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quarta-feira, 15 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23352: Historiografia da presença portuguesa em África (321): Grande polémica (2): Luís Loff de Vasconcelos versus Teixeira Pinto e Abdul Indjai (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Junho de 2021:

Queridos amigos,
Permanecem muitos pontos de interrogação quanto às razões fundadas que poderão ter levado à extinção da Liga Guineense, instituição declaradamente republicana, outrora reconhecida como muitíssimo útil e que passa a ser tratada como uma entidade demoníaca por se ter oposto aos planos perpetrados pelo Capitão Teixeira Pinto para submeter os indígenas de Bissau. Como ficou demonstrado, Abdul Indjai saqueou e destruiu por anos a economia dos Papéis e dos Grumetes da ilha. Não se conhece melhor documento que rebata as teses triunfalistas pró-Teixeira Pinto que o opúsculo escrito por Luís Loff de Vasconcelos, conceituado escritor cabo-verdiano que seguramente teve acesso a depoimentos que a versão oficial silenciou.
É inaceitável que a História da Guiné Portuguesa deixe na penumbra uma investigação determinante para se perceber não só o caráter da campanha de pacificação mas pelo facto de se dever atribuir o sucesso da mesma a um saqueador que foi régulo e déspota tão turbulento que pela segunda vez foi levado ao exílio.
Respeitando o contraditório, vamos ver agora as teses que se opõem.

Um abraço do
Mário



Grande polémica (2):
Luís Loff de Vasconcelos versus Teixeira Pinto e Abdul Indjai


Mário Beja Santos

Em "A presença portuguesa na Guiné, História Política e Militar, 1878-1926", por Armando Tavares da Silva, Caminhos Romanos, 2016, a versão das depredações praticadas pelo chefe de quadrilha Abdul Indjai e os seus irregulares e as responsabilidades do capitão Teixeira Pinto distinguem-se literalmente das acusações apresentadas por Luís Loff de Vasconcelos. Aliás, Tavares da Silva dá-nos um quadro curricular mais alargado do que o do publicista cabo-verdiano. Logo em 1906, o Governador Almeida Pessanha vê-se obrigado a refrear Abdul Indjai, este tinha servido de auxiliar na campanha do Churo. O mercenário senegalês tentara várias vezes atacar o Oio, fora sempre repelido, a sua gente de guerra fazia razias, servindo-se do nome do Governo. Em abril, Abdul é preso e o seu bando disperso, é enviado para S. Tomé. No ano seguinte, o príncipe real D. Luiz Filipe de visita a S. Tomé, concede permissão para Abdul regressar à Guiné, e este participará nas campanhas de Badora e Cuor, conta o revoltoso régulo Infali Soncó. Ao lado do Governador Oliveira Muzanty, Abdul e os seus irregulares participam nas operações, põe o régulo revoltoso em fuga e Abdul irá ser nomeado régulo do Cuor, suscitando inúmeras queixas. Em 1912, o Capitão João Teixeira Pinto chega à Guiné como Chefe de Estado-Maior, irá dedicar-se à ocupação e pacificação da província. Dá prioridade à ocupação das regiões de Mansoa e Oio, parte disfarçado em inspetor da Casa Soller, atravessa a região, sugere ao governador Carlos Pereira que se recorra a grumetes ou a irregulares. Pede-se a colaboração da Liga Guineense que mostra indisponibilidade e Teixeira Pinto aproveita-se de Abdul Indjai e dos seus irregulares, pretende atacar o Oio num flanco e o administrador de Geba, Calvet de Magalhães, atacará pelo outro.

Tavares da Silva descreve minuciosamente as operações no Oio e o pedido de paz das gentes da região de Mansabá, são presos vários revoltosos, dá-se como submetidos os Balantas do Oio. Calvet de Magalhães tem uma progressão mais acidentada, mas também chega a bom porto. O êxito das operações leva à concessão de medalhas e louvores. Pouco depois de Carlos Pereira ter deixado a Guiné começam a surgir notícias que atribuem atrocidades a Abdul e aos seus quadrilheiros no Oio. A Legação Britânica na Guiné enviara uma nota para o ministro em Lisboa informando-o do aventureiro Abdul e dos seus 400 indígenas senegaleses, que praticariam terríveis barbaridades, massacres, roubos e raptos. Troca-se inúmera correspondência entre as autoridades mas as queixas não cessam. Chega novo governador, Andrade Sequeira, que nomeia uma comissão para ir ao Oio apurar as atividades de Abdul e dos seus homens. É neste tempo que se dá o massacre do Pelotão de Polícia Rural do alferes Pedro e Teixeira Pinto segue para Bissorã e Mansoa, correm operações em Cacheu, no seu relatório ao Governador, Teixeira Pinto não deixa de observar que a revolta dos indígenas era proveniente não só do seu espírito de guerreiro mas ainda e principalmente da sua falta de educação. Temos novas queixas contra a gente de Abdul, vêm do tenente António José Teixeira de Miranda, comandante do posto de Mansabá. Mas Andrade Sequeira nomeia Abdul tenente de 2.ª Linha. Seguem-se as operações para submeter os Balantas, Abdul Indjai colabora e Teixeira Pinto pede ao governador a nomeação do chefe de quadrilha para régulo do Oio. Depois de uma pausa em Lisboa Teixeira Pinto regressa à Guiné e temos agora a Campanha de Bissau que irá levar Luís Loff Vasconcelos a escrever acusações demolidoras. É escusado procurar transparência nas argumentações utilizadas se era ou não evitável a guerra na ilha de Bissau. A Liga Guineense opunha-se tenazmente e tinha razões de sobra, o seu espírito republicano era definido por uma elite de mercadores profissionais liberais e contavam com a simpatia de gente cristianizável e em vias de alfabetização, os Papéis e os Grumetes, pedia-se tolerância e prudência, o imposto de palhota começara a ser pago e o armamento em posse dos régulos inquietos eram armas de pedreneira, argumentavam. E a operação é decidida, mesmo havendo vozes discordantes no Conselho Administrativo.

Desenrolam-se as operações em maio de 1915, Teixeira Pinto leva um fraquíssimo contingente regular, os irregulares de Abdul, é apoiado pelo régulo mandinga Mamadu Sissé e pelos Futa-Fulas de Alfa Mamadu Seilu. Não houve mistério na argumentação trocada sobre quem e porquê mandou prender os dirigentes da Liga Guineense, teria havido um prisioneiro que confessara às gentes de Abdul e quem dirigia a resistência e fornecia cartuchame eram figuras ligadas à Liga.

Tavares da Silva dá um amplo desenvolvimento às queixas de Andrade Sequeira sobre o comportamento dos auxiliares. Temos que admitir que mesmo na hipótese de haver excessos na argumentação de Luís Loff sobre as pilhagens e destruições dos quadrilheiros de Abdul, não havia relação sustentada quanto às responsabilidades da Liga Guineense, entretanto entredita e depois extinta. Houve inquestionavelmente movimentações de diferentes interesses para amnistiar ou incriminar os Grumetes, Andrade Sequeira é enérgico, manda sair da ilha os quadrilheiros de Abdul. O comportamento do governador é dúbio, informa o ministro que no atual momento político seria inexequível aniquilar de vez Abdul, havia que o desarmar. Vasco Calvet de Magalhães envia um documento a Andrade Sequeira biografando Abdul, é arrasador, escravizava os prisioneiros e diz mesmo: “Abstenho-me de me ocupar também das barbaridades que lhe deixaram praticar em Bissau e que são do domínio público, não faltando testemunhas dos factos entre os quais o de ter enterrado gentes vivas, etc.”.

E começam as acusações a Teixeira Pinto. Quanto às atrocidades, permitira, tudo vem perfeitamente documentado na obra de Tavares da Silva, e inclusive as inquirições que foram ordenadas fazer a Brito Capello, em dado passo já se insinua práticas administrativas irregulares, tudo acabará arquivado quer porque o governador Andrade Sequeira deixa a Guiné quer porque Teixeira Pinto morre em combate em Moçambique.

E assim chegamos a 1919 e à campanha contra Abdul Indjai, régulo do Oio. O Secretário-geral Caetano Barbosa informa o novo Governador Oliveira Duque das prepotências praticadas pelo chefe de quadrilha. Abdul ainda entrega armas, por exigência do Governo, mas a situação na região, mormente em Mansabá, era de nítido mal-estar entre as populações. Abdul comete o erro de querer oferecer resistência, será preso e deportado para a cidade da Praia, onde irá falecer.

A despeito de inúmera documentação existente, permanecem mistérios que só uma investigação mais apurada permitirá desvendar: quanto à fundamentação da extinção da Liga Guineense, instituição criada por republicanos; se existiram conivências de alguns dos seus membros com os revoltosos Papéis e Grumetes da ilha de Bissau; se Teixeira Pinto se permitiu a fazer vista grossa das atrocidades e pilhagens praticadas pelo chefe de quadrilha e os seus irregulares; como foi possível encontrar justificação por manter este praticante de barbaridades como régulo que agia por conta própria, saqueando, escravizando, fazendo coleta de impostos, armado até aos dentes. É uma investigação muito incómoda para este período colonial: o heroico capitão Teixeira Pinto teve de se socorrer de um chefe de quadrilha e notório criminoso; não são evidentes as ligações entre a Liga Guineense e a rebelião dos régulos da ilha de Bissau; é politicamente insustentável na segunda década do século XX uma potência colonial se apoiasse num bandido sanguinário para fazer ocupação e pacificação. Há que sair deste mar de trevas e procurar apurar o rigor da verdade.

