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quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25194: Historiografia da presença portuguesa em África (410): Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (7) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Junho de 2023:

Queridos amigos,
O Tenente Costa Oliveira estava muito longe de ser um ilustre desconhecido na Guiné. Antes de ser nomeado comissário para a demarcação das fronteiras, o que ocorreu em 1888, acompanhara as obras do presídio de Bolor e, como se verá num texto posterior, trabalhou a cartografia da Guiné, dedicou mesmo um artigo sobre a matéria ao seu amigo Luciano Cordeiro. O que ele descreve em jeito de considerações finais e conclusão, e que dita o final do seu trabalho, que aqui se resumiu, tem muita matéria para reflexão, fica-nos mesmo a impressão de que se estava a candidatar a governador: pronuncia-se sobre os efetivos militares indispensáveis para manter os indígenas a respeito, propõe mesmo embarcações à prova de bala, é a favor da mudança da capital para Bissau, sugere concretamente nomes de locais a ocupar, antevê a prosperidade económica da colónia na cultura do amendoim. E nas conclusões emite mesmo um juízo drástico: a Guiné ou é rica ou não é, ou se aposta no seu florescimento ou ela continuará a ser um sorvedouro de dinheiros e um matadouro de funcionários - neste caso o melhor é ofertá-la à França, é potência próspera, está ali mesmo à volta, será perda indolor. Para que conste, também assim se pensava em 1888

Um abraço do
Mário



Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (7)

Mário Beja Santos

O Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, 8ª série, números 11 e 12, 1888-1889, acolhe um documento de grande valor histórico intitulado “Viagem à Guiné Portugueza”, o seu autor é E. J. da Costa Oliveira, Oficial da Armada Real, Comissário do Governo para a delimitação das possessões franco-portuguesas da costa ocidental de África. Fez-se a viagem de Bolama até ao Sul, o Tenente Costa Oliveira não esconde o seu deslumbramento com tanta beleza natural e vai perseguir com as suas ricas observações que permitem ao leitor de hoje perceber o que era a vida no Sul não só da Guiné portuguesa como da Guiné francesa. Depois de curta estadia em Bolama, seguiu para o Casamansa. No final do seu importantíssimo documento vai tecer considerações e elaborar uma conclusão que nos deve merecer a melhor atenção.

As suas observações decorrem do facto de ser um conhecedor da realidade guineense, anteriormente a esta missão da demarcação de fronteiras já estivera na Guiné. Agora as suas considerações são tanto de caráter político-militar como deixa explicitamente recados ao modelo de desenvolvimento do território que muda em Portugal a imagem da colónia. Em termos militares dirá coisas como esta:
“Geba, Farim e Cacheu são Praças de guerra só no nome, pois com as suas muralhas rotas, peças de ferro em deplorável estado e apeadas, guarnecidas por meia dúzia de soldados indisciplinados e mal-armados, estão completamente à mercê do gentio, admirando-nos até como o nosso prestígio, e não outra coisa, tem contido em respeito as tribos próximas.”

Reportando-se à natureza das embarcações indispensáveis para a navegabilidade dos rios, escreve:
“Permitam-me agora descrever rapidamente as lanchas que conviriam ao serviço da Guiné, devem satisfazer as seguintes condições: 1) Demandar desde 30 até 50 centímetros de águas; 2) Terem fundos chatos por causa dos encalhes; 3) Poderem conduzir até 50 praças com o respetivo armamento, etc.; 4) Terem velocidades superiores a 8 milhas por hora; 5) Terem duas máquinas independentes e separadas por uma divisória longitudinal, acionando duas rodas na popa; 6) Um aparelho de luz elétrica; 7) Costado de aço impenetrável às balas de qualquer espingarda, com tombadilho e castelo, e o intervalo entre estes protegidos também por chapas de aço; 8) Guarita couraçada para abrigo do comandante e homem do leme; 9) Armamento – metralhadores e peças de tiro rápido; 10) Finalmente, que possam queimar indiferentemente lenha ou carvão.”

Nas considerações gerais, dá prioridade à escolha da capital da província, é contrário à opinião que a capital esteja no rio Grande de Bolola, é a favor de Bissau, e explica porquê:
“Está situada no ponto mais central da província e na embocadura do rio Geba, de cujas margens e dos sertões por onde corre se deve esperar toda a prosperidade da colónia; tem um porto excelente e de fácil acesso para navios de grandes dimensões e tonelagens, com um ilhéu fronteiro, o ilhéu do Rei, de salubridade incontestável e cuja situação eminentemente favorável deve ser aproveitada para se construir ali o sanitarium, enfermaria militar, aquartelamentos, etc.; com outro ilhéu próximo, o de Bandim, onde se deve instalar o lazareto.” E propõe mesmo medidas para modificar as condições climatéricas de Bissau, desde arrasar o muro que cerca a vila até proibirem-se os correios e chiqueiros dentro dela, havendo de fazer o plano da nova cidade, ele não deixa de fazer sugestões sobre praças ajardinadas e como deve ser a residência do governador.

Há alguns aspetos curiosos das suas sugestões, por exemplo:
“Em Cacheu ou Buba fabricava-se tijolo e telha. Julgamos indispensável fazer renascer essa indústria para acudir às necessidades da província. Todos sabem que nos plainos da Guiné não há pedra; mas a Holanda também a não tem, e o tijolo é quem a substitui até nos passeios laterais de algumas ruas de cidades formosas e importantes. Também se nos afigura convenientíssimo montar em Cacheu uma serração de madeiras. Assim que a nova Bissau estiver nas condições de receber o chefe de província e de mais funcionários, a sede do governo será transferida de Bolama, ficando ali só a ala esquerda do batalhão, e delegações da Alfândega, Capitania dos Portos e Correio. Haverá que proceder a ocupações: ocupar S. Belchior e mandar pôr o forte em condições de poder resistir a qualquer ataque pelo gentio, depois tomar posse de Sambel-Nhantá e cuidar de Geba, bem como ocupar um bom número de povoações no Corubal".

Mas o Tenente da Armada Real não se fica por aqui. Tem opiniões próprias sobre as alfândegas, a Capitania dos Portos, as missões, as cadeias, os hospitais e enfermarias, o dispositivo militar. Não se compadece com a míngua do que existe na agricultura, indústria e comércio, é a favor de todo o apoio à cultura da mancarra, mas também da purgueira, cana do açúcar, tabaco e algodão. Recorda que no anexo do seu relatório vem o traçado completo da delimitação do território tal como foi definido pela convenção luso-francesa. Recorda a quem o lê que se impõe atuar em continuidade para que haja paz no território, e escreve:
“Para tranquilidade da Guiné, e para se poder desenvolver agrícola e comercialmente, deve o chefe da província obstar por todos os meios ao seu alcance, incluindo os da força, às guerras entre as tribos que povoam o território chamado português. Desde que se delimitaram as fronteiras da província, as suas condições políticas mudaram consideravelmente; por exemplo, outrora não convinha por forma alguma intrometermo-nos na política gentílica, atualmente é uma necessidade. Os Fulas ocupam há muito terrenos pertencentes aos Biafadas; o bom senso aconselha que se convide Mamadu Paté, atual chefe do Forreá, a abandoná-los, e como esta ocupação não se poderá fazer sem Mudi-Yaiá pugnar os seus imaginários direitos sobre aquele território, será conveniente ouvir a França que também deve desejar fazer iguais arranjos.” O tenente da Armada Real tem uma tese muito própria sobre a independência do Forreá, era a favor da independência do Forreá português e francês, havia também que delimitar os territórios dos Biafadas e Nalus, auxiliando aqueles que se mantivessem sossegados e fiéis à nossa bandeira, castigando os conflituosos, demitindo o prendendo os chefes, e nomeando outros à nossa escolha.

