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domingo, 24 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22655: "Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar" (texto cedido pelo escritor ao José Martins para publicação no blogue) - Parte X: "apanhado do clima", o fim da comissão e o difícil regresso à vida civil, em Coimbra (Jan - jun 1967)


Guiné > Região do Óio > Porto Gole > Fevereiro de 1967 > A melhor foto de que dispomos, no blogue, sobre o gen Arnaldo Schulz, governador e comandante.chefe (1964/68): aqui sentado,  ao lado do piloto do helicópetrio; pronto a partir depois de visita a Porto Gole;   no banco de trás, duas caixas de cerveja, Sagres e Cristal; à direita, o fur mil José António Viegas, do Pel Caç Nat 54, com camuflado paraquedista trocado com um camarada numa operação no Morés em outubro de 1966.

Foto (e legenda) : © José António Viegas (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

 
1. Continuação da (re)publicação do "Diário de Guerra", do nosso camarada açoriano e escritor Cristóvão de Aguiar (1940-2021), que faleceu na passada dia 5, aos 81 anos (*).

Organização: José Martins; revisão e fixação de texto (para efeitos de publicação no nosso blogue): Virgínio Briote (,a partir da parte VI, Carlos Vinhal).

Estes excertos, que o autor cedeu amavalmente ao José Martins, para divulgação no blogue, fazem parte do seu livro "Relação de Bordo (1964-1988)" (Porto, Campo das Letras, 1999, 425 pp). (**). São onze ao todo os postes publicados no blogue, este será o penúltimo



Cristóvão de Aguiar.
Foto: Wook (com a devida vénia...)


Diário de Guerra

por Cristóvão de Aguiar


(Continuação)

Contuboel, 11 de Janeiro de 1967

Chegou alguma da tropa que nos vem render [, CCÇ 1500 / BCAÇ 1877, Fufar, Bolama, Cacheu, Teixeira Pinto Contuboel, 1966/67 ]. O Capitão Miranda, oriundo da Mealhada, também veio. Tenho dó deles. O restante pessoal só virá no dia em que nós daqui sairmos - de hoje a uma semana, que não há instalações para toda a gente. 

Neste momento procede-se à passagem de testemunho e das armas. Quando entreguei a minha, fiquei mais leve e mais livre. Mas sempre pensei que este dia há tanto esperado ficasse percorrido de uma alegria bem mais funda. Tanto a sonhei ao longo destes infindáveis meses, que ela quase toda se gastou e agora encolheu-se e ficou tristinha. Ando magro que nem cação. Estou convencido de que tenho uma ténia agarrada à parede dos intestinos. Quarenta e nove quilos é pouco! Já pedi um medicamento para o efeito no posto médico e vou tomá-lo.


Contuboel, 13 de Janeiro de 1967

Um dia inteiro em jejum, só a água, para que o medicamento produzisse efeito. Nada. Nem ténia nem outros bicharocos. Fiquei ainda mais fraco com a abstinência.


Bambadinca, 18 de Janeiro de 1967

Aqui, à beira do rio Geba, para embarcarmos logo à noite em batelões para Bissau. Amanhã tomamos o Uíge para Lisboa. Assim sem espingardas nem pistolas, parece que ficámos subitamente indefesos e nus. E temos medo. Sobretudo que nos ataquem das margens durante esta noite de viagem por aí abaixo, até Pijiguiti. Não seria a primeira vez. A escolta que vai connosco não daria para as encomendas. Nunca mais acaba o pesadelo, sofremos até à última gota.

Bissau, a bordo do Uíge, 19 de Janeiro de 1967

Veio o Governador 
[, e Comandante-Chefe, gen Arnaldo Schulz]a bordo despedir-se das tropas e agradecer-nos, em nome da Pátria, o nosso esforço, sacrifício e abnegação. Seja tudo por alma da Pátria!, disse-me nos meus fundos. Garantiu-nos no final da derradeira golada de uísque que, em matéria de guerra, deixávamos este rincão pátrio melhor do que o havíamos encontrado à chegada. 

Mentiu com todos os dentes! A guerrilha alastra-se cada vez mais. O Capitão da minha Companhia ficou em terra [, Cap Mil Cav António Tavares Martins,    substituiu o primeiro comandante da CCAÇ 800,   Cap Inf Carlos Alberto Gonçalves da Costa].

Ainda não completou o tempo de comissão e vai compensá-lo numa repartição qualquer. Nem fiquei triste nem contente, que, com esta magreza, se me esvaíram quase todos os sentimentos. Trouxe comigo o perdigueiro. Não houve qualquer problema na sua admissão a bordo. O Vila Velha, o meu guarda-costas, prontificou-se a tratar dele durante a viagem.


Lisboa, 27 de Janeiro de 1967

Não dormi isto sequer, com a ansiedade da chegada. Navega agora o navio Tejo adentro. Ainda é noite. Está frio lá fora e outro ainda mais gelado cá dentro em mim. Encontro-me no deck, enrolado num cobertor, à laia de capa de estudante de Coimbra que ainda sou. Vejo a ponte nova, Salazar chamada, e ao longe as luzes da cidade. Não me encantam nem me chamam. Ando de um lado para o outro e penso na vida e no futuro. E olho indiferente as luzes que se espelham, tremeluzindo, nas águas do rio. Serei capaz de vencer e de me vencer? 

Vou ter o meu filho no cais à minha espera. Com dois meses apenas. E talvez seja bom assim. Se tivesse entendimento, veria o pai já cansado e envelhecido e dardejando chispas de medo dos olhos fundos. Na flor da idade. Não minto. Vi-me no espelho quando me escanhoava pela última vez. Última, sim. É que daqui em diante vou deixar crescer a barba. Não foi promessa. Foi uma jura. E cada um tem direito à sua pancada. Mas sei as razões desta minha atitude, que, como todo o neurasténico que se preza, tenho explicação para tudo quanto me aconteceu ou porventura venha a acontecer-me. Um dia hei-de contar!


Tomar, 28 de Janeiro de 1967

Agora somos três e ficámos numa residencial junto ao rio Nabão. Logo de manhã cedo, tomei o pequeno-almoço e fui para o quartel novo, agora mais completo do que quando para aqui vim há dois anos. Ultimadas as formalidades de desmobilização, muito mais rapidamente do que pensava, principiei a sentir-me angustiado. Fiquei sem me perceber. Na hora há tanto ansiada em que me desligava do pesadelo, sentia-me em tremuras tais, que tive uma vontade urgente de pedir que me socorressem. Não foi preciso, que logo entrei em pânico. Levaram-me para a enfermaria e aí deram-me um calmante dos fortes. Ao fim de um quarto de hora, já estava mais calmo. 

Regressei à residencial, meio triste, cogitando na vida que tenho agora pela frente. E só então é que me lembrei que, antes de sair, havia tomado duas chávenas almoçadeiras cheias de café. Fui perguntar. Sim, era café puro e forte! Nem sequer posso tomar um dedal de café legítimo, que me dá tremedeira, quanto mais. E já não fiquei perturbado com a minha reacção pânica.

Estação de Fátima, 28 de Janeiro de 1967

Espero o comboio que me há-de levar para Coimbra, onde vou principiar uma nova fase da vida. Está um tempo esclarecido e a temperatura é amena. A alcofa com o meu filho está poisada no chão meio saibroso, meio areento da plataforma, ao ar livre. Dorme serenamente. 

Como não posso estar quieto, passeio com a Otília para trás e para a frente e vou-lhe traduzindo em palavras os meus receios no futuro. Estou deserto por me pôr à prova no campo académico. A minha obsessão é concluir o meu curso de letras. Sei que muitos que voltaram da guerra não o conseguiram. E eu? Chega o combóio. Pego da alcofa e subo para a carruagem. Fecha-se-me um pano de boca de cena atrás das costas.


Coimbra, 1 de Fevereiro de 1967

Entrei na Faculdade de Letras como um condenado. Encontrei no sexto piso o meu velho professor de Língua Alemã, o Doutor Helling, uma santa criatura, que, ao ver-me, se assustou. Não o soube disfarçar, que bem lhe vi o rosto perturbado. Ao fim do baque perguntou-me: 
- O minino sente-se mal, está doente? 

 Respondi-lhe que acabara de chegar da guerra colonial. E pelo que me disse a seguir, verifiquei que podia contar com ele. Sim, iria rever o meu alemão esquecido e, depois de me sentir bem preparado, apresentar-me-ia a exame. Com as regalias militares, posso fazer exame quando quiser. Miminhos da Pátria agradecida.


Coimbra, 14 de Junho de 1967

Os efeitos da guerra continuam e de que maneira. Tenho corrido um ror de médicos no intuito de obter algum alívio. Um professor da Faculdade de Medicina, a pedido do meu conterrâneo, Prof. Linhares Furtado, a quem consultei, descobriu que eu tinha, nos intestinos, um anchylostoma raríssimo. Bicharia da Guiné. 

Ficou contente pela descoberta e não me levou um tostão. Receitou-me um medicamento chamado Mintzol. É um líquido branco, espesso, que tomei por duas vezes, no mesmo dia. Ia morrendo da cura. Estive oito dias de cama, quase sem forças para articular uma palavra e em soltura constante.


Coimbra, 28 de Junho de 1967

Estava há dias estudando num cubículo que tenho no terraço de casa e me serve de escritório, quando a Otília lá entrou a perguntar-me o que queria que ela fizesse da minha farda camuflada, que trazia na mão para me mostrar. Andava em arrumações. Eram dez horas da noite. Havia fogueiras de São João no Largo de São Salvador, na Alta, nas traseiras da minha República. Passou-me um clarão pela cabeça e disse-lhe: 
- Deixa cá ver a farda. 