Luís Loff de Vasconcelos
Abdul Indjai
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Nota do editor

Último poste da série de 8 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23337: Historiografia da presença portuguesa em África (320): Grande polémica (1): Luís Loff de Vasconcelos versus Teixeira Pinto e Abdul Indjai (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 12 de junho de 2020

Guiné 61/74 - P21069: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (6): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Maio de 2020:

Queridos amigos,
Aqui vos deixo mais um episódio em que a realidade emparelha com a ficção, torce-se e retorce-se tempos, lugares, pessoas e situações, um amplo ecrã que abarca a Guiné, Bruxelas e Lisboa, dois cinquentões que se deixam envolver numa barafunda que, imagine-se, começa numa Bruxelas da II Guerra Mundial, uma criança judia recolhida, hoje intérprete de profissão, filhos já crescidos, ela disponível para amar, e aparece-lhe aquele sujeito que veio com o pretexto de uma insinuante história de amor, com a guerra da Guiné ao fundo, os dois já embarcaram, como por magia, nessa aventura da escrita e nessa aventura dos primeiros encontros, sabe-se lá se não está para aparecer a mais inesperada das paixões...

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (6): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Chère Annette, respondo prontamente à sua linda missiva, que li e reli com imenso prazer. Quando olho para estas fotografias que tenho vindo a acumular ao longo dos anos, quando posso calcorrear Bruxelas sozinho ou na companhia de amigos, interrogo esta ironia de frequentar lugares, ao longo de vinte anos, e a Annette a viver ali tão perto. Quando os programas de trabalho me permitem ter para mim um dia de fim de semana, e o tempo está de feição, vagueio por essa Bruxelas que já teve casco histórico e que mudou de pele para tapar o Rio Senne, enquanto se fazia ligação ferroviária entre Bruxelas Central e Bruxelas Midi, eu vejo as fotografias antigas, e posso perceber que se fez implodir uma arquitetura em nome do progresso. As imagens que junto são apontamentos de curiosidade. Na primeira, aparece um antigo armazém de vinhos e as Armas de Portugal, a propósito do Vinho da Madeira, era muitíssimo apreciado neste Norte da Europa; igualmente imagens que bem conhece, têm a ver com os alfarrábios, os CD’s e depois imagens de arquitetura, pormenores que me cativam; e quis o destino que um dia passasse pela Rua do Eclipse, aqui está um edifício que não é muito longe do seu apartamento.



Fachada da Igreja de Nossa Senhora do Bom Socorro, Bruxelas




Falávamos da minha primeira viagem para o Cuor, eu sentia-me fascinado por aquele caminho frondoso que vai de Finete para Canturé, cheia de poilões e cajueiros, mas ia muito inquieto pelo estado degradado em que encontrei Finete, além disso não apreciara as explicações dadas pelo comandante da milícia, um sujeito vaidosão que rapidamente me apercebi que saía pouco para patrulhar, faltava-lhe genica e sentido de liderança para manter o destacamento altamente seguro, como se veio a comprovar.

Eu não quero perder o sentido cronológico, ele é indispensável para que a Annette me possa ajudar no desenvolvimento da trama do romance, se a história tem pés para andar. Mas conto-lhe um episódio que ocorreu mais de um ano depois de eu viver no Cuor, e é por isso que envio um extrato da carta para se aperceber do teatro em que ocorreu um drama. Eu estava há uma semana em Finete, a acompanhar as obras dos dois novos abrigos, punha-se uma nova segunda fieira de arame farpado, substituía-se a que estava completamente apodrecida, as estacas onde se prendia o arame farpado tinham caído. Levara comigo um conjunto de militares vindos de Missirá. E quando se anunciava o fim da tarde, inopinadamente, como deve ser na circunstância de uma guerra de guerrilhas, informei que íamos montar uma emboscada na região de Malandim, era suposto que os grupos de abastecimento do PAIGC por aqui passassem, vindos da outra margem do Geba, ainda não conversámos acerca das populações sobre duplo controlo, era este o caso, do outro lado havia um local chamado Mero, onde a população de Madina e Belel trocava produtos, obviamente que informações.

Quase no lusco-fusco dispôs-se uma linha de cerca de vinte homens na horizontal, com atiradores nos extremos, a ver nos dois sentidos, fiquei em cima do trilho, anoiteceu, começaram a ouvir-se os ruídos próprios da floresta, movimentos de javalis, o piar das aves, o murmurar das águas do rio Geba. À minha direita estava um bravo soldado, Mamadu Camará, a quem julgo dever a vida, mais tarde contarei a história. Estávamos naquela letargia, aquela infindável espera, tinha anunciado que regressaríamos pela meia-noite, quando, pouco passava das sete horas, Mamadu ergue-se e grita, manda parar, levanto-me e é nesse instante que alguém que vinha seguramente em marcha apressada me abalroa, tinha a espingarda em riste, alvejei, o vulto cai a meus pés, isto enquanto se ouve uma restolhada de gente a fugir, veio-se a apurar que era uma coluna de abastecimento vinda da outra margem, largaram os mantimentos para se escapulirem pela mata. A meus pés, envolta num pano amarelado, jazia uma mulher, estava morta. É nisto que um dos meus auxiliares africanos, homem que fizera estudos em Bissau, sabe-se lá porquê, perdeu as estribeiras e começou aos gritos “Branco assassino!”, “Branco assassino!”, os outros camaradas procuravam acalmá-lo, toda aquela conversação ocorria em crioulo, e aquela acusação feria-me e trespassava-me como ferro em brasa, como era possível alguém que me via todos os dias, inserido num quartel com centenas de civis, procurando cuidar de todos com os modestíssimos recursos ao meu alcance, com as melhores relações com o régulo e com a população em geral, perder a tramontana e vociferar tão descabelada acusação?

Regressamos a Finete, pedi ao meu amigo Bacari Soncó que fosse tratar da recolha do corpo enquanto eu seguia para Bambadinca com o conjunto de homens que trouxera de Missirá, incluindo quem me acusava de ser branco assassino. Na sede do batalhão, os oficiais já tinham jantado, dirigi-me ao comandante, dizendo que se tratava de um assunto grave, precisava que ele tomasse uma decisão urgente, fomos então para o seu gabinete onde expus a situação. Ele tentava fazer uma leitura benévola, era tudo uma questão de nervos, o caso ajeitar-se-ia com o regresso à razão. A minha leitura era completamente diferente, fora desautorizado, não excluía a questão dos nervos, mas aquele homem tinha que ser detido, e prontamente, há normas no comportamento militar inabaláveis, se assim não fosse considerar-me-ia enxovalhado e desautorizado, e se o comandante insistisse na dita serenidade e palmadinhas nas costas no dia seguinte eu regressaria definitivamente a Missirá, tinha perdido as condições de comando. A discussão prolongou-se, ninguém perdeu as estribeiras, e então o comandante tomou a decisão de deter o militar. A Annette não pode imaginar o meu estado de espírito enquanto regressava a Finete e aqui estive. Dias depois, em plena parada de Missirá, tinha ordem de serviço com os dias de prisão daquele militar, sabia ser do domínio público toda aquela ocorrência e queria transmitir quer aos meus militares quer à população que fora insultado, que estava no Cuor para defender aqueles guineenses de todas as idades, e que esperava que nada de semelhante se voltasse a repetir. Anunciei que aquele militar ia regressar ainda naquele dia a Missirá, que o receberia de braços abertos, como manda a camaradagem e que queria que ele fosse muito bem acolhido por todos, ponto final numa história lamentável, todos tínhamos colhido o ensinamento. Como aconteceu, o meu relacionamento não foi afetado, ele foi um dos meus convidados para o meu casamento, em abril de 1970, está bem sorridente no filme que se fez, ao lado do Cabo Barbosa e do médico Joaquim Vidal Saraiva.

A que propósito vem esta história, Annette? Todos os anos, praticamente todos os anos, ele vem a Portugal fazer um tratamento. Esteve cá há dias, telefonou-me, recebi-o em casa, os camaradas merecem o melhor dos acolhimentos, falámos de tudo e está previsto que dias depois de eu regressar de Bruxelas aqui vai acontecer um almocinho de bacalhau para seis velhos combatentes, a velha guarda está firme. Foi a coincidência de datas, o facto de eu ter aqui a imagem dele à mão que me levou a desrespeitar a cronologia, saltei de agosto de 1968 para o presente.

Estou ansioso para me encontrar consigo. Concordo com as suas sugestões, tudo depende do tempo. Estive a pensar na sua proposta de envolvimento da história, já que começou a contar as suas origens, como foi acolhida, com poucos meses, por uma família católica residente em Marolles, ainda havia o espetro dos judeus belgas serem deportados, quando descobertos. Acho curioso para a trama narrativa e para se ir progressivamente adensando o clima passional, nessa altura, penso eu, já se passou por toda a experiência da minha guerra na Guiné, e manda a ficção que estamos disponíveis para um amor verdadeiro.

Penso que vai receber esta carta depois de eu aí chegar, ela tinha que seguir, impetuosa, pelas recordações que me trouxeram, confidências a que a Annette tem direito, já que é cúmplice neste enredo forjado pelas rodas do destino. Afetuosamente, Paulo Guilherme


Mamadu Camará


Há uns anos atrás, quando estava a preparar a edição de História(s) da Guiné-Bissau, tive a dita da fotógrafa Andrea Wurzenberger me ter oferecido um conjunto de imagens soberbas tiradas na Guiné-Bissau. Usei uma delas na contracapa, simbolizava o caminhar para a luz da esperança, aqui se publica uma outra imagem dessa coleção, com o meu profundo agradecimento.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 5 de junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21043: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (5): A funda que arremessa para o fundo da memória

quinta-feira, 17 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20248: Efemérides (312): Mina anticarro em Canturé, regulado do Cuor, 16 de Outubro de 1969 (Mário Beja Santos, ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Outubro de 2019:

Queridos amigos,

Quando soube que o nosso camarada António Carlão partira para as estrelinhas, veio a lume no blogue a sua imagem junto da viatura destruída em Canturé, em 16 de outubro de 1969.

