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quinta-feira, 7 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24631: CCAÇ 675 - Guiné, 1964/66 - Retalhos do nosso pós-guerra - I (Belmiro Tavares, ex-Alf Mil Inf)



C. CAÇ. 675
Guiné 1964 / 66
Retalhos do nosso pós-guerra - I

Belmiro Tavares

A C. Caç. 675 continua viva! Apesar de fortemente “desfalcada”… quanto mais velha, melhor! Isto não acontece apenas com o Vinho do Porto. É caso para dizer que nada (ou quase nada) conseguirá impedir-nos de cumprir a nossa extraordinária missão… a não ser a morte… por enquanto. A essa ainda não conseguimos sobrepor-nos, mas… na nossa segunda vinda a este mundo, talvez não tenhamos… adversários invencíveis. Até lá… seja o que Deus quiser!

Passe a graça! É de graça!
Coloquemos, de novo, os pés no chão!

Ultrapassada a pandemia (dela ainda restam certos resquícios mais ou menos percetíveis) regressámos às nossas confraternizações anuais mas, agora, com mais genica. Dado que temos “companheiros” espalhados por todas as províncias do continente (temos também um “teimoso” que, de boa saúde, vive na Madeira) e porque a idade vai ditando as suas leis rígidas, decidimos organizar, anualmente, dois convívios: um para a “rapaziada” do norte e outro para os que vivem na zona sul. Não creiam que há sectarismo nesta decisão. Nem pensem! Cada um escolhe, de sua inteira e livre vontade, em qual pretende participar; por outro lado, todos podem estar presentes nas duas. Todos serão bem-vindos! Acima de tudo, que ninguém esqueça os familiares.

Acontece que nem só de convívios vive a nossa C. Caç. 675, a gloriosa. Voltámos a colocar lápides nas sepulturas dos nossos companheiros que, entretanto, nos foram abandonando, para sempre. É a rígida lei da vida!

Esta é já a terceira série! No início dos anos setenta (século passado) colocámos as primeiras quatro lápides nas sepulturas dos três companheiros que morreram em combate, na Guiné (soldado Augusto, furriel miliciano Vilhena Mesquita e o soldado João Nascimento); como entretanto, faleceu o 1º cabo enfermeiro nº 2533, António Martins; morreu num acidente de viação, aquando da visita a sua mãe, em Tondela, a sua terra natal, depusemos também uma lápide na sua sepultura.
A partir de maio de 1966, terminada a comissão na Guiné, o Rato ficou a viver em Lisboa; exercia a profissão de enfermeiro num qualquer hospital da capital.

Falemos um pouco deste cabo enfermeiro que nos acompanhou na Guiné durante dois anos infindáveis e de quem se contam inúmeras brincadeiras inofensivas e engraçadas.
No dia a dia, era um desenrascado nato mas era igualmente corajoso e competente no desempenho das tarefas inerentes à sua especialidade – enfermagem.
Não defendemos que ele era melhor ou mais eficiente que os outros dois, pois todos eram bons, briosos e decididos. Acontece que, quando o doente (ou o ferido) confia plenamente em quem o trata (médico ou enfermeiro) se o profissional sabe insinuar-se e é bem aceite, é meio caminho andado para a total recuperação. Era o que acontecia com o “Rato”. Ele sabia penetrar no coração e na alma do doente e o este confiava, piamente no que ele dizia ou fazia.

Vamos contar duas façanhas acerca do “Rato”; ambas ocorreram em Guidage mas em épocas diferentes e sob as ordens de oficiais diversos.

A primeira ocorreu em março de 1965, quando o mui ilustre e digno “capitão do quadrado”, em cumprimento de ordens superiores, enviou para Guidage (um posto fronteiriço no norte da Guiné) o signatário destas linhas com o seu pelotão. Ao receber a ordem de partida, o alferes, mui respeitosamente, perguntou ao seu comandante qual era a sua missão naquele autêntico desterro. Seria preferível viver na sede da companhia com toda uma série de patrulhas frequentes e mais ou menos perigosas ou “morrer de tédio” na solidão de Guidage? Que venha o diabo e escolha!

O sábio capitão de Binta respondeu que, segundo informações da PIDE (polícia internacional de defesa do estado), um grupo de chefes políticos do PAIGC (partido africano para a independência da Guiné e Cabo Verde) iria deslocar-se a Sambuiá (uma base fortíssima a norte do Cacheu e a poucos quilómetros da fronteira com o Senegal) para apaziguar as chefias daquela base; havia, ali, desentendimentos graves entre os chefes. Seria urgente reverter a situação, enquanto era tempo. Nós pensaríamos o contrário: quanto mais desentendimentos… entre eles… melhor!

Quanto à PIDE, essa salazarenta organização policial de má fama, podemos dizer que, durante a mui longa e perigosa guerra colonial, ela prestou muitos e valiosos serviços às nossas Forças Armadas; em alguns casos, houve resultados notáveis. Lembremos apenas o apoio que os “pides” prestaram, durante anos, aos nossos prisioneiros, nos calabouços de Conacri e a sua posterior libertação – operação Mar Verde. Poderá dizer-se que, mesmo aquilo em que não acreditamos ou de que não gostamos ou até odiamos, pode proporcionar ajuda prestimosa às nossas cores, como é o caso. Esta é a face boa e patriótica da PIDE.

Durante vários anos, umas dezenas de militares portugueses penaram miseravelmente na prisão de Conacri (capital da Guiné ex-francesa), cujo governo apoiava, abertamente, a guerrilha da Guiné-Bissau que pretendia libertar-se do domínio português. Por incrível que possa parecer alguns conseguiram sobreviver ali, penando, durante bem mais de uma dezena de anos.
Graças a Deus, a PIDE não os abandonou!
Imagine-se os perigos que alguns “pides” correram para fazer chegar aos nossos prisioneiros lembranças e correspondência dos seus familiares. “Mascaravam-se” de comerciante, subornavam polícias e carcereiros para poder contatar diretamente aqueles prisioneiros infelizes, massacrados e abandonados. Faziam isto, duas vezes por ano, no mínimo.

A PIDE colaborou, abertamente, na operação “Mar Verde” que provocou a libertação daqueles portugueses e trouxe-os de volta a Portugal. Entre aqueles massacrados prisioneiros, havia pelo menos um piloto aviador de nome Lobato, creio.
Esta terá sido, talvez, a faceta mais apreciável e até louvável daquela “salazarenta organização policial”. A maior parte das grandes operações levadas a cabo durante a Guerra do Ultramar, teve por base informações da PIDE e a tropa ia agindo a contento.

A missão deste vosso alferes, junto à fronteira norte, era impedir a passagem dos tais chefes políticos, pelos nossos terrenos, nas imediações de Guidage. Mui respeitosamente, este alferes manifestou a sua opinião:
- Para cumprir, cabalmente, tal missão eu terei de montar emboscadas permanentes, ao longo da fronteira. Acontece que, durante a noite, os adversários podem passar bem perto das nossas barbas, sem que nos apercebamos de tão ousada e perigosa presença. Por outro lado, nem os meus soldados nem eu poderemos suportar, impunemente, tão desmesurado e perigoso sacrifício que, na pior das hipóteses, poderá tornar-se inglório por falta de resultados. Ninguém nos informa sobre o itinerário aproximado que eles vão usar nem sequer a hora de passagem. Eu preciso dos meus soldados (e eles necessitam de mim) até ao fim da comissão que ainda é quase uma miragem. Trata-se dum sofrimento enorme e, certamente, sem resultados condizentes e poderá marcar-nos, negativamente, para o resto da nossa comissão.

A resposta do inigualável capitão foi clara e… convincente. Ei-la:
- Como deve calcular, eu confio em si! Faça o que melhor entender para cumprir a missão, cabalmente, enaltecendo o bom nome da nossa C. Caç. 675 e das nossas Forças Armadas.
Você leva consigo o enfermeiro Martins que, a qualquer hora, é eficiente; leva também o Machado (um soldado atirador natural de Cheleiros, Mafra), que tinha ganas de ser enfermeiro; na prática, até foi.

O alferes em causa e o seu pelotão lá foram até Guidage; no grupo seguiram o Rato (enfermeiro) e o Nhaca (ajudante ou aprendiz de enfermagem).
O enfermeiro Martins não perdeu tempo para iniciar a sua atividade, lá, quase sobre a linha de fronteira, onde o diabo perdeu as botas. Começou a dar consultas diárias, não só aos militares mas também aos civis que, vindos do Senegal, ali procuravam “mezinho” para todas as suas maleitas. Em Guidage, onde estava sediado um outro pelotão, praticamente não havia população civil; mais tarde… havia ali um bom número de “retornados” – portugueses da Guiné que, para fugir às agruras da guerra, se refugiaram no Senegal, junto dos seus irmãos étnicos (etnia mandinga) que viviam nos dois lados da fronteira.

