe de Bissau. Havia de facto uma lei militar que isentava de servir a Pátria, em missão no Ultramar, todo o militar a quem tivesse falecido algum irmão em combate. Tal lei estava escondida num Decreto-Lei e só era usada a requerimento do próprio interessado. Ora como ninguém conhecia a lei, esta não era cumprida.

Passado cerca de quinze dias, embarcou no avião da TAP em Bissau. Ainda a tempo de receber uma carta da esposa que o deixou imensamente feliz. Ela esperava-o ansiosamente, falava-lhe da menina com um entusiasmo de enlouquecer. Para aumentar a sua felicidade, vinha na carta uma fotografia da Anita, a sua menina que mal conhecera.

Tudo aconteceu rapidamente. A confirmação da viagem, a ida para Bissau no lugar do copiloto de um bombardeiro T6 e o embarque dois dias depois, de manhã, para Lisboa, que nem teve tempo de informar a esposa da data de chegada. O único telefone que havia na sua terra era propriedade do merceeiro. Possivelmente o Joaquim não sabia o número do telefone, mas nem pensou em tal. O importante era chegar junto da sua esposa, da sua menina, e abraçá-las.

- Cheguei!... E agora, vou ter com a Ana Maria ao trabalho? Vou a casa dos meus sogros ver a Anita? Vou a minha casa ver a minha mãe e talvez o meu pai esteja por casa!?… - pensou o Joaquim, logo que se viu fora do aeroporto de Lisboa.

Aspirou profundamente o ar de Lisboa, o ar da liberdade, da segurança… Sentia-se seguro, mas estava inquieto, nervoso. Dentro da sua cabeça bailavam fantasmas que tentava expulsar. Seguiu para a central de camionagem à procura de transporte que o levasse até à vila a cerca de cinquenta quilómetros de Lisboa. O restante percurso, de cinco quilómetros, teriam de ser feitos a pé. Não era dia de feira, não havia outro tipo de transporte, a não ser de táxi, muito caro para o seu bolso. O seu meio de transporte era a bicicleta que estava parada em casa da mãe, desde que partira para a vida militar. Talvez depois fosse ter com a Ana Maria, cujo transporte da empresa de confeções até casa, também era a bicicleta.

A mãe do Joaquim, nem queria acreditar. O seu menino regressou. Mal sabia que era apenas por trinta dias, mas estava ali e isso era o mais importante. A Ana Maria tinha-a informado da feliz notícia, mas ela não contava que fosse tão rápido. Tremia. Tremia de alegria incontida. Pendurou-se no seu pescoço. (Tinha um físico de mulher baixa e abonada. Ele era parecido com o pai; alto e forte.) Chorou de alegria. Choraram ambos, mas pouco conversaram. O Joaquim foi buscar a bicicleta e preparou-se para abalar ao encontro da esposa. Azar o seu. A bicicleta por falta de uso tinha os pneus vazios. Felizmente a do pai estava ao lado e o Joaquim nem pediu licença. Partiu a todo o gás para apanhar a Ana Maria à saída.

Ela não contava com o Joaquim ali. A surpresa paralisou-a, para de seguida atirar a bicicleta ao chão e correr para ele. Só os verdadeiros amantes saberão compreender o que se passou naqueles dois corações. Os seus corpos uniram-se em abraços sem fim. Aqueceram-se em ternos beijos e poucas palavras. A felicidade apoderou-se deles. Longos minutos depois, seguiram para cada dos pais da Ana Maria ao encontro da Anita a filha, fruto do seu amor.

O tempo voou. O mês de férias esgotou-se sem que antes pusessem as conversas em dia e alimentassem profundamente o amor que os unia. Tentaram descobrir porque não chegavam os aerogramas que o Joaquim escrevia, sem resposta plausível.

O tio, que lhes cedera o pequeno espaço para Ana Maria e a Anita viverem na ausência forçada do sobrinho, acolheu-os, estranhamente, com alguma frieza. Desconhecia, segundo lhes disse, que a correspondência do sobrinho se extraviava, aliás, queixou-se que a Ana Maria quase não lhe ligava. Apenas o “bom dia” e “boa noite”.

Para não correrem o risco de novo corte da corrente afetiva via correspondência, decidiram continuar com o esquema proposto pelo alferes Joaquim Barbosa. Os aerogramas escritos por ele, para a Ana Maria, seguiam dentro de carta fechada para casa da mãe e esta, os faria chegar ao destino.