Hoje, neste meu dia de luto, detive-me diante da fotografia em que o meu camarada, o 1.º Cabo António da Silva Queirós, conhecido no nosso meio por o 81, era ele que metia a braçadeira enquanto eu manejava o morteiro, revela espanto diante de um buracão onde jaz o Unimog 404.

Por tudo ser verdade, por ter havido incúria da minha parte e múltiplo sofrimento alheio, aqui guardo lembrança. Porque quanto a penitência e consolação o assunto é íntimo.

Um abraço do
Mário


Efeméride: Mina anticarro em Canturé, regulado do Cuor, 16/10/1969

Beja Santos

Confronto-me com aquele destroço e a estupefação tão espontânea do Cabo António da Silva Queirós, quem captou esta imagem não sabia se havia feridos e mortos, o Queirós está de mão estendida, jamais saberemos o sobressalto em que se encontra, saíram de manhã cedo de Missirá, deparou-se esta viatura esventrada mesmo à esquina da picada em direção a Canturé, por aqui se podia rumar, para sul, até Mato de Cão, e em tempos de paz, umas horas depois, chegava-se a Bissau, depois de Enxalé, Porto Gole, Jugudul; para norte, rumava-se para Gambiel, a ponte fora destruída no início da guerrilha, em tempo de paz por aqui se prosseguia até Geba e Bafatá.

Vivia-se então tempos muito ásperos. O comando de Bambadinca sangrava efetivos de milícias, uma secção de Finete para Demba Taco, uma outra secção de milícias de Missirá para a região de Galomaro. Ia-se praticamente todos os dias a Mato de Cão, é pura coincidência este frenesim a que estávamos a ser submetidos, as obras do porto do Xime estão à beira da conclusão, o arrebol de idas e vindas para patrulhar Mato de Cão diminuirá significativamente a partir de novembro.

Efetivos esgotados, uma grande parte do contingente do Pel Caç Nat 52 formara-se no CIM (Bolama) em 1966, passaram por Porto Gole, Enxalé, Missirá, sonham com o meio urbano, o que irá acontecer em novembro, não percebo porque é que ficaram desapontados, sabiam de antemão que não haveria descanso nas tarefas de toda a ordem, sete dias sem descanso, o que mudava era viajar para uma operação, para uma coluna de reabastecimento, para uma patrulha nos Nhabijões ou emboscada noturna no Bambadincazinho ou na estrada para Mansambo. O que se passou naquele dia 16 de outubro decorreu de um estado de derrisão, de quase inconsciência, na perda da noção das precauções básicas, de quem liderava a coluna, eu.


Infogravura Luís Graça & Camaradas da Guiné

Ao amanhecer, viera-se até Bambadinca com uma lista farta para suprir carências na comida, nas munições, nos materiais de construção e na manutenção de viaturas. No regresso, viatura ajoujada, efetivo mínimo, doentes com pernas entrapadas. Com incrível displicência, com o dia já a declinar, ainda fui vistoriar obras em abrigos em Finete. O condutor, Manuel Guerreiro Jorge, de Monte da Cabrita, Santana da Serra, Ourique, suplica-me para partirmos imediatamente, acedo quando vejo o céu plúmbeo, o Unimog trepa a ladeira de Finete, temos a reta de largos quilómetros pela nossa frente, anoitece. Mandaria o bom senso que ficássemos em Finete, não se viaja dezasseis quilómetros na noite escura. Respondo sempre que não se pode perder tempo, há muitos afazeres para o dia seguinte, peço ao Manuel Guerreiro Jorge para ir na gáspea, o piso está bom, a picada não tem quaisquer reentrâncias, é uma reta colossal até Gã Gémeos, daí até Sansão e depois Missirá é que é altos e baixos.

Mas houve um momento de inquietação, exatamente quando no fim da ladeira de Finete fomos acolhidos na picada por um pesado silêncio, era uso e costume haver chilreios, macacada de galho em galho, tive uma premonição de presença humana, coisa de segundos, vamos seguir. E o Unimog partiu à desfilada, faróis coruscantes atravessavam as trevas da noite. Caminhava para as seis e meia da tarde.

Conheço a palmo a picada, por aqui andámos centenas de vezes, é um deslumbramento com as suas áleas de poilões, simetricamente colocados, só encontrei coisa parecida na estrada para o Enxalé. Suspiro quando já estamos bem perto de Canturé, mais uma hora e descarregamos todos estes bidons, sacos e fardos e caixas de munições. E o fragor da explosão toma conta de tudo, o Unimog parece levantar voo, silvam os curto-circuitos, Cherno Suane, que seguia no guincho, parece o homem-canhão, vai disparado até ao fundo, junto de um morro de bagabaga. O instinto leva-me a saltar com a G3 na mão, uma rajada até despejar por completo o carregador varre aquela margem direita, onde há gente que nos espera, deu para sentir uma fuga precipitada. Desapareceram-me os óculos, não vejo do olho esquerdo, sinto queimaduras na cara, no pescoço, um potente zumbido no ouvido esquerdo. Mas são os gritos de Manuel Guerreiro Jorge que tomam conta da nossa atenção, tem o corpo desarticulado, a mina anticarro explodiu sobre o seu rodado.

Fecho os olhos enquanto recordo tudo isto, quando os abro é para ver o espanto do António Silva Queirós. Tudo se passou há cinquenta anos, meio século não é nada quando sei que foi uma noite que mudou a minha vida, que por displicência se perdeu uma outra vida, houve feridos graves, contei com a generosidade dos camaradas de Bambadinca que vieram sem um gemido pela noite fora, atravessando aos tombos a bolanha de Finete, veio o médico, David Payne Pereira, tudo fez por aquele moribundo, a quem fechou os olhos em Finete.

Levantei-me cedo, tirei a fotografia emoldurada e pu-la numa mesa, faço questão de vos mostrar que retenho todo este filme e para todo o sempre. Tratei os olhos, descurei alguns dos feridos que foram para Bissau, um deles perdi-lhe o rasto, o meu devotado amigo Alcino Barbosa, que regressou com fratura de calcâneo.

Dir-me-ão que são coisas da vida, que o cansaço nos leva por vezes a comportamentos ligeiros, às tais displicências que depois matam e ferem. São os tais momentos que nos afundam ou nos fazem crescer. Olhando esta fotografia que gravou há meio século um sinistro, guardo o dilema que esta efeméride comporta. Só que a vida continua, haja o que houver de amarguras na alma.

E peço perdão por tudo quanto aconteceu naquela destemperada corrida noturna, em 16 de outubro de 1969.
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Nota do editor

Último poste da série de 7 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20214: Efemérides (311): Convite para a cerimónia do Dia Municipal do Combatente, a realizar no 11 de Outubro, às 11 horas, na Praça dos Heróis do Ultramar, em Fânzeres - Gondomar (Carlos Silva, ex-Fur Mil da CCAÇ 2548)

quarta-feira, 10 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P19964: Historiografia da presença portuguesa em África (165): À procura de Sambel Nhantá (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Setembro de 2018:

Queridos amigos,
Chegara o tempo de mexer três fartos caixotes com documentação antiga, joeirar o que podia ir para o lixo, um fartote de agendas que perderam préstimo, resmas de brochuras associadas a viagens de um passado já longínquo, e algo mais. É nisto que o coração bateu mais forte, primeiro a longa carta de Abudu Soncó, cumpria uma promessa feita no ano anterior de me transmitir as lembranças de Infali Soncó, de que pouco se sabe, ele que deu dores de cabeça às autoridades portuguesas, foi o responsável pelas campanhas de 1907 e 1908, a última mobilizou um forte contingente europeu e moçambicano, como jamais acontecera. Havia que juntar peças, encontrar nexos entre os Soncó e este humilde escriba que um dia, por vontade de Malan Soncó, passou a pertencer à família, com as obrigações inerentes, como vai acontecendo, sobretudo com a saudade sem fim com aqueles que lhe deram tanta fidelidade e bravura e já pousaram nas estrelas.

Um abraço do
Mário


À procura de Sambel Nhantá

Beja Santos

Quando comecei a estudar a Guiné e a procurar localizar todas as povoações do regulado do Cuor, subsistiam duas interrogações sem resposta: aquele colosso de pedra que existia (e espero que exista) em Aldeia do Cuor, era fortaleza, quartel ou sede de uma grande empresa? Porque é que em Sansão, abaixo de Missirá havia túmulos de régulos, não teria feito mais sentido eles terem sido todos exumados na sede do regulado? A questão da Aldeia do Cuor só ficou resolvida ao tempo em que fiz o levantamento documental do BNU da Guiné. Era dado assente que aqui tinham funcionado duas empresas de grande porte, que acabaram na água. Ao tempo da Sociedade Agrícola do Gambiel é claramente referida a construção daquela imensidão de pedra, ali trabalhou Armando Cortesão, que se iria destacar na cultura portuguesa como um dos mais eminentes cartógrafos. Encontrava por toda a parte, nos mapas e livros a referência a Sambel Nhantá, procurava nos mapas modernos e nada.