 Sem uma palavra, passou-ma para as mãos. Fardei-me e saí de casa, sem ouvir sequer um resmungo. Ao chegar ao Largo de São Salvador, o bailarico estava animado e meti-me na roda mascarado de guerreiro. O meu amigo Germano Rego Sousa, da República dos Corsários e aprendiz de psiquiatra [, também ele açoriano de São Miguel, acabou por  especiliar-se em patologia clínica, depois de fazer uma comissão como médico militar em Angola, 1969/71... ], também lá estava. 

Num fim-de-semana que vim passar a Coimbra, quando andava por Mafra, ofereceu-me um poema que começava assim:

Gosto de ti, poeta triste
Que cantas a saudade de mares não percorridos
E trazes o cheiro de estranhas terras
Que não descobriste [...].

Gosto de ti, poeta,
Que chegas com a mala abarrotando
De uma camisa e de um livro de poesia
E que esqueces às vezes a camisa,
Que essa, pode-se esquecer,
Mas nunca a poesia [...].

Quando me viu naquele preparo, fardado de guerreiro da guerra colonial, deve ter torcido o nariz e desconfiado da minha sanidade mental. Aproximou-se de mim. E, muito delicadamente, pediu-me que o seguisse até à República, que queria falar comigo. Falou, interrogou, como se me estivesse praticando psicanálise. Por fim pediu-me que no dia seguinte fosse à clínica onde trabalha com o Louzã Henriques 
 [ 1933- 2019, psiquiatra , etnógrafo, escritor. opositor ao regime de Salazar ], a de Santa Teresa, que me queria fazer testes. Fui. Vim de lá com um arsenal de amostras de medicamentos para tomar. Ando a cair de sono pelos cantos da casa e de mim.

(Continua)

[ Revisão / fixação de textos / imagem e legenda / links / notas entre parêntesis rectos / subtítulo, paar efeitos de publicação deste poste: LG ]

quarta-feira, 13 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22626: "Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar" (texto cedido pelo escritor ao José Martins para publicação no blogue) - Parte V: Do Tejo ao Geba (17 de Abril de 1965/25 de Maio de 1965)


N/M "Ana Mafalda" (1951-1975): navio misto (mercadorias e passageiros), que tinha o comprimento (fora a fora) de um campo de futebol... Alojamentos para 16 passageiros em primeira classe, 24 em segunda e 12 em terceira classe, no total de 52... Nº de tripulantes: 47...


1. Continuação da (re)publicação do "Diário de Guerra" (*), do nosso camarada açoriano e escritor Cristóvão de Aguiar (1940-2021), que faleceu na passada  dia 5, aos 81 anos (*). Organização: José Martins; revisão e fixação de texto (para efeitos de publicação no nosso blogue): Virgínio Briote. 

Estes excertos, que o autor cedeu amavalmente ao José Martins, para divulgação no blogue,  fazem parte do seu livro "Relação de Bordo (1964-1988)" (Porto, Campo das Letras, 1999, 425 pp). (**)



Cristóvão de Aguiar.
Foto: Wook (com a devida vénia...)


Diário de Guerra

por Cristóvão de Aguiar


(Continuação)

1965

Lisboa, 17 de Abril 1965 - Sábado de Aleluia

Com repiques ao contrário den­tro de mim. Acabei de embar­car com a minha Companhia Independente de Caça­dores número oitocentos. Vamos com destino marcado para a Guiné. O "Ana Ma­falda" vai cheio de carne para canhão e ainda se encontra atracado no Cais da Ro­cha.

São três as companhias de caçadores e parte de uma de coman­dos e serviços de um batalhão. No salão de primeira classe, há pouco, houve discursos e vinho do Porto e uísque e sal­gadinhos.

Uma falta de respeito. Mal acabou a cerimónia, en­fiei-me no meu ca­ma­rote de primeira, pois en­tão! Morra Marta, mas morra farta! Estou para aqui so­zi­nho, la­vado em lágrimas, en­quanto os outros oficiais meus ca­ma­radas, talvez mais corajosos, se en­contram na amu­rada do navio nos últimos acenos de despedida. Puta de Pátria a minha!

Já fora Barra do Tejo, no mesmo dia, à noite

BARCO DE ESPERANÇA

Fizeste um barco de esperança e partiste
Ao longo de um mar verde de ternura.
Ficou no cais ainda o eco triste
Do mar acalentando a aventura...

Geme agora o mar contra a noite escura,
Num beijo sincopado de segredo...
E a alma num alentejo de secura
Cai de joelhos tran­sida de medo.

Medo da longa noite onde me canso,
Comprida noite onde nunca há descanso,
Nem estrela, nem barco ou gaivota...

E o mar que nos meus olhos cabia inteiro,
É agora um soluço de guerreiro,
Caindo em duas lágrimas de derrota.


18 de Abril - Mar e céu

Neste Domingo de Páscoa triste, cele­brada com amêndoas amargas que nos serviram à sobremesa do almoço para que hou­vesse sabor a festa. O navio não dá um balanço sequer. No porão, os soldados jo­gam às car­tas e fazem algazarra. Ouço-os do deque de primeira. À mesa, o capitão só diz as­neiras com ar compenetrado e sábio.

22 de Abril - Véspera de chegada.

Ainda se não adivinha terra nem rumor dela. Após a última refeição, passeio no deque, obstinada­mente, como um burro à roda da nora. Houve mudança súbita de ventos, o que fez com que logo cor­resse o boato de que estaríamos mudando de rumo.

Ainda se não perdeu a crença num súbito milagre que nos leve à Ilha do Sal, nosso primordial destino! Só assim, so­n­han­do, se aguenta esta patriótica estopada.


23 de Abril - Bissau

Evola-se desta terra avermelhada e ressequida um bafor que se transmite ao corpo e o faz destilar rios de suor. Logo após o de­sem­bar­que e com as tropas já aquarteladas na Amura, fomo-nos apresentar ao co­mando mili­tar. Desconhe­cia pura e simplesmente a nossa existência. Que não nos des­tiná­vamos a esta guerra, mas à da Ilha do Sal − foi-nos dito na secre­taria, antes de apresentarmos cumprimentos ao comandante.

Ainda olhámos uns para os outros com um pequeno clarão nos olhos, mas depressa nos desiludiu SEXA, refastelado no seu gabinete, com ar condicionado, onde pouco depois entrámos, perfilados. Ti­nha na verdade havido um pequeno deslize de informação, mas iria ser ime­diata­men­te remediado. Ficaríamos, para compensar, à or­dem do comando-chefe. Uma honra para a nossa com­panhia, que tinha vindo da me­trópole para defender este tão pátrio chão.

26 Abril - Carreira de tiro

Fomos todos para a carreira de tiro treinar a ponta­ria e experimentar pela primeira vez as espingardas G3, que se utilizam nesta guerra. Nos cur­sos de preparação, em Mafra, Tavira e Santarém ainda se treina o pessoal com a Mauser da última guerra mundial. Que se divide em dez partes, a saber: cano com es­trias, coronha, gatilho, guarda-mato, etcetra e tal.

29 de Abril - Ordem unida na Amura

Houve tentativa de levantamento de rancho na nossa companhia. Como ninguém se tivesse acusado como cabecilha da frustra­da rebelião, o capitão, furioso por não ter bode expiatório, deu como castigo aos três pelotões ope­ra­cio­nais, neles incluindo cozinheiros e outras especialidades não béli­cas, oito horas se­guidas de ordem unida, entremeada com passo de corrida.

Para que não hou­vesse que­bra de ritmo nem de suor, ordenou que os quatro alferes des­sem, à vez e na ordem in­versa da sua antiguidade, duas horas de in­s­trução cada um. Ainda se acre­dita pia­mente, na tropa, que a ordem unida é a mãe de todas as virtu­des mili­tares, sobretudo da disci­plina.

No quartel da Amura, os velhos de caqui amarelo, que aguardam em­bar­que de regresso após dois anos de comissão, olharam para nós, maçaricos, vesti­dos de verde-bilioso-vomitado, como se pertencêssemos a outra ga­lá­xia.


5 de Maio - Primeiras baixas, nos arredores de Bissau

O nosso capitão e o seu guarda-costas foram feridos numa operação-treino nos arredores de Bissau. Foram ambos transportados de ur­gên­cia, de helicóptero, para o hospital militar. O primeiro, com estilhaços fin­ca­dos por todo o corpo; o último, sem as duas pernas dos joelhos para baixo e com as tri­pas de fora e sujas de terra. Como oficial mais antigo, tomei o co­mando da com­pa­nhia.


8 de Maio - Em Bissau, como Cmdt da CCaç 800


Recebi um rádio do gabinete do comando-chefe, anun­ciando a transferência para a metrópole do capitão e do seu soldado guarda-costas. Es­tou fragilizado e com muito medo. Não nasci para comandar tropas.

Para me sen­tir mais aconchegado e protegido no meio de toda esta engrenagem de insegurança e de morte pressentida, escrevi uma longa carta a meu tio Fran­cisco, que mal conheço, de­vido às zangas fraternais entre ele e meu Pai que se estenderam du­rante quase toda a minha vida. Agora estão de bem um com o outro. Fizeram as pa­zes há cerca de dois meses, após meu tio ter frequentado, durante três dias, um Curso de Cris­tan­dade na Ilha, na estância termal do vale das Furnas.

