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terça-feira, 16 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25075: (In)citações (263): Falemos dos Combatentes Portugueses e da forma como sempre foram tratados (Carlos Pinheiro)


1. Mensagem do nosso camarada Carlos Pinheiro (ex-1.º Cabo TRMS Op MSG, Centro de Mensagens do STM/QG/CTIG, 1968/70), com data de 13 de Janeiro de 2024, trazendo até nós este seu artigo onde fala dos Combatentes de Portugal e da forma como sempre foram tratados pelo poder político:


Falemos dos Combatentes Portugueses e da forma como sempre foram tratados

Sem pretender fazer um tratado sobre os Combatentes, teremos que começar pelo CEP Corpo Expedicionário Português que mobilizou, mal e apressadamente, cerca de 100.000 soldados.
Portugal enviou dezenas de milhar de militares para Angola e principalmente para Moçambique que a Alemanha queria conquistar.

É certo que Portugal, como aliado da Inglaterra tinha apresado dezenas de navios alemães nos nossos portos e essa terá sido uma das razões para que a Alemanha atacasse Moçambique de forma feroz. Morreram na guerra em Moçambique dezenas de milhar de militares portugueses, a maior parte dor doença na medida em que não iam preparados para aqueles climas e os serviços de saúde eram exíguos e quanto a armamento nem é bom falarmos.

Entretanto, em 1917 foram também para França outros milhares de Soldados portugueses, também sem condições, sem preparação e sem armamento conveniente e foram mesmo carne para os canhões dos alemães enquanto viviam, ou sobreviviam nas trincheiras.

Porque a miséria era muita em todos os aspectos, em 1921 foi criada a Liga dos Combatentes chamada da 1.ª Grande Guerra, a fim de auxiliar os sobreviventes, especialmente os feridos e doentes, as viúvas e os órfãos dada a miséria que grassava no país.

Como a 1.ª Grande Guerra nunca ficou bem resolvida, em 1939 rebentou a 2.ª que durou até 1945, mas nessa não tomámos parte, apesar do país ter sofrido fome e miséria a rodos enquanto outros se encheram de dinheiro à custa do trabalho escravo na pesquisa do dito volfrâmio que era vendido a peso de ouro aos dois beligerantes.

Depois, em 1961 rebentaram as guerras de África que duraram até 1974, na Guiné, em Angola e em Moçambique já depois da Índia se ter tornado independente da Inglaterra em 1947 e ter começado a invadir os enclaves de Dradá e Nagar Aveli em 1954 no chamado Estado da Índia Portuguesa e em 18 de Dezembro de 1961 ter invadido por terra, mar e ar os enclaves de Goa, Damão e Diu e tornados presos todos os militares portugueses sobreviventes, porque ainda houve alguns mortos, apesar das nossas forças em nada se pudessem comparar com as Forças Indianas.

As Nossas tropas foram presas e seguiram para campos de concentração depois do Governador Vassalo e Silva não ter respeitado a Ordem de Lisboa para que resistíssemos até ao último homem.

O regresso a Portugal desses militares aconteceria em Maio de 1962, com uma ponte aérea de Goa para Carachi, no Paquistão. Daí, os militares foram transportados em navios até Lisboa.
À chegada, foram chamados de traidores. Oito oficiais, incluindo o governador-geral, foram demitidos como era a política da época, sem mais comentários.

Isto é um pequeno resumo, muito resumido, do que as nossas forças armadas ali passaram até serem repatriadas como acima se refere.
Mas nessa altura já estavam em marcha as três Guerras de África, Guiné, Angola e Moçambique, mas também tínhamos tropas em Cabo Verde, S. Tomé e Príncipe e até em Macau e Timor, com as dificuldades inimagináveis, em territórios com climas tórridos e escaldantes, sem estradas, sem pontes, sem pistas de aviação, sem quartéis, sem nada.

Foram os nossos soldados, que para além de combaterem o inimigo, também foram construindo algumas estradas, inventando algumas pontes e algumas pistas de aviação, e construindo alguns barracões para servirem de quartéis, outros aproveitando antigos celeiros que também passaram a servir de quartéis e normalmente viviam cercados de arame farpado, muitas vezes cheios de minas e armadilhas, para que se evitassem incursões indesejáveis.
Muitos viveram em abrigos subterrâneos cobertos por troncos imensos de árvores, tempos infinitos debaixo do chão como foi o caso da CCAÇ 1790 que viveu nessas condições em Madina do Boé até que um dia houve ordem para abandonarem o local e depois deu-se a tragédia da jangada que se virou e onde morreram largas dezenas de soldados.

O material de transportes, pelo menos nos primeiros anos, eram as velhas GMC e os Jipões da 2.ª Grande Guerra. Era a guerra.

A Liga dos Combatentes criada, foi organizada em 1921 e tem vários serviços de apoio aos Combatentes mas vive com orçamentos insignificantes mas mesmo assim mantém dois Lares para Combatentes idosos, um em Estremoz e outro no Porto, certamente com ajudas locais e agora, recentemente, abriu-se-lhe uma oportunidade de criar uma nova unidade no centro do País, mais concretamente no Entroncamento, fruto da oferta da Câmara Municipal do Entroncamento dum terreno para a construção de um Centro de Dia, de uma Creche, de um Lar para Idosos e de uma Unidade de Cuidados Continuados.

Como se pode imaginar, uma obra de vulto que os Combatentes bem merecem e bem precisam.

Claro que a Liga não tem meios para tão grande como útil obra, e ter-se-á candidatado a Fundos da UE, parece que ao PARES, mas exigiram-lhe um projecto da obra, o que é natural. Porém, esse projecto custará cerca de 150.000 euros e parece não haver dinheiro para o projecto até porque não há garantia que o financiamento fosse garantido.
Aliás a Liga, na sua Revista de Dezembro de 2022, no Editorial do Presidente General Chito Rodrigues, denuncia claramente esta situação que põe em risco a construção de uma unidade polivalente para os Combatentes na sua fase final da vida terrena.
Mas não se conhecem respostas ou comentários do poder instituído, o que é lamentável, para quem deu o melhor da sua juventude ao serviço de Portugal.

É assim que os Combatentes são tratados. Aliás já estão habituados a serem bem tratados com a esmola de 70 ou 100 Euros anuais que normalmente recebem em Outubro, sujeita a impostos.
E está tudo bem e ninguém diz nada.
Não temos dinheiro para ajudar os nossos que precisam, mas mesmo assim vamos ajudando outros lá longe, que também precisam, é certo, mas para os nossos não há nada.

É triste, mas é o que temos.

Carlos Pinheiro

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Nota do editor

Último poste da série de 14 DE JANEIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25069: (In)citações (262): "A Rainha" (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

terça-feira, 24 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24790: Efemérides (408): Já lá vão 55 anos! (Carlos Pinheiro, ex-1.º Cabo TRMS, Op MSG, STM/QG/CTIG)

1. Mensagem do nosso camarada Carlos Pinheiro (ex-1.º Cabo TRMS Op MSG, Centro de Mensagens do STM/QG/CTIG, 1968/70), com data de 23 de Outubro de 2023:

Já lá vão 55 anos!

Como recordar é viver, há dias que nunca esqueceremos, e o dia 23 de Outubro de 1968 é um desses dias.
Era meio-dia em ponto quando o UÍGE silvou várias vezes a querer dizer que estava pronto para mais uma viagem.
O pessoal já tinha embarcado ao som de marchas militares. Os cumprimentos oficiais, da praxe, já tinham sido feitos. As escadas já tinham sido retiradas. O cordame também já tinha sido recolhido. E os dois rebocadores que o haviam de levar até ao meio do Tejo já estavam a postos.
No cais a multidão ainda era imensa. Os lenços acenavam das varandas da gare a corresponder aos lenços que das amuradas do barco também acenavam. Eram as despedidas.

Navio Uíge - Com a devida vénia a http://navios.no.sapo.pt/

A banda militar estava a acabar os seus acordes e o UÍGE lá se encaminhou para o melhor local do Tejo para iniciar mais uma viagem de 5 dias até às terras da Guiné. Depois foi o passar sobre a Ponte Salazar a caminho do Oceano e tudo isso pareceu muito rápido. Depois foram cinco dias de mar e céu, com mais ou menos acompanhamento dos chamados peixes voadores, a passagem relativamente perto das Canárias e a chegada ao largo de Bissau a 28 de Outubro.
A Ponte Salazar em 1966 - Com a devida vénia a http://www.skyscrapercity.com/

Foram só cinco dias, mas dias inesquecíveis. E como a maioria viajou nos porões, nessas grandes caves fechadas de onde só se via a luz do dia pela buraco por onde entrávamos, nem vale a pena dizer nada sobre essas “maravilhosas” acomodações.