Na hora de regresso à Guiné, o Joaquim sentia-se feliz e confiante. Levava com ele a imagem de uma criança que o adorou, tanto quanto ele a ela. A esperança de voltar em breve e sobretudo a certeza de que era amado pela Ana Maria. Isto bastava-lhe.

A felicidade que irradiava ao apresentar-se ao alferes, quando regressou, foi a melhor forma de pagamento que este sentiu, e a vida na Guiné continuou…

Causas e efeitos da correspondência desviada

Naquele fim de tarde, uns tempos depois do regresso do Joaquim, estava o alferes José Barbosa sentado à porta da sua cabana, em amena cavaqueira com dois furriéis, quando vê chegar o Joaquim, um tanto alvoraçado.
- Meu alferes.  dá-me licença? Preciso de falar consigo!
- Não me venha outra vez com outra história da sua mulher! Porte-se como um homem! Já sabe que a todo o momento deve chegar a guia de marcha para o seu regresso a casa. Tenha calma!
- Meu alferes, eu sei que não tenho perdão, disse Joaquim, mas preciso de regressar a casa já. Vou matar o meu tio! - Atirou de topete.
- Está doido homem!
- Não. Não estou. Sabe quem desviava as minhas cartas? Era ele, o grande filho da puta do meu tio. Leia este aerograma da Ana Maria.
- Tenho mais que fazer. Conte-me você!
- Diz ela aqui. O tio, na segunda-feira, convidou-me para ir com ele a Lisboa resolver problemas pessoais. Perante a minha resistência, porque ia perder um dia de trabalho, prontificou-se a pagar-me a féria e tanto porfiou que fui com ele. O sacana não foi tratar de qualquer assunto. Passeamos por Lisboa, de café em café, até que ao aproximar-se a noite, alegando que era tarde para regressar, convidou-me para ir com ele para uma pensão. Usou palavrinhas doces sobre a minha pessoa. Eu era jovem merecia saborear a vida... tu estavas longe e nem precisavas de saber… enfim. Um cabrão de merda.

Meu querido, só tive tempo de correr a apanhar o barco para o Barreiro. A camioneta de carreira preparava-se para fazer a última viagem, mas cheguei a tempo. Tranquei-me em casa com a menina e no dia seguinte fugi para casa da tua mãe.

Ele escrevia a dizer-te que eu era uma doidivana e tu acreditavas. Aí tens. O bandido estragou a fechadura da caixa do correio para me roubar as cartas que me escrevias. Nem penses que vou regressar àquela casa. Aguardo o teu regresso aqui...

- Basta! - disse o alferes - Amanhã vou enviar o seu processo diretamente ao Governador. Tem de partir urgentemente, mas só o faço se me prometer que não vai cometer represálias sobre o seu tio. Esqueça o que se passou! A sua mulher soube resolver o problema da melhor maneira. Não vai, agora, criar conflitos. Promete?
- Como posso prometer,  meu alferes !!... Ele é meu tio, bem o sei, mais que levantar falsos testemunhos sobre a minha mulher, queria abusar dela, aproveitando-se da minha ausência. Como posso prometer ? Eu não lhe perdoo.
- Vá dormir e amanhã falamos. Boa noite.

Uns dias depois o Joaquim recebe ‘Guia de Marcha’ para regressar a Portugal continental. Era o fim da sua guerra, passados vinte meses de sofrimentos e torturas de coração. Era tempo de voltar para junto da sua filhinha e da esposa. Enevoava-lhe a mente o sentimento de vingança sobre o seu tio. Não lhe podia perdoar o que este fizera à sua família, escondendo as suas cartas para a esposa, e muito menos a tentativa de abusar sexualmente da sua amada, apesar do alferes lho ter exigido. Era tempo de agir logo que chegasse à terra. Fervia de emoção só ao pensar, que dentro de alguns dias, voltava para junto das suas mulheres, como costumava dizer para si, nos silenciosos momentos de encontro espiritual.