Imaginando que os medicamentos ali distribuídos, gratuitamente, poderiam ir parar às “mãos” dos nossos adversários que tinham apoio do governo do Senegal, o alferes determinou que o “mezinho” teria de ser tomado, ali, pelos “doentes” e na presença do enfermeiro ou do seu ajudante.
O enfermeiro Martins, por seu lado, exigia que os “doentes” civis o chamassem por dr. Martins. Para terem direito a consulta gratuita e aos medicamentos “à borla”, os doentes teriam de trazer galinhas ou frangos para oferecer ao sr. Doutor. Era um João Semana… dos tempos modernos!

Sabendo que a população dava “apoio logístico” (ou a isso seria obrigada) aos guerrilheiros do PAIGC, o alferes informou os supostos doentes:
- Se, durante a minha permanência aqui, em Guidage, este quartel for atacado, eu enviarei umas morteiradas (granadas de morteiro, neste caso de calibre 81) sobre a vossa aldeia.
Todos negaram dar apoio aos combatentes, nossos adversários, mas nós sabíamos que a sua atuação (no mínimo a de alguns) era bem diferente do que nos transmitiam, amigavelmente.

Dias volvidos, o quartel de Guidage foi atacado (em modo soft); nós respondemos em força ao ataque dos adversários e, logo, duas ou três granadas de morteiro caíram na aldeia senegalesa. Conclusão:
1 – Não houve vítimas entre os civis – o que muito nos agradou;
2 - Durante uma semana não tivemos lavadeiras.

Como em Guidage não havia população civil, as mulheres senegalesas lavavam a roupa a cada um de nós, cobrando esc. 50$00 por homem/mês. Por outro lado, o nosso conhecido, “dr. Martins”, perdeu a clientela civil. Em breve tudo se recompôs: eles precisavam de tratamento médico e as lavadeiras faziam-nos uma falta do caraças. O dr. Martins (um enfermeiro autopromovido a doutor) recuperou a clientela e continuou a ser “remunerado” com galinhas e frangos.
No final das consultas, o enfermeiro Martins tinha de proceder à conferência do material utilizado - era tempo das vacas magras! Os descartáveis (usa e deita fora) ainda não tinham sido “inventados”. Um dia, faltava uma agulha da seringa; tudo era controlado ao centavo e ao centímetro. A falta de uma mísera agulha de seringa poderia dar origem a castigo severo se se provasse que houve dolo e/ou negligência. A balbúrdia (irresponsabilidade) surgiu entre nós, uns anos mais tarde, logo após a Revolução dos Cravos.

Por vezes podia-se driblar a justiça se houvesse inteligência e bons conhecimentos técnicos.
Vejamos: os caldeiros da nossa cozinha estavam irremediavelmente deteriorados; era tal a sua debilidade que já não “suportavam” a soldadura. Naquele tempo, tudo tinha duração estipulada, mas os materiais recentes não tinham a qualidade e a duração dos antigos. No entanto, o legislador “esqueceu-se” de colocar em prática a adaptação e a correção necessárias. O célebre capitão de Binta solicitou à Intendência que procedesse à substituição dos ditos caldeiros porque “já não cumpriam o fim a que se destinavam”. Pediram explicações. O capitão argumentou que a ruína prematura se devia ao uso excessivo dos caldeiros. Todos eram usados diariamente porque fornecíamos aos soldados sopa e um prato às duas refeições.

Eis a resposta dos entendidos (burocratas) da Intendência:
- O uso excessivo não justifica a ruína prematura!
Seria inútil argumentar porque… o chefe tinha sempre razão!

Volvidos poucos dias, os nossos adversários (os combatentes do PAIGC) colocaram uma mina na estrada de Guidage (mais precisamente na bolanha de Cufeu) a qual foi despoletada por um caminhão Mercedes. O motor da viatura “desencaixou-se” e desapareceu nas águas turvas e lodosas da bolanha. Apenas o condutor da viatura ficou ferido num pé; foi evacuado para Lisboa e… meses mais tarde, “passou à peluda”.

O nosso excelente capitão informou a Intendência que todos os caldeiros seguiam na viatura sinistrada e desapareceram nas águas pútridas da bolanha de Cufeu. Recebemos, imediatamente, caldeiros novos… em folha. Valeu a pena! É o que vale a burocracia!

Perante aquela falta duma mísera agulha de seringa, o enfermeiro alertou o seu ajudante:
- O Nhaca! (era a alcunha do soldado Machado) falta uma agulha da seringa! O Machado esbugalhou os olhos, bateu com a palma da mão na testa e saiu do “consultório” em corrida desenfreada, em direção à bolanha que servia de fronteira entre a Guiné e o Senegal; bolanha é um terreno alagadiço onde também se cultiva arroz. Abeirou-se duma “bajuda” (rapariga, “teoricamente”, virgem), levantou-lhe a saia (um tecido enrolado à cintura) e recuperou a tal agulha que ela levava espetada no traseiro.
Acreditem que é verdade!
Correu de regresso até ao aquartelamento e, esbaforido, disse, contente, ao seu chefe:
- Está aqui a agulha que faltava!

Meses mais tarde o mesmo enfermeiro e o mesmo ajudante voltaram a Guidage, exercendo as mesmas tarefas, mas agora integrados em outro pelotão. Os dias corriam modorrentos mas, de repente, tudo se complicou… e de que maneira!

Ao fim da tarde de determinado dia, dois soldados (o Coelho e o Artur José) saíram do quartel, espingardas na mão, para tentar caçar algo que lhes proporcionasse um bom petisco. Certamente, não terão avisado os seus superiores de tão inopinada saída. Entretanto, à hora pré-determinada, o sargento de serviço fechou o portão (uns fios de arame farpado) e armadilhou-o, como acontecia, a cada dia. Os “pretensos caçadores” voltaram, de mãos vazias. Não se lembraram que o portão poderia estar armadilhado, e abriram-no, displicentemente, para entrar. A armadilha funcionou. Cumpriu-se o aforismo: - “as nossas armadilhas nunca falham… contra nós!”
O Coelho foi atingido por uns tantos estilhaços (mini estilhaços)… nada de grave; o Artur, por seu turno, ficou com a veia femural desfeita numa extensão de sete centímetros.

A noite caía inapelavelmente! O helicóptero já não podia sair da base, em Bissau – não estava equipado com meios de orientação noturna. Era a guerra dos pobres!
Era imperioso que o Artur se “aguentasse” vivo até às primeiras horas da manhã e que a perna não gangrenasse. Noite de dor profunda! Noite de esperança! E a gangrena? Estaria de acordo? Podia ser fatal!
O Rato (enfermeiro e dr. Martins) iria ser confrontado com um dos momentos mais difíceis e fantásticos da sua vida; manteve-se ao lado do Artur, durante toda a noite, dando-lhe apoio moral… e medicamentoso para impedir que a gangrena “levasse a melhor”.

Amanheceu! A vitória daquela dupla (Martins e Artur) era uma realidade! A gangrena e a morte foram vencidas! Como terá o Martins conseguido aquela estrondosa vitória? – Não sabemos! Ninguém sabe, como tal aconteceu! Apenas ele saberia e já não consegue dizer nada. Desgraçadamente, o Martins foi o nosso primeiro morto, após o regresso da Guiné. Faleceu numa deslocação que fez a Tondela, a sua terra natal, para visitar a sua mãe. Faltou-lhe ali, certamente, um “enfermeiro Martins” para que não perdesse a vida em um miserável acidente com uma motorizada.

Logo pela manhã, o helicóptero levou o Artur para o HM 241, em Bissau. Ao aperceberem-se do seu estado tão melindroso, os médicos “afiaram facas e cutelos” para amputar a perna do Artur sem ter em devida conta o esforço, a dedicação, o saber e o profissionalismo do Rato e o enorme sofrimento do Artur.
Por sorte, encontrava-se ali um médico, que vivera, durante uns anos, nos EUA, trabalhando num hospital onde eram tratados muitos mutilados da guerra do Vietname. Ele alegou que: “para amputar, há sempre tempo”. Pela primeira vez, em Portugal, “um tubo de plástico” foi usado para substituir sete centímetros de uma veia femural que se encontrava destruída nessa extensão. Graças a Deus!

O Artur continua de boa saúde, no Monte da Estrada, nas imediações de Relíquias, a sua terra natal; continua a servir-se da perna que Deus lhe deu. Na zona, onde a artéria femural fora substituída por um mísero tubo de plástico (não seria, certamente, um plástico qualquer), a coxa tem ainda um perímetro, significativamente, inferior ao da outra mas… é a sua perna, graças a Deus… e também às artes mágicas e milagrosas (quase) do enfermeiro Rato.
Que a terra lhe seja leve!

Diz o nosso povo que “a conversa é como as cerejas” (engatam-se umas nas outras) e com razão. Vejamos.
Dois soldados da C. Caç. 675 eram naturais de Relíquias, concelho de Odemira; um é o Artur José (seu nome completo) de quem temos vindo a falar; o outro era o Manuel José (é também o seu nome completo); faleceu há já uns anos. Acontece que, apesar do que ficou aqui expresso, não pertenciam à mesma família. Mas há mais estranhezas: ambos eram “filhos de mãe incógnita”.