Soube-me bem acolher-me ao robusto tronco fami­liar, durante as duas breves horas de escrita epistolar, regada a lágrimas sa­borosas. Pressinto a morte, muito perto, rondando-me os gestos, as pa­la­vras e os pas­sos.


10 de Maio de 1965 - No HM 241


Hospital Militar de Bissau, para uma pequena in­ter­venção cirúrgica. Circuncisão, isto é, um corte no freio, que tinha dificuldade em arregaçar.

Se tivesse nascido judeu, ter-me-ia poupado ao incómodo nesta idade de quase um quarto de século. Saí do hospital pouco depois e vim para o quartel da Amura, sem sequer sentir necessidade de me ir recostar na tarimba. Fui antes para o bar dessedentar-me e dar umas boas tragaças, que o cigarro tem sido para mim um ex­celente camarada de armas...

24 de Maio de 1965 - Bambadinca


Veio a companhia por aí a cima, sob o meu co­mando, escoltada por outras tropas e por brigadas especializadas na de­tecção e le­van­tamento de minas e armadilhas, atravessando terra-de-ninguém de Man­soa até aqui, em não sei quantas viaturas, abarrotando de tudo quanto é ne­ces­sário para ins­talar uma companhia operacional no mato, desde tarimbas de ferro até tachos e pa­nelas, pas­sando por móveis para a secretaria, que, na guerra, a papelada tem grande impor­tân­cia. Chamam-lhe mesmo a guerra dos papéis, por vezes ainda mais renhida do que a sua irmã colaça.

Chegámos à margem esquerda 
[, o autor queria dizer direita.. ] do rio Geba, es­tava um capitão, Ga­briel Tei­xeira,  de sua graça, com duas secções à nossa es­pera. Pertencem ao batalhão ao qual vamos ficar logisticamente ad­s­tritos, uma vez que, operacional­mente, conti­nuamos à ordem do comando-chefe.

Ainda temos, porém, de atravessar tudo de jan­gada para a outra mar­gem  [, a esquerda...] , incluindo as viaturas, a fim de seguirmos para Bafatá e de­pois para Con­tu­boel, nosso des­tino. O rio Geba está su­jeito ao regime das marés, nesta altura vivas, aqui chamadas macaréu, de forma que vamos demorar muito tempo até nos passar­mos to­dos para o lado de lá.

Bambadinca, 25 de Maio de 1965

A TUA AUSÊNCIA

A tua ausência
É este estar nu por dentro,
E ter um rosto velho
Gretado de suor
Do sol dos prados
E das manhãs
Que nunca tive...

Em cada segundo te habito
Como a loira canção das abelhas
O indomável cio
Das flores abrindo-se
Loucas de tesão...

(Continua)
__________

Notas do editor:

domingo, 10 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22617: "Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar" (texto cedido pelo escritor ao José Martins para publicação no blogue) - Parte IV: Mafra e Tomar (Julho 1964/Abril 1965):


Capa da edição original da "Praça da Canção", de Manuel Alegre (Coimbra, Vértice, 1965, 143 pp., Col. Cancioneiro) que o Cristóvão de Aguiar ainda foi a tempo de adquirir e ler na véspera de Natal, passado em Coimbra, quando já era aspirante miliciano no RI 15, em Tomar. O livro de poemas, que marcou a estreia literária de ;Manuel Alegria, foi de imediato apreendido e proibido pela PIDE. Imagem: cortesia de Manuseado


1. Continuação da (re)publicação do "Diário de Guerra" (*), do nosso camarada açoriano e escritor Cristóvão de Aguiar (1940-2021), que faleceu na passada terça feira, dia 5, aos 81 anos (*). Organização: José Martins; revisão e fixação de texto (para efeitos de publicação no nosso blogue): Virgínio Briote. 

Estes excertos, que o autor cedeu amavalmente ao José Martins, para divulgação no blogue,  fazem parte do seu livro "Relação de Bordo (1964-1988)" (Porto, Campo das Letras, 1999, 425 pp).

Citado pela agência Lusa, no passado dia 5,  o presidente do Governo Regional dos Açores, José Manuel Bolieiro, lamentou a morte do escritor açoriano,, dizendo que "a literatura portuguesa, a lusofonia e sobretudo os Açores perdem muito hoje com o seu falecimento".



Cristóvão de Aguiar.
Foto: Wook (com a devida vénia...)


Diário de Guerra

por Cristóvão de Aguiar

(Continuação)

 
Julho, 13, 1964 - Como os instrutores nunca ministraram um curso tão comprido, não sabem que mais hão-de dar.

Andamos a re­petir o que fizemos na re­cruta. Aplicação militar, ordem unida, crosses, obstáculos, rastejar, percursos fan­tas­mas, in­s­trução nocturna, o raio.

A grande novidade é darem os instruen­dos al­gumas aulas de ginástica para irem treinando as vozes de co­mando. Hoje coube-me a mim dar a minha, na parada. O meu vozeirão chegou ao convento. Al­guns amanu­enses vieram às janelas para ver o que estava acon­te­cendo. No final da aula, o comandante de pelo­tão chamou-me e disse-me que tinha uma voz invejável. Prometeu-me que me da­ria uma boa classi­fica­ção nessa alínea.

Julho, 18 - O que são as coisas! Nunca gostei de melão

Quando estava na Ilha 
[, de São Miguel, ], nem o cheiro dele podia suportar. Meu Avô Anselmo (que hoje faria anos se fosse vivo) bem que in­sistia co­migo para que experimentasse. Dizia-me que devia começar pela meloa, que era me­nos cus­toso. Qual quê! Dava-me vontade de lançar tudo quanto tinha e não tinha no estô­mago. 

Aqui, no refeitório da unidade, têm dado todos os dias me­lão à sobre­mesa. Ao princípio, e julgando que não insistissem muito, dava a minha parte ao camarada que se sentava ao pé de mim. Ficava sem so­bremesa, o que me deixava um buraquinho no estômago. E pus-me a pensar na minha fobia. Até que hoje re­solvi experimentar. Que tivesse o meu camarada de armas santa paciência. Provei a medo. E gostei tanto, que, em meia tarde, quando saí do quartel, fui com outros comprar melões a um lugar de fruta. Fo­mos depois comê-los para o quintal de uma tasca. Foi um fartote. E ve­nham-me cá dizer que na tropa não se aprende nada!

Agosto, 28 - Terminei o meu primeiro curso.

Amanhã é a entrega das armas e ala bote para Coimbra passar umas férias até ser colocado numa Unidade para dar instrução. Durante este longo curso apanhei chuva, árvores em flor, sol de estorricar os miolos, Agosto sem cheiro sequer a mar.

Sofrimento, suor, medo, espe­ranças logo abortadas. E com umas seguras noções de como se engraxa o calçado, e se muda de farda várias vezes ao dia, e alguns conhecimentos sobre a Pátria, virtudes militares, granadas, inimigo, armas automáticas – obtive a minha carta de curso...

No fim, os homens que entraram já não eram os mesmos. Nas conversas, em casa, no café com os camaradas, saía-nos da boca uma virtude militar com o mesmo à vontade com que toda a gente se peidava na caserna. Esta foi para alguns mais aplicados, ou com o cérebro mais bem lavado, um verdadeiro campo de treino, depois da instrução do dia: passos à frente e à retaguarda, meia volta volver, continências como mandam as re­gras, vozes de comando...

Terminou hoje a primeira fase da escola de virtudes. Bebe­deiras de fictícia alegria, com a tristeza ferindo, subtil, certos gestos e sentidos, ga­lões ensopados em whisky, como manda a praxe militar... E fica a EPI de Mafra, a casa-mãe da Infantaria (Entrada para o Inferno), aguardando, na sua adiposa arquitec­tura conventual, mais magotes de jovens cadetes para tentar fa­zer deles máquinas com o pensamento estrangulado no fundo opaco do crânio. Mas muitos resistem e conti­nuam sendo jovens, embora tristes e abstractos.

Agosto, 29 - Fui promovido a aspirante a ofi­cial mil­i­ciano (isto é, trouxe os galões comigo e enfiei-os, já fora de Mafra, nas platinas do dól­men), mas já sei que fui colocado no Regimento de Infantaria 15, em Tomar.

Te­nho de me apre­sen­tar em meados de Setembro, numa segunda-feira, e só então po­derei usar os ga­lões, mas hoje quis entrar em Coimbra já promovido e de facto apa­nhei algumas conti­nências pela rua. Tinha pedido para ir para o Batalhão Inde­pen­dente 18, acanto­nado na freguesia dos Arrifes, na Ilha. Não calhou.

Talvez por­que vou ser mobili­zado muito em breve. Até à minha apresenta­ção em Tomar, vou go­zar umas fé­rias nesta Coimbra de­serta. Na República não há quase nin­guém. Al­guns de férias, nas Ilhas, outros já na guerra, como o José Bretão e o Viri­ato Ma­deira, ambos na Guiné e ou­tros como eu, quase a partir. O calor é muito. De dia não se pode sair de casa. À noite, dou grandes passeios pela fresca, jun­tamente com um rapaz da Terceira, o Helder Gomes, que está a preparar-se para o exame de aptidão à Uni­versidade. É interessante conver­sar com ele. Noto que me tem muito respeito, não sei se por ser oficial do exército, se por ser terceiranista da Universi­dade e ele simples para­quedista, isto é, nem bicho nem ca­loiro, segundo a praxe académica.