Foi acompanhado pelo alferes até à avioneta que transportava a correspondência para a Sede da Companhia. Despediram-se num longo abraço entrecortado por palavras de estímulo do comandante e agradecimentos por parte do Joaquim, que em pranto lembrou a noite em que o Barbosa lhe tirou a G3 da mão, e o ouviu pacientemente.
- Sabe, meu alferes, na câmara da arma estava a bala que eu tinha destinado meter na minha cabeça. Não aguentava mais a pressão e os tormentos que vivia. Você salvou-me. Obrigado, estou eternamente grato. Quando regressarem vou esperá-lo no desembarque e levo as minhas mulheres para que conheçam o homem que eu mais estimo.
- E você promete-me que não fazer mal ao seu tio. É uma ordem, ouviu!
- Prometo que vou tentar…

...E subiu para a carlinga...

O alferes José Barbosa ainda tinha esperanças de ver o Joaquim, dois meses depois ao regressar a Lisboa, como ele lhe prometera.

Esqueceu-se com toda a certeza. Nem respondeu às cartas que o José Barbosa lhe escrevera nos primeiros tempos após o regresso. Nunca mais deu sinal de vida.

Passaram-se anos e anos, até que no convívio anual comemorativo do regresso da Companhia, onde o Joaquim nunca compareceu, alguém disse que o “perna marota” tinha falecido.

José Teixeira

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Nota do editor

(*) - Vd. poste de 14 DE JULHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23430: Estórias do Zé Teixeira (53): Amores em tempo de guerra: II - Correspondência desviada (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

quinta-feira, 14 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23430: Estórias do Zé Teixeira (53): Amores em tempo de guerra: II - Correspondência desviada (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

1. Mensagem do nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70) com data de 11 de Julho de 2022, trazendo-nos a segunda estória para a subsérie de Amores em tempo de guerra.

Amores em tempo de guerra

II - Correspondência desviada

Depois da passagem de rotina pelos postos de sentinela, o alferes recolheu aos seus aposentos e adormeceu rapidamente. Acordou-o um ruído de vozes, onde sobressaía a fala do Joaquim Santos, o “perna-marota” onde se fundia a língua portuguesa com o crioulo. Vestiu uns calções e seguiu ao encontro dos desordeiros. O tempo de regresso à Metrópole aproximava-se, provocando nos seus homens uma certa inquietação e alguma euforia, que era preciso conter, sobretudo, era preciso evitar ruído noturno, e mais redobrada atenção quanto aos comportamentos.

O tempo de Guiné já ia longe demais, as vicissitudes da guerra impunham as suas marcas, era preciso calma, atenção e respeito pelo caminho que cada um dos seus homens estava a fazer. Para si, como comandante daquele grupo, o sonho era fazê-los regressar a casa, na Metrópole. O Cais da Rocha em Lisboa, de onde partiram, era a meta de chegada, onde todos deviam apresentar-se, pelo menos os que restavam: três já tinham partido, sendo que um fora num doloroso sobretudo de pinho, e os outros feridos em combate.

Imbuído deste espírito, o Alferes José Barbosa dirigiu-se ao abrigo de onde provinha o ruído. Três soldados brancos e um africano, discutiam. Cansados de acordar nas noites anteriores com o ruído que o Joaquim Santos produzia e os palavrões que lhe saltavam pela boca fora, quando acabava a sua hora de sentinela, os camaradas rodearam-no para uma chamada de atenção e ele reagiu de forma incorreta, como era seu costume.
- Joaquim chegue aqui! E vocês vão deitar-se. Acabou a festa!

Ao deparar com o Joaquim de G3 na mão, um pouco alcoolizado, o que não era seu hábito, e bradando palavras inconsistentes, logo pensou em admoestá-lo e redigir uma participação ao comandante da Companhia. Avaliando melhor a situação, filou-o por um braço e conduziu-o à porta da sua habitação. Sentaram-se, silenciosamente, num monte de cascalho, e a G3 entrou em descanso na mão do alferes. O pobre do soldado começou a chorar.

O Joaquim Santos, a quem fora dado pelos camaradas da recruta a alcunha “perna marota”, porque sofria de um pequeno tique na perna direita, era uma pessoa irritante, pela forma provocadora como reagia aos seus superiores e na relação com os camaradas. Até a voz, grossa e rouca, incomodava e ele sabia-o, pelo que abusava da fama para tirar proveito. Aparentemente não tinha grandes amigos e o alferes acompanhava-o de perto, para evitar sarilhos.
- Ah agora chora?! Mas há minutos despertou toda a gente do abrigo, e não foi a primeira vez. São seus colegas, devem merecer-lhe respeito. Disse-lhe o alferes, zangado. Que se passa Joaquim? Parece que está interessado em levar com uma participação ao comandante e apanhar mais meio ano de comissão!
- Se o meu alferes soubesse...
- Quero saber, antes de pensar no castigo que lhe vou dar!? Fale!

