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domingo, 6 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P22973: Adeus, Fajonquito (Cherno Baldé) - Parte I: Os sinais de uma mudança anunciada, os recados vindos do Oio e a delegação que voltou de mãos a abanar



Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Fajonquito > Antigo quartel das NT > 2010 > Visita do Cherno Baldé e família > Local onde era o salão de futebol de cinco e a Casa (comercial) Ultramarina onde foi instalada a messe dos oficiais




Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Fajonquito > Antigo quartel das NT > 2010 > Visita do Cherno Baldé e família > Posto de vigilância permanente equipado com uma metralhadora.



Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Fajonquito > Antigo quartel das NT > 2010 > Visita do Cherno Baldé e família > Inscrição da CCAÇ 2435, a companhia que construiu o aquartelamento em 1969




Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Fajonquito > Antigo quartel das NT > 2010 > Visita do Cherno Baldé e família > Local onde estava situado o poste da bandeira; à esquerda as ruínas do refeitório com a padaria



Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Fajonquito > Antigo quartel das NT > 2010 > Visita do Cherno Baldé e família > O antigo forno na padaria. Na foto,o filho mais velho do Cherno


Fotos (e legendas): © Cherno Baldé (2010). Todos os direitos reservados. 
 [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]







A nossa equipa de futebol de salão no quartel de Fajonquito entre 1974-1975, podendo-se ver em pé: Mamudo, Algássimo e o professor António Tavares;  em primeiro plano, de bruços, : Eu (Cherno) e Aruna (filho do antigo padeiro) à minha esquerda.


Foto (e legenda): © Cherno Baldé (2009). Todos os direitos reservados.  [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Apontamentos autobiográficos:


O Cherno Abdulai Baldé entrou para a Tabanca Grande em 18/6/2009 (*). Ouçamo-lo a falar, resumidamente, dos seus primeiros anos:

 (...)  Chamo-me Cherno Abdulai Baldé, nasci por volta de 1959/60. No quartel de Fajonquito chamavam-me Chico (de Francisco) e tinha amigos soldados que, na sua maioria, eram condutores ou mecânicos-auto. Tive as minhas primeiras aulas com oficiais Portugueses, em Cambajú e Fajonquito.

(...) Em Cambajú, pequeno centro comercial, começou o despertar da minha infância, altura em que, saído da pequeníssima aldeia de Sintchã Samagaya, fundada por meus pais, aterrei-me numa aldeia de muito maior concentração de moranças e de gente. 

(...) Foi naquela época que, na idade de 4 ou 5 anos, aconteceu a minha primeira visão de uma máquina voadora, que terá sido, provavelmente em meados de 1964, precisamente na altura em que estávamos em Samagaia, pouco tempo antes do ataque à zona que nos obrigaria a deixar a aldeia para nos refugiarmos em Cambajú, onde o meu pai já se encontrava a trabalhar alguns anos antes. (...)

(...) Cambaju estava situada mesmo na linha da fronteira com o Senegal, o que lhe emprestava um certo ar cosmopolita onde se cruzavam pessoas de várias origens e destinos e um certo movimento de vaivém de pessoas e mercadorias com as suas três ou quatro casas comerciais, algumas pequenas boutiques e o contrabando pra cá e pra lá das duas fronteiras. (...)

No ano de 1965, altura em que a guerra para a independência se alastrava rapidamente e aterroriza as aldeias daquela área e obrigava a uma concentração maior da população em certos locais com algumas garantias de defesa e protecção militar, Contuboel, Saré-Bacar, Cambajú e Fajonquito constituíam as praças-fortes da área. 

Em Cambajú foi estacionado um destacamento de milícias que assegurava a defesa da localidade e que mais tarde foi reforçado com um destacamento de tropas portuguesas. Pela primeira vez na minha vida ainda jovem, via pessoas de uma raça diferente. Foi um choque tremendo. (...)

(...) Em 1968, o meu pai foi transferido para Fajonquito e com ele toda a nossa família.
Em Fajonquito nasceram os meus irmãos mais novos: Barbosa, Aissatú e Cántaba; e, mais tarde, os filhos da segunda mulher do meu pai, Assiatu Embalo: Umo, Rosa, Mariama e Mamadu-Bobo.

(...) Eu era desses raros pequenos rafeiros do quartel impossíveis de controlar e muito menos de afastar. Quando se fechavam os portões do quartel entrava, mesmo assim, por baixo do arame farpado. O dia e a noite faziam pouca diferença. Apanhava porrada de um ou outro quando deambulava pelo quartel, mas também, dava alguns trocos com emboscadas e pedradas a noite.

A língua ? Isso importava menos. Quando o meu amigo, o Dias, me perguntava "Hó Chiiico já limpaste as minhas botas?", eu respondia de imediato "Sim senhor, já limpaste... e depois ?"... (...)

2. Comentário do editor LG:

No poste P22969 (**), escrevemos o seguinte:

(...) Ninguém, civil ou militar, português ou guineense, conseguiu até agora, como o nosso Cherno Baldé, descrever, com tanta minúcia, vivacidade, humor, ironia, perspicácia e apreensão em relação ao futuro, o que foi a retração do dispositivo militar português e a ocupação, pacífica, pelo PAIGC dos nossos aquartelamentos e destacamentosdas NT e povoações sobre o nosso controlo, na sequência dos acordos de Argel, de 25 de agosto de 1974, entre o Governo Português e o PAIGC.

Com os seus 13/14 anos, ele foi uma testemunha, histórica, privilegiada, diremos mesmo única, do que se passou na sua terra natal, Fajonquito, no dia 1 de setembro de 1974, bem como nas semanas antecedentes e subsequentes. (...)


O comentário que ele deixou no Poste P22912, obriga-nos a reproduzir, em três postes, já a partir de hije, o seu poste P6864 (*), um verdadeiro de antlogia, que por ser muito extenso e ter sido publicado há 11 anos e meio atrás, não é conhecido da maior dos nossos leitores.

Faz parte da série de que ele é autor, "Memórias do Chico, menino e moço", e que já há muito merecia publicação em livro, por constituir um notável documento humano, escrito por um guineense que nasceu e cresceu com a guerra e, que, como tal, deve ser partilhado pelo universo, mais alargado, da lusofonia.


3.  Adeus, Fajonquito (Cherno Baldé) - Parte I (***)


(i) Os sinais de uma mudança anunciada


Em Fajonquito, o período entre o mês de Junho e o de Agosto de 1974, tinha sido marcado por:

 (i) a chegada de uma nova companhia (BCaç 4514/72), conhecida entre nós como a companhia de Gadamael; 

(ii) a visita dos primeiros elementos da guerrilha;  

e a (iii) saída definitiva das tropas portuguesas de Fajonquito, em 1 de Setembro.

Período rico em acontecimentos, manifestações de apoio e festas, que algumas vezes assumiam formas dramáticas e outras simplesmente cómicas, mas foi sobretudo um período de indefinição, de ansiedades e de questões sem resposta, relativamente ao futuro.

No plano pessoal, tinha conseguido em Contuboel, um bom resultado nos exames da 4.ª Classe do que fechavam o ciclo do ensino primário elementar. Não fizemos nenhuma festa, porque o nosso capitão, Sambaro Djau, tinha reprovado nos exames. Para mim, isto representava uma bela “revanche”, pois, com mais de sete anos de serviço no grupo, e estando sempre na linha da frente, o melhor que tinha conseguido era a frustrante patente de 1.º cabo. Quase nada.

Para as pessoas mais atentas, sempre há um prenúncio que serve de sinal para o que acontece a seguir. Entre os fulas são os chamados dillé. Assim, a queda repentina de uma pessoa adulta, a recepção na cabeça de excrementos de uma ave (se for de um jagudi pode trazer consigo a marca de uma desgraça) etc., são sinais a ter seriamente em conta.