Em 1991, durante os meses em que fui cooperante na Guiné-Bissau, fiz amizade com o filho mais novo do régulo Malan Soncó, Abuduramane Serifo Soncó, na época mestre de escola. Deu para conversarmos longamente sobre empreendimentos que houvera no Cuor, e aquela dúvida que me acicatava, a falta de elementos sobre o bisavô de Abdu, Infali Soncó.
Numa carta que me enviou de Bissau com data de 24 de janeiro de 1992, revela ter conversado longamente com o seu velho tio Aladjé Soaré Soncó, que tinha uma versão bem segura sobre Infali, passo a transcrever a sua carta:
“Infali Soncó era filho de Bacar Soncó e de Mussó Quebá Mané, natural de Berrecolom, Gabú, era comerciante. Conquistou a zona de Cumpone na região de Boké, Guiné Conakri, para onde fora designado régulo. Estava constantemente a ser ameaçado pelos Fulas, caso de Alfa Iaia.
Anos depois, foi solicitado pelo seu tio Calonandim Mané, régulo de Cossé, Bafatá, amigo dos portugueses. O objectivo era invadir o Cuor, o régulo da região impedia a passagem de barcos portugueses. Esse régulo Fula chamava-se Sambel Nhantá, vivia em Sansão. Infali Soncó e o seu tio acompanhados dos guerreiros cercaram a tabanca do régulo Sambel Nhantá durante uma semana, ninguém entrava nem saía. A população teve medo de morrer de sede e fome e o régulo Sambel Nhantá fugiu, não deixou paradeiro. Os portugueses agradeceram, o comércio no Geba voltava a funcionar.

Bolama deu posse a Calonandim Mané como régulo do Cuor, mas ele morreu numa batalha no Enxalé, a lutar contra os Balantas. Na circunstância, foi eleito Infali Soncó como régulo do Cuor.
Revoltou-se contra os portugueses. Tudo terá começado quando um alferes português, de nome Fortes, o foi visitar a Sansão. Enquanto se aproximava, Infali e os seus “djidius” (músicos) deram boas-vindas ao visitante, surpreendido e confuso, o alferes terá dado uma bofetada a um dos músicos, dizendo que estava a fazer muito barulho, o que agastou Infali, teve ganas de matar toda a comitiva portuguesa. Os homens grandes pediram-lhe que não o fizesse, o ambiente estava tenso, esses homens grandes conseguiram que a comitiva portuguesa retirasse. Tinha-se instalado a ideia de rebelião e Infali cortou a navegação entre Bissau e Bafatá. Atacaram um barco português na região de Gã Gémeos, prenderam o alferes, mas um amigo de Infali, o comerciante cabo-verdiano Pedro Moreira, que tinha uma destilaria em Gã Gémeos, pediu-lhe que não matasse o alferes, pedido aceite, o alferes foi entregue às autoridades portuguesas em Bolama. Apercebendo-se da hostilidade das autoridades, Infali foi transferido para Fulacunda, aqui morreu, e depois a sua família e os seus guerreiros voltaram para Sansão. O novo régulo foi o seu filho Bacari Soncó, foi este que transferiu a sede do regulado de Sansão para Missirá.”

É este o teor da carta com as informações de Infali prestadas pelo seu filho sobrevivente, Aladjé Soaré Soncó. Haverá aqui algumas questões a resolver. Em abril de 1908, terá lugar a campanha do Cuor, Canturé e Sansão serão incendiadas, como mais tarde Madina, Infali fugiu, andou a monte. Em Caranquecunda foi instalada uma guarnição de tropa europeia e de macuas, por ali esteve algum tempo. Há relatos da recuperação de Infali, pediu perdão aos portugueses. Daí esta neblina de Fulacunda, há que descobrir elementos que fundamentem que ele ali tenha sido régulo, como tivesse havido perdão. Juntam-se algumas imagens sobre todas estas figuras aqui faladas: este que se assina aparece de braço dado com o régulo Malan Soncó, o seu irmão Quebá e o chefe de tabanca Mussá Mané, que todos os dias lhe pedia colunas a Bambadinca para trazer arroz ou levar membros da família, são questões que aparecem em livros do signatário. No mapa do Cuor destacam-se a Aldeia do Cuor e Sansão, este que se assina por ali andarilhava quase diariamente, a caminho ou no regresso de Mato de Cão, era piso seguro, evitavam-se emboscadas e minas antipessoal, a despeito da poeirada que se infiltrava em todos os poros do corpo. Felizmente que a fotografia dos meninos do Cuor foi enviada para Lisboa antes de todo o espólio fotográfico do signatário ter desaparecido na flagelação de 19 de março de 1969. Tumulu, o primeiro à esquerda, impressionava por andar sempre de Mauser, teve há anos um AVC, recuperou parcialmente, é o último irmão que resta a Abdu, vive em Lisboa, e que o signatário trata por irmão, tem a saúde combalida depois de dois enfartes de miocárdio, aqui pode tratar-se e vive com alguma dignidade.
E fica contada a história, foi com imensa alegria que se reencontrou uma carta escrita acerca de 26 anos, num dossiê onde apareceu a fotografia de José Jamanca e uma carta enviada por Ussumane Baldé, o 104, o soldado prussiano de alfero, questões de que se falará mais tarde, sempre com uma inabalável saudade.

Missirá, 1968 - Retrato de meninos Soncó e Mané. Abuduramane é o segundo menino a contar da direita, está ao pé de Nhalim Cassamá, mulher de Quebá Sonco, irmão do régulo.

Uma das pouquíssimas imagens de Infali Soncó, está sentado no centro, com uma arma na mão. Em breve, vai começar a guerra no Cuor, de que sairá derrotado, estamos em 1908. 
Fotografia retirada do álbum O Primeiro Fotógrafo de Guerra Português: José Henriques de Mello, por Alexandre Ramires e Mário Matos e Lemos, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2008, com a devida vénia.

Malan Soncó, à esquerda, neto de Infali e filho de Bacari Soncó, na minha companhia e de familiares.


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Nota do editor

Último poste da série de 8 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19956: Historiografia da presença portuguesa em África (164): Alfa Moló Baldé e o mito fundador do reino de Fuladu, em 1867 (Cherno Baldé) - Parte I

sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Guiné 61/74 - P17928: Notas de leitura (1010): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (7) (Mário Beja Santos)

Chegada dos aviadores a Bolama em 1925  
Foto: Com a devida vénia ao Blogue Bernardino Machado


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Setembro de 2017:

Queridos amigos,
A correspondência oriunda do gerente da filial de Bolama, nas décadas de 1910 e 1920, não esconde as desavenças entre republicanos, o nepotismo e o arrivismo, a troca de papéis entre os protagonistas que vão da política para o comércio, da vida militar para a de fazendeiro.

Foi durante a organização da documentação deste período que encontrei um ofício datado de 16 de Fevereiro de 1923 onde se apresenta a Companhia de Fomento Nacional, que tinha a sua sede na Aldeia do Cuor, regulado onde vivi 17 meses consecutivos.

Há 50 anos intrigava-me aqueles panos monumentais de pedra perdidos dentro da natureza bravia, mesmo a beijar o Geba Estreito. Esse mistério está dilucidado, resta saber como esta empresa deu lugar a outra dentro do Cuor, a Sociedade Agrícola de Gambiel, onde trabalhou o professor Armando Zuzarte Cortesão, cuja cama em ferro herdei, dádiva do régulo Malâ Soncó. Coisas da vida...

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (7)(*)

Beja Santos

O relatório de 1922, ano em que o governador é já o Tenente-Coronel Velez Caroço, anuncia uma certa lufada de ar fresco quanto aos termos da governação, mas não esconde as graves dificuldades económicas e financeiras e o permanente caos administrativo.

De uma forma sintética, o gerente da filial de Bolama aborda diferentes pontos. Sobre a vida económica e financeira do município de Bolama, fala das poucas receitas e da necessidade de auxílio do governo; em contrapartida, o estado da Fazenda Pública revela desafogo devido ao aumento das contribuições, incluindo o do imposto de palhota. Quanto a vias de comunicação para o interior, reporta que falta completar a estrada que liga S. João a Jabadá (sede da circunscrição civil de Quínara) e dá conta que se tem em vista a construção de uma ponte de alvenaria que ligue aquela região à de Geba, daí deduzindo que ficaria Bolama ligada ao continente; falando das estradas, diz que não são macadamizadas por falta de pedra e que as valetas não têm escoante. Pela primeira vez refere-se ao Governador, Tenente-Coronel Velez Caroço:

“Continua a merecer os encómios dos europeus residentes nesta província. Pena é que a sua ação, entravada muitas vezes porque questiúnculas políticas locais, não se estende, como seria para desejar, a todos os serviços públicos por forma a que os diversos ramos da atividade colonial tivessem o desenvolvimento necessário para bem da província”.

Informa-se Lisboa que o governo vai adquirir a propriedade urbana e rústica da Empresa Comercial de Bijagós para aí instalar oficinas navais, tribunal e residência de alguns dos seus funcionários. E estando a falar de serviços públicos, desembesta sobre comportamentos estimados por negligentes e obtusos:

“Na magistratura desta comarca existe um elemento de valor, Dr. Horácio Baptista de Carvalho, Delegado do Procurador da República; porém, o juiz Dr. Pedroso de Lima, criatura pouco inteligente, cretina e pirrónica por princípio e feitio, é algo prejudicial às causas que correm pela sua vara. Quando alguém se admira dos seus estranhos despachos, responde invariavelmente: ‘Recorra!’. Como se um recurso não custasse atualmente muito dinheiro e não representasse, quase sempre, prejuízos grandes, devido à demora que estas questões costumam levar nas instâncias superiores. Numa acção que a nossa agência de Bissau intentou, só tem criado embaraços, não revelando a menor consideração pelo nosso banco. Em compensação, desejaria entrar para o serviço do mesmo, como Contencioso, e queria que, como Juiz, de que muito se envaidece, lhe fossem concedidas regalias excecionais para as pouquíssimas transferências que têm efetuado para Coimbra e Cabo Verde, quando, pela sua parte, no diz que respeito a Lisboa, não dá o menor interesse a esta filial, pois a mesada e as suas economias são pagas naquela cidade por intermédio da Casa Gouveia que pouco ou nada lhe leva de prémio”.