E chegamos assim às conclusões: "pretendemos demonstrar que a Guiné portuguesa, apesar de tudo quanto dela se diz, é uma colónia de futuro comercial brilhante, se cuidarmos da sua organização interna. O nosso país é pobre, bem sei e não pode nem deve arriscar capitais imprudentemente; todavia, deste dilema ninguém poderá sair – ou a Guiné é rica ou não é. Se é rica e pode ter ainda um futuro brilhante, dê-se-lhe o que for preciso para a fazer desenvolver, prosperar. Se não é rica e o défice cresce anualmente em progressão assustadora, e é um sorvedouro dos dinheiros da metrópole e um matadouro de funcionários, ceda-se à França".

Em suma, não se pode dizer que este documento escrito por quem foi não tem algo de profético e ressuma uma mentalidade muito própria do seu tempo, um olha imperial onde não falta o empirismo, o conhecimento científico e um inequívoco fervor, apostando no futuro da Guiné. Resta esclarecer o leitor que voltaremos a Costa Oliveira e a um outro importante documento, a cartografia da Guiné.
Carta da Guiné Portuguesa, século XIX, Arquivo Histórico-Ultramarino
Carta da província da Guiné, 1912
Carta da colónia da Guiné, 1933
Antiga Sede do Banco Nacional Ultramarino em Bolama, posterior Hotel do Turismo, hoje completamente desaparecidoAtual edifício do Centro de Formação Pesqueira de Bolama. Imagem retirada do blogue Alma do Viajante, com a devida vénia.

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Nota do editor

Último post da série de 14 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25172: Historiografia da presença portuguesa em África (409): Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (6) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25172: Historiografia da presença portuguesa em África (409): Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (6) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Junho de 2023:

Queridos amigos,
Depois de percorrer longamente a região Sul, o tenente da Armada Real identificou a nova porção de território da Guiné portuguesa, a península de Cacine, voltou a Bolama, aproveitou para fazer inventário, seguiu para o Casamansa, região que descreve primorosamente, mesmo recorrendo a documentação do colega francês, naquela data é hasteada a bandeira francesa, Portugal perde qualquer influência na região do Casamansa. Mas o tenente Costa Oliveira não se irá despedir de qualquer maneira, refere a importância de Bolor, está em ruínas, fará imensas considerações sobre o modo de desenvolver a Guiné, escreve com elegância, revela-se um observador atentíssimo. Pena é que este registo histórico não seja alvo de revisitação, que um estudioso procedesse a comentários à luz da atualidade, o mínimo que se pode dizer de tão precioso relatório é que ele faz parte do bilhete de identidade tanto da Guiné portuguesa como da Guiné-Bissau.

Um abraço do
Mário



Um documento assombroso: Viagem à Guiné Portugueza, por Costa Oliveira (6)

Mário Beja Santos

O Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, 8ª série, números 11 e 12, 1888-1889, acolhem um documento de grande valor histórico intitulado “Viagem à Guiné Portugueza”, o seu autor é E. J. da Costa Oliveira, oficial da Armada Real, comissário do governo para a delimitação das possessões franco-portuguesa da costa ocidental de África. Fez-se a viagem de Bolama até ao Sul, o Tenente Costa Oliveira não esconde o seu deslumbramento com tanta beleza natural e vai perseguir com as suas ricas observações que permitem ao leitor de hoje perceber o que era a vida no Sul não só da Guiné portuguesa como da Guiné francesa.

É um relato quase em forma de diário, percorre-se toda esta zona do Sul, no fundo a comissão francesa faz a entrega histórica à comissão portuguesa da região de Cacine e percorrem-se territórios da fronteira do lado ocidental. Regressa-se a Bolama e o relato agora é sobre o Casamansa, é a vez da comissão francesa ir tomar formalmente conta da região. Costa Oliveira cita o seu colega francês M. Brosselard, ele começa por enaltecer a importância de Ziguinchor, e temos depois comentários da descida do rio Casamansa e Zinguichor, aqui se deixa o registo dado o seu inegável interesse:
“Acima de Sedhiou (Selho, em português) pode subir-se a algumas milhas além de Dianah. Deste porto às origens a distância não pode ser vencida senão por canoas ou pirogas de fundo chato. De Adeane a Dianah as duas margens são revestidas de uma luxuriante vegetação e árvores gigantescas, principalmente em Yatacounda, onde as únicas clareiras que se encontram são ocupadas pelas aldeias. A enchente vai até Selho e facilita a navegação de cúteres e goletas da ilha de Gorée. Um vapor vai em doze horas da embocadura do rio a Selho, as embarcações de vela gastam três dias.”

A missão francesa voltou a 24 de abril no aviso Goëland a Ziguinchor e tomou posse da aldeia portuguesa que tinha sido evacuada alguns dias antes. O pavilhão francês foi arvorado no dia seguinte de manhã na presença dos principais habitantes e saudado com 21 tiros de peça regulamentares. Mas voltemos às observações do tenente da Armada Real.

Em Ziguinchor as habitações confortáveis são raras, o mais que se pode encontrar são três ou quatro casas de negociantes construídas à europeia, as outras habitações são cubatas bastante elevadas. A ocupação de Ziguinchor regula a questão da posse do Casamansa, que se tornou de facto num rio francês. Antes de tomar posse da aldeia portuguesa, os vapores vindos da Europa descarregavam em Gorée, onde recebia os produtos do Casamansa. Doravante, estes vapores virão diretamente às pontes de Ziguinchor, esta é uma pequena colónia que parece ser destinada a capital do distrito de Casamansa; Selho conservará a sua importância militar e Carabane será o posto aduaneiro do rio. Costa Oliveira continua a invocar dados de M. Brosselard e há aqui uma observação bastante curiosa:
“A população muitas vezes mostrou a respeito do seu governador uma antipatia que se traduzia por atos de revolta. Entretanto, os portugueses manifestavam grande tolerância, haviam mesmo deixado subsistir costumes e usos pouco admissíveis sob a proteção da bandeiro de uma nação civilizada; também um dos meus primeiros atos foi suprimi-los.”

Voltemos agora ao discurso direito do Costa Oliveira, ele também se deu ao trabalho de se pronunciar sobre o Casamansa:
“A barra do Casamansa é desabrigada, cheia de escolhos, de difícil acesso a todas as embarcações, particularmente às da vela. É por isso que toda a navegação de cabotagem é feita pelos rios Cajinolle e Elinkin, e principalmente por este, mais profundo e largo do que aquele. É também por este rio, o Elinkin, que facilmente se consegue introduzir contrabando na Guiné portuguesa, como vamos explicar. Nenhum português, desconhecido daquelas tribos, se atreve a desembarcar em Bolor, e com maior razão as autoridades aduaneiras, militares ou civis. Sendo assim, como é, qualquer negociante, de Cacheu, por exemplo, pode estabelecer os seus depósitos ou armazéns, na certeza de que o fisco não o irá perturbar com as suas exigências legais! Estabelecidos os depósitos longe da ação fiscal, o resto é simples e pertence às canoas que de noite, ocultas pelas sombras dos mangais, vão rio acima descarregar os artigos que pretendem furtar aos direitos, nas pequenas sucursais espalhadas pelas margens dos rios e esteiros.”