Tomar, Setembro, 14 - Apresentei-me ao coman­dante da uni­dade.


Den­tro de dias, vou principiar a dar uma recruta em substituição de um aspi­rante, perten­cente a um Batalhão de Caçadores com des­tino a An­gola, que se encontra de baixa. O comandante desse contingente, um tenente-coronel muito aprumado e de pinguelim, tem um ar de lunático e parece de uma tropa de outro tempo.

Encontrei dois açoria­nos na unidade. O capitão Moniz e um cabo mil­ici­ano, o Pedro Jácome Correia. Três ilho­tas neste mar de terra e oliveiras. Não há ainda instalações para oficiais no quartel novo, que ainda se não acabou de construir. E no velho estão já lotadas. Tive de ar­rendar um quarto, que fica na rua da sinagoga.

Setembro, 30 - O comandante do regimento mandou-me cha­mar ao gabi­nete.

Fiquei assustado. Depois de lhe ter pedido licença para en­trar, ele, depois de desfazer a continência, disse-me com bons modo:
- Soube que o nosso aspi­rante acamarada com um cabo mili­ciano e até se tratam por tu; quero infor­má-lo que tal atitude é contra o Regulamento Militar.

Nem justificando-me que se tratava de um con­ter­râ­neo e colega de Liceu, o homem se demoveu. Vem no regu­la­mento!

Dezembro, 15 - A minha companhia tem o número oito­cen­tos e destina-se a Cabo Verde, Ilha do Sal.

Acho que é muita sorte para um homem só.

Coimbra, Dezembro, 22 - Cheguei de Tomar em meia tarde, ainda a tempo de comprar a "Praça da Canção", que saiu ontem ou anteontem, mas que já os­ten­ta, na capa, a data de 1965.

Foi o Antero Dias quem me deu a novidade. Fui com ele jantar ao Texas da baixinha e a seguir viemos para a República, onde es­tive até al­tas horas a ouvi-lo ler em voz alta o livro do Manuel Alegre do primeiro ao úl­timo verso. Ele declama tão bem e com tamanha força expres­siva, que fiquei arre­piado por dentro e por fora. Como não houvesse mais poe­mas, principiámos de novo.

Ficámos com a sensação de que nos encontráva­mos perante uma poesia tão diferente daquela que estávamos habitua­dos, revolucionária e lírica ao mesmo tempo, com uma lingua­gem poética tão encan­tatória, que nos encheu o íntimo não sei de que energia e entu­siasmo. Dava vontade de sair por aí tocando os sinos que cada homem tem no cora­ção. É livro para ser proibido pela PIDE. Felizmente, está a edição prestes a esgo­tar-se, se­gundo me disse o livreiro. É natural que os esbirros não cheguem a tempo.

Coimbra, Dezembro, 24 - Natal passado com a família cor­sária, com vinho abundante para afogar não sei que saudade im­pertinente.

Não consigo arrancá-la do pensamento. E nestes dias lem­brados ainda pior. Não sei que nome hei-de dar a este ardume que me corrói as vísceras como um ácido forte. Não, não quero sequer pensar que seja o que neste instante estou pen­sando!

1965

Hospital Militar de Coimbra, Fevereiro, 26, 1965 - Dei entrada de urgência neste hospital.

Apendicite aguda. Fui operado ontem de manhã. Anestesia só da cin­tura para baixo. Dei conta de tudo. Depois de uma aula de aplicação mili­tar, em que pus o meu pelotão de língua de fora e completamente enlameado, como eu, que era sempre o primeiro a demonstrar o que queria que os homens fizessem, sobre­veio-me o castigo, dores de barriga insuportáveis. Vim de am­bulância de Tomar para Coimbra e aqui estou numa cama de hospital. Há pouco veio-me ver o Antero Dias.

Março, 4 - Cabo enfermeiro

Como não me permitiram que saísse do hospi­tal para ir dar uma volta, chamei o cabo enfermeiro, dei-lhe uma nota de vinte escudos e disse-lhe que ia guindar o muro das traseiras. Nem esperei pela reacção dele. No fim e ao cabo, era ou não era seu superior hierárquico? E, com a breca, a ginástica de apli­ca­ção militar sempre havia de servir para alguma coisa de préstimo.

Abril, 6 - Afinal, a minha companhia vai para a Guiné.

O co­man­dante recebeu hoje um rádio urgente a anunciar a mu­dança. Olhámos uns para os ou­tros como condenados à morte. Só o capitão é que aparentemente se não des­caiu. É a vida que escolheu. E eu que já tinha comprado sabonetes es­peci­ais para a água salo­bra da Ilha do Sal!

(Continua)
___________

Nota dos editores VB/LG:

(*) Vd. postes anteriores:

quarta-feira, 6 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22606: In Memoriam (410): Luís Cristóvão Dias de Aguiar (1940-2021), ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 800 (Contuboel e Dunane, 1965/67), falecido no dia 5 de Outubro de 2021

IN MEMORIAM

Luís Cristóvão Dias de Aguiar (Ilha de S. Miguel, 1940 -  Coimbra, 2021)
Ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 800 (Contuboel e Dunane, 1965/67)


Faleceu ontem, dia 5 de Outubro, em Coimbra, o nosso camarada Cristóvão de Aguiar, nascido em 8 de Setembro de 1940, no Pico da Pedra, Ilha de S. Miguel.

Autor de referência (, possivelmente o maior escritor açoriano do séc.XX, depois de Vitorino Nemésio), deixa uma vasta obra literária, de que se destaca a trilogia romanesca Raiz Comovida, O Braço Tatuado (onde relata a sua experiência como combatente na Guiné durante a Guerra Colonial, de 1965 a1967) e Relação de Bordo, conjunto de diários que abrange os anos de 1965 a 2015
.[*]

Tem no nosso Blogue 27 referências.

Os editores e demais membros desta tertúlia de amigos e camaradas da Guiné expressam  à família os seus mais sentidos votos de pesar.
Cristóvão de Aguiar, em 27 de Novembro de 2008, na Biblioteca-Museu República e Resistência – Espaço Grandella, na apresentação da nova edição do seu livro "Braço Tatuado".
____________

Notas do editor:

[*] Vd. recensões de Mário Beja Santos à obra de Cristóvão de Aguiar nos postes de:

5 de abril de  2010 > Guiné 63/74 - P6109: Notas de leitura (88): Ciclone de Setembro, de Cristóvão de Aguiar (I) (Beja Santos)

de abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6115: Notas de leitura (89): Ciclone de Setembro, de Cristóvão de Aguiar - (II) (Beja Santos)

de abril de2010 > Guiné 63/74 - P6124: Notas de leitura (90): Relação de Bordo, de Cristóvão de Aguiar (I) (Beja Santos)

14 
de abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6155: Notas de leitura (92): Trasfega, de Cristóvão de Aguiar (Beja Santos)

16 
de abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6162: Notas de leitura (93): Braço Tatuado, de Cristóvão de Aguiar (Beja Santos)
e
17 
de abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6170: Notas de leitura (94): Crónica dos dias levantados da guerra, com os horrores de Goya e tudo (Beja Santos)

Vd. postes com o "Diário de Guerra de Cristóvão de Aguiar", textos cedidos pelo autor ao nosso camarada José Martins:

31 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P3823: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (I): Mafra, Janeiro de 1964

3 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3838: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (II): Mafra, Fevereiro/Março de 1964

5 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3843: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (III): Mafra, Maio/Junho de 1964

26 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3944: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (IV): Mafra e Tomar (Julho 1964/Abril 1965)

11 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4013: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (V): Do Tejo ao Geba (17 de Abril de 1965/25 de Maio de 1965)

19 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4838: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (VI): Estadia em Contuboel e férias na Metrópole (27Mai65 a 29Set65)

25 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4860: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (VII): Estadia em Contuboel e Dunane (Out-Dez 1965)

28 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4876: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (VIII): Estadia em Contuboel e Sonaco com a Otília (Jan-Ago 1966)

3 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4893: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (IX): Nascimento do primeiro filho (Set - Dez 1966)

7 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4917: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (X): O difícil regresso à vida civil (Jan - Jun 1967)
e
10 de setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4932: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (XI): Final (Mai68-Jan70)

Vd. último poste da série de 4 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22598: In Memoriam (409): Lissy Jarvik (née Feingold) (1924-2021): teve no seu funeral a presença do nosso cônsul honorário em Los Angeles e o senhor Presidente da República emitiu uma mensagem de condolências (João Crisóstomo, Nova Iorque, de passagem por Portugal, adviser da Sousa Mendes Foundation, com sede nos EUA)

quarta-feira, 5 de março de 2014

Guiné 63/74 - P12794 : Memória dos lugares (264): Contuboel e Sonaco, junho/julho de 1969, ao tempo da CCAÇ 2590 / CCAÇ 12 (Humberto Reis / Luís Graça)


Guiné > Zona Leste > Setor L2 (Bafatá)  > Contuboel > Julho de 1969 > CCAÇ 2590/CCAÇ 12 (1969/71) > O alferes miliciano de operações especiais Francisco Moreira, no meio do Humberto Reis (à sua direita) e do Tony Levezinho (à sua esquerda). O nosso Moreira era o homem de confiança do comandante da companhia, o Cap Inf Carlos Alberto Machado Brito (, hoje cor ref). O Moreira passou por Lamego,  pelo CIOE, tal como o Reis.