Para mim, este sinal tinha sido uma informação que poderia ser muito importante se não estivesse fora do seu contexto normal,  e que foi transmitida pelo Marques, soldado operacional do 2.º Pelotão da CCAÇ 3549 (Deixós-Poisar), de forma clandestina a uma criança ainda inocente, logo a seguir ao assassinato de Amílcar Cabral em  20 de janeiro de 1973.

Encontrou-me perto do salão,  preparando-se para mais uma partida de futebol com os colegas e, pegando no meu braço, afastou-me um pouco do grupo como sempre fazia quando queria falar comigo a sós. Fazendo parte dos meus admiradores, habitualmente, o tema era sobre futebol, desta vez, e sem qualquer preparação prévia, falou-me assim:

 Chico, olha que o vosso padrinho morreu, pá!

Não tendo percebido e, pensando que se tratava de algum acidente relacionado com os meus amigos, particularmente ao meu turbulento patrão Dias, condutor auto, perguntei:

  Qual dos meus padrinhos é que morreu, o Dias?

  Não, pá, é o Cabral!

Eu não conhecia nenhum Cabral, nem de perto nem de longe, que pudesse ser meu padrinho, o Marques, pressentindo que iriam chover as perguntas, olhando para os lados como se estivesse com medo de alguém, afastou-se para o refeitório sem mais explicações, deixando-me coberto de perplexidade. Teria sido um simples desabafo e mais nada. Não me preocupei mais com isso, aliás, era um grande alívio, afinal de contas, não tinha nenhum amigo com esse nome. No entanto este seria o tal sinal de aviso premónitório

Partindo desse pressuposto básico, na minha opinião, é mais fácil compreender o desenlace final que se seguiu ao 25 de Abril quando os portugueses muito apressadamente entregaram tudo, sem condições, sem contrapartidas-


(ii) Os recados vindos de Oio ou a delegação 
que voltou bredouille (ou de mãos a abanar)


Quando se tornou claro para toda a gente que, com a partida das tropas portuguesas, os guerrilheiros do PAIGC seriam os novos mestres do terreiro, dentre a população civil começou a ser delineado um plano de contacto e de recepção.

Os fulas, maioritários, conscientes da alteração de forças e das novas condições que se desenhavam, da sua postura perante a guerra e face a uma guerrilha praticamente desconhecida, solicitaram aos seus vizinhos mandingas para que fossem eles a tomar a dianteira e servissem de porta-vozes da aldeia. Com essa táctica, pensavam poder sondar sobre as reais intenções da guerrilha e o que se escondia sob a etiqueta das bonitas palavras de “liberdade e unidade nacional”. Ė o que se poderia chamar “o jogo da lebre contra a perdiz” nos contos africanos.

Esta iniciativa tinha sido rapidamente apropriada por Ansumane Sissé, um ex-guerrilheiro arrependido, que, mais tarde soubemos, fazia um jogo duplo entre as duas partes em guerra, tinha beneficiado de apoios para a sua instalação e reinserção no quadro da política de (des)mobilização dos quadros do PAIGC, mas também mantinha os contactos com a guerrilha, fornecendo, de vez em quando, algumas informações. Não fosse o diabo tecê-las.

Embarcados num veículo de um comerciante local, os dignitários seguiram com destino à região de Oio, zona de Caresse, onde eram conhecidas as bases dos guerrilheiros. Dentre os numerosos candidatos, foram seleccionados apenas alguns ao critério e gosto do Sr. Ansumane, que, repentinamente, tinha assumido o estatuto de líder, fazendo valer os supostos conhecimentos e contactos que possuía. Depois de muitos anos de supremacia fula e dos seus patrões portugueses, parecia ter chegado, finalmente, a hora do ajuste de contas.

O meu pai, como muitos outros, não tinha sido escolhido e esta notícia tinha caído como uma bomba na sua cabeça de homem sensato e precavido. Lembro-me ainda do seu olhar vazio, algo aturdido e descontrolado, caminhando cabisbaixo e alheio a tudo, arrastando- na estrada de terra vermelha e poeirenta o seu duplo bubu azul celeste bordado e suas babuchas árabes de cor branca, consumindo-se na preocupação engendrada pela precariedade e incerteza da situação.

Por ironia do destino aqueles que até então eram os bandidos seriam agora os senhores. “Quem pode compreender as partidas que a vida nos prega, hein?!”, estaria ele a pensar. Em casa ele tinha, pelo menos, dois retornados para proteger e sustentar, um antigo leopardo ferido de insónias e um gato preto já sem unhas, isto, sem falar do resto da família. O pior seria a humilhação pública de ser obrigado a fugir.

A delegação voltou ao pôr-do-sol e, ao contrário do que se esperava, não tinham regressado ao som dos tambores, flautas e nhanhero (1) e logo que chegaram dispersaram-se, desaparecendo nas sombras nocturnas das estreitas varandas de palhotas húmidas do mês de Agosto. Aos mais curiosos respondiam:

  Disseram-nos para ficarmos quietos e esperar, no momento certo eles virão ter connosco.

Na verdade, eles nem sequer tinham sido recebidos e por um triz não foram presos por invasão de zona de guerra, ainda repleta de minas. Teriam sido energicamente repreendidos pela sua precipitação e insensatez e, por fim, foram encarregues de transmitir a toda a população que, na óptica do Partido e dos seus dirigentes, não havia cidadãos de primeira e de segunda, que o objectivo da luta armada era libertar o povo da dominação colonial e da opressão fascista e não trocar esta por outra com pessoas diferentes...Por outras palavras, não havia diferenças entre fulas e mandingas, todos seriam tratados da mesma maneira, iguais perante a lei com direitos e obrigações para cumprir.

Por outro lado, o Ansumane não tinha obtido o reconhecimento que todos esperavam. Assim, as nuvens negras do céu tinham-se dissipado um pouco para dar lugar a um horizonte mais claro, mesmo se ainda era cedo demais para dançar.

Importa dizer que esta informação foi salutar e teve o condão de evitar a situação de debandada geral que já se pressentia dentro da comunidade fula. O gado, principal riqueza da comunidade, já estava posicionado, havia muito tempo, perto da fronteira com o Senegal. 

[ Revisão, fixação de texto, adaptação, para efeitos de publicação neste poste: LG]

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(i) Instrumento de música tradicional dos fulas,  feito de fios de cabelo extraídos do rabo de cavalo.

(Continua)

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Notas do editor:





quarta-feira, 5 de março de 2014

Guiné 63/74 - P12794 : Memória dos lugares (264): Contuboel e Sonaco, junho/julho de 1969, ao tempo da CCAÇ 2590 / CCAÇ 12 (Humberto Reis / Luís Graça)


Guiné > Zona Leste > Setor L2 (Bafatá)  > Contuboel > Julho de 1969 > CCAÇ 2590/CCAÇ 12 (1969/71) > O alferes miliciano de operações especiais Francisco Moreira, no meio do Humberto Reis (à sua direita) e do Tony Levezinho (à sua esquerda). O nosso Moreira era o homem de confiança do comandante da companhia, o Cap Inf Carlos Alberto Machado Brito (, hoje cor ref). O Moreira passou por Lamego,  pelo CIOE, tal como o Reis.



Guiné > Zona Leste > Setor L2 (Bafatá)  > Contuboel > 15 de Julho de 1969 > CCAÇ 2590/CCAÇ 12 (1969/71) > O alferes miliciano Francisco Magalhães Moreira (1º Gr5 Comb), à esquerda, acompanhado pelo Tony Levezinho (furriel) (2º Gr Comb), o António Fernando R. Marques (furriel), o José António G. Rodrigues (alferes, já falecido) e o Joaquim Augusto Matos Fernandes (furriel) (estes três últimos do 4º Gr Comb), preparando-se para sair até Sonaco (a nordeste de Contuboel).