E se surpreende a forma desaforada que usa com o juiz, a mesma linguagem se estende ao que se passa nas alfândegas:

“À testa dos serviços alfandegários encontra-se um sujeito que até hoje se ignora se é europeu se cabo-verdiano, chamado Fernando Oliveira, criatura sem simpatias de ninguém, nem sequer dos seus correligionários democráticos. Foi este senhor que, como principal fator, influiu no espírito de Tribunal Administrativo, Fiscal e de Contas da Província da Guiné, composto na sua maior parte, entre os quais o nosso Juiz, de pessoas pouco propensas a interpretarem conscientemente a letra do contrato entre o nosso banco e o Estado, para indeferir o requerimento desta filial que pedia a isenção de direitos aduaneiros para a entrada na província das suas notas Chamiço, conforme estava em expresso no dito contrato. Por este motivo tivemos de recorrer para o Concelho Colonial, esperando que ali nos dêem um despacho favorável”.


Igualmente de forma sintética expende considerações sobre a agricultura, indústria e permutas. Diz que o principal ramo da agricultura indígena continua a ser o da mancarra (a produção promete ser superior à do ano pretérito), auspicia uma melhor produção de arroz, com preços muito superiores aos do ano anterior. Esclarece que os indígenas cultivam em muito pequena escala milho miúdo aqui conhecido pelo nome de milho preto. E ajuíza surpreendentemente:

“A palmeira que, sem esforço e auxílio do indígena, produz bastante coconote, se fosse beneficiada, ainda que de longe em longe produziria muito mais, vindo assim dar maior valor à riqueza desta colónia. Mas o indígena, mercê das quantias fabulosas que lhe dão pelos seus produtos, é rico, e portanto pouco se preocupa com isso.

A agricultura do europeu resume-se em plantações de coleiras e árvores frutíferas, mas estas tentativas esbarram quase sempre na falta de capitais, não obstante, pelo nosso banco, tem sido facultado ao governo da província um crédito destinado ao fomento agrícola, de 134 contos. Ao que parece, tão pouco cuidado tem merecido ao mesmo governo aquele crédito, para o fim a que é destinado, que o chamam a si, escriturando-o como receita do Estado, sob a rubrica ‘Receita Eventual’. Sobre este caso temos instantemente trocado correspondência com a direção dos serviços da Fazenda a fim de, por indicação da nossa sede, fazerem a reposição daquela importância, visto não lhes ter sido dada aplicação. Mas os nossos esforços até ao presente ainda nenhum êxito obtiveram”.

Também refere que não há indústrias na Guiné, o que há é uma tentativa de fabrico de sabão, pouco prometedora, e volta a surpreender-nos:

“O indígena não se dedica a qualquer espécie de indústria, limitando-se apenas ao fabrico das suas esteiras e adornos para seu uso. Quando a permutações com o gentio, esclarece que as principais são feitas com a mancarra, o coconote, o arroz, e numa escala mais diminuta com cera, borracha e gergelim, tudo trocado por dinheiro".

É a remexer nos dossiês desta época que este pobre escriba foi alvo de uma grande emoção. É necessário explicar porquê.

Quem põe os olhos nestas montanhas de papel e procura os aspetos mais salientes das informações que seguem de Bolama para Lisboa sobre a vida da província, viveu 17 meses consecutivos, entre 1968 e 1969, como responsável militar por dois destacamentos no regulado do Cuor. Sucede que aqui chegou em 4 de Agosto de 1968, e logo na manhã seguinte, no seu primeiro patrulhamento, por recomendação do furriel mais antigo, Zacarias Saiegh, foi conhecer Aldeia do Cuor, qualquer coisa como cerca de sete quilómetros distantes de Missirá, sede do principal destacamento.

Fez-se o percurso sem nenhum incidente, era visível tratar-se de caminhos ao abandono, entregues à natureza. De um lado, imensa vegetação, belos palmares, e do outro uma vegetação rala que permitia ver à distância do outro lado do rio Geba, que ali corre em leito estreito até Bafatá, e nessa distância o Furriel Saiegh ia explicando ao novel comandante que havia para ali terras fertilíssimas, mesmo pelos caminhos que estavam a percorrer houvera seguramente riqueza agrícola, que a guerra interrompera. E assim se chegou a Aldeia do Cuor.

Ficou uma sensação de assombro para toda a vida, pois percorrera-se aqueles quilómetros todos a ver a natureza verde, luxuriante, uma barreira de palmeiras de um lado e do outro um desafogo de panorama, alguém comentou que andariam certamente por ali gente de Mero e Santa Helena nos seus cultivos, e inopinadamente emergia do capim uma enorme construção em pedra, parecia pano de fortaleza, o novel comandante, um tanto azamboado, percorreu pelos diferentes lados aquele maciço de alvenaria, ninguém explicou do que se tratava, era empreendimento antigo, votado há muito ao abandono, nada tinha a ver com a guerra. Em Missirá, ninguém deu explicação satisfatória para tão invulgar construção, a pedra é escassa naquele território, fora seguramente trazida para construção reluzente. Mas que construção?

Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Setor L1 (Bambadinca) > Carta de Bambadinca > Escala 1/50 mil (1955) > Detalhe, posição relativa de Aldeia do Cuor, na margem direita do Rio Geba Estreito; a norte, ficava o regulado do Cuor (onde havia 3 destacamentos das NT e milícias: Finete e Missirá, Fá Mandinga).
Infogravura: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2017)

E o enigma persistiu, até que de repente apareceu um documento no Arquivo Histórico do BNU datado de 16 de Fevereiro de 1923, papel timbrado da Companhia de Fomento Nacional, com sede na rua Augusta n.º 176 - 2.º, Lisboa, mas quem escrevia fazia-o de Aldeia do Cuor. Desvendava-se o segredo, o primeiro, pois como se adiantará a dita Companhia de Fomento Nacional terá dado lugar a outra empresa, a Sociedade Agrícola do Gambiel, porventura, ainda não se encontraram provas concludentes nessa associação. O que para o caso interessa é que aquele alferes miliciano descobria, cerca de 50 anos depois o nome da exploração agrícola respeitante àqueles paredões de pedra acastanhada, como reza no documento que ora tem nas mãos:

“Exploração na Guiné situada na circunscrição civil da Bafatá, ocupando em parte os regulados do Cuor, Joladu e Mansomine, fazendo sede no lugar denominado Aldeia de Cuor, à margem do rio Geba”. (**)

(Continua)

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Notas do editor

(*) Poste anterior de 27 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17908: Notas de leitura (1008): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (6) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 30 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17917: Notas de leitura (1009): “A PIDE no Xadrez Africano, Conversas com o Inspetor Fragoso Allas”, por María José Tíscar; Edições Colibri, 2017 (1) (Mário Beja Santos)

(**) Vd. poste de 9 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14337: Notas de leitura (689): A minha querida Aldeia do Cuor! (Mário Beja Santos)

terça-feira, 29 de novembro de 2016

Guiné 63/74 - P16777: Antropologia (25): Um sonô, o mais valioso tesouro artístico da Guiné-Bissau (Mário Beja Santos, ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52)

1. Em mensagem do dia 24 de Novembro de 2016, o nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) enviou-nos este artigo sobre  o valor atingido por um sonô, ceptro real, da Guiné-Bissau.


O mais valioso tesouro artístico da Guiné-Bissau

Beja Santos

Em 1969, estava eu no Cuor e Avelino Teixeira da Mota em Bissau (era Chefe do Estado-Maior do Comando da Defesa Marítima da Guiné, recebi deste um aerograma em que a dada altura me perguntava se conhecia a existência de algum sonô na região, visto que os Mandingas do Cuor eram Beafadas mandinguizados. E explicava-me que eram os cetros reais Beafadas de que havia notícia desde o século XVII. E adiantava alguns elementos, curiosamente coincidentes com a apresentação que sobre os mesmos fez num colóquio internacional de antropologia, documento que me ofereceu mais tarde. Todas as diligências junto do régulo foram infrutíferas, mesmo em Bambadinca e Bafatá. Um velho, em Bambadinca adiantou que há muitos anos um comerciante alemão que circulava no Xime e no Xitole também procurava semelhantes objetos.

Imprevistamente, ao folhear um catálogo da conceituada leiloeira Christie’s, de um leilão de arte africana e da Oceânia que se realizou em Paris em Dezembro de 2015, deparou-se-me um sonô cuja base de licitação oscilava entre os 10 e 15 mil euros. Não resisto a mostra-vos esta jóia disputada pelos colecionadores mais exigentes de arte africana, são peças que constam dos mais importantes museus do mundo, como o Moma. Dá vontade de rir quando se diz que a Guiné-Bissau está fora do mapa da melhor arte africana.



































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Nota do editor

Último poste da série de 18 de janeiro de 2016 > Guiné 63/74 - P15636: Antropologia (24): Esculturas e objectos decorados da Guiné Portuguesa (João Sacôto)

segunda-feira, 9 de março de 2015

Guiné 63/74 - P14337: Notas de leitura (689): A minha querida Aldeia do Cuor! (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Maio de 2014:

Queridos amigos,

Para quem vivia no regulado do Cuor era obrigatório patrulhar a região da Aldeia do Cuor, que conheci reduzida a imponentes paredes de pedra, dava mesmo para sonhar que tinha havido por ali a capital de um império de ouro ou de caju, tanto fazia. Patrulhava-se toda a margem à procura de sinais de cambança, até perto de Canturé, era a única maneira de saber quando e como os rebeldes procediam a reabastecimento junto dos seus amigos de Mero e Santa Helena.

Sabíamos da sua passagem pelos indícios das vacas, esteiras perdidas, vestígios de sal e tabaco, com mais sorte um carregador de PPSH ou uma granada. Íamos no encalço dos caminhos percorridos, entre Mato Madeira e Chicri. E depois, era montar emboscadas para responder com contra-terror.