Guiné > Zona Leste > Setor L2 (Bafatá)  > Contuboel > 15 de Julho de 1969 > CCAÇ 2590/CCAÇ 12 (1969/71) > O alferes miliciano Francisco Magalhães Moreira (1º Gr5 Comb), à esquerda, acompanhado pelo Tony Levezinho (furriel) (2º Gr Comb), o António Fernando R. Marques (furriel), o José António G. Rodrigues (alferes, já falecido) e o Joaquim Augusto Matos Fernandes (furriel) (estes três últimos do 4º Gr Comb), preparando-se para sair até Sonaco (a nordeste de Contuboel).




Guiné > Zona Leste > Setor L2 (Bafatá) > Contuboel > "Em 10 de Julho de 1969, numa canoa no Geba a caminho de Sonaco... Reconhecem-se da esquerda para a direita o Tony Levezinho, eu, o alf Francisco Moreira, o Rocha, condutor, o alf Rodrigues, já falecido, e o djubi, manobrador da canoa, de pé" (HR).

A CCAÇ 2590 (mais tarde, CCAÇ 12) realizou os exercícios finais da instrução de especialidade dos seus soldados africanos,  entre 6 e 12 de Julho, a 10 km a norte de Contuboel.  Sonaco era um destacamento do subsetor de Contuboel, tendo em permanência um grupo de combate da unidade de quadrícula de Contuboel mais um pelotão de milícias. Não me consta que alguma vez tenha sido atacada ou flagelada, tal como Contuboel. (LG)


Fotos: © Humberto Reis (2006) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.


1. A propósito de uma recente referência a Contuboel e a Sonaco (*), dois topónimos de que se fala pouco, aqui no nosso blogue (, e em especial, Sonaco, que só tem meia dúzia de referências)...

O Humberto Reis, autor das fotos que acima publicamos (, que nâo têm de resto, a qualidade a que nos habituou: são de formato reduzido e fraca resolução,,,)  diz que "foi a Sonaco duas, ou três  vezes em passeio", no tempo em que a CCAÇ  2590/CCAÇ 12 esteve em Contuboel, ou seja, menos de dois meses, de 2 de Junho a 18 de Julho de 1969, na fase de instrução de especialidade dos nossos soldados do recrutanmento local . (Só um terço da companhia, os quadros e os especialistas, eram de origem metropolitana).

Sonaco era "um local sem quaisquer problemas", garante o Humberto... E eu confirmo:  pelo menos, não havia risco de emboscada ou de minas, nesse tempo... O braço armado do PAIGC não chegava até lá... Havia vários tampões, entre a fronteria com o Senegal e o subsetor de Contuboel a que pertencia Soncao. A terra tinha vários comerciantes, quer portugueses quer libaneses.

Não sei como as coisas evoluiram, depois... Enfim, era um sítio onde a malta do leste, de outros setores (como o L1,  de Bambadinca)  ia comprar vacas... O Torcato Mendonça, por exemplo, que "vivia" em Mansambo, já aqui referiu que chegou a comer alguns bifinhos das vacas de Sonaco... E eu também, em Bambadinca...

Igualmente havia quem fosse, de Bafatá, a Sonaco para pescar peixe, no rio Geba, à granada...como era o caso do Manuel Mata, (do EREC 2640, Bafatá, 1969/71). (E, a propósito, passei um belíssímo fim de semana na terra dele, o Crato; telefonei-lhe, mas ele já não usa o nº de telefone fixo que eu tinha na agenda).

A CCAÇ 2590 (mais tarde, CCAÇ 12) realizou os exercícios finais da instrução de especialidade dos seus soldados africanos, entre 6 e 12 de Julho, a 10 km a norte de Contuboel.  Andámos por lá a brincar às guerras, com balas de salva (!)... Só os graduados de cada grupo de combate (alferes, furriéis e cabos metropolitanos) levavam nas cartucheiras algumas balas a sério, não fosse o diabo tecê-las...

Em 20/6/1969, escrevi no meu diário:

 "O chão fula vai resistindo, mal, ao cerco da guerrilha. De Piche a Bambadinca ou de Galomaro a Geba, os fulas estão cercados. Mas por enquanto, Bafatá, Contuboel ou Sonaco ainda são sítios por onde os tugas podem andar, à civil, desarmados, como se fossem turistas em férias! Contuboel é ainda um oásis de paz, com um raio de uns escassos quilómetros"...

Tenho ideia de lá ter ido também, a Sonaco, mas não tenho grandes memórias do sitio... Muito menos uma foto, mas pode ser que apareçam mais (**)... (LG)



Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Mapa de Sonaco (1957) (Escala 1/50 mil) > Pormenor da posição relativa de Sonaco, na margem esquerda do Rio Geba, a nordeste de Contuboel... Era uma região bastante povoada e próspera...

Os vagomestres das nossas companhias no leste conheciam Sonaco, onde iam comprar vacas... Pelo menos até ao início dos anos 70, e antes da intensificação da guerra na região fronteiriça, a norte, era um região calma... E acho que continuou calma... até ao fim.

Temos apenas meia meia dúzia de referências a Sonaco no nosso blogue... Era posto administrativo e pertencia ao subsetor de Contuboel. Tenho ideia de que, no meu tempo (junho/julho de 1969) havia lá um pelotão destacado, da unidade de quadrícula de Contuboel (, que já não recordo qual fosse, mas em princípio não podia ser a CART 2479 / CART 11; seria talvaz a CCAÇ 2436, 1968/70: passou por Bissau, Galomaro, Contuboel e Fajonquito; ou ainda a  CCAÇ 2436, que esteve em Quinhamel, Fajonquito, Contuboel e Nhacra; ambas pertenciam ao BCAÇ 2856, sediado em Bafatá).

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2014).



Guiné > Zona Leste > CAOP2 > Setor L2 (Bafatá) > Guão do BCAÇ 3884 (Bafatá, 1972/74) com unidades de quadrícula em Contuboel (CCAÇ 3547), Geba (CCAÇ 3548) e Fajonquito (CCAÇ 3549).
Guiné > Zona Leste > CAOP2 > Setor L2 (Bafatá) > Susetor de Contuboel >   1972/74 > Em Contuboel estava a CCAÇ 3547 (Répteis de Contuboel),   do nosso camarada Manuel Oliveira Pereira, ex-fur mil. (Trabalha, ou trabalhou em tempo, no Hospital da CUF). É membro da nossa Tabanca Grande desde a 1ª série do blogue. A CCAÇ  3547 tem página no Facebook.

Quem também passou por Contuboel e Sonaco foi o nosso camarada açoriano, e notável escritor, Cristóvão Aguiar (n. 1940), ex-al mil da CCAÇ 800 (1965/67), uma companhia independente. O seu diário de guerra foi publicado no nosso blogue, organizado pelo nosso devotado colaborador, amigo e camarada José Martins. (***)

_______________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de:

3 de março de 2014 > Guiné 63/74 - P12790: Memórias de um Lacrau (Valdemar Queiroz, ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70) (Parte IV): Passaram os quatro primeiros meses... Em Contuboel, ainda longe da guerra...

(...) No romance, os militares pertencem a um CCAÇ 666 (que nunca existiu, no TO da Guiné). O nosso camarada José Martins, entretanto, conseguiu,  com o seu olho clínico, identificar, a partir da leitura do livro (e da consulta do 8º Volume, Tomo II da CECA, Fichas História das Unidades, Guiné, pag. 342), a subunidade a que pertenceu o Alf Mil Luís Cristóvão Dias de Aguiar, e que era a CCAÇ 800 (Contuboel, 1965/67):

Companhia de Caçadores nº 800

Unidade Mobilizadora: RI 15 – Tomar.

A subunidade foi formada com data de 1 de Janeiro de 1965, conforme Ordem de Serviço nº 2 de 4 de Janeiro de 1965 do Regimento de Infantaria 15 de Tomar. Destinava-se, inicialmente, ao arquipélago de Cabo Verde, tendo a partida prevista para a data de 13 de Abril de 1965.

Comandante: Capitão Inf Carlos Alberto Gonçalves da Costa, sustituído em Setembro de 1965 pelo Capitão Miliciano de Cavalaria António Tavares Martins (que tinha vindo da CCav 489/Bcav 490) (...).

Constituíam o quadro de Oficiais subalternos os Alferes Milicianos:

João Belchurrinho Baptista;
Luís Cristóvão Dias Aguiar;
João Faria Cortesão Casimiro;
e João Baptista Alves.

Partida: Embarque em 17 de Abril de 1965; desembarque em 23 de Abril de 1965; Regresso: Embarque em 20 de Janeiro de 1967 (...).

A CCAÇ 800 actuou sobretudo no subsetor de Contuboel, a nordeste de Bafatá.

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P4917: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (X): O difícil regresso à vida civil (JAN - JUN 1967)

Continuação do Diário de Guerra, de Cristovão de Aguiar (X)

Contuboel, 11 de Janeiro de 1967

Chegou alguma da tropa que nos vem render. O Capitão Miranda, oriundo da Mealhada, também veio. Tenho dó deles. O restante pessoal só virá no dia em que nós daqui sairmos - de hoje a uma semana, que não há instalações para toda a gente. Neste momento procede-se à passagem de testemunho e das armas. Quando entreguei a minha, fiquei mais leve e mais livre. Mas sempre pensei que este dia há tanto esperado ficasse percorrido de uma alegria bem mais funda. Tanto a sonhei ao longo destes infindáveis meses, que ela quase toda se gastou e agora encolheu-se e ficou tristinha. Ando magro que nem cação. Estou convencido de que tenho uma ténia agarrada à parede dos intestinos. Quarenta e nove quilos é pouco! Já pedi um medicamento para o efeito no posto médico e vou tomá-lo.