Nunca entendemos esta situação! Sabíamos o que era o “pai incógnito” mas nunca tínhamos ouvido falar de “mãe incógnita”… ultrapassava o nosso entendimento.
O 1º sargento da companhia, Antero dos Santos, apresentou uma explicação algo estapafúrdia… que não nos convenceu.

Na verdade, é obra! Dois rapazes nascidos na mesma povoação, têm o mesmo sobrenome, não pertencem à mesma família e, para cúmulo, ambos são filhos de “mãe incógnita”. Mas há mais! Nasceram no mesmo ano, foram para o mesmo quartel, pertenciam à mesma companhia e ao mesmo pelotão - o primeiro, comandado pelo alf. Costa (já falecido) e que, tal como os dois soldados, era também alentejano. Era natural de Beja!… Por mero acaso… não era de Relíquias!
Um caso assim, só poderia pertencer à C. Caç. 675.

Na sepultura do Rato (enfermeiro Martins) bem como na do Manuel José, já se encontram as respetivas lápides da C. Caç. 675.

O furriel enfermeiro José Eduardo Reis de Oliveira, mais conhecido por JERO (o acrónimo elaborado com as iniciais de seu nome) fez questão de estar presente, em Tondela, pois o Rato seria seu colaborador mais dileto. Aliás, o JERO esteve presente na colocação de outras lápides.

Um dia partimos para o norte com seis lápides na mala do carro. No 1º dia colocámos cinco – quando acabámos de depor a última (furriel Mesquita, em Famalicão) já era noite escura. A irmã e o sobrinho (Drª Teresa Mesquita e seu filho Dr. Francisco Mesquita) do malogrado Álvaro Mesquita, tiveram a amabilidade de nos oferecer um lauto jantar… no restaurante, “O Tanoeiro”, em Famalicão. Por sinal, o dono era nosso amigo, de longa data E por falar em lápides…
Vila Nova de Famalicao > Cemitério local > 8 de julho de 2010 > O Belmiro Tavares e o JERO junto da campa do Álvaro Manuel Vilhena Mesquita.

Uns anos após a colocação das quatro primeiras lápides, já nos anos 80/90 (século passado) encomendámos uma nova série de 45 lápides. Para que isto se tornasse realidade, calcorreámos outros tantos cemitérios de norte a sul, ou seja, desde Caldas das Taipas (bem no extremo norte do país) onde jazem os restos mortais do sold. corn. 2444, António da Silva Lopes, até Vila Real de Santo António onde repousa o sold. cond. auto, 2466, João Alexandre de Jesus Alexandre. Este foi ferido num pé, aquando do rebentamento estrondoso duma mina, na bolanha de Cufeu, estrada de Guidage, como acima foi referido.

Nós temos apregoado aos ventos que, tendo em conta as várias facetas das nossas vidas, fomos uma companhia positivamente diferente de todas as outras. Em tempos idos, através do blog luisgracaecamaradasdaguine@gmail.com, perguntámos:
- Quem tem vindo a fazer reuniões anuais para recordar a nossa passagem por aquela malograda guerra miserável?
A melhor resposta que nos chegou referia uma companhia que falhou apenas um ano.
À pergunta: - Quem trasladou os seus mortos, durante a guerra? Apenas duas unidades responderam afirmativamente.

Nota: o governo da época não pagava a urna de chumbo para a trasladação; apenas fornecia o transporte (os navios vinham vazios). À época, uma urna própria para esse fim custava esc. 8.000$00 (oito mil escudos); na Guiné, um alferes auferia um vencimento pouco superior a 6.000$00.

À pergunta: Quem colocou lápides nas sepulturas dos seus mortos em combate? Ninguém respondeu, afirmativamente.
Não seria necessário perguntar se alguém colocou lápides, tal como nós, nas sepulturas dos antigos combatentes, que morreram após o regresso.

Sempre defendemos que a C. Caç. 675 era… diferente pela positiva, de todas as outras.
Hoje, tendo em conta que ninguém perpetuou a memória dos seus mortos durante o pós-guerra, podemos afirmar, sem receio de errar, que somos uma companhia única.

Perto de um milhão de jovens participou na guerra colonial; em mais de seis mil companhias (cada companhia era constituída por cerca de cento e sessenta mancebos) apenas uma companhia - a gloriosa C. Caç. 675 - cometeu tal proeza.
Tudo isto se iniciou na Guiné, onde, sob um sol tórrido, e no meio dos maiores perigos, começámos a ser diferentes:
- Os nossos soldados distinguiam-se pelo aprumo e pelo seu comportamento garboso;
- Pacificámos a nossa zona – algo mais de 400 km2 (quatrocentos quilómetros quadrados);
- Lutámos também à procura da paz (na nossa zona, claro)
- Cerca de dois milhares de guineenses abandonaram o Senegal onde viviam em grande penúria, passando a viver em liberdade e a produzir riqueza à sombra da nossa companhia e da nossa Verde/Rubra. Nunca, mesmo em tempos idos, aquele povo recebeu tanto “patacão” (dinheiro) pelo amendoim que produziu. Para isso, foi mesmo necessário controlar (dominar) a ação perniciosa (criminosa) dos funcionários das grandes empresas comerciais que ali compravam amendoim. “Manga de patacão” clamavam os chefes de família quando venderam a mancarra (amendoim) que produziram, em 1965. Eles sabiam que produziram mais que em outros anos; também sabiam que naquele tempo não havia “desvios”!

Já em 2023, recomeçámos o nosso fadário; encomendámos mais 25 lápides, e no dia 16 de abril, colocámos as primeiras cinco, nas sepulturas de outros tantos companheiros:
- Em Caldas da Rainha, colocámos a primeira – eram 09:00 – na sepultura do Joaquim Lopes Henriques (o Caldas), soldado nº 2225. Estavam presentes a viúva e o filho. Não foram parcos nos agradecimentos. Os seus olhos brilhavam de alegria!
Seguimos para Alcobaça, a terra natal do furriel miliciano enfermeiro, Oliveira, mais conhecido por JERO. Estavam presentes: a viúva, os filhos e um generoso grupo de bons amigos do nosso companheiro. O silêncio (e o respeito) era audível! Grande camaradagem!
- Partimos para Batalha, cemitério de Jardoeira. Aqui repousam os restos mortais do J. Santos Frazão, soldado atirador 2236. Não compareceu nenhum familiar! O Frazão não tinha filhos e a viúva, quando se viu sem o seu marido, voltou à sua terra natal – Arouca. Já consegui o seu contato e informei-a do que fizemos para que ela não viesse a ser colhida de surpresa.

No mesmo cemitério está sepultado o Carlos Agostinho Vieira, o 1º cabo R. M. 2645; era o encarregado das munições, em Binta. Toda a família esteve connosco: viúva, filhos, filhas, noras, genros e netos. Aliás já quase todos tinham participado das nossas reuniões anuais. No fim da cerimónia, a família do Vieira convidou-nos para almoçar. Logo informei que o convite seria aceite mas cada um pagaria a sua parte. Por artes de magia pura, o repasto foi oferecido pela família do Carlos Vieira. A todos, os nossos sinceros agradecimentos! Em resposta, uma boa parte da família esteve presente na reunião deste ano, em Benavente. Presentearam-nos com uma “box” de vinho que o Vieira fabricou… antes de “partir”. Foi a sua última colheita! Tratou-se de um gesto de grande simpatia para com a nossa rapaziada.

A viúva do Vieira tomou parte no funeral do Lua; ela decidiu ir connosco para nos indicar o caminho para o cemitério onde o José Pires Carreira (o Lua) está sepultado; era o soldado atirador 2244. A viúva e uma filha estavam presentes. Ficaram extremamente contentes por terem ali os companheiros de seu marido e pai.
Só encontrámos boa gente! Todos rejubilaram com a nossa presença e pela atitude da C. Caç. 675. É ela que nos move.

Neste dia, 16 de abril, a “equipa de colocação de lápides” foi chefiada pelo nosso mui querido general, Alípio Tomé Pinto; era coadjuvado por um alferes (o Tavares), por dois furriéis (Luís Moreira e Mogo Miguel; este era o acordeonista privativo da C. Caç. 675) e pela condutora civil – Ana Luisa – filha do alferes Tavares.
Pela primeira vez, eu “convoquei” o nosso general para estas tarefas pois temos obrigação (pelo menos moral) de preservar o nosso adorado chefe. Aconteceu desta vez porque o nosso general nutre uma consideração especial pelo furriel Oliveira, por ser o nosso cronista-mor e, além disso, foi o seu padrinho de casamento.
O nosso general vinha radiante e surpreendido pela alegria, simpatia e carinho com que aquelas gentes nos receberam; prometeu estar presente noutras colocações de lápides.