Foi um bom princípio, sem dúvida, para o que nos estava guardado. Depois, bem depois, foram vinte e cinco meses e dez dias, passados todos naquela terra quente que, ao fim deste tempo todo, nunca mais consegue encontrar a paz a que tem direito e de que tanto precisa.

Carlos Pinheiro
23.10.2012

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Nota do editor

Último poste da série de 6 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24624: Efemérides (407): Rescaldo da homenagem aos Antigos Combatentes da Guerra do Ultramar naturais da União das Freguesias de Felgueiras e Feirão, Concelho de Resende, levada a efeito no passado dia 2 de Setembro de 2023 (Fátima Soledade / Fátima Silva)

domingo, 1 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P23936: Mi querido blog, por qué no te callas?! (9): O nosso blogue à lupa dos lentes de Coimbra... Pequeno resumo da tese de doutoramento de Verónica Ferreira que nos caracteriza assim, em entrevista à Lusa: (i) uma espécie de comunidade de antigos combatentes à procura de um sentido para a participação na guerra colonial; (ii) com um lado nostálgico de partilha de memórias, mas também de revolta pelo sacrifício inútil e não reconhecido; (iii) com um postura defensiva e uma visão algo lusotropicalista do conflito; e (iv) onde há muitos "pequenos silêncios" e alguns tabus


Uma das imagens ícones (e mais plagiadas) do nosso blogue: o 2º Gr Comb da CCAÇ 12, 1969/71, no subsetor do Xitole do setor L1, Bambadinca, a atravessar uma lala.

Foto: © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados.

[Edição e legendagem : Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Antigos combatentes criam sentido de comunidade 
em blogues e Facebook, revela estudo

29-12-2022 11:22 | Porto Canal  / Agências (com  a devia vénia...)

Uma investigadora da Universidade de Coimbra analisou a participação em blogues e em grupos de Facebook de antigos combatentes na Guerra Colonial, espaços onde estes homens criam um sentido de comunidade, mesmo que com “silêncios” sobre aquele período.

O tema foi objeto de estudo da tese de doutoramento de Verónica Ferreira, investigadora do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, no âmbito do projeto de investigação CROME, que tem como objetivo fazer uma história da memória das guerras coloniais e de libertação combatidas entre o Estado português e os movimentos independentistas africanos.

O doutoramento centrou-se nas narrativas dos antigos combatentes em blogues (com especial foco para o maior blogue de veteranos, “Luís Graça & Camaradas da Guiné”) e em grupos da rede social Facebook.

Para Verónica Ferreira, a presença dos antigos combatentes em meios digitais espelha a necessidade dos próprios de “formarem uma espécie de comunidade”, de falarem das suas experiências passadas e de lhes darem um sentido.

Apesar de no Facebook e nos blogues a construção de narrativas ser diferente (nos blogues, há uma maior diversidade de relatos, enquanto o Facebook aparece como uma espécie de fórum), há “linhas narrativas transversais”, disse à agência Lusa a investigadora.

Verónica Ferreira nota que, para lá daquilo que é partilhado, das histórias ou experiências, é importante perceber “quais os silêncios que existem”.

“É preciso perceber a história da qual não se fala. Aquilo que se fala é sobretudo de um sentimento de revolta, por não haver reconhecimento do Estado do sacrifício dos combatentes. O silêncio surge em relação à violência perpetrada”, constatou, dando ainda conta de outros “pequenos silêncios”, como a homossexualidade, que não é falada, ao contrário de temas difíceis que acabam por ser abordados como a deserção ou filhos que foram deixados lá.

Segundo a investigadora, a violência cometida na guerra é evitada nos relatos que são partilhados e, no caso da relação com mulheres durante o período em que foram mobilizados, o assunto é “abordado de forma coloquial, em linguagem de caserna, nunca se analisando a violência por de trás dessas relações”.

Para Verónica Ferreira, “há uma postura defensiva” nos antigos combatentes, mesmo que não exista uma “narrativa homogénea”.

“Existem muitos combatentes, com contextos diferentes, com posições ideológicas diferentes, mas há uma linguagem defensiva, mesmo em relação àqueles que se posicionam de forma crítica, porque há sempre uma tentativa de justificar a participação” na Guerra Colonial, vincou.

Para a investigadora, que para além de análise dos blogues e grupos de Facebook também entrevistou colaboradores do blogue “Luís Graça”, há uma “perspetiva de legitimação da guerra”.

“Foram pessoas que viveram a guerra e têm que encontrar algum sentido para aquilo que viveram. Há uma tentativa de encontrar uma linha coerente para contar uma história de vida, que os satisfaça e que faça sentido”, notou.

Para além dessa postura defensiva, há também um lado nostálgico de contar as suas vivências, de reencontrar camaradas e de abordar as memórias de um momento em que “foram protagonistas da História”.

Se o diálogo entre antigos combatentes é sobretudo cordial, surgem, mesmo assim algumas tensões, que acabam por resvalar mais no Facebook, onde “é um pouco mais visível uma secção mais conservadora dos combatentes”.

Para Verónica Ferreira, apesar de ter havido sempre um esforço da extrema-direita para tentar cooptar os antigos combatentes, “nunca foi bem-sucedido”.

Essas tentativas são visíveis no Facebook, havendo inclusive um grupo ligado ao partido Ergue-te (antigo PNR), mas a cooptação “não parece que tenha sido bem-sucedida”, constatou.

Ao mesmo tempo, quer no Facebook quer nos blogues, a visão da Guerra Colonial é uma visão “lusotropicalista”, que olha de forma benevolente para a ocupação portuguesa, mesmo naqueles que se posicionaram contra a guerra.

A investigadora realça ainda a importância de se preservar o material que vai sendo partilhado e publicado nos blogues, especialmente em “Luís Graça & Camaradas da Guiné”, realçando que aquele espaço “é um manancial imenso de documentação, de relatos, de história oral”.

“Não existem programas que preservem aquela riqueza de material para além do esforço do Luís Graça e dos restantes camaradas. Seria uma perda imensa se o domínio fechasse e deveria haver um esforço para recolher e preservar aquele material de forma mais consistente”,
defendeu.

Notícia do Porto Canal | Agência Lusa, que nos chegou já ao findar do ano de 2022, pela mãos dos nossos camaradas Carlos Pinheiro e Miguel Pessoal. Fica bem na série "Mi querido blog", para inaugurar o ano de 2023  (**)... Fixação de texto / links / negritos: LG.
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segunda-feira, 24 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23735: Efemérides (373): Há exactamente 54 anos que embarquei para a Guiné (23.10.68 – 23.10.2022) (Carlos Pinheiro, ex-1.º Cabo TRMS Op MSG, Centro de Mensagens do STM/QG/CTIG)

1. Mensagem do nosso camarada Carlos Pinheiro (ex-1.º Cabo TRMS Op MSG, Centro de Mensagens do STM/QG/CTIG, 1968/70), com data de 23 de Outubro de 2022, dia em que se completam 54 anos que embarcou para a Guiné no navio Uíge:


Há exactamente 54 anos que embarquei para a Guiné

23.10.68 – 23.10.2022

Tudo começou muito antes

A Inspecção Militar a que todos os mancebos eram sujeitos, era o princípio da vida militar e era feita na sede do concelho de residência dos referidos, no ano em que se faziam vinte anos. Eu, porque tinha nascido e morado sempre em Alcanena, foi na minha terra que fui inspeccionado juntamente com os outros quarenta e nove. Logo de manhã fomos para o Salão Nobre do edifício da Câmara Municipal, portas fechadas e janelas corridas, mandaram-nos despir e deram-nos um papel onde um soldado apontou o nosso peso e a nossa altura. Todos nus, com um papel na mão.

No Gabinete do Presidente da Câmara estavam os médicos militares que nos inspeccionavam, um a um, muito à pressa e lá nos davam a notícia que estávamos “apurados” para todo o serviço militar. É certo que um ficou “esperado”, porque era baixo e gordo e outros dois ficaram “livres” sem se saber porquê.

Quando nos íamos vestindo, o tal soldado que nos tinha pesado e medido vendia-nos uma fita verde e vermelha, com um alfinete, para colocarmos na lapela do casaco, a dizer que estávamos apurados. Os que ficavam livres, tinham direito a uma fita branca.

Nesse dia, apesar de tudo foi dia de festa. Houve jantarada do grupo e depois baile até de madrugada. Era assim.

Depois foi só aguardar que os editais nos chamassem para a vida militar. A minha sorte mandou-me para a Escola Prática de Cavalaria em Santarém, no dia 10 de Outubro de 1967. Era uma segunda-feira e tudo era novo para aqueles trezentos e sessenta recrutas do Curso de Sargentos Milicianos. A maioria, onde eu estava incluído, só entrou depois do almoço e depois de ter sido dado mais um toque no cabelo, e lá entrámos. Logo de seguida fomos receber o fardamento, deram-nos um número – eu era o 2060/67 – indicaram-nos a caserna e o nosso número lá estava numa cama. Nada de enganar.

