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quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Guiné 63/74 - P16672: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (16): o caso do soldado básico auxiliar de cozinheiro Miranda (Tino Neves, ex- 1º cabo escriturário da CCS / BCAÇ 2893, Nova Lamego, 1969/71)



Guiné > Região do Gabu > Nova Lamego > CSS/BCAÇ 2893 (1969/71) > O 1º cabo escriturário Constantino (Tino) Neves e o sold básico auxiliar de cozinheiro Miranda, em missão de PU - Polícia de Unidade. "A foto foi tirada no salão do cinema de Nova Lamego, numa festa de variedades, em que actuava uma cantora vinda da Metrópole, do Seixal, e eu estava de cabo de dia. Como o furriel destinado à Polícia da Unidade (PU) se tinha baldado, o oficial de dia, o capitão, comandante da CCS, mandou-me substituir o furriel, e assim aproveitei para ir assistir às variedades".  O Miranda, acusado justa ou injustamente de ser "amigo do alheio", acabou por "fugir" para o PAIGC...

Foto (e legenda): © Tino Neves (2007). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

 


1. Este texto, que se segue,  esteve para ser publicado em abril de 2007, chegou mesmo a ser editado sob o nº 1645, e depois retirado; devia inaugurar a série "Estórias do Gabu" (*)...

Por razões editoriais, ficou em "stand by": considerava-se, na época. que o tema da "dcserção" era delicado, polémico  e até fracturante; por outro lado, havia algum pudor em identificar o militar em causa, pertencente à CCS/BCAÇ 2893 (Nova Lamego, 1969/71).

 Acabámos por publicá-lo em 10/11/2012, com pequenas alterações (*).  Afinal, é a história (pública) de um "desertor" (, "fujão", era o termo ainda cru e cruel, que vinha no título da "estória do Gabu"), contada por um camarada, o Constantino Neves,  que com ele privou e conviveu...

Toda a gente da CCS/BCAÇ 2893 sabia da história e muita gente inclusive terá acabado,    sem o querer,  por empurrar o Miranda, para os braços do inimigo de ontem... Não vemos hoje razões para esconder o seu rosto, mais de 45 anos passados sobre o acontecimento.

De resto, este militar, que foi nosso camarada,  é apenas identificado pelo apelido, como era prática comum na tropa.  Não sabemos nada sobre o seu paradeiro atual, nem sequer sabemos se ainda estará vivo.  Mais: não sabemos pormenhores sobre a sua saída do quartel (velho) de Nova Lamego nem sobre a sua eventual colaboração com o IN.

Convém lembrar que este caso se passou em 1970 por volta de março/abril de 1970. Em 15 de novembro desse ano, Nova Lamego é atacado em força, brutalmente,  pelo PAIGC,  originando 3 mortos entre as NT, 4 feridos graves, 8 ligeiros, 8 mortos entre a população, 50 feridos graves, 30 ligeiros (**)...

Não sabemos se a traição do Miranda foi ao ponto de fornecer informações preciosas, ao PAIGC, sobre o quartel (velho) e a vila de Nova Lamego. A verdade é que esta flagelação  a instalações militares e civis nossas foi das mais graves e "cegas" de que eu tive conhecimento, no leste, no meu tempo (maio de 1969/março de 1971). Também não sabemos se o Miranda nesta altura ainda estava nas fileiras do PAIGC, se é que alguma vez esteve... Entre o mito e a realidade, é sempre difícil descobrir a verdade (***)...

A  ter sido um caso de deserção (e tecnica e juridicamente foi), parece-nos um caso "atípico"... [Ou talvez não, veja-se o que esteve na origem de outra "deserção", já aqui relatada, a do fuzileiro António Trindade Tavares, o célebre G3 (**), Ambas  são histórias que, antes de provocarem a nossa indignaçãoo, devem merecer a nossa compaixão.]

Sobre o Miranda não encontrámos qualquer registo no Arquivo Amílcar Cabral / Casa Comum / Fundação Mário Soares. De resto, sobre os "nossos desertores" o Arquivo Amílcar Cabral é pobrezinhho... (LG)


2. O texto a seguir é da autoria  do nosso camarada Constantino (ou Tino) Neves, ex- 1º cabo escriturário da CCS / BCAÇ 2893 (Nova Lamego, 1969/71) (*)


Conheci em tempos um camarada nosso que, em Nova Lamego, desertou para o PAIGC. Não me compete fazer juízos de valor sobre o seu comportamento.