Guiné > Zona Leste > Setor L2 (Bafatá) > Contuboel > "Em 10 de Julho de 1969, numa canoa no Geba a caminho de Sonaco... Reconhecem-se da esquerda para a direita o Tony Levezinho, eu, o alf Francisco Moreira, o Rocha, condutor, o alf Rodrigues, já falecido, e o djubi, manobrador da canoa, de pé" (HR).

A CCAÇ 2590 (mais tarde, CCAÇ 12) realizou os exercícios finais da instrução de especialidade dos seus soldados africanos,  entre 6 e 12 de Julho, a 10 km a norte de Contuboel.  Sonaco era um destacamento do subsetor de Contuboel, tendo em permanência um grupo de combate da unidade de quadrícula de Contuboel mais um pelotão de milícias. Não me consta que alguma vez tenha sido atacada ou flagelada, tal como Contuboel. (LG)


Fotos: © Humberto Reis (2006) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.


1. A propósito de uma recente referência a Contuboel e a Sonaco (*), dois topónimos de que se fala pouco, aqui no nosso blogue (, e em especial, Sonaco, que só tem meia dúzia de referências)...

O Humberto Reis, autor das fotos que acima publicamos (, que nâo têm de resto, a qualidade a que nos habituou: são de formato reduzido e fraca resolução,,,)  diz que "foi a Sonaco duas, ou três  vezes em passeio", no tempo em que a CCAÇ  2590/CCAÇ 12 esteve em Contuboel, ou seja, menos de dois meses, de 2 de Junho a 18 de Julho de 1969, na fase de instrução de especialidade dos nossos soldados do recrutanmento local . (Só um terço da companhia, os quadros e os especialistas, eram de origem metropolitana).

Sonaco era "um local sem quaisquer problemas", garante o Humberto... E eu confirmo:  pelo menos, não havia risco de emboscada ou de minas, nesse tempo... O braço armado do PAIGC não chegava até lá... Havia vários tampões, entre a fronteria com o Senegal e o subsetor de Contuboel a que pertencia Soncao. A terra tinha vários comerciantes, quer portugueses quer libaneses.

Não sei como as coisas evoluiram, depois... Enfim, era um sítio onde a malta do leste, de outros setores (como o L1,  de Bambadinca)  ia comprar vacas... O Torcato Mendonça, por exemplo, que "vivia" em Mansambo, já aqui referiu que chegou a comer alguns bifinhos das vacas de Sonaco... E eu também, em Bambadinca...

Igualmente havia quem fosse, de Bafatá, a Sonaco para pescar peixe, no rio Geba, à granada...como era o caso do Manuel Mata, (do EREC 2640, Bafatá, 1969/71). (E, a propósito, passei um belíssímo fim de semana na terra dele, o Crato; telefonei-lhe, mas ele já não usa o nº de telefone fixo que eu tinha na agenda).

A CCAÇ 2590 (mais tarde, CCAÇ 12) realizou os exercícios finais da instrução de especialidade dos seus soldados africanos, entre 6 e 12 de Julho, a 10 km a norte de Contuboel.  Andámos por lá a brincar às guerras, com balas de salva (!)... Só os graduados de cada grupo de combate (alferes, furriéis e cabos metropolitanos) levavam nas cartucheiras algumas balas a sério, não fosse o diabo tecê-las...

Em 20/6/1969, escrevi no meu diário:

 "O chão fula vai resistindo, mal, ao cerco da guerrilha. De Piche a Bambadinca ou de Galomaro a Geba, os fulas estão cercados. Mas por enquanto, Bafatá, Contuboel ou Sonaco ainda são sítios por onde os tugas podem andar, à civil, desarmados, como se fossem turistas em férias! Contuboel é ainda um oásis de paz, com um raio de uns escassos quilómetros"...

Tenho ideia de lá ter ido também, a Sonaco, mas não tenho grandes memórias do sitio... Muito menos uma foto, mas pode ser que apareçam mais (**)... (LG)



Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Mapa de Sonaco (1957) (Escala 1/50 mil) > Pormenor da posição relativa de Sonaco, na margem esquerda do Rio Geba, a nordeste de Contuboel... Era uma região bastante povoada e próspera...

Os vagomestres das nossas companhias no leste conheciam Sonaco, onde iam comprar vacas... Pelo menos até ao início dos anos 70, e antes da intensificação da guerra na região fronteiriça, a norte, era um região calma... E acho que continuou calma... até ao fim.

Temos apenas meia meia dúzia de referências a Sonaco no nosso blogue... Era posto administrativo e pertencia ao subsetor de Contuboel. Tenho ideia de que, no meu tempo (junho/julho de 1969) havia lá um pelotão destacado, da unidade de quadrícula de Contuboel (, que já não recordo qual fosse, mas em princípio não podia ser a CART 2479 / CART 11; seria talvaz a CCAÇ 2436, 1968/70: passou por Bissau, Galomaro, Contuboel e Fajonquito; ou ainda a  CCAÇ 2436, que esteve em Quinhamel, Fajonquito, Contuboel e Nhacra; ambas pertenciam ao BCAÇ 2856, sediado em Bafatá).

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2014).



Guiné > Zona Leste > CAOP2 > Setor L2 (Bafatá) > Guão do BCAÇ 3884 (Bafatá, 1972/74) com unidades de quadrícula em Contuboel (CCAÇ 3547), Geba (CCAÇ 3548) e Fajonquito (CCAÇ 3549).
Guiné > Zona Leste > CAOP2 > Setor L2 (Bafatá) > Susetor de Contuboel >   1972/74 > Em Contuboel estava a CCAÇ 3547 (Répteis de Contuboel),   do nosso camarada Manuel Oliveira Pereira, ex-fur mil. (Trabalha, ou trabalhou em tempo, no Hospital da CUF). É membro da nossa Tabanca Grande desde a 1ª série do blogue. A CCAÇ  3547 tem página no Facebook.

Quem também passou por Contuboel e Sonaco foi o nosso camarada açoriano, e notável escritor, Cristóvão Aguiar (n. 1940), ex-al mil da CCAÇ 800 (1965/67), uma companhia independente. O seu diário de guerra foi publicado no nosso blogue, organizado pelo nosso devotado colaborador, amigo e camarada José Martins. (***)

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de:

3 de março de 2014 > Guiné 63/74 - P12790: Memórias de um Lacrau (Valdemar Queiroz, ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70) (Parte IV): Passaram os quatro primeiros meses... Em Contuboel, ainda longe da guerra...

(...) No romance, os militares pertencem a um CCAÇ 666 (que nunca existiu, no TO da Guiné). O nosso camarada José Martins, entretanto, conseguiu,  com o seu olho clínico, identificar, a partir da leitura do livro (e da consulta do 8º Volume, Tomo II da CECA, Fichas História das Unidades, Guiné, pag. 342), a subunidade a que pertenceu o Alf Mil Luís Cristóvão Dias de Aguiar, e que era a CCAÇ 800 (Contuboel, 1965/67):

Companhia de Caçadores nº 800

Unidade Mobilizadora: RI 15 – Tomar.

A subunidade foi formada com data de 1 de Janeiro de 1965, conforme Ordem de Serviço nº 2 de 4 de Janeiro de 1965 do Regimento de Infantaria 15 de Tomar. Destinava-se, inicialmente, ao arquipélago de Cabo Verde, tendo a partida prevista para a data de 13 de Abril de 1965.

Comandante: Capitão Inf Carlos Alberto Gonçalves da Costa, sustituído em Setembro de 1965 pelo Capitão Miliciano de Cavalaria António Tavares Martins (que tinha vindo da CCav 489/Bcav 490) (...).

Constituíam o quadro de Oficiais subalternos os Alferes Milicianos:

João Belchurrinho Baptista;
Luís Cristóvão Dias Aguiar;
João Faria Cortesão Casimiro;
e João Baptista Alves.