Aprendemos, assim, a formar para o jantar. O refeitório era do outro lado da parada, no primeiro andar. E lá jantámos tendo-nos sido dito que às nove horas tínhamos uma palestra no mesmo refeitório para aprendermos o que era a tropa. Claro que ninguém faltou. Todos presentes para aprender onde estávamos metidos. O porta-voz foi o Comandante do meu Esquadrão, o Tenente Sentieiro que em palavras simples nos elucidou perfeitamente onde estávamos e o que o futuro nos reservava. Dessa palestra há passagens que ficaram na memória e que hoje aqui merecem ser recordadas. Por exemplo: “Essa coisa onde estão a deitar a cinza dos cigarros e as beatas, agora é um cinzeiro, mas amanhã de manhã é uma chávena de vista alegre para beberem o café com leite e à hora do almoço é um copo de cristal por onde vão beber o vinho ou a água”. Afinal aquilo era só um púcaro de alumínio… Outra dessa noite com alguma piada, mas sem graça nenhuma, foi quando o orador nos disse que só poderíamos sair para a rua quando soubéssemos todos os postos da hierarquia militar e bem assim os que mereciam ser cumprimentados militarmente – com continência – para evitar que fossemos bater pala ao porteiro do Hotel Abidis que tinha uma farda que parecia um marechal. E assim foi.

No outro dia foi o princípio. Aprendemos a marchar, aprendemos a rebolar nas barreiras, a saltar ao galho, a fazer a ponte interrompida, saltar a vala, rastejar, subir ao pórtico e lá fazermos alguma manobras, saltar das camionetas a não sei quantos à hora, devidamente enrolados, e sempre a marchar.

As barreiras, antes da recruta acabar, foram proibidas. Não por causa de alguns braços partidos e outros pequenos ferimentos, mas porque as fardas estavam a desfazer-se.

O tiro era treinado, de dia e de noite, na Carreira de Tiro fora do quartel com todo o tipo de arma desde a pistola até às várias metralhadoras pesadas.

As instruções nocturnas eram normalmente às terças e quintas-feiras e duravam até depois da uma da manhã, quando não era até mais tarde. Íamos para as Ómnias, lá para as margens do Tejo, para o Monte do Zé Morto, para o caminho de Rio Maior e na semana de campo fomos para lá da Chamusca, sempre a pé e com a carga toda às costas, incluindo a Mauser e o Capacete na cabeça. Nessa semana nem uma tenda pôde ser montada, apesar de irmos carregados com todos os apetrechos. Parece que o “inimigo” estaria ali por perto. Ordens são ordens. Esta semana de campo foi depois da tragédia das cheias, inundações e morte de centenas de pessoas na zona de Vila Franca, Alenquer, Loures e Odivelas. Só para nos centrarmos no tempo.

Depois de tudo isto, lá chegou o dia do Juramento de Bandeira e logo a seguir ficámos a saber que a maioria do pessoal, daqueles dois Esquadrões de Instrução, tinha chumbado e passado para o Contingente Geral. Dos trezentos e sessenta, foram só duzentos e um que chumbaram. E mais tarde, já na Guiné, é que vim a saber de fonte segura a razão de tanto chumbo. Foi o Comandante daquele Grupo de Esquadrões de Santarém, que também estava na Guiné e, infelizmente, lá morreu no acidente do helicóptero que caiu e onde iam também alguns Deputados da Assembleia Nacional que estavam de visita à Guiné que morreram também, que me disse que tinha havido um erro na classificação das pautas de tiro, que dependiam da Direcção da Arma de Infantaria a quem podiam pedir a revisão das mesmas. Mas como éramos de Cavalaria, ficou assim.

Não vale a pena continuar a falar, agora da especialidade, nem do resto do tempo até ao embarque. Mas passei pelo RTM no Porto onde tirei a especialidade, fui depois para o BT, na Graça, em Lisboa, a seguir para o QG em Tomar, depois de mobilizado voltei ao BT, e logo de seguida fui para o 15 em Tomar, que foi a minha Unidade Mobilizadora e na véspera do embarque fui passar a noite aquele hotel estrelado que era o Depósito Geral de Adidos.

É verdade. Parece que foi ontem e já lá vão CINQUENTA anos desde o dia do embarque para a Guiné, mas está tudo bem guardado na memória.

Depois de uma noite muito mal dormida nos Adidos, na Calçada da Ajuda, logo de manhã lá estava ataviado a preceito para embarcar para a guerra.

Dois dias antes, ainda no RI 15 em Tomar, a minha Unidade Mobilizadora, soube que ia para o BCaç 1911 que nunca vi e que parece que veio no barco onde fui, apanhei uma boleia com um senhor da minha terra que lá foi buscar o filho, para também embarcar para a guerra, salvo erro era para Angola. Lá fomos os três no Volkswagen 1300 do senhor, a caminho dos Adidos em Lisboa. Almoçámos, já não me lembro onde, e lá chegámos à capital do Império e aos Adidos.

Entrámos os dois pela porta de armas, cada um foi para o seu sítio, mas no dia seguinte deixei de o ver. Afinal ficou cá. Não chegou a embarcar. Tinha as suas mazelas certamente.

No dia do embarque, no dia 23 de Outubro de 1968, como disse, logo de manhã lá estava fardado como deve ser, de saco às costas com os meus pertences. Foi só esperar que as camionetas começassem a chegar para levar toda aquela malta de rendição individual para o cais de Alcântara. Éramos cerca de sessenta, tudo de cabeça baixa, sem saber para onde ia.

Quando chegamos ao Cais, o grosso dos expedicionários já estava devidamente formado; era o Batalhão de Caçadores 2856, também do RI 15 de Tomar, constituído por quatro Companhias, mais um Pelotão de Polícia Militar que ia para Cabo Verde e ainda outras Unidade mais pequenas, género Pelotões de Canhão Sem Recuo, Pelotões de Apoio Directo, etc.

Nós ficámos livres da formatura e, certamente por isso, fomos dos primeiros a embarcar. Ao cimo das escadas lá estavam as senhoras do MNF – Movimento Nacional Feminino a darem um maço de cigarros "Porto", um isqueiro e uns aerogramas a cada um. Também por lá se viam uns senhores de chapéu e de sobretudo, que alguns mais vividos diziam serem da PIDE.

O Uíge atracado à espera, com a tropa formada, depois de um General ter passado revista às forças ao som de uma Banda Militar, depois dos discursos da ordem, lá começaram a embarcar, sempre com a Banda a tocar marchas militares.

Os nossos familiares estavam do outro lado das barreiras e muitos nas varandas da Gare, com os lenços brancos nas mãos e as lágrimas nos olhos.

Os lenços brancos a acenar eram mais do que muitos. Da minha parte lá estavam os meus pais e os meus tios que moravam em Lisboa. Sabia mais ou menos onde eles estavam posicionados porque tínhamos combinado antecipadamente. A amurada do barco do lado do Cais estava repleta de militares o que provocava um relativo adornar do navio.

Entretanto, cerca do meio-dia, as máquinas do navio começam a fazer mais barulho e a silvar. Vêem-se já os rebocadores que o há-de ajudar a largar e a ganhar o rumo da Barra do Tejo. Foram momentos difíceis de descrever. Adivinhávamos facilmente que os familiares no Cais choravam. Alguns até gritavam e ouvia-se bem apesar da distância ser cada vez maior. Mas ouvia-se.
Navio Uíge em Bissau
Foto: Torcato Mendonça

A bordo também havia lágrimas em muitos olhos. O barco ganha rumo, a ponte "Salazar", era assim que se chamava a que hoje se chama "25 de Abril", começa a ficar cada vez mais perto, até que passámos por baixo dela. Dali até à Barra e depois ao mar alto parece que foi um momento.

Mal ou bem lá fomos encaminhados para os nossos aposentos, para largarmos o nosso saco e para tomarmos conhecimento dos nossos beliches. A esmagadora maioria, onde eu estava incluído, viajou nos porões que noutras viagens transportavam tudo e mais alguma coisa. O cheiro era horroroso. As camas eram mesmo tipo beliche, mas em madeira de pinho, com colchões de palha e uma manta da tropa em cima. A estrutura das mesmas, porque em madeira, estava já cheia de dedicatórias de toda a ordem que se possa imaginar, fruto de outras viagens de idas e de regressos.

Já no mar alto fomos para a primeira refeição, o almoço, numa sala grande, a sala de jantar do barco, e a comida era aquela que nos quiseram dar, porque os orçamentos naquela altura já eram apertados, mas ninguém se queixou.