No dia 21 de maio, colocámos mais duas lápides, no cemitério dos Prazeres, em Lisboa: uma no jazigo onde está guardado o corpo do nosso querido médico, dr. Martins Barata; outra foi colocada junto dos restos mortais da Srª Dª Maria Lucília Pinto, a mui digna esposa do nosso general. Surpresa? Não! Todos se lembram, certamente, que a srª Dª Lucília sempre nos acompanhou desde janeiro de 1964, quando a C. Caç. 675 foi formada, no RI 16, em Évora; mesmo quando a saúde começou a abandoná-la, ela fez sempre questão de estar presente nas nossas confraternizações. Por tudo isto, o mínimo que poderíamos fazer era: - chamar-lhe mãe.
Por outro lado, se a companhia tem um pai, o nosso general - deveria, também, ter uma mãe; mais ninguém teria precedência neste assunto. É caso para dizer que, agora, nós somos órfãos de mãe.

Neste dia, a nossa equipa era constituída por: o nosso general, a viúva e a filha do fur. Mil. enf. Oliveira, um filho do dr. Barata, o Tavares, o Moreira, o Mário Cardoso e o Filipe.
Que Deus nos dê vida, saúde e ânimo para levar mais esta nossa tarefa a bom porto. Acontece que o último de nós a morrer ficará sem lápide. Ou talvez não! Aguardemos!

Brevemente, retomaremos a nossa tarefa mui nobre. Desta última série, falta colocar 18 lápides. Serão depostas em vários cemitérios desde Maia (Porto), Gonçalo (Guarda), Covilhã, Alcanena, Idanha-a-Nova e Serpa. Há vários em cemitérios diferentes do distrito de Setúbal.

Acabámos de saber que o Vítor Bramão, soldado atirador 2032, sepultado em Faro, não pode “receber” a lápide que até já foi elaborada. Os seus restos mortais passaram à vala comum; a família não os reclamou, porque não foi avisada. Quando se apercebeu, já era tarde. Lamentamos, profundamente!

Aconteceu o mesmo com o soldado Ap. Metre. 2041/63, António Manuel Rola Garrido, que foi abatido, em Monsanto, por forças extremistas, pouco depois da Revolução dos Cravos. Afinal… fez-se a Revolução e os mortos continuaram. Ele era guarda prisional e foi morto a tiro, quando conduzia um “criminoso” ao tribunal. Foi vítima da “politiquice” de extremistas!

Damos por terminado o relatório desta nossa tarefa… até esta data. Dentro de alguns meses, depois do verão, haverá mais.

Lisboa, julho de 2023

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sexta-feira, 3 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24114: Notas de leitura (1560): "Sons da Guerra Colonial", por Carlos Miranda Henriques; Edições Vieira da Silva, 2023 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Fevereiro de 2023:

Queridos amigos,
Não é usual alguém, mesmo solidário com amigos antigos combatentes, e com livro já publicado sobre a guerra colonial, pretenda homenagear aqueles jovens que andaram em diferentes teatros de operações, recolhendo múltiplos depoimentos, aliás não esquece em In memorium o José Eduardo Reis de Oliveira, que era para nós o Jero, de saudosa memória, temos aqui algumas histórias pícaras, tudo rescende ao feitiço africano, mesmo quando a narrativa está focada em dor e sofrimento. Uma iniciativa que nos merece muito respeito.

Um abraço do
Mário



Quando o escritor se arvora em recolector de guerras alheias

Mário Beja Santos

É, acima de tudo, uma antologia de muita escuta e camaradagem, um ajuntamento de pequenos textos elaborados por antigos combatentes nos três teatros de operações. Há narrativas assinadas sob pseudónimo, por vontade dos seus autores. São lembranças de uma juventude sofredora, observa o recolector, que tanto deu a Portugal sem regatear, sem nada exigir em troca: "Sons da Guerra Colonial", por Carlos Miranda Henriques, Edições Vieira da Silva, 2023. Iremos aqui cingirmo-nos aos relatos que se prendem com a Guiné, encontrei inclusive um nosso confrade, Belmiro Tavares.

Abre as hostilidades Carlos Matos Oliveira, capitão miliciano, recorda o telefonema de António Silva, cabo-enfermeiro da CCAV 1617/BCAV 1897, é telefonema que se repete pelo S. João, vem a propósito da operação Espadeirar, que se realizou no Oio em 23 de junho de 1967, quem comandava a operação era o capitão Alarcão, da CCAV 1616. Chegaram a um objetivo que era a base de Cã Quebo, na região do Oio; não houve resistência, encontrou-se uma pistola CESKA e duas granadas, seguiram pelo trilho que levaria à estrada Mansabá-Bissorã, aqui começaram os problemas, veio fogo de morteiros, o capitão foi ferido, o radiotelegrafista atingido mortalmente, sem que fosse avistado pelos camaradas, ficando no terreno com o rádio e os códigos; o autor foi ferido por um estilhaço de rocket, o enfermeiro dava-o como morto, respondeu-lhe com um palavrão. Lá se pediu ajuda à aviação. E remata a sua recordação dizendo que voltaram a Cã Quebo mais duas vezes, de lá saiu com estilhaços num braço e nas costas.

Augusto Silva, que foi alferes miliciano, vem contar o que passou com as formigas, não ficamos a saber em que lugar se deu a ocorrência, o que interessa é que houve uma emboscada durante um patrulhamento e o comandante do pelotão, o alferes Saldanha Antunes, ordenou que se abrigassem atrás de ninhos das formigas bagabaga; finda a emboscada, por ali andava o alferes Antunes aos berros com as ferroadas dolorosas das formigas nas partes íntimas…

A história seguinte remete-nos para a CCAV 5398, assina um tenente-coronel com as letras A. A., a unidade militar estava sediada entre Bafatá e Gabu, o comandante, capitão Crispim Malaquias acompanha uma força que vai fazer um patrulhamento ofensivo, perto do Senegal, começam a chover as morteiradas, quem abriu fogo está bem municiado, foi necessário pedir apoio aéreo, quando surge o Fiat, o piloto pede referências pois diz só haver dezenas de gazelas em fuga, há um soldado que solta um palavrão, é nisto que o piloto viu a saída do morteiro da força do PAIGC e foi até lá largar umas bombas, antes de se retirar para Bissau quis saber quem é que lhe tinha chamado uma certa insolência, semanas mais tarde haverá um encontro e o piloto dirá a quem o imprecou: “Deixa lá, a tua sorte é que eu não sou casado”.

Segue-se uma história intitulada A mão de vaca, tem a ver com uma unidade estacionada no Boé, aquela gente andava tão faminta de uma comida caseira quando um grupo veio de férias logo se lançou em busca de almoço, a ementa era escassa mas todos se sentiram feliz a pedir mão de vaca, e assim se conta:
“O odor da comida quase pronta já chegava ao nosso olfato e passados momentos a única empregada de mesa do restaurante depositava os três pratos pedidos de mão de vaca, e que era como descrevo: uma mão de vaca inteira em tamanho natural com os dois dedos do animal voltados para nós e que ultrapassava os limites da travessa-prato, tendo como acompanhamento uma pequena mão cheia de feijão branco. A surpresa foi tal que boquiabertos ficámos, sem palavras, mas passados minutos lá nos atirámos ao petisco que acabou por nos saber muito bem.”

Entra em cena agora o nosso confrade Belmiro Tavares, estamos em finais de abril de 1966, uma companhia é enviada de Bissau para Farim totalmente desarmada, ir-se-á recordar com bom humor do uso do capacete em toda a atividade operacional, alguém será salvo pelo seu uso e fala-se na madrugada de 3 de dezembro de 1965, a missão era na zona de Sanjalo, alguém se apresentou sem capacete, o alferes reponta, o cabo radiotelegrafista regressa devidamente equipado, há tiroteio pelo caminho, resultam três feridos que serão recambiados para Bissau de helicóptero, é no regresso que o cabo radiotelegrafista mostra ao alferes o capacete com um sulco com certa de quatro centímetros de comprimento e um milímetro de fundo, afinal o capacete salvava vidas.

Não falta uma história de amor, quem assina é J. Monteiro, furriel miliciano. Houve para ali uma patrulha acidentada, ao atravessar uma zona de palmeiral e bananal, uns babuínos faziam grande algraviada, atirava todo o tipo de projetos, não faltavam dejetos. Lá chegaram a uma tabanca e pediram água para se lavarem. Entra em cena uma menina de vinte anos, apresentada como uma beleza serena e africana, de pele castanha e com uns olhos enormes, vivos e muito pretos. A menina deu-lhe para a paixão e disse ao furriel que ele tinha que ir lá mais vezes pelo caminho dos macacos para ela o lavar. Paixão correspondida, passaram a viver juntos com discrição. Houve despedida sem rancores, despeitos ou mágoas:
“Dei-lhe o meu fio de ouro com um crucifixo de pendente, para que sempre se recordasse de mim. Coloquei-lhe no anelar da mão esquerda uma aliança de ouro que comprei em Bissau. Passados estes anos todos, continua viva dentro do meu coração, e quando faço oração peço a Deus que esteja feliz na sua Guiné.”