O silêncio que se seguiu entrecortado por soluços disse ao alferes, que algo de grave se passava, pelo que esperou pacientemente.
- O meu alferes sabe que sou casado e tenho uma filha. Tinha dois meses quando abalamos para a Guiné. Não sente a dor que me persegue... não pode sentir... amo a minha mulher... adoro a minha filha que mal conheço...
- Talvez, mas também tenho outras dores, que você não sente. Essa é a sua dor, mas todos nós, que aqui estamos, sofremos. A saudade mata, bem sabe... e cada um tem os seus dilemas. Temos de saber gerir os problemas com senso e você... se pensa que essa dor lhe dá o direito de incomodar os seus camaradas estás enganado!
- Não, meu alferes. Peço desculpa... estou confuso... não sei o que hei de fazer...
- Desembuche homem!
- Todas as semanas escrevo à minha mulher, e ela me escreve. Desde há dois meses queixa-se que não recebe a minha correspondência, e eu sempre lhe escrevi. Juro! Acusa-me de abandono, e até insinua que a troquei por uma madrinha de guerra. Não sei que fazer... eu amo-a e não quero perdê-la nem à minha filhinha! Alguém me desvia a correspondência, mas quem? Quem está interessado em arruinar o meu casamento? Ou será ela que me está a fintar?

O problema era grave. Não havia palavras que atenuassem a dor do Joaquim, pensou o alferes, optando por alimentar o diálogo. Talvez conseguisse que o Joaquim encontrasse a solução. Mais ninguém o conseguiria.
- Diga-me uma coisa. A sua família mora por perto?
- Sim. E aí é que está o problema. A minha mãe, que vive a cerca de dois quilómetros, escreve-me maravilhas da Ana Maria e da Anita. Passa lá por casa todos os dias com a menina. Almoça aos sábados e dispõe a tarde para ela, e a menina conviverem com os meus pais. O meu tio, que nos cedeu uma casinha junto à sua, para ela lá viver, para economizar uns cobres, acusa-a de ser depravada, porque nunca está em casa e que deve ter-me trocado por outro.
- E você em que acredita? Na sua mãe? Ou no seu tio...
- Eu quero acreditar na minha mãe, mas... ela está trolaró desde que o meu irmão morreu na guerra, em Angola. O meu tio... ela vive lá... e ele vê tudo.
- O seu irmão morreu em combate?
- Sim. Era condutor e pisou uma mina anticarro. O meu alferes sabe que essas não perdoam...
- Sim... Lamento... disse o alferes, comovido.

O alferes pensou: tenho de arranjar maneira de despachar este homem para casa, talvez a lei o permita, dado que o irmão morreu em combate, mas agora devo ajudá-lo a resolver o problema.
- Tem de encontrar formas de fazer chegar os seus aerogramas à sua mulher. Nunca se lembrou em enviá-los para a morada da sua mãe?
- Pois! E a minha mãe ficava a saber os nossos segredos. Nunca!
- Já pensou em ir de férias? Assim descobria o segredo da correspondência desviada... via a menina e aclarava a vossa relação afetiva. Merece ser feliz.
- Meu alferes o senhor sabe que na tropa ganhamos muito pouco. Dá para a cerveja e pouco mais.
- Porra! Tem ou não dinheiro para comprar a passagem? O que está primeiro, o dinheiro ou a sua felicidade e a da sua esposa? Amanhã vamos falar com o sargento e vai de férias. É uma ordem.
- Se o meu alferes assim entende! Ai que bom será, ver a minha menina!
- E a sua mulher. Ela merece confiança. Por favor, acredite na sua mãe. Amanhã vai escrever-lhe uma carta. Eu forneço-lhe o papel e o envelope. Mete dentro um aerograma para a Ana Maria e pede à tua mãe para lho entregar. Até ir de férias é assim que vai fazer e o seu problema fica resolvido. Pode crer.

E aqueles dois homens calejados por uma guerra ingrata, perderam-se na conversa, e encerraram este encontro, já o sol despontava, abraçados um no outro.