Partida: Embarque em 17 de Abril de 1965; desembarque em 23 de Abril de 1965; Regresso: Embarque em 20 de Janeiro de 1967 (...).

A CCAÇ 800 actuou sobretudo no subsetor de Contuboel, a nordeste de Bafatá.

sábado, 26 de janeiro de 2013

Guiné 63/74 - P11008: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (43): General Spínola e a política "Por uma Guiné melhor"

1. Mensagem do nosso amigo tertuliano Cherno Baldé com data de 10 de Dezembro de 2012:

Caros amigos Luís e Carlos Vinhal,
Desejando que vos encontre em óptimas condições de saúde e boa disposição física e mental, junto envio mais um texto que, após leitura e correcção do português, poderão publicar se assim o entenderem.

Com um abraço fraterno,
Cherno Baldé


MEMÓRIAS DO CHICO, MENINO E MOÇO

43 - GENERAL SPINOLA E A POLITICA “POR UMA GUINÉ MELHOR”
(NAS PALAVRAS DE ALIU SAMBA OU SAMBA KONDJAM)

O que a seguir se apresenta é um texto narrativo resultante de recordações sobre as palavras de Aliu Samba ou Samba Kondjam(1) e um testemunho pouco fiável de uma criança “rafeira” de quartel, curiosa e intrometida em forma de uma reflexão retrospectiva sobre a política “por uma Guiné melhor” que, na minha opinião, se não atingiu o seu objectivo maior, terá contribuído de certa forma, para a mudança das mentalidades, modelando a especificidade da colonização portuguesa na Guiné.

Assim, iniciamos com algumas questões que, esperamos, alguém mais adulto, melhor informado e mais fiável, nos ajudará a responder:

1- Qual seria a perspectiva do General Spínola para a solução do caso da Guiné “portuguesa” durante a guerra colonial que opunha o exército português, envolvido em três frentes de guerra subversiva, e a guerrilha nacionalista conduzida por Amílcar Cabral por intermédio do PAIGC?

2- Alguma coisa teria falhado nos planos do General para levar ao reconhecimento da autodeterminação e independência total da Guiné-Bissau, ocorrido em 10 de Setembro de 1974, ou teria sido uma consequência lógica da sua visão para esta província ultramarina, em particular, e da política colonial portuguesa em geral, como saída para o conflito armado que ameaçava os alicerces do império colonial português? Sim ou não, é bem possível que estas e outras questões nunca venham a ter respostas satisfatórias que possam desvendar os segredos do mais velho e enigmático Chefe da guerra colonial ou guerra do Ultramar português que, com a condução da política “por uma Guiné melhor”, tinha conseguido conquistar a confiança de uma parte significativa da população da Guiné, dita portuguesa.

Na Guiné-Bissau independente, nos meses que se seguiram ao 25ABRIL74, pairou no ar um sentimento ou esperança de que o General Spínola voltaria para resgatar a Guiné das mãos dos independentistas que os militares do exército português na altura, encurralados nos centros urbanos e entrincheirados em alguns quartéis fortificados do interior, como gostava de dizer o PAIGC, na ansiedade de um rápido regresso a metrópole, tinham entregue sem quaisquer condições prévias. Ninguém sabia ao certo como seria feito o resgate nem para quando estava isso previsto e, se estava previsto.


LEMBRANDO OS HERÓIS DE SANCORLA

Mas, como não há nada sobre a terra que dure para sempre, o boato que não se confirmou nos meses que se seguiram, acabou por se diluir na corrente dos rumores que iam surgindo, para de seguida se extinguir lentamente como as nuvens desaparecem após a chuva, acompanhando a implantação e consolidação do PAIGC, concomitante a eliminação física de centenas de elementos dos ex-comandos, milícias e soldados nativos do exército português, assim como elementos das chefias tradicionais consideradas, potencialmente, perigosas na fase mais crítica da transição e concentração do poder nas mãos do partido estado.

Estas notas servem também para lembrar e honrar a memória dos nossos pais, tios e irmãos, vítimas da repressão feroz e da exclusão politica e social que se abateu sobre os que estiveram, de forma abnegada e valorosa ao lado e ao serviço de certo Portugal e em nome de certa causa em que acreditavam, seguindo os trilhos de homens de coragem que nunca olharam para trás, filhos dignos de Sancorla como Guelá Baldé, Bubacar Fanca, Sedjali Cumbael, Mâma Djamarã, Alanso Candé, Bodo Djau(1) e muitos outros, nascidos nas terras de Ghâlen Soncô e de Buran-Djamé Baldé, onde as mulheres e mães para calarem o choro das crianças que traziam nas costas, simplesmente lhes diziam: “Cala meu filho, o teu pai vai mandar-te para os Comandos e, se não puderes ser comando, por livre arbítrio dos brancos, então serás o keledjaurâ(2) da nossa aldeia contra os homens do mato”.

O que quer que tenha acontecido durante os golpes e contragolpes em Portugal, após o 25ABRIL, na Guiné a expectativa de um hipotético regresso do General, durante muito tempo, foi uma esperança secretamente alimentada e guardada, pelo menos, no regulado de Sancorla que, com a independência do território tinha tudo a perder e nada a ganhar diante das rivalidades étnicas e contas antigas a ajustar com os seus vizinhos e rebeldes mandingas do Oio e Cola-Caresse que tinham apostado no cavalo certo na altura certa, investindo tudo na guerra contra o colonialismo sim, mas também no sentido de recuperar a glória e a coroa perdidas durante as guerras pela posse das terras do reino de Gabú, um século atrás.

Cherno Baldé conversando com "Homens Grandes" de Fajonquito
Foto: © Cherno Baldé (2013). Todos os direitos reservados


SPÍNOLA CONTRA OS IRAS DE BANDIM

Se esta esperança acabou por desaparecer na cabeça de alguns Guineenses, como foi dito mais acima e como seria lógico pensar em tais circunstâncias, parece que nem todos tinham deixado voar as ilusões sobre esta eventualidade e isto seria confirmado com as discretas visitas a terra de Dona Maria, no inicio dos anos 80, de algumas personalidades religiosas locais com a ajuda de emigrantes, os quais se teriam avistado com Spínola.

Ao certo, não se pode dizer que tivessem feito a viagem somente com esta finalidade, tendo em conta o secretismo que envolvia as deslocações, mas a verdade é que, o tema sobre o qual mais se ouviu falar, após o regresso, tinha a ver com as notícias sobre o velho General, “amigo” dos Guinéus, que, aparentemente, estaria vivo e de boa saúde, acrescentando, no entanto, que já era um homem com ar cansado, que falava muito pouco e que, embora se lembrasse de todas as pessoas com as quais se tinha privado enquanto Governador, parecia estar distante da realidade actual da Guiné, da esperança e dos sonhos de uma hipotética comunidade luso-africana que, em tempos, ajudara a acalentar em alguns espíritos e/ou círculos mais próximos. Afinal, sempre os irãs de Bandim tinham conseguido os seus intentos.

O que foi dito até aqui serve o propósito de poder apresentar a ideia, partilhada com muitos, de que não era crível que depois de ter convencido os seus oficiais superiores e a testa de ferro do regime de Lisboa do “bien-fondé” da politica por ele conduzida na Guiné, desde que chegara aquela província em 1968 (?) e, depois de tanto trabalho e recursos investidos nos esforços para conquistar a confiança de populações nativas completamente a deriva e confrontadas com uma escolha difícil, o “Caco Baldé”(3) baixasse os braços, deixando a província, cuja população literalmente o idolatrava, a mercê dos seus ex-inimigos e antigos adversários.