Mas a Aldeia do Cuor era um local espantoso, dali se desfrutava, perto da foz do rio Gambiel, de um panorama surpreendente sobre o regulado de Joladu. Gostava de lá voltar, caminhar a partir de Canturé, passar por Gã Gémeos, onde aportava o Sintex, passar por Caranquecunda, onde estacionaram os macuas, em 1908, quando se declarou guerra a Infali Soncó, o régulo rebelde que queria impedir a circulação do Geba.

A minha querida Aldeia do Cuor!

Um abraço do
Mário


A minha querida Aldeia do Cuor!

Beja Santos

Na minha proverbial coscuvilhice na Feira da Ladra, à cata de papelada fora de circulação e que ainda nos possa tocar na razão e coração, encontrei, sem que a emoção pesasse, umas notas sobre explorações zoológicas e história das explorações faunísticas da Guiné portuguesa, uma daquelas obras que se deveu ao período áureo do governador Sarmento Rodrigues. Os temas não são santos do meu culto e penso que no presente só um punhado de estudiosos se interessará em saber que andaram pela Guiné espécies animais como o Gato-de-algália e o Cachorro-de-mango. Pelo menos fiquei a saber que data de 1898 a nomeação de Francisco Newton para fazer a exploração zoológica de Cabo Verde e da Guiné, nova expedição iria realizar-se em 1908. Francisco Newton, de regresso à metrópole, enviou animais para o Jardim Zoológico de Lisboa.

Houve uma missão zoológica que decorreu entre 1945 e 1946, com vastos e importantíssimos resultados, os investigadores ocuparam-se de copépodes, protozoários, crustáceos, insetos, moluscos marinhos, vertebrados, batráquios, repteis, aves e mamíferos, o zoólogo F. Frade rejubila com os resultados alcançados. Vou lendo toda esta exaltação num estado de arrefecimento total. Eis, porém, que vêm estampas a seguir, e aí o sangue alcançou alguma fervura com a bela fotografia do Canal do Impernal, em baixa-mar. Folheei outras imagens, a estrada para Mansoa, a paisagem da Ilha de Bolama, aves de rapina em Bafatá, Rápidos de Cusselinta, no rio Corubal, uma das grandes atrações que tive o privilégio de ver, volto a página e fico estarrecido, não precisei de ver a legenda nem aquelas embarcações, é a Aldeia do Cuor, uma das fronteiras do regulado, do lado de lá é extensa bolanha de Santa Helena, com povoações como Mero, onde os guerrilheiros de Madina e Belel se vinham abastecer. 

Conheci aquele palmar como o fotógrafo, na década de 1940, o fixou. Com a guerra, estas embarcações desapareceram. Continua por resolver o mistério da importância comercial da Aldeia do Cuor, houve quem dissesse que fora aqui que se procurara instalar o comércio de Bambadinca, tais e tantas eram as potencialidades do Gambiel. O mistério fica por resolver, sobra agora esta fotografia de tempos desaparecidos onde até podemos ver em primeiro plano uma chapa de bidão, parece uma relíquia dos nossos tempos. E ponto final para a magra mas emotiva colheita de uma manhã de sábado na Feira da Ladra.


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Nota do editor

Vd. último poste da série de 6 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14326: Notas de leitura (687): “O Legado de Nhô Filili”, por Luís Urgais, Oficina do Livro, 2012 (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10512: As Nossas Tropas - Quem foi Quem (11): Tenente de 2ª linha Mamadu Bonco Sanhá, régulo de Badora, comandante da companhia de milícia do Cuor (Cherno Sanhá)



Guiné > Zona leste > Sem data nem local > Mamadu Bonco Sanhá. Segundo informação do filho Cherno Sanhá, esta foto deve ser de finais de 1960 ou de 1970, quando o tenenente Mamadu foi condecorado com a cruz de guerra. Deveria ter uns 40 e poucos anos.

Foto: © Cherno Sanhá (2012) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados,


1.  No passado dia 5 de setembro, recebi a seguinte mensagem do nosso leitor, Cherno Sanhá, que presumo viva (ou tenha vivido em Espannha), a avaliar pelo endereço de correio eletrónico: cherno2009@yahoo.es

 Bom dia!

É com grande satisfação que pude hoje ler o vosso blog,é muito importante e enriquecedor.
Sou filho do Mamadu Bonco Sanhá,vou tentar contribuir com mais informações sobre o meu pai e enviar algumas fotografias dele.

Um grande abraço.

Cherno Sanhá


2. Comentário de L.G.:

Na altura eu não associei o nome, Mamadu Bonco Sanhá, ao todo poderoso cabo de guerra e régulo de Badora, homem grande de Bambadinca,  fula, que eu conhecera no meu tempo (1969/71). Hoje, 10 de outubro, recebo um outro mail com uma das prometidas fotografias do pai do Cherno Sanhá (Pelo indicatiivo  do telemóvel, 00 245, vejo que ele afinal vive na Guiné-Bissau):

Caros Luis Graça,

Junto envio uma foto do meu pai Mamadú Bonco Sanhá.
Cumprimentos
Cherno Sanhá
Telemóvel: (+245) 727 6999



3. Comentário de L.G.:

Meu caro Cherno:  De repente, ao olhar esta foto amarelecida pelo tempo, fez-se-me luz no "meu computador central", reconheci de imediato aquela cara: era ele, o tenente de 2ª linha Mamadu, ou simplesmente o tenente Mamadu, como os 'tugas' o tratavam, com deferência e respeito,   comandante da companhia de mílícia do Cuor...

Era ele, fardado, com os respetivos galões, e os óculos escuros que sempre lhe conheci. A farda, branca, devia ser a da administração colonial, a das cerimónias oficiais, a de régulo. Régulo de Badora.

Vestido de farda, branca, como na foto, não me lembro de o ter visto.  Rebobinando os filmes das minhas memórias de Bambadinca, estou a vê-lo, sim, ora de camuflado, ora com as vestes tradicionais dos homens grandes, a chabadora, e quase sempre, se não sempre, montado na sua motorizada de 50 cm3, de marca japonesa (talvez uma Kawasaki), oferta pessoal - segundo se dizia -  do Governador Geral da Província e e Com-Chefe, António Spínola (, facto que nunca pude confirmar).

Habituei-me a vê-lo,com alguma frequência, na parada do quartel de Bambadinca, junto ao comando do batalhão ali estacionado no meu tempo (primeiro, o BCAÇ 2852, e depois o BART 2917), ou seja, no período que medeia entre agosto de 1969 e março de 1971.

Nunca fiz, que me lembre, nenhuma operação com ele. De resto, não era habitual os pelotões de milícias participarem nas nossas operações, apenas os Pel Caç Nat (52, 54, 63)...

Também era voz corrente que tinha uma cruz de guerra, por feitos valorosos em combate, não sei onde nem quando. O que também nunca soube era onde vivia, se em Bambadinca ou nalguma tabanca dos arredores.

Dele também se dizia - seguramente com os exageros próprios das 'bocas'  da caserna  - que o todo poderoso e temido régulo de Badora tinha 50 mulheres, uma em cada aldeia do seu regulado, e que só em cabeças de gado deveria ter umas centenas. Mulheres e cabeças de gado  faziam parte do 'status' de um homem grande.

Dizia-se também que tinha alguns filhos na CCAÇ 12, como seria o caso do nosso infortunado  e saudoso Umaru Baldé, o 'puto' [,foto acima, à esquerda; crédito fotográfico: Benjamim Durães]...

Nunca lhe perguntei, ao Umaru,  nem nunca lhe perguntaria...Lidei, privei com os fulas, fiquei nas suas tabancas, mas também respeitei a sua privacidade, a sua cultura, o seu modo de ser e de estar... Com os balantas, infelizmente, não consegui criar qualquer empatia... A barreira da língua e da farda, além da pertença a uma companhia fula (, a CCAÇ 12,), eram obstáculos intransponíveis...

Havia tensão entre os fulas e os balantas de Badora... Julgo que desgraçadamente "ajustaram contas" entre eles depois da nossa saída... Os malditos demónios étnicos ficaram na "caixinha de Pandora" que entregámos ao PAIGC... (E os guerrilheiros tinham uma caixinha destas, com outros ingredientes)...

Eu, que sempre lidei com fulas, e fiz amigos entre eles, também tive que gerir sentimentos contraditórios, em relação a este povo e aos seus filhos... Sempre fiz uma distinção entre os seus "chefes" tradicionais, de um modo geral aliados das NT, e os seus pobres "súbditos", a grande maioria dos quais eram também  meus/nossos soldados.

Desgraçadamente o aliado dos 'tugas', o nosso Tenente Mamadu,  foi fuzilado em Bambadinca depois da independência, já em 1975: o seu "crime" terá sido apenas o de ter apostado no "cavalo errado" do jogo de xadrez geopolítico que se travava na Guiné... Não sei em que circunstâncias foi julgado, condenado e executado. Talvez o Cherno Sanhá nos possa (e queira) esclarecer melhor este último e trágico episódio da vida do seu pai e nosso camarada de armas.

Quanto às autoridades militares de Bambadinca do meu tempo,  faziam dele quase um mito... Veja-se por exemplo o que se pode ler na história do BART 2917 (1970-72):

(...) "No Sector L1 podemos considerar duas raças (sic) distintas: para Leste da estrada Bambadinca-Xitole onde predomina a raça Fula, e para Oeste da mesma estrada onde predominam as raças Balanta e Beafada.

"A população Fula de um modo geral é nos favorável, sendo de destacar o regulado de Badora, que tem como Chefe / Régulo um homem de valor e considerado pela população como um Deus. Esse homem é o Tenente Mamadu, já conhecido do meio militar pelos seus feitos valorosos e dignos de exemplo. Da outra população, fortes dúvidas se tem, especialmente as dos Nhabijões, Xime e Mero" (...).