Belmiro Tavares foi engenheiro de pontes improvisado, o Capitão Tomé Pinto mandou reconstruir a ponte de Genicó, antes de partir para cumprir a missão andou a fazer uns gatafunhos, fizeram-se duas “cavas” de cerca de vinte centímetros de profundidade, derrubaram-se umas palmeiras, cujos troncos foram cortados à medida da largura do ribeiro, feita a ponte arranjou-se uma “placa de sinalização” a avisar que havia perigos de morte, ora colocaram-se ali umas granadas para fazer estragos, explosão houve, nunca mais os guerrilheiros, até ao fim da comissão da CCAÇ 675 procurou destruir a dita ponte de Genicó.

Esta antologia de narrativas alheias tão ternamente recolhidas termina com um conjunto de poemas de Carlos Miranda Henriques e de Augusto Silva. Uma bonita ideia, recolher depoimentos e fazer-nos recordar.


Belmiro Tavares
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Noita do editor

Último poste da série de 27 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24105: Notas de leitura (1559): Histórias Coloniais, por Dalila Cabrita Mateus e Álvaro Mateus; A Esfera dos Livros, 2013 - Pidjiquiti, 3 de agosto de 1959: para cada um a sua verdade (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 27 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23206: 18º aniversário do nosso blogue (7): "O senhor vai responder-me com toda a verdade: era o meu filho que vinha naquela urna de chumbo?" (Belmiro Tavares, ex-Alf Mil, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66)



Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66)



Capa do livro "A nossa luta: dois anos de muita luta: Guiné 1964/66, CCAÇ 675)", de Belmiro Tavares e José Eduardo Reis de Oliveira, edição de autor, il.. Lisboa, 2017, 606 pp. [Um exemplar autografado foi oferecido ao nosso editor, com a seguinte dedicatória; "Ao caro amigo Luís Graça, com enorme amizade e carinho. Lisboa, 1/2/2021, Belmiro Tavares".]


I. Aqui vai, em republicação (*), c0m adaptações, uma das muitas (e boas) histórias, daquelas que nos tocam fundo,  contadas pelo Belmiro Tavares , ex-Alf Mil, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66.

O Belmiro Tavares foi  Prémio Governador da Guiné (1966), é membro nº 390, da nossa Tabanca Grande, desde 1/11/2009; é empresário hoteleiro em Lisboa: é autor da série "Histórias e Memórias de Belmiro Tavares", de que se publicaram 47 postes ao longo de mais de 4 anos, entre novembro de 2009 e maio de 2014. 

É também autor (em parceria com o nosso saudoso JERO, acrónimo de  José Eduardo Reis de Oliveira, 1940-20221) do livro "A nossa luta: dois anos de muita luta: Guiné 1964/66, CCAÇ 675" ( edição de autor, il.. Lisboa, 2017, 606 pp.) (cuja capa se reproduz acima).

Este poste é  uma tripla homenagem ao Belmiro Tavares, que hoje faz anos; ao JERO, que nos deixou há um ano atrás, vítima de Covid-19  (em 27 de janeiro de 2021, iria fazer 82 anos se fosse vivo, em 4 do corrente); e ao nosso blogue, que fez 18 anos em 23 do corrente, o blogue que nos tem permitido, aos amigos e camaradas da Guiné,  partilhar memórias e afectos.(**)

Honremos também a memória do infortunado fur mil Álvaro Manuel Vilhena Mesquita,  natural de Vila Nova de Famalicão,  morto por uma mina A/C em 28 de dezembro de 1964, no subsetor de Binta.



Vila Nova de Famalicao > Cemitério local  > 8 de julho de 2010 > O Belmiro Tavares e o JERO junto campa do Álvaro Manuel Vilhena Mesquita.


Cortesia do blogue JERO > 12 de julho de 2010 > M 276 - SENTIMENTOS / PARTE UM

(...) O Álvaro morreu na Guerra do Ultramar. Morto em combate em 28 de Dezembro de 1964 na “quadrícula” da sua Companhia na região de Caurbá, a poucos Kms. do aquartelamento de Binta, Norte da Guiné. Nessa altura eu estava por perto pois pertencíamos à mesma “família”. A Companhia de Caçadores 675, então no mato desde Julho de 1964. Ele regressou à sua terra natal para ser sepultado nos primeiros dias de Dezembro de 1965.

Passaram desde essa data fatídica cerca de quarentas e cinco anos. Na minha memória , e ao longo de toda uma vida , o Álvaro continuou – continua – a ser o meu “irmão” dilecto dos tempos da guerra.

O seu irmão Francisco, que conheci fugazmente muitos anos depois da morte do Álvaro, num encontro casual no Hotel D. Carlos, em Lisboa, faleceu agora, com 69 anos, em 1 de Julho corrente no Hospital de Cochin, em París.

Estive presente no seu funeral , na terra da sua naturalidade, em 8 de Julho de 2010. Estive no seu funeral por diversas ordens de razões. Em preito à sua memória, em homenagem à família Vilhena Mesquita e em nome da minha CCaç. 675, onde militou o seu e meu “irmão” Álvaro (...) 


"O senhor vai responder-me com toda a verdade:
 era o meu filho que vinha naquela urna de chumbo?" 

por Belmiro Tavares 


1. Como alferes miliciano estive dois anos na Guiné, algures a norte do Cacheu, mais precisamente em Binta, integrado na CCaç 675 uma companhia extraordinária (foi lá e, mais de 40 anos depois, continua a sê-lo cá) que deu “água pela barba a muita gente”. 

O nosso comandante era o Capitão Tomé Pinto, hoje Tenente General, um militar fora de série, autenticamente um homem doutra galáxia. Podemos descrevê-lo parafraseando o poeta: “Homem dum só parecer, dum só rosto e duma só fé... d’antes quebrar que torcer”...! É o Homem que sabe ser militar (de que maneira o sabe!) e o Militar que não deixa de ser Homem, qualidades que juntas se acham raramente.

Entre os graduados da companhia havia um furriel miliciano, natural de V. N. Famalicão, de seu nome Álvaro Manuel Vilhena Mesquita o qual é o epicentro dos factos que aqui vão ser contados.

Em fins de Dezembro de 1964 o Mesquita estava de “baixa”; aguardava transporte para o HMP 241 em Bissau.

No dia 28 desse mês, dois grupos de combate (pelotão com morteiro, Breda e LGF – lança granadas foguete, vulgo bazuca) iam fazer uma patrulha para além do limite oeste da nossa zona na margem direita do rio de Buborim, um afluente do Cacheu. O Mesquita pertencia ao 1.º Gr Comb mas estava inoperacional.

A companhia à qual aquela zona pertencia e tinha a incumbência de a patrulhar, estava sediada em Bigene; para ali chegar, teria de passar pela tristemente célebre base de Sambuiá (um mito de inexpugnabilidade que a CCaç 675 se encarregou de fazer desaparecer) que era a base inimiga mais forte do norte da Guiné.

O nosso Capitão decidiu estabelecer no “terreno do vizinho” aquilo a que se chama “uma zona tampão”. Pretendia-se ter o inimigo não só fora da nossa zona mas também bem afastado. Aliás a CCaç 675, dentro da mesma estratégia foi a única companhia que, entre Junho de 1964 e Abril de 1966, “bateu” a Península de Sambuiá como se de “passeio” se tratasse... ou quase.

Nota: aconselhamos a leitura do Cap 26 do livro Golpes de Mão’s, de José Eduardo Reia Oliveira, Fur Mil Enf da CCaç 675. [Foto ca capa, à esquerda]

Voltemos aos carris! Os dois Gr Comb seguiram de viatura durante cerca de 12 km. Quanto se apearam e partiram para o cumprimento da missão, a segurança das viaturas passou a ser feita por alguns (poucos) soldados europeus, alguns soldados africanos e uns tantos milícias.

Entre os militares europeus havia doentes e feridos ligeiros que não necessitavam de cama para se restabelecer. Entre os doentes “leves” estava o fur Vilhena Mesquita, pois a sua doença – não sei qual - não o impedia de andar de camuflado e armado em cima duma viatura. Ele próprio se apresentou voluntariamente para tomar parte na segurança das viaturas. Um alferes comandava esta escolta muito heterogénea, como se depreende.

Quando os dois Gr Comb regressaram às viaturas, iniciou-se a viagem de volta em direcção a Binta. Alguns quilómetros à frente ouviu-se um rebentamento enorme: uma mina anti-carro explodiu estrondosamente debaixo da roda direita traseira, duma das viaturas. Por cima dessa roda seguia o malogrado Mesquita que naquele momento abandonou o mundo dos vivos.

Nota: ver página 181 e seguintes do livro atrás citado.