Contuboel, 13 de Janeiro de 1967

Um dia inteiro em jejum, só a água, para que o medicamento produzisse efeito. Nada. Nem ténia nem outros bicharocos. Fiquei ainda mais fraco com a abstinência.


Bambadinca, 18 de Janeiro de 1967

Aqui, à beira do rio Geba, para embarcarmos logo à noite em batelões para Bissau. Amanhã tomamos o Uíge para Lisboa. Assim sem espingardas nem pistolas, parece que ficámos subitamente indefesos e nus. E temos medo. Sobretudo que nos ataquem das margens durante esta noite de viagem por aí abaixo, até Pijiguiti. Não seria a primeira vez. A escolta que vai connosco não daria para as encomendas. Nunca mais acaba o pesadelo, sofremos até à última gota.


Bissau, a bordo do Uíge, 19 de Janeiro de 1967

Veio o Governador a bordo despedir-se das tropas e agradecer-nos, em nome da Pátria, o nosso esforço, sacrifício e abnegação. Seja tudo por alma da Pátria!, disse-me nos meus fundos. Garantiu-nos no final da derradeira golada de uísque que, em matéria de guerra, deixávamos este rincão pátrio melhor do que o havíamos encontrado à chegada. Mentiu com todos os dentes! A guerrilha alastra-se cada vez mais. O Capitão da minha Companhia ficou em terra. Ainda não completou o tempo de comissão e vai compensá-lo numa repartição qualquer. Nem fiquei triste nem contente, que, com esta magreza, se me esvaíram quase todos os sentimentos. Trouxe comigo o perdigueiro. Não houve qualquer problema na sua admissão a bordo. O Vila Velha, o meu guarda-costas, prontificou-se a tratar dele durante a viagem.


Lisboa, 27 de Janeiro de 1967

Não dormi isto sequer, com a ansiedade da chegada. Navega agora o navio Tejo adentro. Ainda é noite. Está frio lá fora e outro ainda mais gelado cá dentro em mim. Encontro-me no deck, enrolado num cobertor, à laia de capa de estudante de Coimbra que ainda sou. Vejo a ponte nova, Salazar chamada, e ao longe as luzes da cidade. Não me encantam nem me chamam. Ando de um lado para o outro e penso na vida e no futuro. E olho indiferente as luzes que se espelham, tremeluzindo, nas águas do rio. Serei capaz de vencer e de me vencer? Vou ter o meu filho no cais à minha espera. Com dois meses apenas. E talvez seja bom assim. Se tivesse entendimento, veria o pai já cansado e envelhecido e dardejando chispas de medo dos olhos fundos. Na flor da idade. Não minto. Vi-me no espelho quando me escanhoava pela última vez. Última, sim. É que daqui em diante vou deixar crescer a barba. Não foi promessa. Foi uma jura. E cada um tem direito à sua pancada. Mas sei as razões desta minha atitude, que, como todo o neurasténico que se preza, tenho explicação para tudo quanto me aconteceu ou porventura venha a acontecer-me. Um dia hei-de contar!


Tomar, 28 de Janeiro de 1967

Agora somos três e ficámos numa residencial junto ao rio Nabão. Logo de manhã cedo, tomei o pequeno-almoço e fui para o quartel novo, agora mais completo do que quando para aqui vim há dois anos. Ultimadas as formalidades de desmobilização, muito mais rapidamente do que pensava, principiei a sentir-me angustiado. Fiquei sem me perceber. Na hora há tanto ansiada em que me desligava do pesadelo, sentia-me em tremuras tais, que tive uma vontade urgente de pedir que me socorressem. Não foi preciso, que logo entrei em pânico. Levaram-me para a enfermaria e aí deram-me um calmante dos fortes. Ao fim de um quarto de hora, já estava mais calmo. Regressei à residencial, meio triste, cogitando na vida que tenho agora pela frente. E só então é que me lembrei que, antes de sair, havia tomado duas chávenas almoçadeiras cheias de café. Fui perguntar. Sim, era café puro e forte! Nem sequer posso tomar um dedal de café legítimo, que me dá tremedeira, quanto mais. E já não fiquei perturbado com a minha reacção pânica.


Estação de Fátima, 28 de Janeiro de 1967

Espero o comboio que me há-de levar para Coimbra, onde vou principiar uma nova fase da vida. Está um tempo esclarecido e a temperatura é amena. A alcofa com o meu filho está poisada no chão meio saibroso, meio areento da plataforma, ao ar livre. Dorme serenamente. Como não posso estar quieto, passeio com a Otília para trás e para a frente e vou-lhe traduzindo em palavras os meus receios no futuro. Estou deserto por me pôr à prova no campo académico. A minha obsessão é concluir o meu curso de letras. Sei que muitos que voltaram da guerra não o conseguiram. E eu? Chega o combóio. Pego da alcofa e subo para a carruagem. Fecha-se-me um pano de boca de cena atrás das costas.


Coimbra, 1 de Fevereiro de 1967

Entrei na Faculdade de Letras como um condenado. Encontrei no sexto piso o meu velho professor de Língua Alemã, o Doutor Helling, uma santa criatura, que, ao ver-me, se assustou. Não o soube disfarçar, que bem lhe vi o rosto perturbado. Ao fim do baque perguntou-me: - O minino sente-se mal, está doente? - Respondi-lhe que acabara de chegar da guerra colonial. E pelo que me disse a seguir, verifiquei que podia contar com ele. Sim, iria rever o meu alemão esquecido e depois de me sentir bem preparado, apresentar-me-ia a exame. Com as regalias militares, posso fazer exame quando quiser. Miminhos da Pátria agradecida.


Coimbra, 14 de Junho de 1967

Os efeitos da guerra continuam e de que maneira. Tenho corrido um ror de médicos no intuito de obter algum alívio. Um professor da Faculdade de Medicina, a pedido do meu conterrâneo, Prof. Linhares Furtado, a quem consultei, descobriu que eu tinha, nos intestinos, um anchilostoma raríssimo. Bicharia da Guiné. Ficou contente pela descoberta e não me levou um tostão. Receitou-me um medicamento chamado Mintzol. É um líquido branco, espesso, que tomei por duas vezes, no mesmo dia. Ia morrendo da cura. Estive oito dias de cama, quase sem forças para articular uma palavra e em soltura constante.


Coimbra, 28 de Junho de 1967

Estava há dias estudando num cubículo que tenho no terraço de casa e me serve de escritório, quando a Otília lá entrou a perguntar-me o que queria que ela fizesse da minha farda camuflada, que trazia na mão para me mostrar. Andava em arrumações. Eram dez horas da noite. Havia fogueiras de São João no Largo de São Salvador, na Alta, nas traseiras da minha República. Passou-me um clarão pela cabeça e disse-lhe: - Deixa cá ver a farda. - Sem uma palavra, passou-ma para as mãos. Fardei-me e saí de casa, sem ouvir sequer um resmungo. Ao chegar ao Largo de São Salvador, o bailarico estava animado e meti-me na roda mascarado de guerreiro. O meu amigo Germano Rego Sousa, da República dos Corsários e aprendiz de psiquiatra, também lá estava. Num fim-de-semana que vim passar a Coimbra, quando andava por Mafra, ofereceu-me um poema que começava assim:

Gosto de ti, poeta triste
Que cantas a saudade de mares não percorridos
E trazes o cheiro de estranhas terras
Que não descobriste [...].

Gosto de ti, poeta,
Que chegas com a mala abarrotando
De uma camisa e de um livro de poesia
E que esqueces às vezes a camisa,
Que essa, pode-se esquecer,
Mas nunca a poesia [...].

Quando me viu naquele preparo, fardado de guerreiro da guerra colonial, deve ter torcido o nariz e desconfiado da minha sanidade mental. Aproximou-se de mim. E, muito delicadamente, pediu-me que o seguisse até à República, que queria falar comigo. Falou, interrogou, como se me estivesse praticando psicanálise. Por fim pediu-me que no dia seguinte fosse à clínica onde trabalha com o Louzã Henriques, a de Santa Teresa, que me queria fazer testes. Fui. Vim de lá com um arsenal de amostras de medicamentos para tomar. Ando a cair de sono pelos cantos da casa e de mim.
__________

Notas de CV:

Cristóvão de Aguiar foi Alf Mil da CCAÇ 800, Contuboel, 1965/67

Vd. último poste da série de 25 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4860: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (VII): Nascimento do primeiro filho (OUT - DEZ 1966)

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P4893: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (IX): Nascimento do primeiro filho (SET - DEZ 1966)

Continuação do Diário de Guerra, de Cristovão de Aguiar (IX)

Bissau, 20 de Setembro de 1966

A Otília embarcou hoje para Lisboa. Viemos de cima, do mato, há três dias. Seguiu há pouco num avião militar, com uma bar­riga enorme de quase sete meses. Deve nascer o pimpolho em fins de Novembro, princípios de Dezembro. Vou ficar em Bissau durante mais uns tempos para me tratar, que não consegui aguentar-ne nas canetas psicológicas.