Ocupada Ziguinchor, reunidas as comissões, e depois de longos debates, assina-se finalmente o processo verbal, Costa Oliveira regressa a Bolama e fica à espera de um paquete que o conduza a Lisboa. É neste compasso de espera que ele vai omitir opiniões e apresenta propostas, é talvez um dos pontos altos em que se revela o seu poder descritivo:
“Naquele país sem outeiros nem vales por toda a parte se navega por entre muralhas impenetráveis de viçosíssimos mangais que tapam as margens, sotopostas às verdes palmeiras de dez castas diferentes, aos corpulentos poilões, aos elevados cedros e mil outras espécies de árvores tão antigas como o solo aonde prendem. A perspetiva exterior da Guiné é, pois, encantadora; mas assim como entre essas ramagens floridas se aninham venenosas serpentes, também à sombra desse arvoredo parado se aspiram miasmas que ameaçam morte; tudo está em resistir ao primeiro combate: a vitória fica segura para sempre.
É nesses plainos intermináveis e paludosos da Guiné portuguesa que correm os rios de S. Domingos, de Geba, do Corubal, o Grande de Bolola, o Tomboli (certamente o rio Tombali), o Cubac (?), o Combilham (Cumbijã) e o Cassini (Cacine).

Na embocadura do rio S. Domingos, em Chão de Felupes e no extremo de uma extensa praia de areia que para ali se estende desde a aldeia Jefunco, veem-se ainda hoje as ruínas do presídio de Bolor, que era formado por dois meios redutos horizontais e céspede e fachina sobre estacaria… miseravelmente tem caído em ruína pelo completo abandono em que tem estado aquele ponto, e, contudo, não merece tal desprezo: de toda a nossa Guiné é esta a posição mais saudável e para lá vão convalescer os doentes de Cacheu, por ser um solo de areia desassombrado de matas em derredor e exposto às virações frescas do mar; pela sua situação já indicada é ali que deveria estar a alfândega de Cacheu e talvez a força, como queria Gonçalo de Gamboa; embora ficasse Cacheu como está, uma feitoria fortificada, os habitantes aqui viveriam em perfeito sossego e livres dos contínuos rebates a que em Cacheu estão sujeitos, nada tendo a recear do gentio Felupe, que adora os brancos; além do muito arroz que se faz anualmente neste chão e de que se sustenta a praça de Cacheu (a qual morreria de fome se lhe faltasse o arroz de Bolor), concorre a este ponto todo o trato de cera e couros da grande região dos Felupes, e o da mata de Putama, o comércio de Ziguinchor por aqui passa forçosamente para ir a Cacheu e também é aqui a escala entre Bissau e Cacheu.”


O relato do tenente da Armada Real vai agora prosseguir com uma descrição muito rápida das lanchas que conviriam ao serviço da Guiné, seguir-se-ão ainda mais observações e, por fim, as conclusões, está praticamente no seu termo o relato admirável de alguém que foi assistir à chegada de uma porção de território, a região de Cacine, e ao fim da presença portuguesa no Casamansa.

Carta da Guiné Portuguesa, século XIX, Arquivo Histórico-Ultramarino
Carta da província da Guiné, 1912
Carta da colónia da Guiné, 1933
Antiga Sede do Banco Nacional Ultramarino em Bolama, posterior Hotel do Turismo, hoje completamente desaparecidoAtual edifício do Centro de Formação Pesqueira de Bolama. Imagem retirada do blogue Alma do Viajante, com a devida vénia.

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 7 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25144: Historiografia da presença portuguesa em África (408): Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (5) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25144: Historiografia da presença portuguesa em África (408): Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (5) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Junho de 2023:

Queridos amigos,
Demorou a descobrir este precioso texto redigido pelo tenente da Armada Real que esteve à frente da demarcação das fronteiras da Guiné portuguesa, trabalho conjunto com a comissão francesa, a quem por vezes dispara ásperos reparos, não por falta de galhardia das pessoas mas por saberem que as autoridades de Paris tudo estão a fazer para enfraquecer a posição portuguesa, bloqueando as vias comerciais para o Futa, estrangulando o comércio português no Casamansa ou no rio Nuno. O Tenente Costa Oliveira devia ser metódico, o que ajudava muito à sua capacidade de observação, o seu documento é praticamente relatório, faz uma análise rigorosa da guerra do Forreá, impedido durante alguns dias de viajar para o Casamansa aproveita para trabalhar no inventário das povoações de Bolama. Mouzinho de Albuquerque escreveu um dia que a Pátria é uma obra de soldados, mas incontestavelmente (direi eu) a Guiné é obra de marinheiros e soldados, foram os primeiros que fizeram levantamentos científicos inultrapassáveis para garantir a presença portuguesa, deram alguns dos melhores governadores, desde Pedro Inácio de Gouveia a Sarmento Rodrigues.

Um abraço do
Mário



Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (5)

Mário Beja Santos

O Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, 8ª série, números 11 e 12, 1888-1889, acolhem um documento de grande valor histórico intitulado “Viagem à Guiné Portugueza”, o seu autor é E. J. da Costa Oliveira, Oficial da Armada Real, comissário do governo para a delimitação das possessões franco-portuguesas da costa ocidental de África. Fez-se a viagem de Bolama até ao Sul, o Tenente Costa Oliveira não esconde o seu deslumbramento com tanta beleza natural e vai perseguir com as suas ricas observações que permitem ao leitor de hoje perceber o que era a vida no Sul não só da Guiné portuguesa como da Guiné francesa.

A comissão luso-francesa está de regresso a Buba, seguirá depois para Bolama e daqui para o Norte, até ao Casamansa. Depois de ter observado os resultados dramáticos do sanguinário conflito que avassalava o Forreá, o tenente da Armada Real faz a sua análise quanto às consequências das guerras entre Fulas e Biafadas e ao abandono do rio Grande, outrora pujante de feitorias e de comércio:
“Vamos explicar este nosso modo de dizer, talvez nebuloso para quem não conhece a História da Guiné.
É facto sabido que os Fulas pretos vergaram sob o peso da escravidão dos Fulas forros, seus diretos senhores, e que o território circunvizinho a Buba, povoado por Biafadas, era ardentemente cobiçado por aquelas tribos.
Um dia rompem-se as hostilidades entre Fulas e Biafadas, e estes têm de recuar e evacuar quase todo o seu território naquela região. Receosos de serem vencidos em novo conflito, conformam-se com este estado de coisas e continuaram a agricultar os terrenos, enquanto que os Fulas forros fortificam primeiramente os pontos conquistados, e depois é que se entregam à lavora e criação de gado bovino, a sua principal riqueza.
Estavam as coisas neste pé e Buba via entrar quotidianamente as caravanas, vindas do Futa, carregadas de produtos indígenas e aumentar consideravelmente os seus réditos, quando o país, sempre pronto a sacrificar-se pelos princípios humanitários, insiste na abolição da escravidão!
A propaganda invade todo o sertão habitado pelos Fulas pretos, e estes desejosos da sua liberdade, correm a Buba em grandes massas e agarram-se à bandeira! Os Fulas forros, espantados com a fuga dos seus melhores auxiliares, e vendo a proteção que o governo da praça lhes dava, declaram-lhes a guerra, causa primordial da decadência de Buba!
Vencidos, como não podia deixa de ser, faz-se a paz geral e os Fulas pretos alcançam a sua independência relativa.
Os Biafadas, antigos possuidores daqueles territórios, vendo as tribos inimigas enfraquecidas pela independência de uma delas, aproveitam tão bela ocasião e declaram a guerra, e ora vencidos ora vencedores, desde 1880 até esta data ainda não cessaram as guerras mortíferas e prejudicialíssimas ao nosso bom nome e desenvolvimento comercial.
Um outro erro importante da administração colonial foi consentir a expulsão dos Biafadas do sertão de Buba, porque ficaram ipso facto nossos inimigos, e se não nos declararam positivamente a guerra atacaram as feitorias do rio Grande, exigindo grandes tributações aos agricultores e negociantes ali estabelecidos, que não podendo satisfazê-las, por exageradas, nem tendo força para repelir os indígenas, viram-se na dura necessidade de abandonar as suas propriedades.
Este abandono, porém, foi parcial. Algumas feitorias puderam resistir a estes contratempos, e somente o diminuto valor da mancarra nos mercados da Europa e a derivação do comércio sertanejo para território francês (como não podia deixar de acontecer, visto que os Fulas forros e Futa fulas ficaram nossos inimigos, por termos imprudentemente auxiliado a independência dos Fulas pretos), determinaram ultimamente o desamparo completo das fazendas agrícolas e feitorias.”