José Teixeira

(Continua)
Abril de 2008 > José Teixeira em Canamine
Abril de 2008 > Recepção em Guileje
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Nota do editor

Último poste da série de 14 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23351: Estórias do Zé Teixeira (52): Amores em tempo de guerra: I - Um dia de festa em tempo de guerra (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

terça-feira, 14 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23351: Estórias do Zé Teixeira (52): Amores em tempo de guerra: I - Um dia de festa em tempo de guerra (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

O José Teixeira em Ingoré, em 2015, rodeado de crianças

1. Mensagem do nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70) com data de 12 de Junho de 2022, trazendo-nos uma estória de amor, em tempo de guerra, como não podia deixar de ser. Quem não conheceu uma bela Binta na Guiné? A minha lavadeira chamava-se Binta e era bem bonita.


Amores em tempo de guerra

I - Um dia de festa em tempo de guerra

Não havia luar naquela noite. A obscuridade formigava de estrelas tão vivas que se tornavam ofuscantes aos olhos da Binta. Deitada na margem do regato avivado pela água das fortes chuvadas, ali mesmo ao lado do arame farpado que rodeava a tabanca, Binta deixara-se embalar em pensativo sonho, naquele local onde o mensageiro do Braima a ia visitar, em silêncio, longe a longe, fora das vistas de sentinelas, para lhe trazer novas do seu amado.

“Há quanto tempo lhes resisto... fui lavadeira de alferes, furriéis e até soldados que passaram por aqui. De uns gostei mais, mas nenhum me prendeu o coração. Quantas vezes tive de lhes dizer não!... quantas vezes tive de controlar as suas investidas maliciosas... O facto de ser filha do sargento da milícia e estar noiva do Braima, filho do Mamadu, tem sido a minha arma, que os obriga a respeitar-me. Se eles sonhassem onde anda o Braima, o que ele faz na mata... onde estaria eu?... Obrigada, minha mãe por me ensinares esta mentira, tu, que nunca na vida mentiste e me ensinaste que a mentira é usada pelos homens de cabeça grande, os que se perdem na bebida… na soberba ou na ganância…

...O alferes José Barbosa é diferente... Há dias pegou-me na mão, olhou-me nos olhos e eu pude ver bem dentro dele. Tem uns olhos transparentes, com um pouco de azul-celeste no contorno. Uns olhos destes não mentem, a mentira provocaria uma sombra, estou certa... E ele disse-me: “se o teu Deus é assim tão poderoso que pode criar uma mulher tão bela como tu, ficarei feliz por me submeter à sua lei para o resto da minha vida. Direi contigo: Allah é grande e não há outro Deus senão Ele. Casa comigo, eu dou ao teu pai tudo quanto ele me pedir, casa comigo”, insistiu... insistiu e eu fugi dos seus braços...

...Barbosa... eu amo Braima e esperarei por ele. Já recusei e continuarei a recusar entregar o meu corpo... O meu pai correu com pretendentes velhos e novos. Apesar de não ter recebido o quinhão prometido pelo pai do Braima, naquela noite. Para ele só há uma palavra, a dele. Respeito-o como pai, respeito-o como homem e amo o Braima... cabe-me guardar para ele o maior prazer.
- Mas onde está esse Braima que ninguém vê por aqui? Perguntou-me com ar inquiridor.
- Tive de lhe responder com a mentira que a minha mãe me ensinou.

Onde estará ele a esta hora?... talvez a dormir dentro de uma barraca... ou sobre o chão quente... ou a atacar um quartel... Olossato ou lá o que é, nem sei onde fica...
- Não! Está deitado a contemplar as estrelas, a pensar em mim... será possível que um homem e uma mulher, separados por esta luta violenta, esta guerra maldita; por rios e florestas cerradas; quilómetros de picadas cheias de perigos, possam enlaçar os seus olhos e pensamentos através das estrelas e viver o seu amor?... Braima do meu coração foge da guerra que nos mata... vem meu amor...
Quero-te a meu lado, quero ler o nosso futuro nos teus olhos, amar, ter filhos... maldita luta que me afastaste do meu amor!”

E Binta deixou-se adormecer como tantas vezes, sonhando com o seu amado. Acordaram-na os passos do cabo de ronda na sua tarefa noturna de manter as sentinelas em alerta.