Bissau, 26 de Setembro de 1966

Poema para minha Mãe, que faz hoje quarenta e sete anos de vida:

“O MENINO DE SUA MÃE”

- Mãe, que é do teu menino,
Tão breve,
Brincando no caminho,
Em corridas de pé leve,
Guindando as poças da chuva,
Que caía em desatino
E logo estiava num instantinho?
- Que será feito do arco e do pião
E da fieira que se apertava no bojo como uma luva
Que o teu menino, à mão, zunindo, o lançava,
E da Lua clara que nem lampião,
Que, vagarosa, no céu viajava?

- Onde o marulho do mar
Que aquietava o teu menino,
E dos barcos de papel
Nas valetas rasas de água a cirandar?
Que lhe destinaram do destino
De flores e mel
Que lhe afian­çaste outrora?
E da Paz das noites benditas,
Do Deus em que ainda acreditas
E que o teu menino foi esquecendo,
Não O compreendendo
Por desdita agora?

- Onde o berço
Em que o embalavas,
E das preces da hora do deitar
- Nunca o terço! 
(Com Deus me deito, com Deus me levanto...)
E dos casos que lhe con­tavas,
E das cantigas soando a mar
(Assim era o teu canto!)
Que devagarinho en­toavas
Para teu menino nanar?
- Dize-me, Mãe, onde morreste
O teu menino?, em que desvão o escondeste
Para o ir procurar?

- Sabes, Mãe, o teu menino está tão di­ferente:
Velho e absorto
E sobretudo tão ausente
(Dir-se-ia quase morto)...
O teu menino
Já não salta ao eixo
Rebaldeixo
No adro paroquial,
Nem no ci­mento da Avenida...
Nem tão-pouco joga (o que é o destino),
O seu pião de fieira colo­rida,
Que há tanto tempo se rachou...
E o arco de ferro forjado,
Com a sa­pata feita do mesmo metal,
Foram-se enferrujando num recanto
Da encantada casa-de-trás...
Depressa  o tempo foge 
O teu menino tornou-se rapaz
E dá a viva ideia de que é hoje
Uma visão alucinada de soldado...

Onde já lá vão as guer­reias
Tra­vadas na Canada da Sabina
Em que havia muita pedrada,
Baba e ranho, alarido e arengada,
Chegando o sangue a esguichar das veias?...

Ficava a Canada quase em frente
Da casa de madrinha Rufina,
Que um dia se despediu da gente
E se foi para a Amé­rica no voo da carreira...
Tudo então se passava entre o rapazio:
Os de Cima e os de Baixo, que, cheios de brio,
Defendiam à tapona e à porrada
A rigorosa fron­teira
Que separava os de cada lado da Canada...

Entre­tanto toda a vida se en­rodi­lhou,
E ela tem agora um travo a puro fel...
Só da noite mais noite é te­cido o teu menino,
Vive ainda em maior escuridão que o destino,
Que se não cum­priu e ficou em ruínas
- São as nossas sinas
Mas nunca se há-de ele es­quecer
Que um dia que já não existe
De teres prometido ao teu menino
(Ele não se lem­bra agora se já então era triste),
Embarcado em seu batel de ilusão
E de papel,
- O tal des­tino
Que, como vara de condão,
O haveria de transmu­dar em flores e mel...
Todavia, cá dentro, ele perma­neceu e continua refém...
Há-de ser resgatado, quem sabe, na Banda do Além...

A tua bênção me cubra, minha Mãe!


Bissau, 27 de Setembro de 1966

Aqui estou há mais de uma semana em trata­mento psiquiátrico. Vejo tudo envolto numa pelí­cula de sono saboroso! Comecei por matar vacas e carneiros a tiro de Walter e de G3. Faziam barulho, mééé, e eu não su­portava o mínimo ruído, sobretudo de noite. Havia, porém, quem matasse carreiros de formigas com a G3. Mas eu pagava o prejuízo aos seus donos. Se era alta noite, gri­tava pelo cozinheiro e seus ajudan­tes e mandava que esquarte­jassem os animais, para que depois a carne servisse para o nosso sustento. Chamava depois os indígenas, seus do­nos, logo de manhã ao quartel, per­guntava-lhes o preço dos ani­mais e pagava o que me pediam. Matava gatos também, mas esses ti­nham sete fô­legos e levavam muito tempo a morrer: esper­nea­vam e miavam de tal ma­neira, que quase me en­doideciam. O pior foi o ensaio de pancadaria com cavalo mari­nho que dei num furriel. Mandei a Otí­lia para casa de um comerciante cuja mulher convivia por vezes com a minha, pre­tex­tando-lhe que queria ter uma conversa em particular com um militar. Foi a gota de água que fez com que o médico da com­pa­nhia me vi­es­se a sugerir, com muito bons modos, que, quando fosse a Bissau levar a Otília, ficasse por lá, a fim de des­cansar. Estava com o meu grupo de com­bate em Sonaco há mais de um mês. Ali era o re­pouso do guerreiro. Tinha um cachorro lindo, arra­çado de setter. Andava um dia a passear, ao lusco-fusco, na rua com­prida de So­naco, quando ouço atrás de mim o jipe da patrulha. Não deram por mim, que an­dava na berma. Só enxergaram o cachorro, que vinha no meio do caminho. E ouço então o furriel a dizer para o con­dutor:  Mata o cão do nosso alferes.  Não foi pre­ciso mais nada. Denunciei a minha pre­sença e ordenei-lhe que se apre­sen­tasse no quartel imediatamente. Obedeceu. Depois levei-o até à minha palhota. E foi en­tão que lhe toquei a pavana com o ca­valo marinho. Mas, não há dúvida, os medica­mentos que estou to­mando estão produzindo bom efeito. Já vou exercendo autocrí­tica sobre os meus actos passa­dos.


Bissau, 5 de Outubro de 1966

ALMA DOLENTE

A tristeza das coisas ao sol poente,
Falando, muda, numa voz precisa,
Escuta-a quem tem a alma dolente
E a dor de uma ânsia que se eterniza.

O Universo absoluto é uma ferida,
Lateja, arde, geme, sem compasso...
Dói tudo no silêncio, e a própria vida
Escorre vagarosa em gotas de cansaço...

Oh negrume tropical, noite africana,
Oh escuridão do medo em cada esquina
Com a vida enforcada em pó e lama,

Arranca do ventre tuas vinganças
E este ódio que as almas assassina
E deixa o Sol brincar com as crianças...


Contuboel, 7 de Outubro de 1966

O Dakota militar, vindo de Bissau, fez-se à pista térrea de Bafatá. Mas, quando tocou no solo, foi-se desviando para o mato, meio desasado. Parou a tempo de não haver desgraça. Tinha rebentado um pneu de uma das rodas do trem de aterragem. Como era dia de santo correio, estavam um jipe e um Unimog da minha companhia no aeródromo e assim aproveitei a boleia e vim logo para casa, que já tinha saudades dos meus cães e dos serões ouvindo a Voz da Liberdade e das tertúlias poéticas, em que lia, em voz alta, para um grupinho muito restrito, os versos da Praça da Canção, de Manuel Alegre, e também da Antologia da Poesia Erótica e Satírica, organizada por Natália Correia, que, por tal facto, teve de responder em tribunal, tendo a obra sido apreendida. Mandou-ma um elemento do Movimento Nacional Feminino, quando aqui esteve uma delegação de três meninas universitárias. Pedi-a no gozo. Nunca julgava que, ao fim de um mês, tivesse nas mãos uma obra proibida pela PIDE, enviada por quem foi.


Contuboel, 10 de Outubro de 1966

Chegou há semanas, estava ainda em tratamento em Bissau, uma ordem do comando-chefe, via batalhão de Bafatá, destinada a todas as unidades do mato, sobretudo àquelas prestes a partir, avisando que os soldados que não sabem ler nem escrever terão de embarcar da Guiné pelo menos com o exame do primeiro grau, ou seja, a terceira classe da instrução primária; caso contrário, quando chegarem à Metrópole, não poderão ser desmobilizados e ficarão nas respectivas unidades até concluírem aquele exame. O mesmo acontecerá àqueles que, tendo embora o exame do primeiro grau, saírem daqui sem o diploma do exame da quarta classe. É uma ordem injusta, não por ela em si nem pelo seu alcance, mas pelo facto de estarmos a pouco mais de três meses do regresso e não haver tempo suficiente nem condições psicológicas para uma intensiva preparação escolar dos soldados em tamanho estado de indigência cultural. Por outro lado, também não se percebe muito bem o súbito interesse das hierarquias militares pelos seus homens analfabetos e pelos outros que só têm a terceira classe. Deve ser para dar alimento às estatísticas. O capitão pôs logo mãos à obra, isto é, nomeou alguns voluntários e já se começou há tempos a dar escola. Dois furriéis milicianos e um alferes (eu próprio, que me juntei há pouco), iniciaram então a tarefa de mestre-escola. Garanto que toda a gente irá embarcar com o seu diploma na mão, custe o que custar. Por desmobilizar é que não ficam, não senhor. Era o que faltava, depois de uma comissão desta natureza, permanecerem os pobres coitados retidos no Regimento de Infantaria 15, em Tomar, até completarem os estudos. Os alunos são em número de dez: seis que não enxergam uma letra e os outros quatro pouco mais sabem, pois têm um primeiro grau muito atrasado e esquecido.