Depois foram cinco dias a ver-se só mar e céu, tudo azul, e de vez em quando uns peixes voadores a acompanhar o Uígee por vezes até golfinhos como que a desejarem-nos boa viagem. Raras vezes avistámos outros barcos, mas sempre ao longe. Passámos relativamente perto das Canárias. Disseram-nos que, como aquilo era um Transporte de Tropas, estávamos a ser a ser acompanhados por um submarino. Já era a psicossocial a funcionar.

No convés havia uma espécie de um bar onde se vendia cerveja e Coca-Cola, sendo esta uma novidade autêntica uma vez que na Metrópole a mesma ainda era proibida. A cerveja era holandesa. Eram garrafas de meio litro, verdes, que nós nunca tínhamos visto. Claro que com estes estimulantes a viagem e o tempo parece que custavam muito menos a passar.

Nos porões, logo no primeiro dia, foram montadas bancas para a batota, neste caso a lerpa, e os profissionais dessa jogatina lá assentaram arraiais e foram depenando os mais desprevenidos, que era a esmagadora maioria.

E assim chegámos a Bissau no dia 28, ao final do dia, tendo o barco ficado ao largo e o pessoal desembarcado para barcaças que de imediato tinham rodeado o navio por todos os lados.

A todos os companheiros, camaradas e amigos que vão sobrevivendo e que há 53 anos viajaram comigo no Uíge, um grande abraço e votos de muita saúde.

Carlos Pinheiro
23 de Outubro de 2022

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Nota do editor

Último poste da série de 12 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23611: Efemérides (372): No dia 21 de Abril 2021 fez 58 anos que os 1.º e 2.º Pelotões da CCAÇ 414 estiveram em sérios apuros na Ilha do Como (Manuel Barros Castro, ex-Fur Mil Enf)

domingo, 24 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23458: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (94): A sede da PSP e 7ª Companhia Móvel de Polícia era no bairro de Bandim (José L. S. Gonçalves / Amílcar Mendes / Carlos Pinheiro / Valdemar Queiroz / Virgílio Teixeira)


Foto nº 1A > Guiné  > Bissau > 2 de Março de 1968 >  Dia da Polícia. Parada em frente ao Palácio do Governador (Pormenor)


Foto nº 1 > Guiné  > Bissau > 2 de Março de 1968 >  Dia da Polícia. Parada em frente ao Palácio do Governador.  


Foto nº 2 > Guiné > Bissau > 2 de Março de 1968 >  Dia Comemorativo da PSP em Bissau. Da esquerda para a direita: Chefe Campante,  Comissário Fernandes, Chefe Cruz e Chefe Martins.


Foto nº 3 > Guiné  > Bissau > 1967 >   Traseiras da 7ª Companhia Móvel de Polícia (CMP), no Bairro Bandim



Foto nº Foto nº 4 > Guiné  > Bissau > 1967 > Elementos da população nas  traseiras  da 7ª Companhia Móvel de Polícia (CMP), no Bairro Bandim

Fotos do álbum do chefe da PSP Virgílio Campante. Cortesia de Arquivo Digital"Aveiro e Cultura" e do José Gonçalves


1. Mensagem de José Luís da Silva Gonçalves, que pertenceu à 2ª C/BCAV 8230/73  (Olossato e Bissau, jun74/out74) (*):


Data - 24 jul 2022 13:20
Assunto - Onde parava, em Bissau,  a PSP e a 7ª CMP

Meu caro Luis Graça, hoje, ao ler o artigo de Alberto Helder (**), fiquei curioso, porque também não me recordo de ter visto nenhum PSP, quando estive em 1974,  integrado na 2ª Companhia do BCAV 8230/73, em Bissau, aquartelados no quartel da Amura.

Naquele tempo já os edifícios principais eram guardados por patrulhas mistas do PAIGC e das nossas tropas.

Quando li o artigo no Blogue, comecei a fazer pesquisa na internet e fui parar ao Arquivo Digital "Aveiro e Cultura", do Agrupamento de Escolas José Estêvão (AEJE), onde realmente obtive alguma informação, da qual extraí umas fotos, que provam, que realmente existiu a 7ª Companhia Movel da Polícia, e que mando em anexo (vd. fotos acima)

A localização do aquartelamento, segundo pude constatar, era nas traseiras do Bairro Bandim (seria no nosso tempo o Pilão?) (Fotos nº e 4).

As fotos que vou enviar-te são de 1967 e de 1968, da autoria do Chefe Campante. A foto nº 1ª refere-se ao desfile do dia da Polícia, e na 2ª podem-se ver o Chefe Campante (autor das fotos),  Comissário Fernandes, Chefe Cruz e Chefe Martins.

Não vou dar por encerrado este assunto, e tentar dar resposta ao Alberto Helder, em algumas questões que ele colocou, tentando através do meu grupo de "Veteranos da Guerra Colonial do Concelho de Almada".

Abraço grande, José Gonçalves

2. Outros esclarecimentos, colocados na caixa de comentários do poste P23456 (**):

(i) Amilcar Mendes:


A 7ª CM da PSP de Bissau estava localizada em Bandim, fronte ao grande depósito de água, que se avistava ao longe.

Fui lá almoçar algumas vezes com um amigo PSP de Lisboa.


(ii) Carlos Pinheiro;

Tenho estado a fazer um apelo à minha memória, que já não é o que era, mas penso que no meu tempo de Bissau (1968/70), terão existido duas esquadras da PSP na cidade, A principal não me consigo recordar onde era, mas a segunda, constituida por agentes locais, com farda da PSP ou muito idêntia, era perto do Pelicano. Se estiver errado, desde já as minhas desculpas. 

Um abraço para todos os camarigos.


(iii) Valdemar Queiroz:

Do que me lembro, nunca vi nenhum agente da PSP, ou farda parecida, a fazer giros em Bissau.

Da vez que estive de serviço em Brá, fui ao Quartel da PSP junto do Depósito da Água, que tinha uma cantina visitada pela tropa.

Julgo que o policiamento civil, melhor dizendo "resolver" problemas civis, nas localidades mais populosas era feito pelos sipaios. Por exemplo,  em Bafatá os sipaios podiam multar quem andasse descalço (!),,, Sim, e a multa era a compra de um chinelos de meter o dedo.

24 de julho de 2022 às 17:29


(iv) Virgílio Teixeira:

(...) Em relação à minha estadia na Guiné Portuguesa (depois, CTIG - Comando Territorial e Independente da Guiné) entre os anos de 1967-1969, dei conta de alguns polícias brancos, fardados como na metrópole, junto a alguns sítios que me lembro, mas nunca falei com algum, talvez porque era bem comportado:

- No mercado local que frequentava:
- No BNU onde ia regularmente;
- No Aeroporto quando embarcava e desembarcava;
- Junto ao Palácio do Governador;
- E inevitavelmente ao redor do 'grande Pilão';
- E  talvez nas ruas e como sinaleiros, mas não tenho certezas.

Talvez haja mais mas não me lembro, como acontece não me lembrar de ver a Policia Militar, é estranho mas é assim.

Sobre as localizações da esquadra ou esquadras da Policia, vou mais para os lados do mercado de Bandim, tenho uma vaga ideia, que pode ser errada, e só me lembrei por alguém a referir aqui.

Nunca fui apresentar nenhuma 'queixa' à Policia!

Nos outros locais, quer em Bafatá onde fui muitas vezes, Nova Lamego, ou São Domingos, como sendo sedes de circunscrições, não havia Policia mas sim os chamados sipaios, que faziam parte da administração local.

Espero ter dado algum contributo.

Fiquem bem, e haja saúde para todos.

Virgilio Teixeira
Ex-Alferes Miliciano d
o SAM, CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego, Bissau e S. Domingos, 21set67 /  4ago69).

24 de julho de 2022 às 18:29



Planta da cidade de Bissau já no pós-independência (c. 1975/76). Localização dos bairros populares Bandim, Alto Crim e Pilão. Cortesia de A. Marques Lopes (2005).  