José Teixeira

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Nota do editor

Último poste da série de 11 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23342: Estórias do Zé Teixeira (51): Há festa na Tabanca (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

sábado, 11 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23342: Estórias do Zé Teixeira (51): Há festa na Tabanca (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

Xitole, 2013 > Festa de casamento para a qual o José Teixeira fora convidado
Foto: © José Teixeira

1. Mensagem do nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, QueboMampatá e Empada, 1968/70) com data de 10 de Junho de 2022, trazendo-nos mais uma das suas belíssimas estórias:


Há festa na Tabanca

Naquele princípio de noite de quinta-feira, o alferes notou que algo de anormal estava a ocorrer na tabanca. Do Iero, apenas recebera um alegre sorriso, quando o interpelou sobre o que estava acontecendo com a população. As mulheres andavam num algaraviado rodopio, as bajudas passaram a tarde no “cabeleireiro” apresentando-se com belos e inabituais penteados, os homens, como de costume, tagarelavam animadamente debaixo ao majestático poilão, que o alferes já fora tentado a abater, pois considerava que era um excelente ponto de mira para o inimigo e se ainda não o destruíra foi pelo respeito que lhe merecia aquela simpática gente. A sua frondosa sombra era a sala de honra onde os homens grandes se reuniam e tomavam as decisões importantes para a vida comunitária local, o salão de festas comunitário, a escolinha onde as crianças, sentadas no chão, ouviam o mestre, na sua aprendizagem corânica.

Ao apreciar esta azáfama deixou-se invadir por um sentimento de felicidade. A sua tabanca estava viva e ativa. Adorava aquela gente, o seu calor humano, os sorrisos que recebia e lhe preenchiam a alma. Havia um inimigo por perto que a todo o momento podia surgir e quebrar aquela harmonia, pelo que se decidiu a visitar, ao cair do sol, todos os abrigos e postos de sentinela e recomendar aos seus homens uma especial atenção para a noite que se aproximava. Como era seu hábito, ficava uns minutos largos numa silenciosa cavaqueira com cada militar em serviço de vigia e proteção, pelo que recolheu ao seu leito, um pouca tardiamente, depois de se refrescar à moda fula, com umas latadas de água colhida no bidon que tinha à porta da casa.

Sexta-feira, manhã cedo, foi acordado por uma voz feminina que o chamava docemente. Aferes! Alferes, vem, quero falar contigo!
Não reconheceu a voz de quem o estava a chamar. Olhou para o relógio, eram sete horas. Voltou-se para o outro lado e deixou-se ficar decumbente a saborear a manhã que se avizinhava bem cálida. Mas a voz insistiu; alferes! alferes, vem falar comigo! Sou a Djubae, a mãe do Adulai, o teu menino.

Levantou-se célere, enfaixou-se na toalha de banho e abriu a porta. Habitava uma casa típica local que lhe fora cedida pelo Iero. As paredes em cana entrançada recobertas de barro vermelho, encaixavam-se num chão térreo cobertas de palha de capim, que ladeava a casa até a um metro do chão providenciando ao espaço interior uma agradável frescura. Inclinou-se para passar a umbreira da porta e deparou com a Djubae toda aperaltada, com bonito vestido que lhe realçava a juventude e a beleza, com um lenço de seda pura na cabeça. Impulsivamente deixou-se espreguiçar enquanto o pensamento lhe devolvia o que tinha apreciado na tarde anterior e pensou: a festa vai continuar… que se passará com esta gente, meu Deus!?

- Alferes, o Adulai vem convidar-te para a sua festa!
- Que festa? Questionou, esfregando os olhos ensonados a precisar de uma chapada de água fresca para acordar.
- Hoje, a tabanca tem festa grande. Allah, louvada seja Ele, deu o dom da vida ao meu menino. Vem visitar-nos o grande Cherno Rachid para fazer oração a Allah o misericordioso, louvado seja Ele. Queremos que venhas à festa do Adulai, disse, num ato repentino como que a despejar um recado que lhe avassalava o coração e se atrofiava na garganta.
- Hum! Mas… O Cherno Rachid vem cá e vocês não me informaram para eu criar condições de segurança. Vou ter uma conversinha com o Iero!
- Tem calma alferes, o Aldje Cherno Rachid pode viajar por toda a Guiné sem risco de vida. É muito respeitado, até pelos bandidos que estão no mato. É um escolhido de Allah e só Allah é Deus protetor e misericordioso, disse calmamente, enquanto pegava na mão do alferes e a encostava ao seu coração.
- Djubae! Djubae! Faltavas tu para prenderes ainda mais o meu coração a esta terra maravilhosa, a esta gente de coração puro, que não merece a pouca sorte a que está votada. Maldita seja a puta da guerra! Vociferou aturdido pelo mavioso convite que acabara de receber. Uma lágrima libertou-se do seu coração e escorregou-lhe pela face duramente queimada pelo agreste sol africano. Lágrima que a Djubae recolheu religiosamente na manga do seu vestido domingueiro.
- Vai, disse meigamente o alferes, beijando ternamente a mão da Djubae. Eu não demoro. Quero alimentar-me do vosso júbilo, da vossa enorme vontade de viver. Vai, minha querida!