Enumera-se depois o seu currículo, apresentado em termos grandiloquentes e laudatórios:

(i) Régulo do Badora; 

(ii) Vogal do conselho logístico da Província; [, ao lado, por exemplo, de outro grande aliado dos portugueses, o régulo manjaco Joaquim Baticã Ferreira]

(iii) Comandante da Companhia de Milícias do Cuor; 

(iv) "Intitulando-se Fula, é considerado pelos Mandingas e Beafadas como Beafada, em virtude da ascendência materna"; [, segundo Beja Santos, devia ser parente dos Soncó do Cuor, "os mais ardorosos guerreiros da Guiné";  em carta ao comandante Avelino Teixeira da Mota, ele escreveu o seguinte: (...) "Quando tiver tempo e paciência, gostava muito que me indicasse literatura sobre este dinamismo da islamização, que foi animada pela presença europeia, pela submissão dos infiéis beafadas e dos fula-pretos animistas. Também no estudo do Carreira descobri que Boncó Sanhá (seguramente familiar do actual tenente Mamadu Sanhá, régulo de Badora) era sobrinho de Infali Soncó. (...)]



(v) "Pelos seus actos de valentia é condecorado com a Cruz de Guerra"; 

(vi) "Régulo justo e especialmente preocupado com a segurança das suas populações"; 

(vii) O seu prestígio parece ir muito "para além dos limites do regulado de Badora"; 

(viii) "É um excelente colaborador das NT, parece representar o movimento dos Fulas Nativos" (...).

Fica aqui o nosso gesto de apreço pela memória de um homem  que foi um importante aliado das NT, na zona leste, e que pagou com a vida essa aliança.  Um abraço para o Cherno Sanhá que ao fim destes anos todos nos vem surpreender com uma foto do seu pai, seguramente rara e indiscutivelmente valiosa para todos aqueles de nós que, em Bambadinca, conheceram o "tenente Mamadu".  LG

4. Nota posterior de L.G.:

Em conversa com o Cherno Baldé (que teve a gentileza de me telefonou de Bissau e aceitou o meu convite para integrar o nosso blogue), soube mais o seguinte acerca de Mamadu Bonco Sanhá: (i) a residência oficial do tenente Mamadu era em Madina Bonco; (ii) muitos dos papéis dele perderam-se, ficaram nas  mãos das mulheres, mas a foto deve ser de 1970 ou por aí; (iii) o Cherno deve ter uns 20 irmãos; (iv) o tenente Mamadu nunca teve "50 mulheres", embora tivesse bastantes como régulo que era, mas algumas delas eram dos irmãos que faleceram antes dele; (v) o Umarau Baldé não era filho do Mamadu Bonco Sanhá: (vi) o Cherno Sanhá, que tem 56 anos, fez a 4ª classe em Bambadinca, foi aluno da profª Dona Violeta, residia em Bambadinca nessa altura, mas tinha nascido em Madina Bonco; (vii) fez o liceu em Bissau;  (viii) formou-se em Cuba, em 1983, em engenharia de telecomunicações; (x) trabalhou na rádio nacional durante uns 3 anos; (xi) andou por Espanha na sequência da guerra civil em 1998/99; (xii) vive hoje em Bissau, e trabalha numa empresa de telecomunicações: (xii) conhece alguns dos nossos grã-tabanqueiros de Bissau: o Pepito, o Patrício Ribeiro, o Cherno Baldé... Aguardo que ele me mande uma foto sua, atual. Aprecio a coragem dele por dar a cara e vir aqui recuperar a memória e a honra do seu pai.
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quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Guiné 63/74 - P7682: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (17): Algumas conversas para melhor perceber o PAIGC

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Janeiro de 2011:

Queridos amigos,


Já estamos na despedida.
Quero agradecer a todos aqueles que contribuíram para clarificar impressões de viagem que deixaram o Tangomau intrigado. Não há nada como descobrir que a viagem ficou incompleta, havendo necessidade de regressar, um dia. Em nome das amizades inigualáveis, em nome do lugar que se habitou e que se grudou ao coração.


Um abraço do
Mário


Operação Tangomau (17)

Beja Santos

Algumas conversas para melhor perceber o Outro, o PAIGC

Despedidas e promessas

1. É uma reunião muito estimulante com mulheres e homens predominantemente entre os 50 e 70 anos. Já se percebeu que não há nenhuma historiografia oficial, formal ou informal, tanto na posse do PAIGC ou dos seus dirigentes históricos. Há arquivos incompletos, há os trabalhos de Luís Cabral, Aristides Pereira, Mário Pinto de Andrade, as prosas laudatórias da propaganda, de um modo geral inúteis para se obter a panorâmica de como o PAIGC se inseriu junto das populações e delas obteve apoios incondicionais ou as abrigou a colaborar na luta; há muita documentação na Fundação Mário Soares, serve para esclarecer alguns ângulos, mas não todos; desapareceram documentos secretos, correio entre dirigentes, ordens de batalha, até comunicados políticos.

Continua a ser tabu o relacionamento entre os dirigentes cabo-verdianos e os quadros militares guineenses. Ninguém usa como referência o Livro Branco do PAIGC, ninguém tem ilusões que é uma historiografia oficial datada, a história não é feita de declarações incontestáveis. É por todos admitido que foi no Congresso de Cassacá (1964) que o poder político se sobrepôs ao poder militar, orientando-o durante e após a independência, até 1980. Eram os comissários políticos que superintendiam as operações militares, os comandantes prestavam permanentemente contas.

A partir de 1980, com a era de Nino, deu-se uma demarcação, com o agravamento da situação económica e financeira, os militares sentiram-se livres de contestar e de se orientar nos negócios. Quando se sentiram ameaçados, como Ansumane Mané, reagiram. Até hoje. Os altos comandos vivem permanentemente à espreita de serem liquidados, desde a época do conflito político-militar de 1998.




O Tangomau já esgotou praticamente o seu stock de imagens. Nas reuniões por onde anda, nem lhe passa pela cabeça tirar fotografias. Socorre-se de fotografias não publicadas. Neste caso, uma panorâmica do cemitério de Bissau, o talhão dos combatentes da guerra da pacificação, rodeado do talhão dos combatentes da guerra que perdurou até 1974. Estava tudo relativamente bem arranjado, a Liga dos Combatentes determinara uma boa limpeza. Estava um dia luminoso, o Tangomau sentiu-se impelido a estranhas orações, quase conversas, entre o céu e a terra, era uma evocação errática e difusa em nome de todos os mortos.


2. O Tangomau muda de registo e pergunta à assistência como é que os quadros do PAIGC sentiam o crescimento do pensamento nacional, houve comentários variegados, alguns deles mereciam aprofundamento e até registo para um qualquer historiador procurar direcções de análise desse PAIGC aparentemente coeso e militarmente indómito. Um dos comentários lembrou ao perguntador a singularidade do desencadear da guerrilha: primeiro, a formação dos agitadores, quadros que foram lançados na subversão, quer nas barbas das autoridades, quer aproveitando a insignificância da sua presença, como foi o caso do Sul; esses agitadores conduziram à mobilização de populações, mesmo à custa do terror e da separação das famílias, em escassos meses, em 1963, o Sul foi transformado em parcelas atomizadas que reduziram a capacidade de manobra das tropas portuguesas.

Cabral era um ideólogo incontestado, nos primeiros anos; os choques virão mais tarde, se bem que permanecessem discretos, entre cabo-verdianos e guineenses, estes últimos frequentaram escolas de formação e foram confrontados com outras formas de racismo. Uma guerrilha que se expande tão rapidamente entre 1963 e 1964, populações a viver sempre em risco e, de um modo geral, a aceitar esses riscos e os sacrifícios no transporte de munições, armamento, comida e medicamentos, tudo acaba por se saldar numa combatividade de âmbito nacional, basta pensar no hino e na bandeira.

Alguém da assistência pede para fazer um comentário: é verdade que hoje o pensamento nacional é difuso, mas no conflito político-militar a população insurgiu-se contra a presença estrangeira, contingentes senegaleses e de Conacri foram severamente reprimidos por exércitos ad hoc, compostos por gente de todas as etnias. E foi lembrado ao perguntador se era possível não haver uma consubstanciada crença no PAIGC quando, em 27 de Abril de 1974, andavam grupos nas ruas de Bissau a gritar vivas ao MFA e ao PAIGC. O Tangomau a todos agradece, amanhã terá um encontro com Filinto Barros e Chico Bá para falar sobre a evolução da guerra de 1973 para 1974, ouvi-los sobre o que devíamos fazer conjuntamente para se estudar melhor o Outro, antes e depois da guerra que findou em 1974.

É a última fotografia que resta de Ponta Varela. Permite verificar a natureza do Geba estreito, que aqui começa ou aqui finda. Neste exactíssimo ponto, dentro da vegetação, os guerrilheiros do PAIGC flagelavam batelões e até lanchas da Armada. O Tangomau sentiu-se compensado da passeata em companhia de gente moçoila, intrigada com o velhote que caminhava despachado aqueles quilómetros ida e volta, encantado com hortas, cabaceiras, poilões e o marulhar da corrente desse Geba, que é o rio da sua vida.


3. Anoitece, o Tangomau despede-se das pessoas que amavelmente cederam a conversar com ele. Regressa à Pensão Central, vem com muita precisão de tomar um banho de caneco, pôr o corpo na horizontal, sentir o fresco de uma ventoinha trepidante. Encontra Patrício Ribeiro, combinam ir jantar num restaurante de comida portuguesa. Antes, conversa com a Avó Berta, conta-lhe o que andou a fazer pela região de Bambadinca. A Avó Berta aproveita para lhe falar de como, com o marido, num oceano de dificuldades, montaram a Pensão Central, como ela sobreviveu a todas as carestias, ali se recebeu professores, ali se manteve a sede viva da cooperação portuguesa e internacional. O Tangomau embevece-se com o fulgor desta senhora exemplar que se recusa a abandonar a grande obra da sua vida.