A primeira viatura era uma GMC e a mina rebentou na roda de trás da 2.ª viatura, um Unimog, o que nos levou a crer que se trataria duma mina telecomandada, o que seria numa novidade na actuação do inimigo.

Era o nosso segundo morto e pela 2.ª vez custeámos a urna própria (de chumbo) para que a família do nosso companheiro pudesse fazer-lhe um funeral condigno e “com o corpo presente”. Fizemos o mesmo também ao nosso 3.º morto, o malogrado soldado Nascimento.

Mais uma vez nestas situações a CCaç 675 foi ímpar; talvez tenham sido poucas as unidades - ou talvez nenhuma – a proceder deste modo... à maneira da CCaç 675.

Neste caso não temos certamente um ”suicida altruísta” mas na verdade o Mesquita – que a terra lhe seja leve – partiu voluntariamente para um “encontro marcado com a morte”.


2. O nosso capitão informou dolorosa e comovidamente os pais do Mesquita sobre o trágico acontecimento.

Eles também receberam, à posteriori, o tal “telegrama seco, brutal, frio, impessoal” a informar que a urna com os restos mortais de seu filho se encontrava no D.G.A. (Depósito Geral de Adidos) na Calçada da Ajuda, [em Lisboa]. 

[Na foto, à esquerda, o Mesquita, de camuflado, na Guiné, Binta, 1964].

Os familiares enlutados deslocam-se a Lisboa com a Agência Funerária; entram na Unidade Militar, o pai contacta o graduado de serviço, um ordenança é mandado indicar-lhe o local onde se encontra a urna. Havia várias; O soldado procura pelo nome e informa com toda clareza, sem pestanejar:

- É esta! Pode levar!

Mais “seco, brutal, frio, impessoal” nem o telegrama. Só faltou mandar embrulhar!

Devemos, apesar de tudo, ter em conta que se tratava dum soldado talvez pouco letrado, talvez mesmo analfabeto, sem formação nem preparação para tal e que não tinha vivido os horrores da guerra. Não terá sido ele de certeza o único culpado nem até talvez o maior culpado.

Na tropa, naquela época, todos tínhamos de ser “pau para toda a colher” – frequentemente seríamos pau tosco,... demasiado tosco até... Naquela época, na tropa de cá, quantos soldados haveria preparados para informar cabalmente e com humanidade os familiares dos nossos mortos em combate?!

Por cá, naquela época, quem se apercebia e sentia por dentro os pesadelos da guerra? – Os pais, os irmãos, os amigos íntimos dos combatentes e poucos mais! A guerra travava-se muito longe... lá noutro continente.

3. Os pais do Mesquita terão sofrido – sofreram mesmo – a bom sofrer aquela morte absurda (como absurdas são todas as mortes da guerra) e antecipada de seu filho. Eles não eram diferentes dos outros pais! Também eles eram de carne e osso e tinham dentro do peito um coração que sangrou... sangrou muito! Disso temos a certeza!

Naquela altura chegou a Famalicão um combatente vindo da Guiné (creio que seria um cabo) que tinha acabado a comissão. Como muitos combatentes, especialmente os da “guerra de Bissau” ou do “ar condicionado” sabiam tudo à cerca de tudo sem saberem nada de nada e para se impor aos concidadãos inventavam estórias por vezes sem sentido e sem ponta de verdade.

O Pai do Mesquita, profundamente fragilizado pela dor que o atormentava, teve o azar de encontrar (não sabemos como nem por quê) um autêntico charlatão que lhe fez uma narração rocambolesca, malévola e mentirosa dos factos. Inventou e deturpou! Chamando o boi pelo nome: “mentiroso sem escrúpulos”.

 [Na foto, à esquerda, o Fur Mil Mesquita, ao lado do Cap Tomé Pinto].

Aproveitou a depressão emocional daquele Pai com o coração desfeito para dar asas à sua imaginação. O cabo em questão terá eventualmente contactado com o Mesquita em Maio ou Junho de 1964 em Bissau.

Este hipotético encontro – se realmente aconteceu – ocorreu antes de irmos para o mato, ou seja seis meses antes da fatíidica morte do Mesquita. Assim sendo o tal cabo não podia saber o quer que fosse à cerca do que, em 28 de Dezembro de 1964, aconteceu nos arredores de Binta.

Este pobre pai acabrunhado e desesperado pela morte dum filho querido, de “mal com a vida” até pela maneira como foi tratado no DGA e por outros motivos que nos ultrapassam... Por tudo isto e talvez muito mais, o Pai do Mesquita, apesar de homem de letras, tornou-se terreno fértil para acreditar na mentira e tê-la-á publicado no Jornal de Famalicão de que era Director e creio que proprietário.

Até onde um coração desesperado, esfrangalhado nos pode conduzir!...

A verdade nua e crua dos factos terá no entanto ficado por contar aos amigos do nosso companheiro Mesquita.

Mais uma vez... que a terra lhe seja leve.


4. Em 1967, creio que em Abril, o companheiro e camarada JERO e o autor destas linhas deslocámo-nos a Valença para assistir ao casamento dum dos seus furrieis.

Por mero acaso (ou propositadamente?) pernoitámos em Famalicão. De manhã pedimos a um taxista que nos conduzisse ao cemitério. Não encontrámos a sepultura do Mesquita. 

[Foto à esquerda,  o nome do Mesquita, inscrito no mural dos mortos do Ultramar, Forte do Bom Sucesso, Belém , Lisboa].

Pedimos apoio ao taxista que logo nos informou que o Mesquita estava sepultado no cemitério novo e para lá nos levou. Lá estava o sepulcro do Mesquita, bem diferente – para melhor, muito melhor – das demais sepulturas. Lá encontrámos, cravada no mármore a lápide de bronze que os seus companheiros da CCaç 675 lá fizeram chegar, perpetuando a camaradagem e aquela amizade pura, simples, desinteressada que sempre nos uniu e, incorruptível, continua a enlaçar-nos.

Por motivos que não são aqui chamados, tínhamos dúvidas se íamos ou não visitar os pais do Mesquita. Por um lado entendíamos que devíamos visitá-los; por outro sentíamos que não tínhamos o direito de reabrir ou mesmo avivar aquela ferida no peito e na alma daqueles pais que sentiram o filho partir tão novo, tão na flor da idade.

Não estamos (raramente estamos) preparados psicologicamente para ver os nossos pais partir (e isso é o normal); mas um filho partir antes dos pais é a inversão total das leis da vida! Daí a dor ser mais intensa, mais marcante, mais profunda, mais feroz!

A atitude do taxista foi decisiva e nós fomos visitar os pais do nosso companheiro. A mãe apareceu logo. Toda de preto vestida, rosto carregado de pesar, olhos plenos de tristeza, baços, penetrantes. Já tinham decorrido mais de dois anos sobre a morte do filho!...

Conversámos durante breves instantes. A senhora aproximou-se de mim, olhou-me bem por dentro, poisou nos meus ombros as suas mãos brancas de cera, pesadas como chumbo e disparou:

- O senhor vai responder-me com toda a verdade sobre o que vou perguntar-lhe?

Respondi afirmativamente e ela perguntou de chofre, ansiando pela resposta:

- Era o meu filho que vinha naquela urna?

Olhos nos olhos respondi sem vacilar (por quê vacilar se ia transmitir a mais pura das verdades?!) tentando levar um pouco de paz e tranquilidade àquela mãe desesperada, destroçada pela morte do seu filho e a dúvida que lhe mordia na alma.

- Pode ter a certeza absoluta que era o corpo do seu filho que vinha naquela urna; não podia haver troca!

- Mas morreram muitos juntamente com o meu filho! (versão do tal informador).

- Mesmo que assim fosse não podia haver troca; mas felizmente e infelizmente só morreu o seu filho; foi o nosso segundo morto naquele ano; houve também três feridos graves, é certo, e alguns feridos ligeiros mas só um morto.

- Fico-lhe eternamente grata porque me tirou um tremendo peso de cima! Todos os dias tenho ido rezar junto daquela sepultura mas essa dúvida terrível atordoava-me, dilacerava-me a alma; agora sei que vou rezar junto do meu filho pois fiquei com a certeza que ele está ali.

Houve mais umas palavras de circunstância e... apareceu o pai do Mesquita com ar de pessoa mais velha, acabrunhado, triste, cheio de dor de alma, parecia ter ouvido a nossa conversa. A dor pela morte do filho e a doença não perdoavam; cremos que sofria da doença de Parkinson, em estado bastante adiantado. Pouco falou ou nada para além dos cumprimentos. Pelo menos nada recordo... já lá vão 42 anos!

A nossa missão estava cumprida e o nosso dever também. Despedimo-nos e retomámos a viagem para Valença onde chegámos a meio do almoço mas satisfeitos connosco.

5. Desde Abril de 1974 trabalho no Hotel Dom Carlos Park em Lisboa – passe a publicidade. Um dia, em meados da década de 80, ouvi um recepcionista dizer que ia chegar ao hotel o Eng. Vilhena Mesquita. O nome era muito familiar; era impossível não ser parente próximo do nosso Mesquita.