…E chegou a hora da festa, chamemos-lhe de batizado, para melhor compreendermos o grande significado que tem para este povo, a entrada na comunidade de uma nova vida.
Xitole, 2013 > Festa de casamento
Foto © José Teixeira

Em tempo de guerra não é aconselhável usar o “bombolom” ou os “tam tam” para fazer o aviso e lançar o convite para a festa. Todavia, a tabanca enchera-se de caras que o alferes Barbosa não se lembrava de ter visto por ali. Os homens da terra e das tabancas vizinhas, vestidos de longa batina branca, com a cabeça coberta, solenemente sentados à sombra do poilão aguardavam a chegada do idolatrado Cherno Rachid, emblemático líder religioso a quem toda a Guiné muçulmana independentemente da opção político-militar, se curvava em respeito pelos seus profundos conhecimentos corânicos e pela sua forma de ser e estar no quotidiano da vida. Esta forma de viver tornara-o no homem de Deus mais respeitado em toda a Guiné e até países limítrofes, a quem o governador da província se inclinava com respeito e ousava consultar sobre os grandes problemas. Pelas mesmas razões era respeitado pelo bureau político da PAIGC e considerado intocável, pelo que se movia em paz pelas meandrosas picadas da Guiné, sem correr riscos de vida.

As mulheres grandes, aformoseadas nos seus trajes típicos, linguarejavam ruidosamente, sempre com o olho fixo na picada de onde surgiria o homem de Deus, enquanto a juventude se divertia a seu modo aguardando o momento mais solene.

O alferes José Barbosa sentado em lugar de honra no meio dos homens, ao lado do felizardo pai do Adulai, ouvia as conversas em linguagem crioula sobre o passado, o presente e o futuro da Guiné, tentando, nos seus parcos conhecimentos linguísticos locais, compreender de que falavam. O sentimento que tivera de se sentir a mais naquele meio desvanecera-se rapidamente. Sentia-se envolvido por um ambiente de bem-estar. Era como se fosse um filho da terra. Um estranho filho da terra.

Ao verem ao longe, no carreiro, a onda branca com o séquito do clérigo, gerou-se um alvoroço espontâneo:
- Dois jovens, engalanados com os mais belos trajes e pinturas guerreiras pelo corpo, munidos de estridentes assobios e braceletes musicais, agarraram os seus tambores, o djembé e o bougarabou, e prepararam-se para iniciar a festa.
- Quatro bajudas entre elas a Binta, aproximaram-se dos pilões e tomaram nos macetes, colocando-se em posição de começar a ação de pilar do arroz.
- O artista convidado afinava o Kora, um instrumento musical feito de madeira ou bambu com ranhuras transversais e uma caixa de ressonância obtida de uma cabaça partida ao meio. Instrumento de origem mandinga que gera uma musicalidade divinal, o que vai dar mais vida à festa do Adulai.
- O recém-nascido vestido apenas com o fato que a natureza divina lhe dera, é colocado no colo do avô, que tira do bolso uma farpa acastanhada de vidro, arrancada, talvez, de uma inútil garrafa de cerveja.
- O açougueiro segura, pelo pescoço, o carneiro que vai ser sacrificado em honra do glorioso, o senhor supremo do Universo, louvado seja Ele. Uma naifa afiada na mão espera pacientemente.
- A mulherada faz então uma longa roda que envolve todo este ambiente, fechado num silêncio espontâneo e expectante. Convidativo à meditação sobre o valor de uma vida. Uma vida humana que nasceu para ser feliz. Merece ser feliz.