Trata-se do soldado auxiliar de cozinheiro [, de apelido Miranda], de que mando foto, em que está marcado com uma seta a branco...

A foto foi tirada no salão do cinema de Nova Lamego, numa festa de variedades, em que actuava uma cantora vinda da Metrópole, do Seixal, e eu estava de cabo de dia. Como o furriel destinado à Polícia da Unidade (PU) se tinha baldado, o oficial de dia, o capitão, comandante da CCS, mandou-me substituir o furriel, e assim aproveitei para ir assistir às variedades.

O soldado Miranda,  já era velhinho (de 1966), e fora mobilizado para a Guiné, por castigo, pelo vício que tinha,  dizia-se, de se "apropriar do alheio", vício de que não se curou, tendo assaltado um dia, aliás uma noite, a Sala do Soldado,  e roubado 20.000$00 [, vinte contos], o que era bastante dinheiro na altura. [Equivaleria hoje a 5.698,45 €. (LG)]

Em fevereiro de 1970, o Miranda  foi punido com 10 dias de prisão disciplinar agravada e em março de 1970 novamente com mais 10 dias de prisão disciplinar agravada, referente ao mesmo delito, dados por Bafatá [Comando de Agrupamento 2957].

E, em face disso, nós dizíamos-lhe que ele iria apanhar 20 anos, 1 ano por cada conto roubado, quando a Ordem de Serviço (O.S.) chegasse ao general Spínola. O pobre coitado acreditou, de tal maneira que pediu a um elemento civil, a trabalhar no quartel (velho), nas limpezas, para que o ajudasse a fugir e que o levasse para junto do PAIGC. O pedido foi aceite, e ele fugiu.

Mais tarde, em alguns ataques, foram deixados nos locais de onde nos atacavam, vários papéis supostamente escritos pela mão do soldado Miranda, a solicitar para que fizéssemos o mesmo, que seríamos bem recebidos, como ele, que estava muito satisfeito, porque agora ele era o cozinheiro de serviço dos guerrilheiros.

Também havia relatos de que, em várias emboscadas, chegaram a ouvir ex-militares portugueses a gritar do outro lado, dizendo o seu nome, posto e nº mecanográfico, e que se entregassem, porque estávamos do lado errado.

Portanto, o soldado básico Miranda. não fugiu por motivos políticos, mas sim por medo à prisão. Isto é o que eu presumo. De qualquer modo, era uma situação diferente da de outros, desertores ou refractários, que, na metropóle, arriscaram a fuga nos Altos Pirinéus e a possibilidade de serem capturados ou mesmo alvejados pela polícia.

Um Abraço
Tino Neves


3. Comentários do editor, do autor e de Rogério Cardoso (*)

(i) Editor:

Tino: O teu camarada Miranda, soldado básico, auxiliar de cozinheiro (como outros soldados básicos que eu conheci, já com antecedentes "disciplinares"...), seria apenas um "pobre diabo", como se  pode deduzir da tua versão dos acontecimentos.

 Não sei se ele ainda é vivo e tem família, amigos, vizinhos, se vive algures em Portugal, e até se poderá vir a ter conhecimento deste poste... Espero bem que sim, que esteja vivo e de boa saúde, e que inclusive nos possa ler.

Como sabes, o nosso blogue não é nenhum tribunal (muito menos militar). E não fazemos  justiça, muito menos por nossas próprias mãos. Como qualquer um de nós que passou pelo TO da Guiné, o teu camarada Miranda  tem o direito ao bom nome e reputação,  tem direito a defender-se, se for caso disso, das acusações que lhe foram feitas.

Hesitámos em identicá-lo, mesmo através do apelido:  mas hoje já não faz qualquer sentido, a punição dele vem na Ordem de Serviço do batalhão, e na história da unidade, possivelmente disponível no Arquivo Histórico Militar para consulta de qualquer um de nós. E depois a deserção é um ato tão público como os demais que aqui relatamos e relembramos todos os dias: os ataque,  flagelações ou emboscadas no dia tal e  tal, as baixas que tivemos, os louvores, etc...