Contuboel, 23 de Novembro de 1966

Estava sentado no estabelecimento do comerciante português, lendo o Arauto, o pasquim da província, e fumando intensivamente cigarro atrás de cigarro, quando chega o nosso capitão com um papel numa das mãos. Era um telegrama que tinha vindo via rádio, anunciando-me que era pai. Fiquei néscio e sucinto. Pai! E escrevi, num aerograma amarelo, um poema ao meu filho José Manuel, a primeira missiva que recebe na vida, que ainda agora principiou...


Bafatá, 12 de Dezembro de 1966

Exame dos alunos da Companhia de Caçadores 800. Cometi um acto sacrílego, mas não havia outra escapatória. Sacrilégio maior seria deixar que estes homens ficassem na tropa mais alguns meses, ou um ano, sei lá bem, depois de terem sofrido o que sofreram nesta guerrilha diabólica de nervos e do resto, que foi ainda pior. Falei com a senhora professora, uma cabo-verdiana lindíssima, de fazer refrear a respiração. Disse-lhe da minha justiça e das minhas intenções. Ela, com o seu brio profissional à flor da pele sedosa:

- Não, senhor alferes, não posso consentir numa palhaçada dessa natureza, pelo amor de Deus. - Principiei a seduzi-la e ela foi caindo de tal modo na esparrela, que, quando a convidei a sair da sala de exame, obedeceu, sem pestanejar. Depois. Olha, depois! Depois, encarreguei-me eu próprio de fazer o exame escrito, com caligrafia de principiante, a condizer, dos seis semi-analfabetos, que o tempo de aprendizagem e a disposição de ensinar foram mesmo muito escassos, enquanto os meus camaradas se incumbiram dos restantes. No fim, ficaram todos aprovados e a professora, ao entrar na sala após ter sido avisada de que terminara a prova para lhe entregarmos as respostas, lançou-me uns olhos tão doces, que me deu vontade de lhe tomar lições de qualquer disciplina.


Contuboel, 25 de Dezembro de 1966

Uma noite de Natal já com um grão de esperança no seu ventre e outro bem pesado na asa. Daqui a menos de um mês, vamos de abalada. Até parece mentira. As cruzinhas estão chegando ao fim.
__________

Notas de CV:

Cristóvão de Aguiar foi Alf Mil da CCAÇ 800, Contuboel, 1965/67

Vd. último poste da série de 28 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4876: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (VIII): Estadia em Contuboel e Sonaco com a Otília (JAN-AGO 1966)

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4876: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (VIII): Estadia em Contuboel e Sonaco com a Otília (JAN-AGO 1966)

Continuação do Diário de Guerra, de Cristovão de Aguiar (VIII)

Contuboel, 12 de Janeiro de 1966

Ontem o nosso batalhão, Sete de Espadas, so­freu dez mortos numa emboscada. Tinha ficado com o meu pelotão na base, para montar a segurança e dar apoio logístico, quando, pouco depois de terem par­tido para uma operação no mato do Caresse, terra-de-ninguém e de muita pancada, se ou­viram grandes rebentamentos na direcção que tinham tomado. Uma hora e pouco mais tarde, chegou uma viatura com os mortos a trouxe-mouxe sobre o es­trado da carroça­ria. Ti­nham morrido ali como tordos, de­pois de os guerrilheiros te­rem lan­çado algumas gra­na­das defensivas para o interior da GMC. Fiquei encar­regado de transportar aquela carne humana para Fa­jon­quito, sede de uma compa­nhia tam­bém pertencente ao nosso bata­lhão.


Fajonquito, 13 de Janeiro de 1966

Enquanto o capelão procedia às exéquias fú­nebres e rezava missa campal por alma dos dez mortos irreconhecíveis, safei-me, re­voltado, para um canto solitário, longe de toda aquela cruel comédia desumana. E pe­guei da esferográfica e do meu caderninho e fui escrevinhando:

O VISIONÁRIO

Rasguem-se as corti­nas do sacrário,
Onde ficou Jesus aprisionado
Tal como há dois mil anos no Cal­vário
Pregado num madeiro, ensanguentado...

Era Sua Pala­vra pão sagrado
E o gentio que escutava o Visionário
De tal arte ficou maravi­lhado
Que O elegeu seu re­volucionário...

Depois, o tirano, opressor do povo,
Julgando apagar esse Sol novo
Mandou matar o vate desordeiro...

Crucificaram-no então no Calvário:
- Está agora a ferros num sacrário,
Não vá Ele tornar-se guerrilheiro...


Bissau, 17 de Janeiro de 1966

Vim ao aeroporto de Bissalanca esperar a Otília, que vem passar uns meses comigo nesta guerra. Se calhar, foi uma loucura da mi­nha parte. Sem dúvida que foi. E egoísmo. Chame-se-lhe o que se quiser, mas, an­tes de morrer, gostava de deixar descendência. Ficámos instalados no Grande Hotel de Bis­sau, que só tem grandeza no nome.


Contuboel, 19 de Janeiro de 1966

Acabámos de chegar de Bissau, eu e minha Mulher. A nossa casa é um espaço vago, quarto e corredor, que me cedeu o Chefe de Posto e que fica contíguo ao edifício. Não há água nem electricidade. Alumiano-nos a petro­max. A água virá todos os dias do quartel, que fica a meia dúzia de pas­sos, para um barril que coloquei na extremidade do corredor oposta à porta de en­trada, onde, com um reposteiro, fiz um pequeno compartimento que vai servir de cozinha. Antes de minha Mulher chegar, arranjei o nosso quarto o melhor que pude: consegui uma cama de casal, pus cortinas nas janelas, cujo pano comprei no comércio do libanês e que um alfaiate indígena depois talhou, acertou e coseu, mandei fazer uma mesa de boa ma­deira africana. Este é que é verdadeiramente o chamado amor e uma ca­bana.


Contuboel, 14 de Fevereiro de 1966

A Otília está grávida, pelo menos tem to­dos os sintomas de uma mulher nesse estado: enjoos, vómitos. Se for mesmo ver­dade, isto significa que, se me for desta para melhor com um qualquer tiro desgo­vernado, já deixo rastro atrás de mim. Um filho engendrado na guerra!


Contuboel, 16 de Março de 1966

Fomos hoje a Fajonquito, povoação a mais de vinte quilómetros de distância, onde também se encontra uma Companhia de Ca­çado­res. A Otília foi comigo, a fim de consultar o médico, meu companheiro da República Corsários das Ilhas, em Coimbra, e muito nosso amigo. A Otília queixa-se das pernas, parecem picadas de mosquitos, mas não são. O Ormonde de Aguiar, assim se chama o meu velho companheiro de Coimbra, disse que se tratava de uma qualquer doença de pele e deu-lhe uns medicamentos para o efeito.


Contuboel, 7 de Abril de 1966

Quando vou para o mato por dois ou três dias, a Otília não tem medo de ficar sozinha em casa. É mesmo uma mulher de armas! Fica bem guardada pelas sentinelas que os cipaios fazem dia e noite ao Posto Ad­ministra­tivo, além de ter o quartel à mão de semear. O medicamento que o Or­monde lhe recei­tou fez muito bom efeito: já não tem nada nas pernas.


Contuboel, 23 de Abril de 1966

Faz hoje um ano que desembarcámos em Bis­sau. Não me esqueci de des­carregar a cruz na casa do calendário. Esta é já a tricen­tésima, sexagésima sexta, se me não engano. Esta­mos já a dobrar o cabo tormentó­rio. A partir de agora, começa o tempo a de­s­cer. É a altura de se principiar a ter muito cuidado com a vida, que a morte gosta de pregar partidas nestas ocasiões lembra­das.


Sonaco, 30 de Julho de 1966

O meu pelotão foi finalmente destacado para aqui, que, no meio deste inferno, é um lugar sofrível. A Otília prefere aqui estar. Temos uma espécie de casa de paredes de adobes e coberta de colmo, mesmo ao lado do quartel, mais fresca do que a de Contuboel. Da porta de trás da casa, dou as minhas ordens ao pessoal da cozinha sobre a ementa do dia. Temos aqui uma pista térrea onde poisa uma Dornier com facilidade. É lá que treino a minha con­dução no jipe que per­tence ao destacamento.


Sonaco, 9 de Agosto de 1966

A Otília fez hoje anos e por isso houve rancho me­lhorado. Dormimos com as janelas das traseiras abertas por via do calor e do peso da humidade. Para evitar que os mosquitos e outra bicheza, aqui aos milhares, mordam a gente, mantemos aceso um repelente do qual se evola uns fuminhos cujo odor intenso os afugenta. O pior são os gatos que vêm ao cheiro da comida e fa­zem, por vezes, uma estreloiçada de me pôr maluco. Ando com os nervos em franja, por isso qualquer barulho, por mais pequeno que seja, põe-me transtornado. Uma noite destas fui acor­dado e apanhei tal susto que peguei logo da espingarda, encostada à parede, à ilharga da cama do meu lado, acordei a Otília, disse-lhe que ia disparar, que se não assustasse, poisei o cotovelo esquerdo na sua já proeminente barriga, apoiei o cano da arma na mão canhota meio em concha, encostei a coronha ao ombro direito, fiz pontaria e dis­parei, uma, duas vezes. Matei um gato e os ou­tros desape­garam-se. A Otília não me disse sequer uma palavra mais azeda e tinha toda a ra­zão para o fazer. Virou-se para o ou­tro lado e principiou logo a dormir.
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Notas de CV:

Cristóvão de Aguiar foi Alf Mil da CCAÇ 800, Contuboel, 1965/67

Vd. último poste da série de 25 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4860: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (VII): Estadia em Contuboel e Dunane (OUT-DEZ 1965)