O Califa, depois de ser cumprimentado religiosamente pelos presentes, entra no recinto, abre os braços aos céus e começa a orar.
Momento mágico para os olhos e coração do alferes que vê soltarem-se as mãos das bajudas, dos tocadores de batuque, das mulheres, de toda a gente, até do velho avô que começa a rapar com o vidro da gasta garrafa de cerveja, o cabelo negro do bebé Adulai, enquanto o carneiro dá o seu último mééé!

O início da festa que irrompe ritmadamente ao som do bater do pilão, dos toques e assobios dos tamborileiros, acompanhados por dezenas de mãos a baterem palmas, com os corpos a gingarem num frenesim e as vozes num harmonioso coro de louvor a Allah, o Criador. Não faltou o acender da fogueira com a panela devidamente colocada pelas ágeis mãos das cozinheiras de serviço. Tudo num simultâneo festejar da vida do Adulai.

A sonoridade do macete a bater no pilão, alimentado pela cantilena mais linda, que o alferes jamais ouvira, ritmada pelo bater de palmas das suas jovens manobradoras numa cadência alucinante, com os seios, o mais belo símbolo da sua feminilidade, a acompanharem o bailado, revolvendo-se majestaticamente nos seus bronzeados corpos a pingar longas gotas de suor. Um espetáculo divinal, a que aqueles sons arrancados vigorosamente do fundo dos tambores, alimentados pela musicalidade do kora, com o seu toque especial, davam vida e cuja mensagem não conseguia interpretar. Tudo isto transporta o alferes Barbosa ao seu Portugal, à sua terra, entre o Douro e o Minho das desfolhadas, dos bailaricos animados pela viola e pela concertina, das cantigas ao desafio, deixando-o por momentos perdido na saudade que o devorava.

Procurou o olhar da Binta, mas não o encontrou. Queria suavizar a dor que lhe ia na alma, lado a lado com a alegria de estar ali, a viver com o seu povo (assim o considerava) uma festa tão linda. Precisava de esquecer, nem que fosse por momentos, a sua aldeia natal, nos braços da mulher africana que lhe prendera o coração.
A Binta, sentia-se aturdida. Faltava-lhe o seu Braima, que tantas vezes animara festas como esta. “Agredia” o pilão com a raiva desmedida, enfiada dentro dela, cantando sem nexo. O seu coração bailava longe dali. Como ela adorava tê-lo por perto, para lhe transmitir num olhar sereno todo o afeto que lhe enchia a alma. Talvez não estivesse distante assim, pensou, tentando consolar-se. As boas notícias voam rapidamente… perdeu-se no ritmo da festa e continuou a cantarolar, olhando de través para o alferes de quem gostava, mas não se prendia de amores. A vida continuava, mesmo com seu o Braima escondido na mata, não a podia perder.

E assim se passou a manhã, enquanto as mulheres e bajudas davam o seu passo de dança típica e se libertavam dos maus irãs, os homens alinhavam em conversas soltas, até que chegou a hora do almoço. Homens a um lado, mulheres a outro, algumas com as suas crianças. Grandes bacias cheias de arroz e pedaços de cabrito envolvidos em saboroso molho de chabéu, são espalhadas no recinto. Aninhados no chão, depois de lavarem as mãos, os convidados banqueteiam-se calmamente conversando de tudo e nada, porque o importante é viver o momento.

Para o alferes reservaram uma pequena bacia de arroz, com a melhor tranche de cabrito e uma colher, que o Barbosa recusou preferindo aninhar-se junto do Iero e partilhar do almoço comum, para alegria dos presentes que o acolheram com um rasgado sorriso de contentamento.

A tarde foi serena. Alguma música e muita conversa. Os visitantes aproveitaram para, em convívio, trocarem ideias, recordarem velhos tempos, projetarem o futuro.
E foram partindo discretamente ante que o sol se escondesse para além da mata.
E chegou a noite. Voltou o silêncio. Voltaram os medos.

O Alferes foi ter com os seus homens. Em cada posto de sentinela uns olhos vigilantes espreitavam o futuro.
Sábado seria um novo dia.

José Teixeira

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Nota do editor

Último poste da série de 7 DE AGOSTO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22441: Estórias do Zé Teixeira (50): Amores em tempo de guerra - O sonho da Luisinha (José Teixeira, ex-1.º Cabo Auxiliar Enfermeiro da CCAÇ 2381)