É sabido que o contexto internacional bem como a situação real no plano da guerra, num continente em plena mutação politica, não lhe era nada favorável, mas não era menos verdade que os grandes homens sempre se distinguiram na história, por feitos em que muitas vezes a evidência dos factos não lhe era, de todo, favorável. E a evidência demonstrara que, a politica “por uma Guiné melhor” sendo uma empreitada que, em muitos aspectos, parecia muito acertada na época, era ao mesmo tempo, de difícil aplicação pratica, tratando-se de um acto que mesmo não alterando em nada o colonialismo, na sua essência, contrariava muitos dos comportamentos e preceitos coloniais habituais mais em voga e que pareciam justificar a própria colonização em si, ao veicular a noção de uma pretensa superioridade racial, baseada na origem e cor da pele, o que era insuportável e humilhante aos olhos dos “quase portugueses” ou assimilados. Esta era a verdadeira razão da guerra e tudo o resto viria por arrasto. Nós íamos compreender isto mais tarde, após a independência.

Mas, uma coisa era querer e outra, bem diferente, poder mudar velhas ideias embutidas na cabeça das pessoas durante séculos, num país, também ele atrasado e governado por uma elite dominada por ideias fascistas. Assim, a mudança das mentalidades, se não era impossível de todo, no mínimo, era uma tarefa muito complicada. Mas, o General provou que não era dos que desistiam com facilidade, embora tivesse dez anos de atraso em relação ao pacto neocolonial referendado e aparentemente ganho por De Gaule nos territórios vizinhos da AOF.

O acaso da história quis que, também em Fajonquito, fôssemos testemunhas desta evidente teimosia e pudéssemos assim sentir, ao lado da nossa população “indígena”, os efeitos de um acto de justiça colonial de tempos novos que, muitos anos depois, e favorecido pelo fracasso da nossa gloriosa independência que custou sangue, suor e lágrimas, segundo os cânones do nosso partido estado e o desencanto patriótico que se seguiu, contribuíram para transformá-lo, finalmente, num acto sublime de elevado valor histórico e contributo importante para a mudança das mentalidades, marcando assim, de forma indelével, a sua passagem pelas terras da Guiné, não na cabeça dos eternos “colons”, mas no espírito do povo simples, eternos “indígenas” de uma nação multiétnica e plurirracial sem rumo.


O CAPITÃO CARVALHO

Este acaso aconteceu em finais de 69 ou princípios de 70, não posso precisar, e teria eu na altura cerca de 10/11 anos de idade e havia poucos meses que tinha mudado com os meus pais de Cambajú para Fajonquito. Aqui, não nos deixavam entrar no interior do quartel, mas a atracção que causava em nós era tal que não conseguíamos ficar longe dos arames farpados. Para facilitar as coisas o meu pai trabalhava no mesmo edifício comercial que albergava, também, nas suas traseiras, a residência do Capitão e comandante da companhia, assim como a messe dos oficiais e sargentos.

Depois de algumas horas de aulas de manhã e com o pretexto de ficar a ajudar o meu pai, conseguia esquivar-me dos trabalhos de campo e passar grande parte do tempo a espreitar o movimento da tropa dentro do quartel, usando o espaço da loja e a presença do meu pai como refúgio sempre que um ou outro elemento mais zeloso quisesse importunar-me. Gostava, sobretudo, de acompanhar o vaivém do Capitão no seu pequeno Jeep de campanha donde sempre descia saltitando ao lado antes de este se imobilizar por completo. Eram imagens que me fascinavam.

Em Cambajú, onde estava estacionado um pelotão da mesma companhia, não existia este fosso de separação entre brancos e pretos, militares e civis e por isso, convivíamos de perto com a tropa portuguesa e com as milícias, inclusive já tivera a oportunidade de esfregar as minhas mãos na pele branca e gorda ou agarrar nos cabelos hirsutos das mãos e braços do nosso amigo, o Furriel Libural (Liberal?), que frequentava assiduamente a nossa casa, não sabendo ao certo o que o atraía mais, se as simpáticas palavras do meu pai sempre cordial e respeitoso para com as autoridades, fossem elas civis ou militares, que o obrigava a tirar o chapéu da cabeça quando as cumprimentava e num excelente português nos apresentava dizendo “minha filho” quando queria dizer “meu filho”, ou eram as minhas primas-irmãs com os seus sorrisos de dentes de marfim, nádegas bambaleantes e seios redondos brilhando em céu aberto.

Em nossa casa toda a gente gostava do Furriel Liberal com seu ar bonacheirão que, muitas vezes, trazia consigo uma terrina cheia de comida do quartel para a meninada. Bem, para ser sincero, nem toda a gente apreciava as suas investidas dentro da nossa morança, arvorando os seus “bumdias e buatardes”, mesmo trazendo comida. E a primeira pessoa a manifestá-lo fora a minha avó paterna, Eguê, que se insurgia contra a intrusão do branco e, quando isso acontecia, amaldiçoando o destino que não quisera que tivesse morrido mais cedo, dizia sempre num tom de profunda e incontida amargura: “Áh Allâ..., e tinha que viver para presenciar isto...!?” Nunca soubemos, ao certo, o que ela queria dizer com “isto”, se era o atrevimento do olhar directo e fulminante com que despia os seus interlocutores, em particular as bajudas, se era a maneira diferente como ele falava, lembrando o som gutural de um pombo apaixonado ou a aparente depravação dos gestos e abraços, as vezes, desmesurados do Furriel e dos seus companheiros da tropa. O que valia mesmo é que ninguém se preocupava com as palavras da avó Eguê que vivia agarrada ao passado, passando a maior parte do tempo a falar sozinha com pessoas imaginárias, insistindo em trazer de volta os ecos de uma vida que já não existia. “Uoúh…, a velhice é mesmo uma merda!” Arrematava ela, encolhendo os ombros, diante dos risos e da indiferença geral, antes de se refugiar dentro da sua casa escura e com um estranho cheiro a merda.

A tropa portuguesa e as nossas mulheres
Foto: © Cherno Baldé (2013). Todos os direitos reservados

Em Fajonquito era diferente e, pela primeira vez, via um Capitão assim de perto, o comandante dos brancos em pessoa. Muitas vezes, quando ele descia do seu Jeep aproximava-me, discretamente, esperando dele um olhar, um sorriso ou um gesto de amizade que nunca aconteciam. Por isso, não me lembro da cor dos seus olhos, escondidos debaixo de umas sobrancelhas fartas, que fugiam do meu olhar, mas lembro-me, mesmo que vagamente, do seu rosto sempre hermético e impenetrável como que querendo dizer-me que não tinha tempo para crianças intrometidas.

O seu nome era Capitão Carvalho, estatura baixa, andar pausado, pés firmes no chão, sentidos obscuros e como que carregados de uma missão impossível. Foi a sua companhia (CCAC 2435) que, de facto, construiu o aquartelamento de Fajonquito em 1969, com o reordenamento da aldeia e construção de um dispositivo de defesa que dizia aos inoportunos visitantes nocturnos:
- “Olha, estamos aqui deste lado, para vos receber com metralha!”.

Estes dispersaram-se indo para os lados de Oio e Joladu e nunca mais voltaram.

Ainda na metrópole, antes do embarque, que se esperava fosse tudo menos a Guiné, a divisa que tinham arranjado para a companhia, assim do jeito “pessoal manga-di-ronco”, era qualquer coisa que dizia assim: “Os tigres, juntos venceremos” e por cima destas palavras via-se a cabeça de um tigre ameaçador, mostrando seus dentes aguçados. Outra companhia que se lhe seguiu as pegadas usava outro lema do tipo: “Deixós poisar”. Não percebíamos nada desta linguagem de caçadores, no entanto, o nosso avô materno, caçador profissional que participara na guerra contra os Canhabaques em 1935 e que conhecia todos os animais da floresta, nos dissera com ar muito sério: “Com os tigres não se brinca”. Mas, em Fajonquito e lá para o fim da comissão, estando mais velhos e realistas tinham alterado a mesma divisa para: “Os tigres, juntos resistiremos” e a outra companhia que lhes seguirá nas peugadas dirá mais tarde a todos os que a queriam ouvir: “Deixós-estar”.