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2022)

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Notas do editor:

(*) Sobre a 2ª C/BCAV 8320/73:

(i) unidade mobilizadora: RC 3, Estremoz;

(ii) comandantes: Cap Mil Grad José Manuel Santos Jorge | Cap Inf António dos Santos Vieira
(iii) chegou a Bissau, nos TAM,  em 22/6/1974 e regressou a 14/10/74;

(iv) seguiu de imediato para o Olossato, a fim de substituir a CArt 6254/72, assumindo a responsabilidade do subsector de Olossato com um pelotão em Ponte Maqué, em 4/7/74 e ficando integrada no seu batalhão;

(v) Em 7/9/74, após desactivação e entrega dos aquartelamentos de Ponte Maqué e Olossato, foi colocada em Bissau, na dependência do seu batalhão até ao seu embarque de regresso;

(vi) o BCAV 83290//3 ficou integrado no dispositivo de segurança  protecção das instalações, sob dependência do COMBIS, constituindo o sub-comando Amura, a partir de 9/9/74 (em 20/8/74, por extinção do COMBIS, passou à dependência directa do Comando-Chefe.

quinta-feira, 16 de junho de 2022

Guiné 61/74 – P23356: (Ex)citações (408): Da parte operacional, pouco sei para além do que os meus amigos, quando vinham a Bissau, me contavam parte do que por lá passaram e também do meu serviço no Centro de Mensagens do QG (Carlos Pinheiro, ex-1.º Cabo TRMS/CTM/QG/CTIG)

1. Comentário do nosso camarada Carlos Pinheiro (ex-1.º Cabo TRMS Op MSG, Centro de Mensagens do STM/QG/CTIG, 1968/70), publicado no dia 14 de Junho no Poste P23344: Agenda cultural (814): Tabanca dos Melros, 11 de junho de 2022: apresentação do livro do Joaquim Costa, "Memórias de Guerra de um Tigre Azul" (2021) - Parte I: Intervenção de Luís Graça, representado pelo escritor António Carvalho, ex-fur mil enf, CART 6250 (Mampatá, 1972/74):

Caro e grande Camarigo Luís Graça
Primeiro que tudo os meus votos de boa recuperação do teu joelho que te deve ter obrigado a uma paragem sempre inconveniente em todos os sentidos, mas ao mesmo tempo te deve ter dado oportunidade para ires pondo a escrita em dia. Boas melhoras são os meus desejos sinceros.
joaquim costa
Agora quero dar-te os meus parabéns por esta magnifica apresentação, mesmo à distância, do livro do Camarigo Joaquim Costa “Memórias de Guerra de um Tigre Azul”, que foi uma autêntica lição de história que merecia ser bem divulgada, especialmente junto das entidades do poder, que ainda hoje não sabem, nem querem saber, que o País esteve em guerra durante 14 longos anos.

Como sabes e aliás desde o primeiro dia em que abriguei à sombra da Tabanca Grande, em todos os meus escritos sempre me referi a Bissau onde passei os meus 25 meses de comissão. Portanto, da parte operacional, pouco sei para além do que os camaradas meus amigos, quando vinham a Bissau, me contavam parte do que por lá passaram e também do meu serviço no Centro de Mensagens do QG, quando, infelizmente, eramos confrontados a qualquer hora do dia ou da noite, com os pedidos de apoio aéreo e pior do que isso, do pedido de evacuações derivadas da guerra.

Tenho lido muitos livros escritos por camaradas que passaram por lá as passas do Algarve como se costuma dizer, mas há um livro, “Nos Celeiros da Guiné, Memórias de Guerra” da autoria de Albano Dias Costa que em 1963, com a especialidade de Sapador de Infantaria e com o curso de explosivos, minas e armadilhas, foi mobilizado para a Guiné como Alferes Miliciano Atirador e de José Jorge de Campos Sá-Chaves que, como militar, frequentou o CEPM e estagiou no CIOE. Mobilizado em Julho de 1962 integrou a CCAÇ 413 tendo cumprido missão como Alferes Miliciano, na antiga Província Ultramarina da Guiné, (Dados retirados das badanas da capa e contracapa do referido livro) e Prefácio “Metamorfose dolorosa” do General Ramalho Eanes, que me escuso de transcrever na totalidade, apesar ser merecida a sua transcrição, porque são sete páginas, mas mesmo assim permito-me transcrever a 1.ª frase deste Prefácio, páginas 11 a 17:
“Poderia esta obra ter por titulo “Duas variações dramáticas sobre o mesmo tema”, dado que o tema, fundamental, são os jovens soldados na guerra – na guerra da Guiné -, que a guerra definitivamente marcou, roubando a uns, a vida, incapacitando, fisicamente, outros, marcando de angústia indelével o subconsciente e a memória não só destes últimos mas, também, a de todos os que lhe sobreviveram.” Mas permito-me ainda transcrever a última frese deste Prefácio: “Sentindo-me um irmão ex-combatente, destes ex-combatentes da CC 413, entendi não os abraçar com uma frase para a capa do livro, como me pediram, mas, sim, abraçá-los com este manifesto despretensioso, pequeno, mas sentido manifesto de solidariedade.” António Ramalho Eanes.

Sem querer ser fastidioso, ainda tenho que transcrever parte da “Dedicatória” dos autores, inserta na página 9, do citado Livro: “À memória dos camaradas da CC 413 que não envelheceram, tombados na Guiné, no cumprimento da comissão de serviço que lhes foi imposta, o Ataliba Pereira Faustino, o Francisco Matos Valério, o José Gonçalves Pereira, o José Basílio Moreira, o José Rosa Camacho, o José Pereira Rodrigues, o José Ramos Picão e o Joaquim Maria Lopes, em relação aos quais carregamos a culpa de continuarmos vivos.”

E refiro-me especialmente a este livro porque o mesmo, para além de tudo o mais, este livro regista a primeira morte, no conjunto dos três teatros de operações, de um conterrâneo meu, natural de Alcanena, o José Gonçalves Pereira, que despareceu em combate, cujos restos mortais vieram a ser recuperados mais tarde.

As minhas desculpas por este longo comentário
Um grande abraço.
Carlos Pinheiro
14.06.2022

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Nota do editor

Último poste da série de 8 DE MAIO DE 2022 > Guiné 61/74 – P23247: (Ex)citações (407): Pedaços da vida militar. A tropa e o caminho rumo à Guiné. (José Saúde)

terça-feira, 19 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23181: Efemérides (365): Passaram 97 anos da Revolta de 18 de Abril de 1925, em que participou o meu pai (Carlos Pinheiro, ex-1.º Cabo TRMS/QG/CTIG)


1. Em mensagem de 18 de Abril de 2022, o nosso camarada Carlos Pinheiro (ex-1.º Cabo TRMS Op MSG, Centro de Mensagens do STM/QG/CTIG, 1968/70), conta-nos que o seu pai, Joaquim Branco Pinheiro, há 97 anos, participou na Revolta de 18 de Abril de 1925, também conhecida como Golpe dos Generais:


Faz hoje 97 anos que o meu pai andava metido na Revolução do 18 de Abril de 1925.

Era militar no Grupo de Baterias de Artilharia a Cavalo, de Queluz, cujo Comandante era um Botelho Moniz.
Saíram para a rua, juntamente com outras Unidades, mas foram derrotados e o golpe falhou.
Foram todos presos para o Castelo de S. Jorge e depois, presos, ainda, foram para Vendas Novas onde juraram bandeira pela segunda vez.

A cena repetiu-se no 28 de Maio de 1926, perderam a revolução, foram presos para o Castelo de S. Jorge novamente e foram também para Vendas Novas onde juraram Bandeira mais uma vez.

Em anexo vai uma foto da equipa junto da peça de artilharia.
O meu pai, Joaquim Branco Pinheiro, nascido em Alcanena em 8 de Maio de 1904, é o terceiro na foto a contar da esquerda.

Era o tempo daquele tempo.

Carlos Pinheiro

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Nota do editor

Último poste da série de 17 DE ABRIL DE 2022 > Guiné 61/74 - P23176: Efemérides (364): Tempo de recordar - Guerra Colonial, O Calvário de Uma Geração - 50 anos decorridos sobre a tragédia de Quirafo, 17 de Abril de 1972 (Mário Migueis da Silva, ex-Fur Mil Rec Inf)

domingo, 20 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P23011: Fotos à procura de... uma legenda (160): Transportes públicos de Bissau: ABP, que sigla seria esta ?






Guiné > Bissau > s/d [1971/73 ] > Um autocarro dos transportes colectivos de Bissau, carreira Bissau/Bissalanca!... Uma verdadeira peça de museu... Parece ser um autocarro com desenho dos anos 30, a avaliar pela carroçaria, uma estrutura em madeira chapeada (?!)... Tinha tejadilho,  onde se levava a "bagagem" dos passageiros, desde cabras a  produtos agrícolas... As portas e as janelas parecem "abertas"... Matrícula G-620... Empresa: ABP (?)... Foto do nosso saudoso Victor Barata (1951-2021), o "Vitinho".

Foto (e legenda): © Victor Barata (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementa: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem do Carlos Pinheiro (ex-1.º cabo trms op msg, Centro de Mensagens do STM/QG/CTIG, 1968/70), a quem pedimos ajuda para identificar a empresa que operava os transportes publicos de Bissau no início dos anos 70.

Data - 19/02/2022, 19:19 
Assunto - Transportes públicos de Bissau: ABP, que sigla seria esta ?