De Buba viajam até Bolama, onde fundeiam na noite de 27 de março. Enquanto aguarda transporte para o Norte, o autor enceta uma série de pequenas explorações no interior da ilha de Bolama, visitou doze povoações, deu-se ao trabalho de as numerar e marcar. Chega, entretanto, uma visita, o Fula Mahmadi, que viera expressamente de Kadé cumprimentar o governador da parte de Mudi-Yaiá e trazia-lhe presentes. Foi Mahmadi que conseguiu que se assinasse em Buba o tratado de paz de 1886.

Viajam para o Norte até à ilha de Carabane: “É pequena e pantanosa. Ao NE, e sob areia fina e branca, edificaram os franceses, em 1836, a povoação, que pouco tem prosperado. Apenas se notam uns três edifícios construídos à europeia, o posto ou residência do administrador, as casas Blanchard, Maurel Frères & Co., e a residência do missionário. Na retaguarda do posto estende-se um vasto pântano, exalando continuamente miasmas paludosos. Os navios têm que ancorar longe da praia por causa da natureza do fundo, e, como há quase sempre grossa mareta, as cargas e descargas fazem-se com dificuldade.”

E prossegue as suas observações:
"A barra do Casamansa é mal dividida em dois canais por numerosos baixos de pedra, cita M. Brosselard que fez o reconhecimento da importância estratégica de Ziguinchor: “No percurso do rio os grandes navios não encontram senão um ancoradouro digno desse nome. É o de Ziguinchor. Ali encontram um fundo de sete metros junto à praia. Com um calado de água de dois metros pode atingir Sédhiou (em português, Selho) a 170 quilómetros da embocadura.”

Carta da Guiné Portuguesa, século XIX, Arquivo Histórico-Ultramarino
Carta da província da Guiné, 1912
Carta da colónia da Guiné, 1933

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 31 DE JANEIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25124: Historiografia da presença portuguesa em África (407): Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (4) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25124: Historiografia da presença portuguesa em África (407): Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (4) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Junho de 2023:

Queridos amigos,
Foi uma viagem de demarcação de fronteiras onde não faltaram peripécias de todo o tipo, desde ataque de formigas, a beber água com sanguessugas, carregadores velhacos com ameaças, o Tenente da Armada Real não vacila perante todo aquele resplendor vegetal, o reconhecimento das riquezas, põe várias hipóteses para intensificar a presença portuguesa neste território que passou a ter fronteiras demarcadas, só vê vantagens no estabelecimento de alianças com os potentados locais, já chegaram a Buba, não esconde o seu assombro com a paisagem fascinante, e, como veremos seguidamente, dar-nos-á uma interpretação de como a que fora tão florescente economia das feitorias do rio Grande de Buba caíra no mais completo declínio, a que se seguiu o abandono, era insuportável mercadejar no meio de tão sanguinária guerra entre Biafadas e Fulas.

Um abraço do
Mário



Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (4)

Mário Beja Santos

O Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, 8.ª série, números 11 e 12, 1888-1889, acolhem um documento de grande valor histórico intitulado “Viagem à Guiné Portugueza”, o seu autor é E. J. da Costa Oliveira, Oficial da Armada Real, comissário do governo para a delimitação das possessões franco-portuguesas da costa ocidental de África. Fez-se a viagem de Bolama até ao Sul, o Tenente Costa Oliveira não esconde o seu deslumbramento com tanta beleza natural e vai perseguir com as suas ricas observações que permitem ao leitor de hoje perceber o que era a vida no Sul não só da Guiné portuguesa como da Guiné francesa.

A missão luso-francesa está de regresso a Buba, partirão mais tarde de Bolama para o Casamansa. Viajam por itinerários separados. O grupo português saiu de Damdum e acampa na margem direita da ribeira Tucumen, logo uma observação: “No arvoredo frondosíssimo das suas margens abundam os macacos-cães que toda a noite nos incomodaram com os seus guinchos, tão semelhantes ao latir dos cães.” E logo a seguir passamos para um episódio turbulento, um tanto cómico:
“Alta noite fomos acordados pelos gritos da nossa gente. Quando abrimos os olhos ficámos surpreendidos com o que se passava no acampamento! Os carregadores seminus, as raparigas Fulas, o Maia, mal alumiados pela chama vacilante das fogueiras, pareciam dançar uma dança desesperada, infernal, acompanha de gritos e movimentos desordenados! Não pude conter o riso, e assentado num leito de viagem interroguei os mais próximos. Ninguém me respondeu! Alguns indígenas, correndo para as fogueiras, fazendo esgares, dando saltos, gritando, largando a linha, para se esfregarem e sacudirem. Foi então que pude compreender e ver o que se passava. Perto do meu leito movia-se um grosso cordão formado por milhões de formigas. No seu caminho, sempre em ziguezague, encontraram deitado um desgraçado carregador, que atacaram com violência. Tudo se resolveu com cinza quente e depois todos voltámos ao sono.”

É um exímio contador de peripécias, vejam esta:
“Quando chegámos a Saála mandámos à ribeira encher um garrafão de água e como viesse muito fresca e eu estivesse sequioso, despejei uma porção num copo de ferro esmaltado e bebi sem olhar, contra o meu costume. Imediatamente senti uma grande picada na faringe, e como que um objeto ali agarrado, tomo um pouco de licor de Kermann e gargarejo! Nada! Repito a operação e a dor não desaparece, bebo alguns goles, a mesma coisa! O chefe de Saála que assistia, espantado, a esta cena muda, pergunta-me o que tinha. Não sei, respondi-lhe eu, bebi água da ribeira e suponho que tenha agarrado à garganta um grande bicho.
O homem sorria, fez sinal para eu sossegar e esperar, e desapareceu. Passado pouco tempo, volta trazendo na mão a metade de uma cabaça com uma água acinzentada, cheia de grumos escuros, malcheirosa e repugnante, e entregando-ma, convida-me a tomar aquela poção. O estômago tocou a rebate, e eu sem refletir recusei! O chefe escandaliza-se, e chamando o seu herdeiro apresenta-lhe a cabaça, que ele leva à boca, bebendo metade aproximadamente do seu conteúdo. Então, levei a cabaça à boca e bebi o resto daquela beberragem. Mas, ó caso maravilhoso, logo ao segundo gole senti desprender-se da garganta o que quer que era, ficando-me apenas uma impressão dolorosa que durou horas. O bicho, que se havia agarrado à faringe, era uma sanguessuga, e o remédio um soluto de sabão indígena!”