Bajuda guineense, anos 60


O CAPITÃO, SPÍNOLA E O DJINNE DJUNCORE

Devo esclarecer que, de todos os membros da família, o nosso avô materno, era o mais bem informado sobre os aspectos bons da presença portuguesa e com ele mantinha um relacionamento íntimo e confidencial, tanto assim que seria dele a ideia magistral de infiltra-se dentro do quartel com a missão bem definida de colectar uns pequenos pacotinhos de cor verde escura que eram distribuídos à tropa como ração de combate e que mais não eram senão o popular e vulgarmente conhecido caldo de galinha. A tropa não usava aqueles pacotinhos os quais, invariavelmente, deitava no caixote do lixo juntamente com os comprimidos a que se juntavam, também, e que, por minha conta, passei a coleccionar para tratar da saúde contra o vírus da fome.

A missão foi bem-sucedida porque juntava o útil ao agradável. O útil era os pacotinhos de caldo de carne que o velho caçador, especialista na arte de conserva e consumo de carnes secas, cego e sentado na sua varanda, tinha descoberto dentro do quartel e com o qual passou a melhorar, substancialmente, os ingredientes e o gosto do seu intragável prato de farinha de milho preto. O agradável para mim era a possibilidade de poder ludibriar as sentinelas, deambular impunemente dentro do quartel, enfrentando o perigo das botas da tropa, sempre prontas para afinar pontapés certeiros no cu dos pobres Jubis e, quando calhava, um pedaço de pão com um saboroso chouriço de carnes vermelhas vindo de uma alma caridosa. Para sobremesa serviam as cartelas de comprimidos das rações de combate, doces por fora, amargos por dentro, como o coração dos nossos políticos.

Mas, vamos deixar de lado o meu avô para lembrar que, um dos actos mais temerários, para além das suas frequentes saídas para as matas do Oio e Cola/Caresse por que ficou conhecido o Capitão Carvalho era o rebentamento de granadas. Sim, granadas lançadas a poucos metros de distância. Levantava-se numa bela manhã e de repente, como quem cumpria um ritual funesto, ouvia-se um ”Booom” enorme dentro do quartel e a seguir, no mesmo instante em que o cheiro irritante de pólvora invadia o espaço do refeitório e da messe dos oficiais, viam o Capitão a sair do interior de uma gigantesca bola de fumo e poeira, no seu passo pausado e firme de militar, vestido com o seu rigoroso e invariável camuflado. Nunca conseguimos saber que tipo de granadas usava nem descobrir o prazer que este oficial sentia nesses exercícios macabros de lembrar a todos que estávamos em tempo de guerra e de morte.

No meio dos nativos, muitos acreditavam que ele era invulnerável aos estilhaços das granadas. Na opinião de muitos, ele era detentor de um “baki-tcham” ou seja “mesinha” contra balas, para outros seria um protegido do próprio Djuncoré, o rei dos “Djinnés” que habitava o poilão luminoso da bolanha de Sunkudjumá, no prolongamento do rio Canjambari. Como sempre acontece em situações de guerra, era difícil separar o trigo do joio, o mito da realidade. O certo, porém, é que com conivência ou sem ela, o Capitão impunha, a seu belo prazer, a sua lei e as suas ordens na quadrícula a seu mando, exceptuando, claro, o território a oeste que o inimigo ia conquistando pouco a pouco alargando o corredor de Sitatô. E, quem se alia ao poder dos “Djinnés” mais cedo ou mais tarde terá que pagar as contas, diziam os mais velhos e entendidos na matéria. Seria este o caso do Capitão?

Naquele dia, estava no perímetro habitual, entretido a apanhar pequenas pedrinhas na estrada para as brincadeiras habituais quando, de repente, começa um movimento de vaivém da tropa que ocupa o local para uma improvisada parada militar. Da pista de aviação, onde aterrou um ou dois helicópteros, chega um veículo que se imobiliza junto a parada, de onde descem algumas pessoas, dentre as quais um velho oficial em farda de camuflado, corpo ligeiramente dobrado a frente, qual imbondeiro fustigado pelos ventos tropicais, uma bengala na mão direita. Disseram-nos depois que era o General Spínola.

Jolmete > O Gen Spínola falando à tropa
Foto: © Manuel Carvalho (2013). Todos os direitos reservados

O que aconteceu a seguir foi rápido e indescritível, não me lembro de ter ouvido o som da corneta, não houve discursos para a ocasião e os militares da parada, provavelmente, teriam executado os habituais gestos teatrais que culminavam no “apresentar armááá!”, prática marcial que o General não vira ou não tivera tempo de corresponder e, dirigindo-se ao Capitão perfilado a sua frente, ter-lhe-ia assestado uma violenta bofetada para depois puxar dos seus ombros as patentes que este orgulhosamente ostentava. E, naquele mesmo instante e no mesmo veículo, voltaram para a pista, levando consigo o Capitão Carvalho que, talvez pela primeira vez, na sua vida de oficial, viajava nas traseiras de um Unimog e, pior ainda, sem os seus lustrosos galões de comando. Mais tarde juntar-se-iam outros elementos do poder local para um desterro de muitos anos. Quando os helicópteros levantaram voo, ouviu-se um convulsivo choro da tropa metropolitana que assim demonstrava, aos olhos da população, os seus sentimentos de grande estima e de apego ao seu comandante de companhia.

Nunca antes, na minha vida, tinha assistido a uma cena tão comovente protagonizada por homens brancos e, como estavam de luto e não tinham nenhuma vontade de comer o guisado de carne de vaca que os esforçados cozinheiros nativos tinham preparado, um grupo de rafeiros famintos foi lá dar uma mãozinha, enchendo cada um a sua marmita bem a medida.

Por uma Guiné melhor, ninguém podia fazer mais e melhor que este “Show-off” público, em nome da justiça e da dignidade dos Guinéus, indiferentemente da cor da pele, da classe social ou do nível da patente militar. Os indígenas tinham ficado confusos e boquiabertos, pois desde os tempos de Mussa Molo que ninguém tinha visto um Capitão do exército português e branco a sofrer uma tão humilhante afronta ao seu estatuto de oficial superior por causa de alegados atropelos aos direitos humanos do “gentio” rebelde e num território em guerra.

Os discursos vieram depois com a entrada em cena de Issufo Sandem, dos nossos vizinhos mandingas e ferreiro bem conhecido por sua eloquência verbal. Saindo do nada, gesticulando freneticamente as mãos e fazendo jus a sua cidadania, num bem aprimorado português, explicava para a curiosa multidão que entretanto se tinha juntado no local, sobre as actividades e os métodos usados pelo Capitão nas sessões de tortura dos presos e que, por conseguinte, ficaria mui célebre:
- “O Capiton pega num gaijo, mete dentro de um bidon d´iagu, cabeças pra baixu e cús pra cima, dipois, com barriga grandi como prenhadas, tira i deita na tchon, piza barrigas com botas de tropa e iagu sair na bocas i na cus”(4).

Ta percebido?

De seguida, o grupo dos prisioneiros, que durante a visita do General tinha sido escondido no interior da tabanca, encabeçados por Tchamá ou Intchamá que, pela primeira vez, eram alvo de alguma atenção e envergando roupas mais ou menos decentes e sem o cheiro nauseabundo que lhes era característico, foram apresentados um a um como se fosse a primeira vez que eram vistos, quando na realidade, todos os dias e durante toda a fase da construção do aquartelamento, tinham sido utilizados como mão-de-obra nos trabalhos de escavação dos abrigos, valas, valetas e ainda na limpeza de toda a área que circundava o quartel e para onde estavam apontadas as metralhadoras que defendiam a aldeia.