Perguntei pela sua naturalidade mas só sabiam que era do Norte e tinha escritório em Paris. Pedi que me avisassem, logo que chegasse.

Quando o vi, tremi, fiquei atónito, estupefacto... parecia que estava ali à minha frente o Álvaro Mesquita; era apenas um irmão mais novo mas muito, muito parecido.

Apresentei-me, perguntei pelos pais - um deles, creio que a mãe, ainda era vivo – sabia que os tínhamos visitado. Os pais iam frequentemente visitá-lo em Espanha (Galiza) onde ele se deslocava vindo de Paris.

Depois duma longa conversa sobre a CCaç 675 (como não podia deixar de ser) contou-me as peripécias da sua curta passagem pela tropa.

A meio da recruta fez um requerimento a pedir para não ser mobilizado porque o seu irmão falecera na Guiné! Requerimento indeferido! O Mesquita deu o “salto”; “aterrou” em Paris; ali fundou uma empresa de construção civil, já de boa dimensão àquela data.

Após a revolução dita dos cravos vinha a Portugal com certa assiduidade. Casou com uma sobrinha do ex-ministro Bettencourt Rodrigues, o tal que indeferiu o requerimento.

A vida dá cada volta!...

Lisboa, terça feira, 24 de novembro de 2009

Belmiro Tavares 

[Fixação / revisão de texto / negritos e itálicos / título: L.G.]
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 25 de novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5336: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (1): Quatro Histórias com Mural ao Fundo

(**) ÚLtimo poste da série > 26 de abril de  2022  > Guiné 61/74 - P23201: 18º aniversário do nosso blogue (6): O enviado especial do "Diário de Lisboa", Avelino Rodrigues, em 1972, no CTIG: uma "crónica imperfeita" em quatro artigos - Parte II: 29 de agosto de 1972: no mato com Spínola, "a simpatia como arma de guerra"

quinta-feira, 11 de março de 2021

Guiné 61/74 - P21993: A Operação Vaca, em 10 de março de 1965, em que forças da CCAÇ 675, com a ajuda da Marinha, "resgataram" 85 vacas "turras", no Oio, "ronco" que gerou depois um contencioso entre "infantes" e "marinheiros" (Belmiro Tavares, ex-alf mil, Binta, 1964/66)

Guiné  Região de Cacheu > Binta > CCAÇ 675 (1964/66) > c. 1965 >  A ganadaria da "companhia do quadrado"...

Guiné  > Região de Cacheu > Binta > CCAÇ 675 (1964/66) > C. 1965 > Secretaria da Companhia, que funcionava como sala de visitas: da esqerda para a direita, 1.º Ten Batista Lopes, cmdt da LFG Lira (que na época fiscalizava o rio Cacheu),  Ten Cor Fernando Cavaleiro, CMDT do BCav 490  (Farim, 1963/65), Cap Tomé Pinto, CMDT da CCAÇ 675, e Cap Cav Manuel Correia Arrabaça, CMDT da CCS / BCav 490

Fotos (e legendas): © Belmiro Tavares (2012). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Capa do livro "A nossa luta: dois anos de muita luta: Guiné 1964/66, CCAÇ 675)", de Belimiro Tavares e José Eduardo Reis de Oliveira, edição de autor, il.. Lisboa, 2017, 606 pp. [Um exemplar autografado foi oferecido ao nosso editor. com a seguinte dedicatória; "Ao caro amigo Luís Graça, com enorme amizade e carinho. Lisboa, 1/2/2021, Belimiro Tavares".]




1. O Belmiro Tavares (ex-Alf Mil da CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), Prémio Governador da Guiné (1966), membro nº 390, da nossa Tabanca Grande, desde 1/11/2009,  empresário hoteleiro, é autor da série "Histórias e Memórias de Belmiro Tavares", de que se publicaram 47 postes ao longo de mais de 4 anos, entre novembro de 2009 e maio de 2014  (*). 

Grande parte dessas histórias e memórias foram recompiladas no livro cuja capa se reproduz acima. Com a devida vénia, vamos reproduzir a segunda parte do poste P9646 (**),  que corresonde no essencial, no livro supracitado, à narrativa "10 de março de 1965: um dia agitado: operação "Vaca" (pp. 255/257). É uma história bem humorada, e contada com talento.


Belmiro Tavares, alf mil, CCAÇ 675
(Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66)
Também a famosa "companhia do quadrado" tinha de lidar, como todas as outras, ao longo da guerra,   com o candente problema da "falta de carne", alegadamente pelos mesmos motivos: "os nativos não manifestavam vontade de vender os seus animais", devido à importância que o "gado vacum", em especial,  representava para as famílias e as comunidades... Esse problema tem sido aqui abordado, de um lado e do outro (***).


A operação Vaca

por Belmiro Tavares


Hoje, vou transmitir uma actuação muito esquisita, muito especial, diferente (digo eu) e também com surpresa total, à qual não atribuímos qualquer 
nome – nem houve tempo para tal!  

Posteriormente um oficial da Marinha, o comdt do navio Lira [, Lancha de Fiscalização Grande,]  que patrulhava o Cacheu naquela data, chamou-lhe “Operação Vaca”, nome que aceitámos... 
à posteriori.

Tratou-se duma operação... improvisada (ponham improviso nisso) mas muito lucrativa, materialmente. Não recordo a data; creio apenas que ocorreu em março de 1965 [, dia 10, p. 255 do supracitado livro].

Na madrugada daquele dia (e sem imaginar o que iria acontecer) o meu Grupo de Combate saiu para o mato; regressámos, missão cumprida, cerca das 3h00 da tarde; à entrada do quartel cruzei com os outros dois Gr Comb.: um seguiu para Farim e outro para Guidage.

 O cap Tomé Pinto aguardou que eu chegasse e, depois dum belo banho, almoçamos juntos. A meio do repasto, ouvimos alguém chamar insistentemente:

–  Sr. Capitão! Sr. Capitão!

Depreendemos que se tratava de pessoal da Marinha e fomos averiguar o que pretendiam.

– O nosso Comandante manda dizer que, na bolanha em frente, anda uma grande manada a pastar; se decidirem ir lá apanhá-la, nós temos ali uma LDM que facilita a travessia do rio.

A proposta partia do comdt Baptista Lopes, um grande amigo da CCaç 675. Entre “aquela Marinha” (pessoal do navio Lira) e a nossa unidade... tudo corria sobre esferas: eles faziam ali aguada [, abastecimento de água potável], por vezes almoçávamos juntos (no navio ou nas nossas pobres instalações), emprestavam-nos um motor para regar a nossa horta com água do poço e forneceram-nos corrente eléctrica para podermos ver dois filmes com a Madalena Iglésias e o António Calvário – vimos aqueles filmes todas as noites, mais de uma dezena de vezes!

Uma das nossas preocupações, no tocante à alimentação, era a falta de carne, porque os nativos não manifestavam vontade de vender os seus animais. Recebiam o “patacão”, é certo, mas perdiam evidentes sinais exteriores de abastança. Entre eles não era rico quem tinha dinheiro no canto do baú; a riqueza manifestava-se pela quantidade de vacas que cada um possuía. Sabia-se logo quem era rico... o resto é conversa. As vacas serviam até como “moeda de troca” na “aquisição” de noiva.

O cap Tomé Pinto, o nosso sábio timoneiro, sempre atento a tudo o que nos rodeava, perguntou se eu estava disposto... a ir ao Oio apanhar umas vacas... vivas ou mortas.

– Por vaca... eu vou até ao inferno!

Reuni logo os meus soldados e, acompanhados por militares e milícias nativos, utilizámos a LDM (Lancha de Desembarque Médio) para cruzar o rio... na ponta da unha.

Os indígenas tinham a missão de se aproximar e lidar com os quadrúpedes. Eu sabia que as vacas fugiam dos brancos como se de inimigos se tratasse... e não é que elas até tinham razão?!

Desembarcámos cautelosamente na margem esquerda do Cacheu e à distância, cercámos os ruminantes; era quase uma centena de lindas cabeças. Os nativos abeiraram-se delas e iniciaram a tarefa de as “empurrar”, cautelosamente, para junto do rio onde a LDM nos aguardava.

Pareceu-me estranho que tantas vacas pastassem tão perto de nós... sem vigilância de pessoal armado... nem parecia que estávamos no Oio! Não vimos viv’alma! Soubemos mais tarde que quatro guerrilheiros armados protegiam a manada. Quando se aperceberam que a tropa de Binta atravessara o rio e já montava o cerco ao gado... esconderam-se no tarrafe; houveram por bem que era preferível perder apenas os ruminantes... que deixar escapar também as próprias vidas.

Os nossos negros iam cumprindo a sua missão, conduzindo a manada para o local escolhido. A certa altura, porém, as vacas deixaram de caminhar; nem o diabo as fazia locomover-se: estavam atoladas em mais de meio metro de lama peganhosa.