Avança-se para Buba, o oficial rende-se ao esplendor da natureza:
“É formosíssimo o sertão de Buba! Quem vê a Guiné de fora, e conhece os seus mangais e os lodos das suas extensas planícies morbíficas e pestilenciais, não pode imaginar sequer as belezas que o seu interior encerra. Cursos de água cristalina correm em todas as direções e sentidos; grandes manadas de gado vacum pastam sossegadamente a era viçosa e fresca dos seus vastos prados; matizados pelas cores variegadas de mimosas boninas; campos cultivados pela mão de mulher africana que, com o filho às costas envergada sobre o peso de cestos cheios de maçaroca de milho, lá vai a caminho da povoação; florestas impenetráveis onde abundam o ébano, o mogno, o pau-sangue e tantas outras madeiras apreciadas na Europa.
E dizem ser pobre Guiné!
Pois será pobre um país onde a vegetação é tão vigorosa e rica; aonde há milhares de cabeças de gado bovino e lanígero; aonde vive o elefante em numerosos rebanhos, aonde há mel, cera e oiro nativo, aonde a árvore da borracha é vulgaríssima, e como que a completar todo este esplendor rios enorme e navegáveis por onde se podem conduzir todas as riquezas às suas capitais? Não, não pode ser! A Guiné é rica, muito rica, mas… desconhecida, e tanto basta!”


É agora na marcha para Kolibuiá que temos mais um episódio que podia ter terminado em tragédia, os carregadores tinham aceitado a contratação, mas pelo caminho começaram a fazer longas paragens e a reclamar mais dinheiro, a equipa de Costa Oliveira chegou a temer serem roubados ou assassinados, tudo terminou em bem porque apareceu inopinadamente um enviado de Mudi-Yaiá. Costa Oliveira explica a falsidade da reclamação dos carregadores que tinham ameaçado não continuar a marcha se não se pagasse mais por dia, tanto a homens como a mulheres, e tece um comentário amargo: “Ouvindo, admirados, esta proposta, no fundo um ultimato, compreendemos imediatamente a velhacaria dos negros e a razão por que haviam descansado tantas vezes. Quiseram distanciar-se, e distanciar-nos dos carregadores permanentes e soldados, que caminhavam apressados, sem se lembrarem que nós, ficando sozinhos com aqueles patifes, podíamos ser roubados e até assassinados se resistíssemos!”

É nesta situação críticas em que estavam resolvidos a vender cara a vida que apareceu o tal enviado de Mudi-Yaiá, que sabendo da presença da comissão portuguesa tão perto de Guidali, vinha de propósito cumprimentar-nos em nome do seu soberano. Resolvida esta situação de tão desagradável mal-estar, Costa Oliveira apresenta-nos Kolibuiá: “É uma povoação pequena, situada na margem esquerda da ribeira Tenheleol. Foi uma estação comercial importante, mas está hoje completamente abandonada pelos negociantes europeus, como atestas as ruínas das suas feitorias". É neste quadro de prestes a entrarem em Buba que Costa Oliveira nos deixa um texto primoroso sobre o abandono das fazendas agrícolas e feitorias do rio Grande dos portugueses. Primeiro a chegada:
“Cobertos de pó e lodo, com o fato esfarrapado pelos acerados espinhos das florestas e extenuados de fadiga entrámos em Buba, aonde éramos esperados pelos membros da comissão francesa, comandante da praça e destacamento.” Como é habitual do seu espírito de observação, apresenta-nos esta povoação histórica da presença portuguesa:
“Buba, cabeça de concelho de Bolola, magnificamente situada na margem direita do rio Grande, defendida pelo lado de terra por forte paliçada e onze peças de artilharia e duas metralhadoras – mas sujeita a qualquer insulto pelo lado do rio – com clima relativamente saudável, foi uma estação comercial florescente quando a mancarra era cultivada naquela região.”

E dá-nos um quadro primoroso, sucinto, da guerra do Forreá.

Carta da Guiné Portuguesa, século XIX, Arquivo Histórico-Ultramarino
Carta da província da Guiné, 1912
Carta da colónia da Guiné, 1933

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 24 DE JANEIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25106: Historiografia da presença portuguesa em África (406): Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (3) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P25007: Historiografia da presença portuguesa em África (401): Pedido de subsídio para uma exploração geográfica e comercial à Guiné, 1877 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Maio de 2023:

Queridos amigos,
A singularidade da iniciativa do sócio Ferreira de Almeida deixa bem claro que a colónia da Guiné era uma ilustre desconhecida, o seu pedido de subsídio inclui uma embarcação a que hoje se pode chamar navio hidrográfico, a equipa da missão incluiria gente preparada para proceder ao levantamento da carta hidrográfica da costa e da região insular adjacente, isto numa primeira fase, seguir-se-ia a carta hidrográfica de todos os cursos de água, o reconhecimento geodésico, o inventário populacional, o inventário agrícola, o conhecimento e a descrição das colónias agrícolas e a tal sugestão, que me parece originalíssima para o tempo, de promover o comércio através do mostruário de amostras e lotes dos artigos do comércio local, para comerciante e consumidor verem. Não encontro sequência favorável para este pedido de subsídio. O dito levantamento hidrográfico conhecerá a sua expressão mais séria com a missão geoidrográfica da Guiné, isto a despeito de um conjunto de levantamentos que foram efetuados por imposição da delimitação de fronteiras. Não é por acaso que iremos seguidamente falar numa narrativa assombrosa que é a viagem à Guiné portuguesa contada por um tenente da Armada Real que andou na delimitação das fronteiras com colegas franceses. O texto é um verdadeiro achado, é incompreensível como não foi reeditado, faz parte dos injustamente esquecidos.

Um abraço do
Mário



Pedido de subsídio para uma exploração geográfica e comercial à Guiné, 1877 (2)

Mário Beja Santos

Dando voltas à cabeça de papeis votados ao esquecimento e alusivos às preocupações dos sócios da Sociedade de Geografia de Lisboa, no seu período iniciático, quanto ao conhecimento da Guiné, com auxílio da respetiva bibliotecária, dou-vos conta de um documento intitulado Pareceres N.º 3 da Comissão Portuguesa de Exploração e Civilização de África, desta instituição, com data de 19 de novembro de 1877, encontra-se um pedido de autorização assinado pelo sócio Ferreira de Almeida para subsidiar uma exploração geográfica e social à Guiné Portuguesa, estou certo e seguro de que não vou desapontar ninguém quanto ao teor do documento.

A singularidade da proposta do sócio Ferreira de Almeida é o modo como apresenta e contextualiza a Guiné e as suas potencialidade, relevando igualmente o profundo desconhecimento existente sobre as gentes, a natureza do território, o modo de introduzir comércio efetivamente português, era sabido que este comércio guineense estava dominado por mercadores estrangeiros, daí o seu pedido de uma subscrição para explorações geográficas, a sugestão (diga-se de passagem bastante original) de se criar em Lisboa um depósito de géneros da Guiné que funcionasse como mostruário de comerciantes e consumidores.

E escreve:
“A respeito do pessoal para a exploração que julgamos dever fazer-se, pareceu-nos dever coordenar as disposições legislativas que em casos semelhantes têm sido aplicadas. Skyring deixou com a vida o seu nome a uma ponta Sul do Casamansa (foi exatamente aqui que se encontraram Senghor e Spínola, em 1972) por ter sido morto pelos naturais quando estudava aquela faixa da costa; factos semelhantes, as vantagens concedidas à expedição da Zambézia e as das Comissões de Obras Públicas de Angola e Moçambique, sendo como é a Guiné mais inóspita a todos os respeitos do que aquelas regiões justificam as vantagens a que se propõem para o pessoal.
A respeito do material, há apenas um artigo e seus dependentes poderá avolumar a despesa, e é este a do vapor para o serviço hidrográfico; como, porém, ele poderá ficar depois servindo na marinha de guerra para a polícia daquela região onde raramente aparece a força armada naval, pode considerar-se por este motivo de uma necessidade tão instante que até aquela despesa deve separar-se da verba destinada à exposição para se considerar com incluída no artigo que no orçamento geral do Estado tem o título de ‘Nova Construções’”
.

E Ferreira de Almeida escreve um esboço sobre o que entender de vir ser a exposição científico-comercial da Senegâmbia portuguesa:
“Como fins: levantamento da carta hidrográfica da costa e da região insular adjacente (sondagens, verificação e retificação dos roteiros); carta hidrográfica de todos os cursos de água, rios ou braços de mar – até seis pés de profundidade; reconhecimento geodésico do país; reconhecimento geral da população (espécies, usos e costumes); reconhecimento agrícola (natureza e produção dos géneros; consumo local e exportação; processos agrícolas); descrição espacial e planta das localidades próprias para o estabelecimento de colónias agrícolas; comércio em geral, seu desenvolvimento, natureza e condições; promover o comércio com a metrópole coma aquisição e remessa de amostras e lotes de artigos de comércio local, permutados com os nacionais e acompanhando-os de relatórios circunstanciais de todas as condições de renumeração.

Como pessoal: três oficiais de marinha, um maquinista de terceira classe, um facultativo, um enfermeiro, cabos-marinheiros, praças de marinhagem, pretos (contratados em Cabo Verde), um desenhador e um escrevente.
Vantagens a conceder de quem vai na missão exploratória: promoção de acordo com a lei; tempo de serviço em conformidade com a legislação de 1844; que aos oficiais seja abonado desde o dia de partida o mesmo vencimento que percebem os encarregados de serviço de obras-públicas, de idêntica graduação em Angola e Moçambique.
Quanto a matéria especial: barcos a vapor, escaler, barco de borracha, uma coleção de instrumentos hidrográficos, máquina fotográfica, câmara escura, barraca de campanha, camas de campanha, metralhadora, peça de desembarque (de 0,04), carabinas para bala explosiva, carabinas Linder Barnet, revolveres, machados, etc.”


Desconhece-se o que foi decidido sobre esta missão, até agora não foi dado encontrar documentação probatória da sua realização. Mas se era de missão científica que Ferreira de Almeida tão ardorosamente propunha ainda na década de 1870, essa oportunidade chegou com a primeira missão da delimitação das possessões franco-portuguesas na costa ocidental de África, há um documento publicado no Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, 8.ª série, números 11 e 12, 1888-1889, um documento que considero injustamente esquecido e que se intitula “Viagem à Guiné Portuguesa” por E. J. da Costa Oliveira, oficial da Armada Real, comissário do governo para a delimitação das possessões, em consonância com a convenção luso-francesa de 12 de maio de 1886. Este tenente da Armada Real revelou-se um ás na observação e tece considerações políticas, antropológicas, etnográficas de altíssimo valor. 

Largo Honório Pereira Barreto, freguesia do Beato
Gravura da época sobre povos da Senegâmbia
Indumentárias do povo da Gâmbia, 1823
Zulos, Kaffirs, Bechuana, Senegâmbia, gravura antiga
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Nota do editor

Último poste da série de 20 DE DEZEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24981: Historiografia da presença portuguesa em África (400): Pedido de subsídio para uma exploração geográfica e comercial à Guiné, 1877 (1) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 11 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24746: Historiografia da presença portuguesa em África (389): Grandes surpresas na publicação "As Colónias Portuguesas", Revista Ilustrada (4) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Março de 2023:

Queridos amigos,
O correspondente na Guiné da Revista Ilustrada "As Colónias Portuguesas" lá vai dizendo as suas verdades com punhos, fala repetidamente num quadro de decadência, a perda do Casamansa, observa ele, fez disparar o contrabando e reduzir à ninharia o comércio português; dá-nos observações certeiras das permanentes rebeliões, tanto nos Bijagós como no continente, só se vive com alguma segurança dentro das fortificações, a política fiscal, observa também ele, é ruinosa, as construções feitas em Bolama a partir de 1879 são totalmente desajustadas à realidade local, o dinheiro enviado pelo governo de Lisboa só serve para pagar o funcionalismo, não há estradas, não há quaisquer infraestruturas, este correspondente matraqueia permanentemente que era preciso mudar de política. Recorda-se ao leitor que esta preciosa publicação vai fenecer em 1891, a crise financeira iniciada no ano antes era devastadora, só será atenuada nos finais de 1892, talvez tenha sido a crise que levou ao desaparecimento desta publicação de quem se pode dizer que traz uma outra luz para esclarecer a nossa presença frágil neste ponto da costa ocidental africana.

Um abraço do
Mário



Grandes surpresas na publicação As Colónias Portuguesas, Revista Ilustrada (4)

Mário Beja Santos

A publicação As Colónias Portuguesas, Revista Ilustrada, publicou-se entre 1883 e 1891, era inequivocamente dirigida à classe política, não descurava a atração de investimentos, procurava dar informação aos funcionários da administração colonial e a potenciais estudiosos do Terceiro Império. Comecei, na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa, por percorrer o volume referente a 1883 e a 1884. Não posso esconder o entusiasmo que sinto ao folhear estas páginas, elas comportam informações que, por um lado, corroboram o que a historiografia vai lavrando, e, por outro lado, temos inesperadamente acesso a testemunhos que se afiguram genuínos, um dos redatores efetivos, António A. F. Ribeiro terá montado uma rede de contactos e o que vai aparecer sob a forma de correio parece-me de insofismável valor.

Vamos hoje falar do que se escreve sobre a Guiné em 1889, em exceção ainda é um texto de 1888 a que concedo importância, o leitor verá porquê; devo uma explicação a quem vai acompanhando esta incursão por uma revista digna da melhor atenção dos investigadores, não encontrei uma só imagem alusiva à Guiné, e como considero que a qualidade gráfica desta publicação é altíssima, decidi-me por uma seleção aleatória de imagens que têm a ver com Angola e Moçambique, compreensivelmente as duas colónias mais referenciadas.

O que se escreve na Revista Ilustrada são crónicas, há um correspondente, não se sabe se nesta altura o correspondente ainda é Augusto Barros, pois não há nenhuma assinatura. Temos agora um texto datado de setembro de 1888, em Bolama, diz o seguinte:
“É bem triste missão a de um correspondente ter sempre que dizer mal. É necessário insistir em pedir providências para que esta colónia ou se levante do abatimento em que está ou se lhe dê outra classificação própria a libertá-la dos grandes encargos que comprometem o seu orçamento e estiolam o seu desenvolvimento.
A falta de governo e de um plano de administração colonial tem prejudicado todas as províncias, porque os governadores, cada qual por seu lado a arquitetar trabalhos, não fazem coisa nenhuma, ou dormem ou alimentam a intriga e arranjam galões, desfazendo estes o que era da iniciativa daqueles, e tornando-se, portanto, prejudicialíssimos ao andamento regular do progresso das colónias.
Esta colónia, de baldão em baldão, tem hoje por seu chefe superior o senhor contra-almirante Teixeira da Silva. É um oficial de Marinha honradíssimo, mas está muito distante de poder ser bom governador, porque não tem saúde para opor ao clima malsão da terra e segue para Cabo Verde em gozo de licença da junta, deixando em seu lugar o seu secretário, que não pode resolver questões de magnitude.
A Guiné de dia para dia vai em decadência progressiva; o seu negócio diminui e decrescerá consideravelmente se a metrópole não cuidar de atenuar com vigo e força este mal-estar permanente de uma colónia, que a continuar assim ficará irremediavelmente perdida.
Sabemos todos que o concelho de Cacheu fica paredes meias com o Casamansa. Pois quando ainda tínhamos o presídio de Ziguinchor o contrabando que nos entrava pelos esteiros para o rio de S. Domingos era enorme. Agora, que o rio está em poder dos franceses, poderemos calcular a invasão do contrabando na nossa província, porque não há fiscalização no rio de S. Domingos, os esteiros que o ligam ao Casamansa estão livres e desertos de vigilância, e por consequência, quem fica prejudicado é o comércio português.