Boa tarde, Luís

De facto não me lembro desta empresa, mas lembro-me bem de outra, a do Costa, que também tinha alguns autocarros(?) que a malta até dizia :  "Camionetas do Costa 'suma' a cachorro de rabo de lado"...

Um abraço, Luis, CP.

2. Comentários ao poste P23005 (*)

António J. Pereira da Costa:

A foto do autocarro é importantíssima, pois prova aquilo que muitas vezes se diz, um tanto jocosamente, que naquele autocarro até as cabras eram transportadas.

Havia um outro percurso (Bissau - Biombo) onde a viatura, talvez um pouco mais moderna do que esta, andava um pouco de lado, por ter uma mola dianteira partida.

O "serviço de peças"(?) das mais conhecidas marcas era mais do que incipiente e as "firmas importadoras" (Gouveia e similares) não se dedicavam a fazer importações tão complicadas. E oficinas para a manutenção do autocarro?

Enfim coisas boas de antanho...

Virgílio Teixeira:

No meu tempo (1967/69) nunca andei nem vi qualquer transporte público, mas eu não precisava, tinha as minhas motorizadas, e por outro lado havia o transporte militar de Santa Luzia - Bissau e Bra - Bissau. É possivel que houvesse táxis!

Quando lá estive em 1984 e 1985, havia um deficit de transportes públicos modernos. Pois o que existiam eram as carrinhas Toyota de caixa aberta, onde cabia de tudo, pessoas, gado, mercadorias de tudo. E muitos acidentes pois eles andavam a grande velocidade e com o pessoal sentado nos taipais, era uma desgraça.

Conheci e colaborei num projecto , uma empresa portuguesa, que colocou 3 autocarros Volvo, do mais moderno, onde cabia também tudo. Passado um ano, acabou por fechar, por falta de peças, oficinas etc. Ainda viajei de Bissau até Nova Lamego e regresso, num desses percursos, ocorreu um óbito de um homem local, mesmo ao meu lado.

Por isso ABP não me diz nada.

António J. Pereira da Costa:

Tenho notícias muito vagas e remontando a 1975 de que a União Soviética teria fornecido à Guiné viaturas de transporte de pessoal do exército. Eram viaturas mais do que obsoletas, de grandes dimensões, pesadíssimas, com uma invulgar largura de eixo, o que as tornava proibitivas na Guiné por não se puderem cruzar numa estrada. Tinham um consumo astronómico e tentaram constituir com elas uma empresa de transportes sob orientação de um português, ex-empresário na Guiné,  de nome Vilela. Falhou em poucos meses...

Mas não tenho confirmação.

João Rodrigues Lobo:

Quando estive em Brá, nos anos completos de 1969 e 1970 praticamente todos os dias fazia várias vezes o trajecto Brá / Bissau, conduzindo o meu jeep, para acompanhar as cargas e descargas nos portos, principal e Pijiquiti, e não me recordo destes autocarros. Presumo que, se me tivesse cruzado com eles, me lembraria. Mas a memória por vezes pode atraiçoar embora julgue que só teriam surgido depois de 1970.

3. Comentário do editor LG:

Perguntei ao Carlos PInheiro (com conhecimento a outros camaradas que conheceram Bissau nessa época):

Carlos, tu que és de longe o nosso melhor cicerone de Bissau do nosso tempo, vê lá se reconheces o patusco autocarro de que aqui se publica uma foto, com uma sigla ABP, na parte de trás, que nos parece ser a da empresa proprietária... Fazia o percurso Bissau - Bissalanca no princípio dos anos 70... Chegaste a andar de transportes públicos no teu tempo ? Lembras-te do nome da empresa ? E será que se manteve depois da independência ? Pode ter acontecido, se bem que improvável... E já agora havia no teu tempo autocarros mais modernos... e confortáveis ?

Dou conhecimento a alguns dos nossos grã-tabanqueiros que também conheceram Bissau como tu, e nomeadamente alguns camaradas da FAP, incluindo os que voltaram a Bissau depois da independência.


Mais comentários dos nossos leitores serão bem vindos (**).


sábado, 12 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P22991: Recortes de imprensa (120): A seca e os incêndios florestais fora de época... (Apontamento de Carlos Pinheiro no semanário O Almonda de Torres Novas)

1. Em mensagem do dia 11 de Fevereiro de 2022, o nosso camarada Carlos Pinheiro (ex-1.º Cabo TRMS Op MSG, Centro de Mensagens do STM/QG/CTIG, 1968/70), enviou-nos um recorte do seu apontamento publicado no Semanário "O Almonda" de Torres Novas, onde colabora regularmente:

Com a devida vénia ao Semanário "O Almonda" de Torres Novas
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Nota do editor

Último poste da série de 30 DE SETEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22584: Recortes de imprensa (119): Reacção de Mário Beja Santos ao artigo do "Diário de Notícias", de 29 de Setembro de 2021, "Comandos africanos nas Forças Armadas Portuguesas. Histórias de abandono e traição"

quarta-feira, 17 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22724: O cruzeiro das nossas vidas (30): Em 23 de outubro de 1968, embarquei no N/M Uíge, mobilizado para o CTIG, em rendição individual (Carlos Pinheiro, ex-1.º cabo trms op msg, Centro de Mensagens do STM/QG/CTIG, 1968/70)


N/M Uíge, o navio que mais viagens fez para o CTIG, transportando tropa (*). O Uíge era um navio misto, de carga e de passageiros, construído na Bélgica em 1954 e abatido em 1978. O seu comprimento não chegava aos 150 metros. A sua arqueação bruta era de 10 mil toneladas. Armador: Companhia Colonial de Navegação, Lisboa. Velocidade de cruzeiro: 16 nós. Alojamentos para 4 passageiros em classe de luxo, 74 em primeira classe, 493 em classe turística, no total de 571 passageiros... Nº de tripulantes: 139.  

Foto Álbum dos Navios da Marinha Mercante Portuguesa, publicado pela Junta Nacional da Marinha Mercante em Junho de 1958. (Com a devida vénia...)


1. Muitos dos nossos leitores, camaradas da Guiné, já não fizeram "o cruzeiro das suas vidas" nos navios de transporte de tropa, da nossa marinha mercante, requisitados pelo Exército, entre 1969 e 1971. Os mais novos, os "periquitos", os "últimos soldados do Império, a partir de 1971/72, passaram a ir para (e a vir de) o  TO da Guiné nos aviões dos TAM - Transportes Aéreos Militares (que em 1970 adquirira dois Boeing 707), embora a nova modalidade de transporte, que veio substituir a via marítima,  caussase consideráveis atrasos na rendição das unidades,  e muito descontentamento, a começar pelo Com-Chefe, o gen Spínola, mas isso é outra história.

Já aqui reunimos os testemunho de diversos camaradas que, mobilizados para o CTIG, foram transportados em navios como o Uíge, o Niassa, o Carvalho Araújo e outros. Na série "O cruzeiro das nossas vidas"  (**) republicamos hoje dois  textos do Carlos Pinheiro que merecem maior visibilidade.

(i)  um, o da sua apresentação à  Tabanca Grande, em 25 de outubro de 2010 (Poste P7173) (**)

(ii) o outro, originalmente publicado no semanário regionalista "O Almonda" (, fundado em 1918), de Torres Novas, em 2 de maio de 2008, e depois no nosso blogue, na série "Blogoterapia", no poste P9822 (***).


O Carlos (Manuel Rodrigues) Pinheiro, natural de Alcanena, e residente em Torres Novas,  foi 1.º cabo trms op msg, Centro de Mensagens do STM/QG/CTIG, 1968/70, e é dos membros da Tabanca Grande um dos que melhor conheceu Bissau dessa época.  Está connosco desde 2010 e tem mais de 7 dezenas de referências

(i) Já lá vão 42 anos
Faz hoje (, em 23 de outubro de 2010), 42 anos que embarquei para a Guiné, em rendição individual,  destinado ao BCAÇ 1911 que afinal veio no mesmo barco em que fui.  
 .
É verdade. Parece que foi ontem (...)

Depois de uma noite muito mal dormida nos Adidos, na Calçada da Ajuda, logo de manhã lá estava ataviado a preceito para embarcar para a guerra.

Dois dias antes, ainda no RI 15 em Tomar, a minha Unidade mobilizadora para o BCaç 1911 que nunca vi que veio no barco onde fui, apanhei uma boleia com um senhor da minha terra que lá foi buscar o filho, para também embarcar para a guerra, salvo erro era para Angola. Lá fomos os três no Volkswagen 1300 do senhor, a caminho dos Adidos em Lisboa. Almoçámos, já não me lembro onde, e lá chegámos.

Entrámos os dois pela porta de armas, cada um foi para o seu sítio, mas no dia seguinte deixei de o ver. Afinal ficou cá. Não chegou a embarcar. Tinha as suas mazelas certamente. Eu também tinha as minhas, mas embarquei e ele ficou por cá.

No dia do embarque, no dia 23 de Outubro de 1968 (...), logo de manhã lá estava fardado como deve ser, de saco às costas com os meus pertences. Foi só esperar que as camionetas começassem a chegar para levar toda aquela malta de rendição individual para o cais de Alcântara. Éramos cerca de sessenta.

Quando chegamos ao Cais, o grosso dos expedicionários já estava devidamente formado; era o Batalhão de Caçadores 2856 constituído por quatro Companhias, mais um Pelotão de Polícia Militar que ia para Cabo Verde e ainda outras Unidade mais pequenas, género Pelotões de Canhão Sem Recuo, Pelotões de Apoio Directo, etc.

Nós ficámos livres da formatura e, certamente por isso, fomos dos primeiros a embarcar. Ao cima das escadas lá estavam as senhoras do MNF – Movimento Nacional Feminino a darem um maço de cigarros "Porto", um isqueiro e uns aerogramas. Também por lá se viam uns senhores de chapéu e de sobretudo que alguns mais vividos diziam ser da Pide.

O Uíge atracado à espera, com a tropa formada, depois de um General ter passado revista às forças ao som de uma Banda Militar, e que, depois dos discursos da ordem, lá começaram a embarcar, sempre com a Banda a tocar marchas militares.

Os nossos familiares estavam do outro lado das barreiras e muitos nas varandas da Gare. Os lenços brancos a acenar eram mais do que muitos. Da minha parte lá estavam os meus pais e os meus tios que moravam em Lisboa. Sabia mais ou menos onde eles estavam posicionados porque tínhamos combinado antecipadamente. A amurada do barco do lado do Cais estava repleta de militares, o que provocava um relativo adornar do navio.

Entretanto, cerca do meio-dia, as máquinas do navio começam a fazer mais barulho e a silvar. Vêem-se já os rebocadores que o hão-de ajudar a largar e a ganhar o rumo da Barra do Tejo. Foram momentos difíceis de descrever. Adivinhávamos facilmente que os familiares no Cais choravam. Alguns até gritavam. Ouvia-se.

A bordo também havia lágrimas em muitos olhos. O barco ganha rumo, a ponte "Salazar", era assim que se chamava a que hoje se chama "25 de Abril", começa a ficar cada vez mais perto até que passámos por baixo dela. Dali até à Barra e depois ao mar alto parece que foi um momento.

Mal ou bem lá fomos encaminhados para os nossos aposentos, para largarmos o nosso saco e para tomarmos conhecimento dos nossos beliches. A esmagadora maioria, onde eu estava incluído, viajámos nos porões que noutras viagens transportavam tudo e mais alguma coisa. O cheiro era horroroso. As camas eram mesmo tipo beliche, mas em madeira de pinho, com colchões de palha e uma manta da tropa em cima. A estrutura das mesmas, porque em madeira, estava já cheia de dedicatórias de toda a ordem que se possa imaginar, fruto de outras viagens de idas e de regressos.

Já no mar alto fomos para a primeira refeição, o almoço, numa sala grande, a sala de jantar do barco, e a comida era aquela que nos quiseram dar, porque os orçamentos naquela altura já eram apertados.

Depois foram cinco dias a ver-se só mar e céu, tudo azul, e de vez em quando uns peixes voadores a acompanhar o Uíge,  por vezes até golfinhos, como que a desejarem-nos boa viagem. Raras vezes avistámos outros barcos, mas sempre ao longe. Passámos relativamente perto das Canárias. Disseram-nos que, como aquilo era um Transporte de Tropas, estávamos a ser a ser acompanhados por um submarino. Já era a psico a funcionar.

No convés havia uma espécie de um bar onde se vendia cerveja e Coca-Cola, sendo esta uma novidade autêntica uma vez que na Metrópole a mesma ainda era proibida. A cerveja era holandesa. Eram garrafas de meio litro, verdes, que nós nunca tínhamos visto. Claro que com estes estimulantes a viagem parece que custava menos.

Nos porões, logo no primeiro dia, foram montadas bancas para a batota, neste caso a lerpa, e os profissionais dessa jogatina lá assentaram arraiais e foram depenando os mais desprevenidos, que eram muitos.

E assim chegámos a Bissau no dia 28 (de iutubro de 1968), ao final do dia, tendo o barco ficado ao largo e o pessoal desembarcado para barcaças que de imediato tinham rodeado o navio.

A todos os que vão sobrevivendo e que há 42 anos a esta hora viajavam comigo no UÍGE, um grande abraço e votos de muita saúde.

Carlos Pinheiro
23 de Outubro de 2010


(ii)  "Estórias" da guerra colonial 

As "estórias" começavam cá, mesmo muito antes do assentamento de praça. Eram as preocupações pelo desconhecido, porque a informação que nos davam a "beber" era só a que interessava à situação, pois a mesma estava absolutamente controlada. Tínhamos a Emissora Nacional, o Diário de Noticias e a generalidade dos jornais que, para saírem, tinham que ir ao lápis azul da censura. Era a situação. 

Salvava-se, por vezes, com muita ginástica, o República, fundado por António José de Almeida e nos últimos anos dirigido por Raul Rego, que pouca gente podia ler e o Diário de Lisboa, da família Ruela Ramos, que também utilizava muita imaginação para dizer alguma coisa que não nos deixavam contar. Salvavam-se também aqueles felizardos que podiam ir estudar para Coimbra, Lisboa ou Porto, onde os contactos permitiam uma consciencialização política muito acima da média. Outros, muito à socapa, ainda iam ouvindo a Rádio Moscovo, clandestinamente claro, como alguns, os do partido liam o Avante, e outros até a Voz da América ou mesmo a BBC, que sempre iam dizendo verdades que não conhecíamos, apesar de muitos casos se passarem à nossa porta.

E, quer queiramos quer não, guerra é sempre guerra, o maior flagelo da huanidade, e era para a guerra que a malta estava destinada. Uma guerra de guerrilha, talvez por isso, pior do que a chamada guerra convencional. Muita psico-social, lá e cá, pois os espíritos eram fracos e desinformados e assim melhor trabalhados. Teimosamente sós, era a política daquela época. 

Mas mesmo assim muito armamento da NATO era desviado para a guerra colonial a começar por alguns navios de guerra e a acabar no rearmamento vindo da Alemanha, especialmente viaturas ligeiras e pesadas, a partir de certa época. 

Já tínhamos perdido o "Estado da Índia", já tinha havido a "estória" do "Santa Maria" a que Henrique Galvão chamou "Santa Liberdade", e a malta começava a tomar consciência que estávamos em guerra na Guiné, em Angola e em Moçambique, mas que também se tinham reforçado posições em Cabo Verde, em S. Tomé, em Macau e em Timor. Tudo isto, como se a descolonização por parte do resto da Europa não tivesse existido, como se fôssemos diferentes, como se fôssemos mais fortes, como se conseguíssemos resistir sozinhos.



O paquete Santa Maria que, por breves semanas, em janeiro de 1961, foi rebaptizado "Santa Liberdade"  por Henrique Galvão 

(Com a devida vénia ao  sítio  Navios No Sapo, que já não existe)

A emigração, principalmente a clandestina, estava no auge. Era a pobreza franciscana em que o país vivia, era a falta de perspectivas de futuro, era a falta de escolas e as dificuldades de ingresso na Universidade e era também o sentimento de alguns, mais esclarecidos, que não queriam participar na guerra. Paris e seus arredores, chegou a ser a cidade onde mais portugueses viviam. Está tudo dito.

Mas a malta que cá ficava ia de certeza para a tropa. Escapavam os cegos, os coxos e os aleijados. O resto era tudo apurado. Por isso, depois da entrada, eram os rigores de uma vida nova, aparentemente sem sentido, passava-se a ser só um número, havia horários para tudo, menos para descansar e conviver, de dia e de noite, nos campos, nos matos, nas carreiras de tiro, nas salinas, nas marchas, nos exercícios, era tudo a correr, sempre em fila, por vezes ao toque de caixa, mas era tudo sempre a correr.

Eram precisos soldados, muitos soldados, com sangue novo para a guerra. Rapidamente e em força, era o slogan.

A recruta era feita num qualquer quartel que já não existe, viajava-se ao fim de semana a caminho de casa, onde se ia buscar o farnel para semana, quando era possível, sempre de noite, naqueles comboios que pareciam pintados de verde por dentro. Depois era a especialidade, normalmente noutro quartel também daqueles que já não existem, e aí o sofrimento, dado o rigor, por norma era ainda maior.

Ao longe, parece que já se ouviam as sirenes dos barcos que haviam de levar, um dia, aquela malta toda para África. E esse dia chegava quase sempre, para a esmagadora maioria da rapaziada. Para uns chegava mais cedo do que esperavam. Para outros chegava mais tarde, quando pensavam que já tinham escapado à mobilização.

De noite, de camioneta ou de comboio, a malta lá era despejada no Cais da Rocha ou de Alcântara, vinda dos seus quartéis de origem, lá se perfilava como mandavam as regras e ao som de marchas militares lá embarcava, depois de um ou outro discurso de circunstância, no "Uíge", no "Timor" no "Niassa", no "Índia", no "Vera Cruz", no "Rita Maria", no "Ana Mafalda" ou no "Alfredo da Silva" e até, na parte final, no velho "Carvalho Araújo", e lá ia durante 5, 8, 10 ou 30 dias conforme fosse para a Guiné, para Angola ou Moçambique e até mesmo para Macau ou Timor.

Quando se começavam a subir as escadas de acesso ao barco, lá estavam, para além da Polícia Militar, aqueles fulanos que vestiam sobretudo e usavam chapéu e bigode, estrategicamente colocados, as senhoras do Movimento Nacional Feminino que davam à soldadesca um macito de cigarros, por vezes um isqueiro e até uns aerogramas, os chamados bate-estradas, para a malta escrever quando lá chegasse. Era porreiro, pá!

A partida era sempre dolorosa. Os familiares apinhavam-se nas varandas do Cais ou junto às grades que separavam a gentalha dos senhores. Os lenços da despedida desfraldavam-se ao vento e as lágrimas escorriam, de um lado e muitas vezes também do outro, pela cara abaixo. E o barco a afastar-se vagarosamente, a música da banda militar que tinha ficado no cais, cada vez se ouvia mais longe, passava-se por baixo da ponte Salazar, via-se o Bugio, Lisboa cada vez ficava mais para trás até deixar de se ver e lá estávamos no mar alto, no mar salgado.

Eram dias desgraçados. Só se via mar e céu e quando o tempo estava bom, era azul por baixo e azul por cima. Por vezes os golfinhos lá vinham visitar o barco e distrair, por momentos, a rapaziada. Os barcos, apesar de civis, eram considerados "Transporte de Tropas" e diziam-nos, para nos sossegarem, que íamos escoltados, para nossa segurança. Mas nunca se viram aviões ou barcos de guerra e, claro, muito menos qualquer submarino a proteger-nos. Lá íamos entregues à nossa sorte.

A vida a bordo era soturna. Nalguns barcos ainda havia instalações menos más, para alguns. Mas a maioria passava o tempo nos porões, que em tempo de paz serviam para o transporte de todo o tipo de mercadorias. Não havia outras condições. Lá muito em baixo, onde a luz do sol só chegava por um buraco, que era a boca do porão, mal se respirava, dados os odores lá acumulados ao longo de anos. 

Havia excepções: o "Rita Maria", o "Ana Mafalda" e o "Alfredo da Silva" só viajavam até à Guiné, eram barcos pequenos e normalmente levavam pouca gente e só em rendição individual. Estes eram barcos da "Sociedade Geral", uma empresa da "CUF" que não era só dona do Barreiro como dona de quase toda da Guiné. 

Também o "Carvalho Araújo" escapava, de certo modo, à regra.  A malta viajava à mesma nos porões, mas estes tinham circulação de ar porque o barco, em tempos, tinha sido adaptado para o transporte de gado dos Açores para o Continente e o gado, esse precisava sempre de ar fresco. Mas em contrapartida a viagem neste barco demorava sempre mais uns dias. Era muito vagaroso e gastava muito combustível. Para ir à Guiné tinha que passar por S. Vicente, em Cabo Verde, para meter água e nafta, que na Guiné não havia. No regresso parava sempre no Funchal para se reabastecer e a malta aproveitava para ver aquela Pérola do Atlântico depois de dois anos de guerra. 

Lá em baixo, muitos jogavam às cartas, especialmente à "lerpa", e alguns iam surripiando os outros. Quando chegava a hora da refeição havia um sinal e só os doentes é que não subiam ao convés, mas, para esses, havia sempre um camarada que lhes trazia uma bucha e uma pinga de água enquanto não iam para a enfermaria, que por norma era pequena. Bebia-se muita cerveja, daquelas "bazookas" holandesas que a malta cá não conhecia. Bebia-se Coca-Cola, inglesa ou de Moçambique, que cá era proibida. Era raro tomar-se banho, porque os barcos não tinham sido construídos para transportar tanta gente de cada vez. Até as casas de banho, as chamadas retretes, eram escassas e normalmente improvisadas no convés, numas barracas de madeira, como ainda hoje se vê para aí nalgumas obras.

Muitos enjoavam, principalmente naqueles dias em que o mar parecia que tinha poucos amigos. A comida, essa tinha dias e era conforme os barcos. Ninguém empanturrava com o que lhe era dado, mas comia-se sempre menos mal na viagem de ida do que na do regresso. Vá-se lá saber porquê?

Os dias passavam, assinalava-se a passagem do equador com uma espécie de festa e a meio da viagem fazia-se um simulacro como se o barco estivesse em perigo e cada um lá se desenrascava como melhor podia ou sabia.

Entretanto a temperatura começava a subir e as águas a mudarem de cor. A chegada estava próxima. Na maioria dos casos os barcos atracavam ao cais, mas na Guiné, até certa altura, ficavam ao largo, especialmente o "Uíge" e o "Niassa" e a malta era transferida para batelões até ao cais, onde colunas de viaturas aguardavam a chegada daqueles reforços que eram sempre bem-vindos para os que já lá estavam e a muitos dava a oportunidade de rendição e por consequência, do tão esperado regresso.

Alguns, mal tinham tempo de pôr os pés em terra. Mal chegavam, embarcavam outra vez, numa "LDG", ou "LDM", lanchas de desembarque grandes ou médias, conforme o contingente, directamente para o mato onde os esperavam dois anos de privações e outras aflições. Outros ainda iam uns dias para os Adidos, quartéis exemplares no pior sentido, onde nada havia, e outros ainda eram encaminhados para campos militares nos subúrbios da cidade, onde iam completar a instrução da metrópole e aclimatarem-se à nova vida.

Depois, depois era o desconhecido. Era a guerra na pior acepção da palavra, era o arame farpado, as operações para reabastecimento de tudo e mais alguma coisa, incluindo a água. A fome, a sede e as emboscadas eram frequentes, como eram os combates e os ataques aos aquartelamentos, os mortos e os feridos, as evacuações pelo ar, a saudade, etc.

E o tempo lá ia passando. Quem podia, quer dizer quem tinha dinheiro para tanto, lá vinha passar um mês de férias à Metrópole e muitos, depois, até se enganavam no dia do regresso a África e lá iam de comboio ou a salto até Paris.

No regresso, no mesmo ou noutro barco e alguns até já de avião, lá regressavam, muitas vezes cheios de mazelas no corpo e no espírito, mas era sempre uma alegria o regresso. A cena do cais agora era ao contrário. O barco começava a aproximar-se, normalmente bem cedo, pela manhã, e os lenços a acenar desta vez queriam manifestar a satisfação pelo regresso. Os outros, alguns, mas só alguns dos que por lá tinham tombado, esses eram retirados mais tarde, longe da vista da multidão e depois encaminhados em armões militares para as suas terras de origem. 

Era a guerra que resistiu treze longos anos e que mesmo depois do 25 de Abril ainda causou baixas em alguns teatros de operações. Dizem as estatísticas que foram cerca de 10.000 mortos contabilizados.

É certo que muito se tem escrito ultimamente sobre este capítulo da nossa História, mas relatos destes, simples mas honestos, nunca serão demais para que a memória não esqueça e para que os mais novos fiquem a saber o que uma certa juventude, a daquele tempo, passou e que os senhores do poder continuam a não reconhecer. Mas até isso faz parte da História. A carne para canhão sempre foi barata e esquecida. Serviram-se dela mas nunca a reconheceram, pelo menos por cá. É esta a realidade dos factos que convém não esquecer mesmo agora que se está a comemorar mais uma vez, a 38ª, a Revolução dos Cravos, o 25 de Abril, que levou ao fim da guerra.

Carlos Pinheiro
2 de maio de 2008

(Revisão e fixação de texto, para efeitos da edição deste poste: LG)
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Notas do editor:


(***) Vd. poste de 25 de outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7173: Tabanca Grande (250): Carlos Manuel Rodrigues Pinheiro, ex-1.º Cabo TRMS Op MSG (STM/QG/CTIG, 1968/70)

(****) Vd. poste de 28 de abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9822: Blogoterapia (210): "Estórias" da guerra colonial (Carlos Pinheiro)