Já tinhamos publicado esta estória, sem a identificação clara do militar em causa... Mas afinal  o caso é público e notório, podendo toda a gente da tua CCS corroborar, confirmar ou infirmar a tua versão dos factos. Sabes disso, e por isso também não podem ser postas em causa a tua palavra e a tua boa fé... Já a memória pode ser mais traiçoeira..,

Como tive ocasião de te dizer,  esta história teve uma vida atribulada no blogue. Deveria ter sido a estória do Gabu nº 1. Não o foi. Hoje, que voltamos a abrir o dossiê dos "desertores", achamos que ela ser publicada, apenas com um título diferente daquele que tinhas sugerido, em que chamavas "fujão" ao teu cmarada... "Desertor" é uma palavra feia para a maior de nós, ex-combatentes, mas "fujão" ainda é mais...

Tino, quero que saibas que tens jeito e talento para contar estas histórias de caserna, passadas na "tua" Nova Lamega, de que tambéns boas recordações. Obrigado pela tua colaboração. E continuamos sempre à espera de mais. De resto, és um membro da nossa Tabanca Grande, de longa data,  sempre solícto e prestável. Boa saúde, longa vida e excelente memória.


(ii) Tino Neves

Uns anos atrás, um camarada da minha companhia contou-me que ele, o "fugitivo", quando regressou à sua terra natal, foi recebido como um herói, com recepção e tudo.

Tentei contactá-lo mas não consegui. Desconheço o seu paradeiro.

(iii) Rogério Cardoso

Eu também concordo, que a fuga teve a ver com o medo à provável quantidade de anos de prisão   que iria ter pelo furto e antecedentes, e que no fim era um pobre diabo, que a sua deserção não era por motivos politicos, o que na altura era o mais grave.

Pois se outros fugiram, individuos com grandes responsabilidades de comando, como oficiais, e foram desculpados e até candidatos a altos cargos da Nação, porque não este moço?

__________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 10 de novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10645: Estórias do Gabu (7): O soldado básico que um dia se passou para o lado do inimigo...

(**) 15 de julho de 2016 >  Guiné 63/74 - P16305: Efemérides (233): 15 de novembro de 1970, às 11 da noite, o quartel e a vila de Nova Lamego são violentamente flagelados com fogo de 4 morteiros 82, durante 35 minutos... 3 mortos entre as NT, 4 feridos graves, 8 ligeiros; 8 mortos entre a população, 50 feridos graves, 30 ligeiros... Valeram-nos os Fiat G-91 estacionados em Bafatá... Spínola mandou construir um quartel novo, fora da vila, inaugurado em 31/1/1971 (Tino Neves, ex-1º cabo escriturário, CCS/BCAÇ 2893, 1969/71)

(***) Vd. último poste da série > 27 de outubro de 2016 > Guiné 63/74 - P16647: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (15): Desertor era o militar que (i) foi incorporado, (ii) estava nas fileiras e (iii) as abandonava ao fim de algum tempo... Desconfio um bocado do número de desertores que foi avançado pelos historiadores Miguel Cardina e Susana Martins, se for aplicada a definição exacta dos regulamentos da época (António J. Pereira da Costa, cor art ref)

sábado, 10 de novembro de 2012

Guiné 63/74 - P10645: Estórias do Gabu (7): O soldado básico que um dia se passou para o lado do inimigo...(Tino Neves, ex-1º cabo escriturário, CCS/BCAÇ 2893, Nova Lamego, 1969/71)

Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Nova Lamego > CCS do BCAÇ 2893 (1969/71) > Do lado direito, o Tino Neves, 1º Cabo Escriturário, e do lado esquerdo o soldado básico, cozinheiro, A..., em serviço de PU - Polícia da Unidade. O António (nome fictício), acusado justa ou injustamente de ser amigo do alheio, acabou por fugir para o PAIGC...

Este texto esteve para ser publicado em abril de 2007 (, chegou a ser editado sob o nº 1645,  e devia inaugurar a série Estórias do Gabu)  (*). Por razões editoriais, ficou em "stand by". Fomos há dias recuperá-lo, que só vem provar que na nossa Tabanca Grande "nada se perde, tudo se transforma"...  Afinal, é a história de um "desertor", contada por um camarada que com ele privou e conviveu... (LG)

Foto: © Tino Neves (2007). Direitos reservados.


1. Texto enviado pelo nosso camarada Constantino  (ou Tino) Neves, ex- 1º Cabo Escriturário da CCS do BCAÇ 2893 (Nova Lamego, 1969/71):

Conheci em tempos um camarada nosso que, em Nova Lamego, desertou para o PAIGC. Não me compete fazer juízos de valor sobre o seu comportamento.