E o governo que na convenção de limites franco-luso, devia prever este estado de coisas, não lhe prestou atenção, e deixa a província mais abandonada do que no tempo que ela era simplesmente um distrito. Porque o facto de pagar mensalmente à colónia o subsídio de 4 contos e 500 mil reis, absorvidos pelo funcionalismo não é coadjuvá-la mas comprometê-la, e a província devia antes regular o seu pessoal pelos próprios recursos. A metrópole poderia satisfazer mensalmente até 4 contos ou mais, mas para obras de importante necessidade, como ponte cais, aberturas de estradas, construção de faróis e balizagem dos rios, despesa com exploradores no arquipélago dos Bijagós, estudos minuciosos das riquezas agrícolas, florestais e mineralógicas da colónia. Tem o governo feito alguma coisa neste sentido? Nada. A província conserva-se aberta ao contrabando dos negociantes estrangeiros que abandonaram as nossas povoações e recolheram a Carabane, de onde lançam sobre o nosso território uma rede de caixeiros viajantes a fazer as permutações gentílicas, de forma que apanham todas as promoções do nosso sertão. Se o governo se resolver a tomar medidas enérgicas tendendo-se ao fim de regenerar a província, pois ela ainda pode ser salva. Com portarias e ofícios de perguntas e respostas não se administram colónias. O Ministério da Marinha precisa de um movimento novo, sobretudo no que diz respeito a questões de fazenda, que não podem continuar à mercê dos que nem merecem o título de utopistas ou sonhadores, mas de tolos e maus.
As edificações que aqui se fizeram para quartéis, igreja e hospital, são cópias, mais ou menos perfeitas, de quem desconhecia completamente a vida na Guiné e lançou no papel o que nunca se realizou na prática.”


Quem assim escreve, volta a lamentar-se em janeiro de 1889: “É muito pouco o que hoje podemos dizer a respeito da situação desta província, mas, em todo o caso, não deixaremos de chamar a esclarecida atenção de Sua Excelência o Ministro para as palavras que acabámos de ler num jornal francês: ‘Não obstante os imensos recursos de toda a natureza que possui esta província portuguesa, o sistema de imposto até ali introduzido é, neste momento, a sua completa ruína. É co imenso pesar que vemos que os portugueses não procuram levantar esta província, tirando-a da desgraçada situação em que ela está, pois que acabaram recentemente de estabelecer mais um direito de 12 francos por cada kg de tabaco estrangeiro, o que em lugar de lhes aproveitar, é, ao contrário, um meio de animar o contrabando e de lhe acabar com este ramo de negócio’”.

Os meses passam e o nosso correspondente mantém as suas tiradas de fel e amargura:
“Desta província, infelizmente, não podemos ter quase nunca notícias favoráveis. A sua decadência é visível, e cada vez mais urge acudi-la com providências prontas, que melhorem ao mesmo tempo a sua situação financeira e a sua situação económica.
Não nos parece que devamos esperar que todo o comércio se transfira para as colónias vizinhas, que as relações com os povos indígenas do interior se tornem cada vez menos frequentes, que fiquemos reduzidos a defender-nos apenas em alguns pontos fortificados das correrias e dos ataques do gentio, para então cuidarmos de salvar o que já não tiver remédio.
Por agora estamos reduzidos a receber de vez em quando notícias de uma dessas guerras, em que gastamos dinheiro, despendemos forças e poucas vezes aumentamos o nosso prestígio. E é ainda às vezes para proteger os estrangeiros que temos de nos empenhar nessas lutas. Ainda o último paquete nos trouxe notícia do ataque feito pelos indígenas de Canhabaque ao navio francês Père Guignard. Tivemos de castigar o gentio, e lá foi a canhoneira Guadiana bombardear várias povoações e tabancas da ilha. Também foram bombardeadas duas povoações de balantas na margem do rio Geba e percorrido em diferentes direções o rio de Cacheu. Enfim, fizeram-se grandes proezas que decerto não contestamos, mas a isto se reduz infelizmente a nossa ação atual na Guiné. Parece-me pouco, principalmente se olharmos para o que nos custa esta província.”


Prepare-se o leitor, esta jeremiada vai ter continuidade, o correspondente na Guiné da Revista Ilustrada não dá tréguas à verdade dos factos.

Este foi o Ministro dos Negócios Estrangeiros que aguentou o ultimato britânico, em 1890
Não deixa de surpreender como a Igreja da Nossa Senhora da Conceição em Lourenço Marques tem este aspeto tão revivalista, ao tempo dizia-se eclético, o que terá levado o arquiteto a implantar o templo religioso marcadamente gótico em África?
Escola de Artes e Ofícios em Moçambique
(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 4 DE OUTUBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24724: Historiografia da presença portuguesa em África (388): Grandes surpresas na publicação "As Colónias Portuguesas", revista ilustrada (3) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 4 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24724: Historiografia da presença portuguesa em África (388): Grandes surpresas na publicação "As Colónias Portuguesas", Revista Ilustrada (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Fevereiro de 2023:

Queridos amigos,
Tenho para mim que esta revista ilustrada das Colónias Portuguesas é uma publicação que merece a maior atenção dos investigadores e historiadores. Repare-se no mapa hoje publicado, e com data de 31 de dezembro de 1887, onde, estou em crer, se procurar reproduzir fidedignamente as fazendas agrícolas que marcavam claramente o que era a presença portuguesa fundamentalmente no sul da colónia, comércio esse, ponto curioso, que será severamente abalado no mesmo ano em que a Guiné será desafetada de Cabo Verde, 1886. Não será por acaso que os números desta publicação referentes a 1887 e parte de 1888 estejam escritos num tom tão lamentoso, a Guiné é dada como perdida, o que deve chamar a nossa atenção para a grande importância comercial que tinha Ziguinchor e o tráfego comercial no Casamansa. A revista mostra imagens espantosas do desenvolvimento em Angola, usos e costumes na Índia e Timor, enfim, é uma publicação que só pelas suas ilustrações de altíssima qualidade merecia que um editor as publicasse, mostram a saga portuguesa quando o sonho do império africano se tornara numa frutuosa aventura comercial.