Claro que aos olhos da população local, estrategicamente guiada e manipulada, tratava-se de “turras”, catalogados como IN e gente do mato que aterrorizava, matava e pilhava as nossas aldeias e, por isso, simplesmente, não podiam ter qualquer direito de existir e merecer a menor consideração e como tal eram simplesmente invisíveis. Era isto a realidade crua de uma guerra onde cada um tinha que escolher um dos lados, estivesse certo ou errado.

Voltando ao episódio de 69/70 com o Capitão, é claro que não vamos aqui afirmar, sem cairmos no risco de um grande equivoco, que aquilo que aconteceu teria sido o mau desfecho de um sinistro contrato satânico, como pensava o Aliu Samba e os restantes indígenas da aldeia no delírio das suas mentes animistas, mas não deixa de provocar certa perplexidade o facto de que, depois deste fatídico acontecimento de mau agouro, não houve nenhum outro Capitão que tivesse cumprido a sua missão até ao fim sem problemas, nesse subsector.

O primeiro a chegar, o Cap. Figueiredo (1970/72), teve um fim trágico a escassos meses do fim da sua comissão, quando estava a trabalhar no gabinete que o próprio tinha construído no local, onde dois anos antes o Cap. Carvalho tinha perdido os seus galões. O segundo, o Cap. Patrocínio (1972), com seis meses apenas, seria convocado junto a sede do Batalhão, em Bafatá, para receber uma “porrada” que o arredaria, definitivamente, da sua companhia, obrigando-nos a assistir a mais uma cena de choros e ranger de dentes dos seus desamparados rapazes.

O último, bem, o último tinha sido o Cap. Pedreiro Martins (Junho de 1974), a guerra já tinha chegado ao fim e de mais a mais, para uma companhia que tinha participado no trabalho titanesco de furar o cerco de Guidage e tinha depois passado algum tempo no inferno de Gadamael, os irãs, provavelmente, teriam concordado em poupá-los um pouco, deixando-os cumprir com pompa e circunstância a (des)honra que representou para Portugal e os seus aliados fulas de Sancorla, a entrega final do aquartelamento de Fajonquito aos “maquizards” do PAIGC para que assim se cumprisse a profecia de Cabral e pudéssemos, finalmente, passar de “uma Guiné melhor” com roupagem e estilo neocolonial para “uma Guiné bem pior” revolucionária, conforme estava superiormente predestinado.

Mas, na opinião de Aliu Samba e dos seus conterrâneos, a situação era bem mais complexa que isso e, estavam convencidos que a extinção da luz do poilão luminoso do lago Djuncoré, significava o desaparecimento do rei dos Djinnés, no preciso momento em que o PAIGC teria penetrado no coração sagrado do recinto dos poilões de Canhámina, capital de Sancorla, marcando assim o fim do regulado e de uma dinastia.

- Viva PAIGC!... Viva!!!
- Viva Titina Silá!... Viva!!!
- Abaixo a FLING!... Abaixo!!!
- Abaixo imperialismo!... Abaixo!!!
- Viva PAIGC!... Viva!!!
- Viva Osvaldo Vieira!... Viva!!!
- Abaixo oportunistas!... Abaixo!!!
- Abaixo o Colonialismo!... Abaixo!!!
- Viva Amílcar Cabral!... Viva!!!
- Vivam os Heróis da luta!... Viva!!!
- Abaixo barrigas de meia!... Abaixo!!!
- Abaixo Neocolonialismo!... Abaixo!!!

Aplausos camaradas aplausos, enquanto o pano desliza, pouco a pouco, para cobrir o triste cenário do palco quotidiano da alegria das nossas vidas.

Bissau, 21 de Janeiro de 2013.
Cherno Baldé (Chico de Fajonquito)
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NOTAS: 

(1) - Guelá Baldé – Alf. Comandante do pelotão de milícias de Cambaju, morto em combate em 71 (não há unanimidade sobre a sua patente, muita gente, incluindo familiares, afirma que já tinha sido promovido a Capitão de milícias, antes da sua morte. No cômputo geral, havia no regulado de Sancorla mais de 5 Alferes/Tenentes e 1 Capitão, todos de 2.ª linha, no comando de pelotões de milícias (Sare-Uale, Sumbundo, Cambaju, Suna e Sare-Djamara) que a realidade do conflito tinha colocado na 1.ª linha da guerra, todos eles príncipes de Sancorla); - Carlos Bubacar Djau (Bubacar Fanca) - Alf. Comando, 2.ª Companhia, fuzilado pelo PAIGC nos anos 70; - José Manuel Sedjali Embalo (Sedjali Cumbael) -2.º Sargento Comando, 1.ª Companhia, fuzilado pelo PAIGC nos anos 70; - Mamadu Baldé (Mama Djamara) - Alf. Comando, 2.ª Companhia, falecido em Portugal nos anos 90; - Alanso Candé – 2.ª Companhia de Comandos; - Bodo Djau – Grupo de tropas especiais de Marcelino da Mata.

(2) - Guerreiro, herói e mártir.

(3) - “Caco Baldé” tem origens no meio e língua fulas, é uma alcunha bem conseguida e duplamente interessante. Caco, khaco ou haco, originalmente, quer dizer cor castanha (a cor das folhas secas), na língua fula, e servia inicialmente para designar a cor da farda das autoridades administrativas e/ou da tropa colonial. Mais tarde, para simplificar, este termo seria simplesmente utilizado para designar, de forma disfarçada e caricatural, as autoridades coloniais ou seus representantes. O apelido Baldé seria lindamente encaixado em acréscimo, certamente, seguindo a lógica da brincadeira muito habitual entre grupos que se consideram primos por afinidade (sanguínea ou territorial) - “Sanencuia”.
Por exemplo, os Djaló são primos dos Baldé por afinidade sanguínea, da mesma forma que o grupo fula, na sua generalidade, é primo do grupo etnolinguístico mandinga que abrange Saracolés, Soninqués, Bambaras etc., por afinidade territorial.
Também é bastante lógico se tivermos em conta que a maior parte dos chefes tradicionais fulas (régulos) e colaboradores das autoridades coloniais, no chão fula, ou pertenciam a esta linhagem ou tinham este apelido, de modo que é uma homenagem e, ao mesmo tempo, uma caricatura dirigida a linhagem dos Baldé, na minha opinião bem conseguida, por um primo, resultante da brincadeira entre grupos de afinidade, usando a figura da maior autoridade portuguesa, de então, no território da Guiné.
Não tenho a certeza e trata-se de uma conjectura da minha parte como pista para uma pesquisa mais aprofundada.

(4) - “O Capitão pega num gajo, mete dentro de um bidão cheio d’agua, cabeça para baixo e cu pra cima. Depois, com a barriga cheia e grande como uma mulher grávida, retira-o e deita-o no chão pisando a barriga com as botas de tropa, fazendo sair água na boca e no ânus”.
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 13 DE DEZEMBRO DE 2012 > Guiné 63/74 - P10796: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (42): Quem roubou o nosso canhão?

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Guiné 63/74 - P4646: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (5): A família extensa, reunida em Fajonquito, em 1968

1. Quinta e última parte das memórias de infância do nosso amigo Cherno Baldé (aqui, na foto, à esquerda, o Engº Cherno Baldé, no seu gabinete de trabalho, no Ministério das Infraestruturas, Transportes e Comunicações onde exerce as funções de director do gabinete de estudos e planeamento; em Cambajú e Fajonquito, era simplesmente o Chico, menino e moço, nado e criado no meio das tropas portuguesas) (*).