Refrescado e com o corpo menos moído, vai prestar contas e dar graças ali ao pé, na catedral. Dar graças por o coronel Jales Moreira ter pedido ao Daniel Nunes para encontrar uma solução de acolhimento na região de Bambadinca, foi ele quem apresentou o Tangomau ao embaixador Inácio Semedo, depois este pôs o irmão em acção; dar graças ao Fodé à família, dar graças a quem o reconheceu e o quis rever, com a alegria estampada no rosto, dar graças pela imensidade destas relações indestrutíveis, até ao último alento da sua vida.



Era assim a Pensão Central em 1997, fora retocada, pintada de branco imaculado, agora está de azul e há muita ferrugem à mostra. Ainda é possível andar num destes táxis azuis, com um ou até quatro passageiros. Importa não esquecer o bem que aqui se fez a quem chegou com fome e à procura de abrigo, de todas as partidas do mundo (foto retirada do site: www.guinee-bissau.net, com os devidos agradecimentos).


4. Vão jantar, o Patrício Ribeiro e o Tangomau, num restaurante decorado à portuguesa, até ali há enchidos, cebolas e alhos decorativos. Para surpresa do empregado, o Tangomau pede dois ovos estrelados, umas batatinhas fritas e uma boa salada, tudo a regar com uma cerveja gelada. A assistência grita frenética, o Barcelona esmaga o Real Madrid, há claques furiosas pró e anti-Cristiano Ronaldo. O Real Madrid sai dali desfeiteado, o Tangomau despede-se de Patrício Ribeiro, cai de sono, já está informado que aí pelas 23 horas se apaga a luz com o corte de energia, quer fazer as últimas leituras, preparar-se para os últimos encontros de amanhã, vai entregar cartas a Tumlo Soncó, que dentro em breve parte para o Cuor.

Na cama, folheia os elementos que compilou sobre o MFA da Guiné, o golpe militar que ele desencadeou em Bissau logo a seguir ao 25 de Abril, até o plano de ali fazer uma sublevação caso falhasse o 25 de Abril em Lisboa. Nunca entendeu porque é que os protagonistas não documentaram claramente estes factos, os movimentos, as tensões ideológicas e depois o entabulamento de relações, mais ou menos informais, com o PAIGC e como, logo em 1 de Julho de 1974 centenas de militares exigiram ao Governo de Lisboa o reconhecimento da República da Guiné-Bissau, no fundo se a Guiné o berço do MFA e este conspirou e descolonizou por conta própria no território, que diálogo se estabeleceu com os quadros do PAIGC. E assim adormeceu, mesmo sentindo a pressão do calor e depois de olhar, assombrado, o volteio dos carros na Avenida Amílcar Cabral, a fugir dos buracões do alcatrão, na noite escura.



Este é o Zé Pereira que viajou de Bissorã para me abraçar. Era o 1.º cabo mais culto e desempenado do Pel Caç Nat 52. Foi um exemplo de coragem quando, com Missirá em chamas, foi salvar uma criança esquecida numa morança. O que o Tangomau lhe deve não cabe num possível título de dívida e quando lhe disse: “Zé, deixa-me tirar-te uma fotografia, quer que todos saibam quanto te admiro!” ele logo respondeu: “Sim, mas com o teu livro na mão, este é meu e vou levá-lo para Portugal, quando for visitar o meu filho”. Um pai orgulhoso por ter conseguido dar estudos médios a todos os seus filhos, o Aillton é avançado no Atlético Clube Oriental e está a acabar a licenciatura.


5. De manhã, não há tempo para o devaneio de leituras, é importante escrever ao régulo Carambá, ao Príncipe Samba e ao Fodé. O ambiente escolhido é o do Centro Cultural Francês, é fresco e silencioso, o Tangomau escolhe uma mesa na zona da banda desenhada, bem fornecida e tentadora, sem perda de tempo escrevem-se saudações e promessas.

Que o régulo Carambá veja o Cuor desenvolver-se, do Geba estreito até Madina de Gambiel. Que o régulo esteja descansado, o Tangomau sente impulso para voltar, a velha estrada abandonada de Gambaná atrai-o, percorreu-a vezes sem conta, corta-lhe o coração vê-la reduzida a um caminho alcantilado de pouco préstimo, quer voltar à Aldeia do Cuor que ele encara como uma civilização perdida, nunca decifrou aqueles muros tão altos, houve quem lhe dissesse que ali se pensou criar a povoação mais importante, desistiu-se, sabe Deus porquê, foi assim que nasceu Bambadinca, era por Aldeia do Cuor que se pensava escoar as madeiras exóticas e os produtos agrícolas do Gambiel.

Ao Príncipe Samba desejou-se as maiores felicidades, agradeceu-se o encontro comovente, aquela tradução para crioulo, cheia de intenção e sentimento, aqueles pedidos de ajuda a que ele gostaria de corresponder e lamentavelmente não pode, o Tangomau recorda e acentua a gratidão pela dedicação recebida. Ao Fodé, o muito obrigado por ter convocado tanta gente, ele foi o anjo de S. Gabriel que anunciou a vinda do Tangomau.

Aproveita-se o agradecimento para fazer tábua rasa das diferentes tensões entre ambos, aguarda-se agora reencontro em Lisboa. Escritas as missivas, faz-se a sua entrega no Bairro Missirá, Tumlo lembra ao Tangomau que tem um filho com muito jeito para a bola, pede-lhe encarecidamente ajuda, o Tangomau volta a chorar, de impotência, não pode corresponder a tanto pedido.

Tumlo Soncó sentado, parece que está à espera calmamente que o futuro seja pródigo, lhe traga algumas benesses. É nestas coisas que o Tangomau revela a incipiência própria dos fotógrafos amadores, deixa sombra da Maria Fausta, a mulher de Abudu Soncó, e do Sr. Sabino, o motorista da Embaixada de Portugal.


6. Entregues as cartas, o Tangomau parte para um café onde se vai encontrar com Filinto Barros e Chico Bá, ou Francisco Silva, que foi comissário geral das frentes Norte e Sul. Ambos autorizam que o Tangomau tome notas. A primeira pergunta incidiu sobre o modo como se radicalizou a luta, exigindo, logo após o 25 de Abril uma independência total e irrestrita. Os interlocutores responderam que se temia também com o futuro de Angola e Moçambique: se a independência da Guiné empanasse, haveria consequências para as outras colónias. Era preciso que tudo começasse claramente na Guiné.

Ao contrário do que se tem dito, os negociadores guineenses pediram às autoridades portuguesas para ficarem transitoriamente na Guiné, cedo se aperceberam que não havia condições nem militares nem políticas. Os quadros do PAIGC sabiam não dispor de uma estrutura administrativa capaz para as novas realidades da independência. Os gestores que se prepararam vieram de escolas muito rígidas, como a RDA, uma outra realidade. Filinto Barros lembrou que a confraternização em Bissau teve muito poucas arestas, logo a seguir à chegada do PAIGC, por pura coincidência, encontrou do lado português um oficial da Armada que estudara com ele no Colégio Nuno Álvares. O erro não esteve em exigir a independência, esteve em não partilhar por mais alguns anos com os portugueses a aprendizagem da administração.

Falando dos acontecimentos de 1973 e 1974, estes dois importantes quadros políticos foram consensuais: não havia pressa quanto ao fim da guerra, sentia-se e sabia-se da erosão que a guerra estava a provocar e que a perda de supremacia aérea trouxera uma profunda desmotivação. Mesmo que, por absurdo, os aleados da NATO dessem provisoriamente um equilíbrio militar, a capacidade do PAIGC estava imparável, agora não era só o facto das tropas mal saírem do arame farpado, já se combatia com carros de combate e escolhiam-se alvos como Canquelifá que, tudo previa, iria ser cercada em Maio, em termos semelhantes ao de Guidage, como no ano anterior.

Os informadores do PAIGC em Bissau também sabiam que ia haver abandono de vários quartéis junto da fronteira e com graves consequências para o moral das tropas, essas populações ao abandonarem as suas tabancas iriam concentrar-se à volta de Bissau, agravando todos os problemas. Outra informação digna de nota: quando se proclamou o Estado em 24 de Setembro, a partir dessa data deu-se uma sangria de estudantes já adolescentes que se foram oferecer para a guerrilha. Era uma quantidade impressionante. A direcção do PAIGC ao comentar o facto concluiu que a juventude guineense irreversivelmente se pusera do lado do PAIGC. A relação de forças entrara em desequilíbrio, estes jovens marcavam a diferença. Discutiram-se ainda projectos sobre as relações com o Outro, de ambos os lados. Todos prometeram manter-se em contacto.



O Tangomau voltou à Madina do Gambiel à procura do paraíso, das palmeiras de Samatra. Tudo mudou, mantém-se luxuriante mas aquela beleza esmagadora desapareceu. Foi um dos momentos de decepção. Felizmente que o Tangomau fora reconhecido por Ieró Baldé, não há paisagem que substitua um momento de tanta beleza nos corações.


7. Amanhã haverá despedidas, algumas delas comoventes. E depois terminará este diário composto a trouxe-mouxe. O Tangomau vai às compras, para si e à procura de lembranças para os outros. Será a circunstância para mostrar as últimas fotos e convidar todos os confrades a voltar à Guiné.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 26 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7676: Ninte Kamatchol: a história da capa de um livro (Mário Beja Santos)

Vd. último poste da série de 21 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7650: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (16): Até Bissau num toca-toca e conversas sobre a história do PAIGC