Um abraço do
Mário



Grandes surpresas na publicação "As Colónias Portuguesas", Revista Ilustrada (3)

Mário Beja Santos

A publicação "As Colónias Portuguesas", Revista Ilustrada, publicou-se entre 1883 e 1891, era inequivocamente dirigida à classe política, não descurava a atração de investimentos, procurava dar informação aos funcionários da administração colonial e a potenciais estudiosos do Terceiro Império. Comecei, na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa, por percorrer o volume referente a 1883 e a 1884. Não posso esconder o entusiasmo que sinto ao folhear estas páginas, elas comportam informações que, por um lado, corroboram o que a historiografia vai lavrando, e, por outro lado, temos inesperadamente acesso a testemunhos que se afiguram genuínos, um dos redatores efetivos, António A. F. Ribeiro terá montado uma rede de contactos e o que vai aparecer sob a forma de correio parece-me de insofismável valor.

Estamos agora em janeiro de 1887, sou forçado a folhear delicadamente o volume, está muito combalido, o papel esgarçou, despegou-se da lombada, há cortes e remendos, impõe-se o maior cuidado, é volume histórico. Estão ausentes quaisquer imagens da Guiné, o leitor que se prepare para comentários do editor e de um leitor que se assina A. B. (presumivelmente Augusto Barros, que se apresentou em 1883), predomina um tom lamentoso, derrotista, lendo estes escritos parece que a Guiné portuguesa bateu no fundo.

Começa-se por um comentário do editor logo no número de janeiro:
“Nesta província onde se presenceia continuada decadência, tudo são empregos para uns e para outros, com ordenados mesquinhos e pobres; tudo feito sem nenhum critério, sem nenhum estudo que proceda à criação desses mil empregosinhos, mais funestos que úteis à administração pública.
As forças públicas, apesar dos mais honrados esforços, tende à sua frente um oficial dedicado e de subido merecimento, continuam no mais grave abandono, pois que em vez de soldados se lhes apresentam essa coorte de malfeitores, que a metrópole, com todos os seus recursos, recusa e não quer nas suas fileiras.”


Segue-se um longo silêncio, estamos agora no número do mês de setembro, o comentário é quase tétrico, a narrativa apocalítica:
“A Guiné portuguesa está perdida, e, contudo, é uma das mais belas das nossas províncias ultramarinas. Cortada por dois grandes rios, o Rio Grande de Bolola e o Geba, formam na sua foz um grandioso estuário, orlado de todos os lados da mais surpreendente vegetação, têm as suas nascentes nos célebres territórios de Futa-Djalon, onde os grande mananciais auríferos, a fertilidade do sono, o espíritos agrícola e industrial dos seus habitantes, causa inveja às melhores colónias do mundo.
Em 1886, quando pela primeira vez tivemos ocasião de conhecer esta colónia, estava ela no seu esplendor comercial. A agricultura florescia, trabalhava-se, havia vida e ânimo para novos empreendimentos e viam-se as águas num e noutro rio cobertas de navios de alto bordo, franceses, suecos, ingleses, russos, espanhóis, italianos, etc., que ali iam tomar importantes carregamentos de diversa produção do país.
O ouro e o marfim encontravam-se igualmente no comércio. Hoje, na nossa Guiné, tudo é triste, medonho, pobre, desgraçado. Assim o quiseram os homens que legislam sem o conhecimento das colónias.
A produção atualmente nem a um terço atinge, e as propriedades estão completamente abandonadas. Um silêncio de morte reina hoje, onde tanta vida, tanto trabalho e tanta atividade houve ainda há pouco tempo.

Santa Cruz de Buba, situada na margem direita do Rio Grande, que tanto florescia como centro do melhor negócio com todos os povos circunvizinhos, lá está na mesma tristíssima situação: nenhum comércio, tudo abandonado! O comércio da amêndoa de palma, que fornecia a permutação com os Bijagós, enfraqueceu igualmente e restaria a borracha, que na província aumentou em proporção notável nos últimos tempos, se não fosse também perdendo o seu valor, porque os gentios lhe juntam matérias estranhas, com ainda derrubam as árvores para lhe aproveitar todo o suco leitoso, porque não conhecem os simplicíssimos processos para tal fim empregados.
Em Geba, empório do comércio com as tribos mais trabalhadoras da costa leste de África, em cera, couros, ouro, marfim, etc., está igualmente aniquilado; tais foram as funestas negociações de Paris para a delimitação das nossas fronteiras nestas colónias, que melhor fora vender de vez.
É em 1883 onde se acentua mais violentamente este desgraçado estado de coisas.
A grande baixa dos produtos coloniais, o enfraquecimento do solo, as guerras constantes entre os naturais, levaram igualmente um enorme desastre àquela colónia; mas se isto era motivo para tomar em atenção os meios que conviria adotar para contrabalançar tais prejuízos, lançaram impostos tão excessivos na propriedade rústica, que ocasionou a sua fatal ruína.”


Permito-me agora dois comentários. O primeiro atende à referência que o autor faz a dois rios, o de Buba e o Geba, o que significa que em 1886 não havia comércio e navegação no Corubal, este rio sim com nascente e foz, tal como o Geba. O autor lamenta a convenção luso-francesa mas não faz nenhuma referência à quantidade de território recebido para o interior, exatamente em direção a Futa-Djalon, e aonde a nossa presença nem chegava a ser meramente simbólica.

O segundo refere-se a um mapa que vos mostro com muito orgulho e que tem a ver com o abandono completo das fazendas agrícolas, está datado de 31 de dezembro de 1887, as duas folhas estão muito maltratadas, estou convencido de que se trata de um mapa jamais referenciado pela historiografia da Guiné, corresponde ao desaparecimento dos entrepostos comerciais fundamentalmente no Tombali e no Quínara, produto acima de tudo das guerras do Forreá.

Estamos agora em 1888, mantém-se o tom lamentoso, é momento de dar a palavra a A. S., é uma jeremiada pegada:
“Choremos a perda do nosso Casamansa, mas ponhamos também luto carregado todos os anos no aniversário da assinatura do tratado dos limites franco-lusitano, porque se é verdade que perdemos, para sempre, aquele riquíssimo empório de comércio, é dever nosso também memorar os que como Honório Barreto, e outros, souberam honrar o nome português.” E escreve mais adiante: “Em 1835, o nome de francês ainda era ali completamente desconhecido, e no Rio só se conhecia o nome português, ainda como no Cacine e no Nalu, ainda há poucos anos. Mas no que ninguém pensou, nem poderia pensar, é que o sertão correspondente à nossa colónia pudesse por um instante ter contestação, por limitar com o de régulos Futa-Fulas. A questão foi o futuro que os franceses salvaguardaram, e que nós, implicitamente, desprezamos.”

E assim termina o libelo acusatório:
“O primeiro governador, em lugar de desenvolver energia e atividade de castigar rebeldes, ocupar o fortificar os lugares que ocupava, concentrava os seus cuidados em organizar repartições, montar secretarias, fazer regulamentos, nomear comissões, que tudo leva demoras, escrever ofícios e relatórios sobre o estado em que encontrara a colónia!
Dez anos após a autonomia, cometem-se os mesmos erros iniciais. A Guiné tem descido, e continuará a descer, se não se reformar a sua administração, até que o governo se há de ver na dura e triste necessidade de a ligar novamente a Cabo Verde, senão a vê-la perdida para sempre. Acudam à Guiné.”

Assina A. S., repito que é suposto ser Augusto Barros, já colaborador em 1883.

Creio tratar-se de um mapa credor da atenção dos historiadores, mostra as fazendas agrícolas então existentes, nomeadamente no sul e que foram abandonadas, na sua quase totalidade, até 1886

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 27 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24705: Historiografia da presença portuguesa em África (387): Grandes surpresas na publicação "As Colónias Portuguesas", revista ilustrada (2) (Mário Beja Santos)