As crónicas do Cherno têm tido, entre os leitores do nosso blogue, um grande sucesso, pelço seu cunho espontâneo e autêntico, bem como pela qualidade da sua escrita. Fazemos votos para que ele dê continuidade a esta série, nomeadamente com as memórias do tempo que passou em Fajonquito (de 1968 até ao final da guerra e primeiros meses da independência) (LG)


FAJONQUITO: Terra da minha adolescência
por Cherno Baldé


Em 1968, [ e não 1958, como por lapso escreve o autor ], o meu pai foi transferido para Fajonquito e com ele toda a nossa família. Todavia, o meu pai não estava satisfeito com a transferência porque ela tinha provocado a separação com o seu irmão Dembaro, cuja família não podia sair de lá naquela época de rigoroso controlo do movimento de pessoas, por parte das autoridades tradicionais fortemente empenhadas na guerra, sem um pretexto muito forte.

A nossa família, sobretudo, era muito suspeita após a fuga espectacular de Sambagaia, com quem [as autoridades tradicionais] tinham contas a ajustar. Durante mais de um ano, o meu pai esteve à procura de uma maneira de tirar de Cambajú o seu irmão mais velho ao qual tinha jurado fidelidade e assistência.

Finalmente, um ano após a nossa vinda chegou a outra metade da família com Dembaro à testa, para alívio e alegria do meu pai. Este me contaria, mais tarde, que tinha conseguido [isso], graças à ajuda e cumplicidade do Capitão da Companhia que estava colocado em Fajonquito (Cap Carvalho?) e que enviava regularmente um destacamento de 20 dos seus homens para Cambajú. Através de amigos, conseguiu falar com o capitão, explicando-lhe todo o melindre da situação. Este não deu muita importância ao caso e esperou até a altura de proceder à troca de destacamentos e disse ao meu pai para transmitir ao irmão de que devia estar preparado a qualquer momento para embarcar na coluna que traria de volta o destacamento que se encontrava em Cambajú. (**)

E foi assim que, de forma rápida e inesperada, o Dembaro e a família viajaram num camião GMC militar para Fajonquito, colocando tudo e todos perante o facto consumado e granjeando ainda o respeito devido aos amigos do Capitão da Companhia que detinha um poder enorme nas redondezas e, aparentemente, suplantava mesmo as autoridades civis.

Fajonquito, naquela altura, era enorme, devido à concentração das famílias que aqui encontraram refúgio depois dos ataques às suas aldeias ou por imposição das autoridades locais.

Em Fajonquito nasceram os meus irmãos mais novos: Barbosa, Aissatú e Cántaba; e, mais tarde, os filhos da segunda mulher do meu pai, Assiatu Embalo: Umo, Rosa, Mariama e Mamadu-Bobo.


Cherno Abdulai Baldé, Chico
Natural de Fajonquito,
Sector de Contuboel,
Região de Bafatá.

____________________

Notas de L.G.:


(*) Vd. postes anteriores:

18 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4550: Tabanca Grande (153): Cherno Baldé (n. 1960), rafeiro de Fajonquito, hoje engenheiro em Bissau...

(...) Chamo-me Cherno Abdulai Baldé, nasci por volta de 1959/60. No quartel de Fajonquito chamavam-me Chico (de Francisco) e tinha amigos soldados que, na sua maioria, eram condutores ou mecânicos-auto. Tive as minhas primeiras aulas com oficiais Portugueses, em Cambajú e Fajonquito. (...)

19 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4553: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (1): A primeira visão, aterradora, de um helicanhão

(...) Foi naquela época que, na idade de 4 ou 5 anos, aconteceu a minha primeira visão de uma máquina voadora, que terá sido, provavelmente em meados de 1964, precisamente na altura em que estávamos em Samagaia, pouco tempo antes do ataque à zona que nos obrigaria a deixar a aldeia para nos refugiarmos em Cambajú, onde o meu pai já se encontrava a trabalhar alguns anos antes. (...)

24 de Junho de 2009 > Guine 63/74 - P4567: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (2): Cambajú, uma janela para o mundo

(...) Em Cambajú, pequeno centro comercial, começou o despertar da minha infância, altura em que, saído da pequeníssima aldeia de Sintchã Samagaya, fundada por meus pais, aterrei-me numa aldeia de muito maior concentração de moranças e de gente. Cambaju estava situada mesmo na linha da fronteira com o Senegal, o que lhe emprestava um certo ar cosmopolita onde se cruzavam pessoas de várias origens e destinos e um certo movimento de vaivém de pessoas e mercadorias com as suas três ou quatro casas comerciais, algumas pequenas boutiques e o contrabando pra cá e pra lá das duas fronteiras. (...)

25 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4580: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (3): A chegada dos primeiros homens brancos a Cambajú em 1965: terror e fascínio

(...) No ano de 1965, altura em que a guerra para a independência se alastrava rapidamente e aterroriza as aldeias daquela área e obrigava a uma concentração maior da população em certos locais com algumas garantias de defesa e protecção militar, Contuboel, Saré-Bacar, Cambajú e Fajonquito constituíam as praças-fortes da área. Em Cambajú foi estacionado um destacamento de milícias que assegurava a defesa da localidade e que mais tarde foi reforçado com um destacamento de tropas portuguesas. Pela primeira vez na minha vida ainda jovem, via pessoas de uma raça diferente. Foi um choque tremendo. (...)

30 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4611: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (4): O ataque dos meus primos a Cambajú e o meu pai que foi um herói

(...) Ainda hoje, a nossa mãe está convencida que este ataque foi obra dos primos do meu pai que viviam do outro lado da fronteira, não muito longe de Cambajú. Aconteceu que, no dia anterior ao ataque, o meu pai tinha recebido uma grande quantidade de mercadorias e, por coincidência, no mesmo dia tinha-se despedido uma pessoa que estava hospedada em casa para tratamento e que voltara junto dos tais primos da outra banda. Assim, nesse dia do ano de 1966, na calada da noite, pouco depois das quatro horas de madrugada, ouvimos tiros. Primeiro os disparos se fizeram ouvir a oeste para os lados do quartel, fazendo pensar que o objectivo era militar, depois se espalharam rapidamente contornando a aldeia. (...)


(**) Pode tratar-se da CCAÇ 2435, comandada pelo Cap Inf José António Rodrigues de Carvalho e, posteriormente, pelo Cap Inf Raul Afonso Reis, unidade orgânica do BCaç 2856, mobilizada em Abrantes no Regimento de Infantaria n.º 2, que assumiu a responsabilidade do subsector de Fajonquito, rendendo a CCaç 1685, em 7 de Dezembro de 1968, e vindo a ser substituída pela CCaç 2436, em 20 de Abril de 1970.

Ou então, mais provavelmente, trata-se da CCaç 1685, comandada pelo Cap Inf Alcino de Jesus Raiano, unidade orgânica do BCaç 1912, e mobilizada em Évora no RI 16: assumiu a responsabilidade do subsector de Fajonquito, rendendo a CCaç 1501, em 19 de Setembro de 1967, e vindo a ser substituída pela CCaç 2435 em 14 de Dezembro de 1968.

No entanto, o Chico diz-nos que "quando a minha familia se transferiu para Fajonquito, a companhia 1501 já estava no fim ou já tinha terminado a sua comissão mas, na memória de todos, em Fajonquito, tinham ficado gravadas estas insígnias em forma de números que perduraram no tempo. No meu caso, não sei explicar as razões, ainda era muito pequeno, mas a insígnia ficou para sempre"...

Recorde-se que CCAÇ 1501, comandada pelo Cap Inf Rui Antunes Tomaz, era uma unidade orgânica do BCAÇ 1877, mobilizada em Tomar no RI 15, tendo assumido a responsabilidade do subsector de Fajonquito e rendido a CCaç 1497, em 26 de Janeiro de 1967. Veio a ser substituída pela CCaç 1685, em 19 de Setembro de 1967.