Trata-se do soldado auxiliar de cozinheiro A..., de que mando foto, em que está marcado com uma seta a branco [Por razões óbvias, não queremos identificá-lo]... A foto foi tirada no salão do Cinema de Nova Lamego, numa festa de variedades, em que actuava uma cantora vinda da Metrópole, do Seixal, e eu estava de Cabo de Dia. Como o Furriel destinado à Polícia da Unidade (PU) se tinha baldado, o Oficial de Dia, o Capitão, Comandante da CCS, mandou-me substituir o Furriel, e assim aproveitei para ir assistir às variedades.

O soldado A... já era velhinho (de 1966), e fora mobilizado para a Guiné, por castigo, pelo vício que tinha - dizia-se ! -  de se "apropriar do alheio", vício de que não se curou, tendo assaltado um dia, aliás uma noite, a Sala do Soldado e roubado 20.000$00 [, vinte contos,], que era bastante dinheiro na altura.

Em Fevereiro de 1970 foi punido com 10 dias de prisão disciplinar agravada e em Março de 1970 novamente com mais 10 dias de prisão disciplinar agravada, referente ao mesmo delito, dados por Bafatá.

E,  em face disso, nós dizíamos-lhe que ele iria apanhar 20 anos, 1 ano por cada conto roubado, quando a Ordem de Serviço (O.S.) chegasse ao General Spínola. O pobre coitado acreditou, de tal maneira que pediu a um elemento civil, a trabalhar no quartel (velho), nas limpezas, para que o ajudasse a fugir e que o levasse para junto do PAIGC. O pedido foi aceite, e ele fugiu.

Mais tarde, em alguns ataques, foram deixados nos locais de onde nos atacavam, vários papéis supostamente escritos pela mão do soldado A..., a solicitar para que fizéssemos o mesmo, que seríamos bem recebidos, como ele, que estava muito satisfeito, porque agora ele era o cozinheiro de serviço dos guerrilheiros.

Também havia relatos de que, em várias emboscadas, chegaram a ouvir ex-militares portugueses a gritar do outro lado, dizendo o seu nome, posto e nº mecanográfico, e que se entregassem, porque estávamos do lado errado.

Portanto, o soldado básico A... não fugiu por motivos políticos, mas sim por medo à prisão. Isto é o que eu presumo. De qualquer modo, era uma situação diferente da de outros, desertores ou refractários, que, na metropóle, arriscaram a fuga nos Altos Pirinéus e a possibilidade de serem capturados ou mesmo alvejados pela polícia.

Um Abraço
Tino Neves

2.  Comentário do editor:

Tino:  O teu camarada A..., soldado básico,  seria apenas um "pobre diabo", como se percebe pela tua versão dos acontecimentos.  Não sei se  ainda é vivo e tem família, amigos, vizinhos, se vive algures em Portugal, e até se poderá vir a ter conhecimento deste poste... Espero bem que sim, que esteja vivo e de boa saúde.

Como sabes, o nosso blogue não é nenhum tribunal (muito menos  militar). E não faz  justiça, muito menos por suas mãos. Como qualquer um de nós que passou pelo TO da Guiné,  o teu camarada A... tem o direito ao bom nome e reputação, tem direito à imagem, tem direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar, de acordo com o nº 1 do art. 26º da Constituição da República Portuguesa... Tem direito a defender-se, se for caso disso. Daí tu e eu não o termos identificado. E mais:  termos retocado a foto que nos mandaste... De qualquer modo, presumimos este caso seja público e notório, podendo toda a gente da tua CCS corroborar, confirmar ou infirmar a tua versão dos factos. Sabes disso, e por isso também não pode ser posta em causa a tua boa fé.

Lembras-te que esta história teve uma vida atribulada no blogue. Devia a estória do Gabu nº 1. Não o foi. Mas achamos que deve ser publicada, ao fim destes anos, apenas com um título diferente daquele que tinhas sugerido. Será a nº 7.  Quero que saibas que tens jeito e talento para contar estas histórias de caserna, passadas na "tua" Nova Lamega. Obrigado pela tua colaboração. Ficamos à espera de mais.
__________

Nota do editor:

Último poste da série > 13 de junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1844: Estórias do Gabu (6): Já chegámos à Madeira, ou quê ?! (Tino Neves)