Reconhecida a impossibilidade de obrigar o gado a aproximar-se da margem, ordenei aos marinheiros que nos trouxessem cordas do quartel. Utilizávamos estas cordas quando saíamos para o mato em noites de puro breu para que ninguém se descarrilasse – éramos os “voluntários” da corda!

Recebidas as cordas, logo quinze vacas foram atreladas à lancha que as rebocou para a outra margem. Houve azar! Esqueceram-se de levantar o “taipal” da barca e as desditosas vacas foram coagidas a atravessar o rio com as narinas debaixo de água; os quinze animais morreram por asfixia! Foi um ar (falta dele) que lhes deu! 

Com as restantes... tal não aconteceu e eram setenta belos animais. Acabou-se a falta de carne! A CCaç 675 passou a ter uma razoável e lustrosa ganadaria que causava inveja – salvo seja – ao chefe da tabanca de Binta, Malan Sanhá.

Foi então que um valente bezerro, o animal mais corpulento da manada, iludiu (ou forçou) a vigilância; subiu ao caminho que ali cruzava a bolanha para sul e só parou a uns bons 300 m. Apontei a G3 mas não disparei porque o animal iria morrer longe; perdíamos a bala e eles ficavam com a carne! Mas... eis que o animal (parado) voltou a cabeça, talvez para afugentar uma incómoda mosca; fiz pontaria e disparei; as pernas dobraram-se imediatamente e o animal caiu inanimado; àquela distância acertei-lhe mesmo no ouvido! Belo tiro! O touro foi logo ali sangrado, “desmontado” e trouxemo-lo “em peças”.

As vacas que morreram por asfixia foram amanhadas e distribuidas: pela CCaç 675, pelo pessoal da Marinha, pelos civis de Binta e pela CCav. 487 de Farim – foi um bodo aos pobres!

Como bons ganadeiros, logo no domingo seguinte, procedemos à ferra dos (já) nossos animais para prevenir confusões com os da vizinhança.

Um serralheiro improvisado elaborou uma letra “C” em ferro que, soldada na extremidade duma haste metálica, serviu lindamente para “marcar” o nosso gado. Convidámos o Comdt do BCav  490 [, ten cor Fernando Cavaleiro],  a equipa de futebol da CCav 487 e seus apoiantes bem como o pessoal do navio Lira que partrulhava o Cacheu.

A festança iniciou-se com um jogo de hábeis pontapés na bola entre as equipas da CCaç 675 e da CCav 487; os infantes triunfaram por concludentes 3 x  0 – sem margem para dúvidas! É certo (invento eu) que os de Farim foram pré-avisados que, se nós não ganhássemos eles perdiam o direito de almoçar à borla e poderiam até sofrer eventualmente, uma emboscada no regresso a Farim. Mas, claro, não foi por isso que vencemos; é brincadeira!

Seguiu-se a ferra, o ponto alto (e o mais hilariante) da festa! A rua 4 de Julho serviu de arena; entre dois grandes armazéns de zinco, encerrámos a rua com viaturas, formando o redondel... que era quadrangular. Um a um, os animais foram apanhados e conduzidos até junto da forja; com a tal letra “C” bem aquecida queimava-se o pelo (por vezes também a pele) de cada vaca ou similar. Alguns não gostavam e escoiceavam duramente tentando escapar, a qualquer preço,  e a cena repetiu-se sessenta e nove vezes!

Houve várias tentativas de toureiro mas só apareceram artistas inábeis e medrosos; houve também tentativas de pegar... desajeitadas... de quebrar o côco... Tínhamos na CCaç 675 um sobrinho do afamado pegador de touros, Salvação Barreto, o tal que “dobrou” o artista no extraordinário filme “Quo Vadis”; este sobrinho, porém, não queria entender-se com cornúptos ao vivo, para ele, vaca só no prato; mas “cantava” embora desafinado: “una lágrima entre os ojos”!

Para encerro da festa ficou uma perigosa vaca que marrava desalmadamente! Como diz o ditado: o rabo é pior de esfolar! Houve várias tentativas de lide mas a vaca era mais manhosa e enganosa que os turras (estes nunca nos obrigaram a fugir); alguns mais afoitos, mal a vaca investia, saltavam logo para a “trincheira” (para cima das viaturas).

Eis que surge na praça um soldado que, aparentemente, nada teria a ver com touradas. Era natural de Figueira de Castelo Rodrigo, de seu nome completo Silvestre Fernando Verges Flor; não sei o motivo por que o alcunharam de “Aguardente” (era percetível) !. 

Este jovem beirão tentou arremedar qualquer aprendiz de toureiro mas nada lhe saiu bem... nem mal. Distraiu-se a conversar com alguém que, de cima duma viatura, tentava, prudentemente, aconselhá-lo; pôs-se a jeito, involuntariamante, para levar uma valente marrada; gritaram-lhe; ele voltou-se e, não tendo já tempo para fugir, curvou-se “corajosamente” para a frente (para amortecer o impacto),  embarbelou-se com altivez e arrojo e dominou a besta astuciosa e má: uma valente e aparatosa pega... de emergência! 

O pior, porém, foi sair de entre os cornos aguçados da bicha... mas com algumas ajudas conseguiu libertar-se daquela melindrosa situação... sem qualquer mazela. Pediu-se, insistentemente, “bis”... mas ele não foi na conversa; desconfiou que a sorte podia não estar de novo do seu lado e comentou: “de repetição é o relógio da torre da igreja lá da santa terrinha”!

Ao fim de um mês a patrulhar o Cacheu, o comdt do NRP Lira rumou a Bissau não sem antes ter recebido mais duas vacas; além disso foi-lhe prometido que, regressando de novo àquelas águas, poderia contar com carne das vacas que havíamos surripiado aos turras assustados; afinal eles detetaram os animais e forneceram a (parte da) logística!

A caminho de Bissau, ao passar na povoação de Cacheu, na foz do rio com o mesmo nome, um oficial de Marinha, de alta patente, subiu ao navio para seguir viagem para a capital da província. Durante o percurso, o comdt do navio Lira informou garbosamente – em off - o seu superior hierárquico, pormenorizadamente, sobre a tal “Operação Vaca”.

Já em Bissau, os comandantes de todos os navios que haviam patrulhado outros rios reuniram, como habitualmente, com o comando naval para informar, de viva voz, tudo o que de importante havia ocorrido. O comdt B. Lopes não referiu a tal caçada de vacas mas o oficial que havia sido informado – em off – lembrou-lhe que devia referi-la e... assim teve de ser.

Uns dias mais tarde a CCaç 675 recebeu um ofício da Marinha a exigir metade das vacas capturadas. Não descontavam sequer as que haviam sido distribuidas a outras entidades,  exigiam apenas 42,5 vacas!

O cap Tomé Pinto não brincava em serviço; elaborou cálculos rigorosos tendo em devida conta os meios humanos envolvidos naquela tarefa (damos como certo que a carne de vaca não fazia parte da dieta alimentar da LDM); referiu ainda que a parte de leão (maior risco) tinha pertencido aos “infantes”. 

Feitas as contas e apresentadas com rigor e clareza, concluiu que a Marinha tinha direito a duas vacas e meia, e como haviam já recebido três, os marinheiros deveriam devolver-nos meia vaca. O cap Tomé Pinto rogou penhoradamente que essa meia vaca nos fosse enviada pelo primeiro navio que viesse patrulhar o rio Cacheu.

A Marinha não respondeu!... mas não desarmou!

O próximo comandante, R.V.V. e Sá Vaz, a patrulhar o Cacheu,  trazia a incumbência de reabrir as negociações. Parecia que ia travar-se uma batalha “fratricida” entre a Marinha e a Infantaria... mas teria lugar fora da água barrenta do rio cor de cinza.

O cap Tomé Pinto, um perseverante e zeloso defensor dos superiores interesses dos seus comandados, manteve intransigentemente a sua posição sumamente documentada e justificada: inadvertidamente, receberam meia vaca em excesso... devolvam-na!

Por fim o comdt Sá Vaz argumentou (em tom de evidente ameaça velada): 

–  A CCaç. 675 ficará mal vista perante a Marinha se não entregar parte das vacas (já não quantificava).

O cap Tomé Pinto, “homem d’antes quebrar que torcer”, não cedeu, garantindo a veraciadade dos números que havia transmitido.

Assim terminou uma das “batalhas” (aliás duas: a captura e divisão das vacas) mais divertidas e lucrativas que levámos a bom porto. Não nos faltou carne até ao fim da comissão... e ao pessoal do navio Lira – sempre que vieram patrulhar o Cacheu – também não.

A ganadaria da CCaç 675 era excelente e..., apesar de tudo, foi barata.

Fez-nos um jeitão do caraças!

Belmiro Tavares

[Com a devida vénia ao autor... Seleção, revisão e fixação de texto para efeitos de publicação neste blogue: LG]
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Notas do editor:

(*) Vd. primeiro (1) e último (47) poste: