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sábado, 25 de setembro de 2021

Guiné 61/74 - P22570: Casos: a verdade sobre... (28): a CCAÇ 1546 e o Mareclino da Mata: uma mentira colossal (Domingos Gonçalves, ex-alf mil inf, CCAÇ 1546 / BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68)


Guião da CCAÇ 1546 / BCAÇ 1887 (Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta
1966/68):


1. Memsagem de Domingos Gonçalves, ex-alf mil inf, CCAÇ 1546 / BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68):

Data - 24 set 2021 16:17


Assunto - CCaç 1546 / Marcelino da Mata


Prezado Luís Graça;

Tomo a liberdade de enviar este pequeno texto, que poderá ser publicado, caso se enquadre nos objectivos editoriais do Blog

A publicação, pelo colega Carlos Silva do livro sobre os "Roncos de Farim", e a não inclusão no mesmo da referência ao recambolesco, despudorado e inventado episódio, da libertação dos homens da companhia de caçadores 1546, presos pelo PAIGC no Senegal, trouxe para a ordem do dia a personalidade do Marcelino da Mata.(*)

Sobre a mentira colossal em causa só posso dizer que a mesma constitui um ultraje para os homens da citada unidade militar, como para a generalidade do exército português. (**)

Com efeito, quer na Guiné, quer em Angola e Moçambique, penso que ninguém apanhou soldados portugueses à mão.

Soldados portugueses aprisionados houve-os sim, em Goa, mas num processo que lhes permitiu uma rendição digna, e um tratamento de acordo a lei internacional



(Lisboa, Oficina do Livro, 2012. 192 pp.)


Claro que a medalha da vida humana tem duas faces. No caso do Marcelino. uma dessas faces está, de facto, vheia de actos valorosos. Mas, infelizmente, a outra face está vazia. Nessa face vazia falta o humanismo, o respeito pelos vencidos, o respeito pelos direitos humanos, pela verdade, etc.

Com tudo isto pretendo só louvar o colega Carlos Silva, que conseguiu manter o rigor dos factos, mantendo o seu trabalho limpo ao não mencionar a façanha em causa, inventada pelo suposto Rambo da Guiné, e que faz parte do muito lixo informativo que circula na internet. 

A designação "O Rambo da Guiné" aparece no livro "Heróis do Ultramar" (de Nuno Castro), onde o Marcelino da Mata, mentindo, descreve essa façanha. (***)

Domingos Gonçalves
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Notas do editor:

quinta-feira, 16 de setembro de 2021

Guiné 61/74 - P22548: (Ex)citações (392): Vamos lá pôr os pontos nos iii... “Exageros de Marcelino da Mata?“ (Carlos Silva, ex-Fur Mil da CCAÇ 2548/BCAÇ 2879)

1. Comentário do nosso camarada Carlos Silva, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2548/BCAÇ 2879 (Jumbembem, 1969/71), publicado no Poste P22539 em 14 de Setembro de 2021:

Amigos e camaradas:

Vamos lá pôr os pontos nos iii...

“Exageros de Marcelino da Mata?“

No livro agora recenseado pelo nosso camarada Mário Beja Santos,[*] é referido a páginas 71/72 que os “Roncos de Farim” foram chamados de urgência para tentarem resgatar a CCaç 1546/BCaç 1887, que fora apanhada à mão pelos guerrilheiros quando efectuava um reconhecimento em força na fronteira, mencionando:

"Em Agosto de 1967 …
[Pediram-me que os trouxesse de volta à Guiné Portuguesa. Sabia-se que tinham sido levados para um aquartelamento onde estavam foças do PAIGC e um batalhão de paraquedistas senegaleses. E nós lá fomos, 19 homens para resgatar 150!

Os do meu grupo iam todos fortemente armados, mas eu não. Levava apenas uma tanga igual à que os senegaleses usam naquela zona. Foi assim que consegui chegar perto do arame farpado. Os presos portugueses estavam todos sentados na parada, descalços e em cuecas. Um deles reconheceu-me e avisou o capitão.

Depois passaram palavra entre eles e esperaram pela acção“



“Atirei uma granada ofensiva para o meio da parada e no meio de grande tiroteio gerou-se confusão. Os “páras” senegaleses desataram a fugir e aproveitamos para tirar dali os nossos.

Foi assim que fugiram - descalços. Fizeram 40 quilómetros até à fronteira escoltados por nove homens do meu grupo, enquanto outros 10 ficaram para trás a aguentar os tipos do PAIGC.

Quando finalmente chegaram à Guiné Portuguesa, voltámos para trás para dar porrada aos guerrilheiros. Foi uma operação em que ganhei a Torre Espada, recorda Marcelino .” ]


O Autor não refere a fonte de onde extraiu este episódio, que nos faz lembrar os filmes de cowboys.

A
CCaç 1546 pertencente ao BCaç 1887 comandado por um grande combatente Ten Cor Agostinho Ferreira, seguiu em 13Maio66 para Piche, a fim de efectuar a instrução de adaptação operacional, sob orientação do BCaç 1856, até 02Jun66.

Seguidamente foi colocada em Nova Lamego, como subunidade de intervenção e reserva do Comando-Chefe e orientada para actuação na Zona Leste, onde foi atribuída ao Agr 24. Inicialmente, foi utilizada em operações realizadas nas regiões de Bucurés/Camajabá, Madina do Boé, Ché-Ché e Beli, entre outras, em reforço do BCaç 1856.

De 20 a 22Set66, foi utilizada numa operação realizada na região de Madina-Enxalé, em reforço do BCaç 1888.

Em 20Out66, transferiu a sua sede para Fá Mandinga, mantendo-se em reforço do BCaç 1888, tendo realizado várias operações nas regiões de Xitole, entre outras.

Em 16Dez66, foi substituída em Fá Mandinga pela CCAÇ 1589 e recolheu seguidamente a Bissau, onde se manteve até 27Dez66, após o que seguiu para Binta. Em 28Dez66, rendendo a CCaç 1550, assumiu a responsabilidade do subsector de Binta, com um pelotão destacado em Guidage, ficando então integrada no dispositivo e manobra do seu batalhão, BCaç 1887.

Em 13Jan68, foi rendida pela CArt 1648 e recolheu seguidamente a Bissau, a fim de aguardar o embarque de regresso.

[In, Estado-Maior do Exército – Comissão para o Estudo das Campanhas de África ( 1961-1974 ), 7.º Volume – Fichas das Unidades - Tomo II – Guiné – 1.ª Edição – Lisboa 2002]

Ora, face à experiência de combate desta Unidade CCaç 1546, como decorre do seu pequeno historial, qual é o Combatente de boa fé que acredita nesta história que nos faz lembrar os filmes de cowboys?

Não vi, não ouvi e nem li e nem acredito que algum dos gloriosos Combatentes desta UNIDADE pertencente ao glorioso BCaç 1887, comandado por um Comandante de gabarito, Ten Cor Agostinho Ferreira, que alguma vez tenham omitido uma tamanha humilhação resultante do episódio descrito no mencionado livro intitulado "No mato ninguém morre em versão John Wayne, Guiné o Vietname português", págs 71/72 da autoria . da autoria de Jorge Monteiro Alves.

O nosso camarada bloguista Domingos Gonçalves, ex-Alferes da CCaç 1546[**], que esteve sediada em Binta com um Pelotão destacado em Guidage, e que por duas vezes esteve a comandar o pelotão destacado em Guidage, não faz qualquer alusão no seu diário composto por 3 volumes a um episódio de semelhante natureza.

Eu também nunca ouvi da boca de vários elementos dos “Roncos de Farim“, inclusive do próprio Marcelino da Mata, tamanha façanha, caso contrário teria mencionado no meu livro “Os Roncos de Farim“, na medida em que tratava-se de uma intervenção do grupo e por certo teria de ser comandado pelo Alf Filipe Ribeiro, à altura comandante deste grupo aguerrido, que não era e nunca foi comandado por Marcelino da Mata.

Vamos lá desfazer as mentiras, nem oito, nem oitenta.

Carlos Silva

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Notas do editor

[*] - Vd. poste de 13 DE SETEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22539: Notas de leitura (1381): "No mato ninguém morre em versão John Wayne, Guiné o Vietname português", por Jorge Monteiro Alves; LX Vinte e Oito, 2021 (Mário Beja Santos)

[**] - Vd. poste de 20 DE DEZEMBRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P14057: (Ex)citações (255): O Marcelino da Mata, que foi um militar valoroso, não precisa que se inventem, e lhe atribuam episódios desse género (Domingos Gonçalves)

3. Esclarecimento do camarada Domingo Gonçalves.

Prezado Manuel Luís Lomba:
Respondendo ao teu pedido de esclarecimento tenho a referir o seguinte:
Quando se realizou a operação em causa eu estava a comandar o destacamento de Guidage pelo que acompanhei muito de perto a operação Chibata.
Os Comandos de Farim - os Roncos -, como eram conhecidos, participaram na operação, comandados pelo Marcelino da Mata, que teve, uma intervenção importante no desenrolar dos acontecimentos.
Participei, aliás, em várias ações levadas a cabo pela CCAÇ 1546, reforçada pelo citado grupo. O Marcelino era um combatente arrojado. Teve influência decisiva em várias ações de combate. Ele e o grupo, claro.
Contudo, sobre o episódio da libertação de prisioneiros, pertencentes à minha Companhia, apenas posso referir, que é mentira. Quer a minha Companhia, quer as outras duas, a 1547 e a 1548, que integravam o BCAÇ 1887, fizeram, ao longo da sua permanência na Guiné, prisioneiros, mas não sofreram prisioneiros.
Vi, também, na Net, a descrição do episódio que referes. Uma libertação, aliás, de prisioneiros, de forma bastante simplória. Como disse, é pura mentira.
O Marcelino, que foi um militar valoroso, não precisa que se inventem, e lhe atribuam episódios desse género.


Último poste da série de 12 DE SETEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22538: (Ex)citações (391): Ainda não sabemos a proveniência da foto de capa do livro do TCor Pedro Marquês de Sousa, "Os números da guerra de África" (Guerra e Paz Editores, 2021), escolhida pela editora (António Bastos / Carlos Vinhal)

sábado, 28 de julho de 2018

Guiné 61/74 - P18873: Para que os bravos de Madina do Boé, de Béli e do Cheche não fiquem na "vala comum do esquecimento" - Parte IV: O fantasma de Dien Bien Phu: fotos do álbum do Manuel Coelho (ex-fur mil trms, CCAÇ 1589 / BCAÇ 1894, Bissau, Fá Mandinga, Nova Lamego, Béli e Madina do Boé, 1966/68)


Foto nº 1 A > Madina do Boé: vista aérea, tirada de DO 27, c. 1967


Foto nº 1 > Madina do Boé: vista aérea, tirada de DO 27, c. 1967. As tão faladas colinas do Boé... "O resto era deserto", diz o fotógrafo...


Foto nº 2A  > Coluna logística a Madina (I)


Foto nº 2 > Foto nº 2A  > Coluna logística a Madina (II)


Foto nº 3A >Foto nº 2A  > Coluna logística a Madina (III)


Foto nº 3B > Foto nº 2A  > Coluna logística a Madina (IV)


Foto nº 4A > Foto nº 2A  > Coluna logística a Madina (V)


Foto nº 4BFoto nº 2A  > Coluna logística a Madina (VI)


Foto nº 5A  > Coluna logística a Madina (VII)


Foto nº 6A > > Coluna logística a Madina (VIII)


Foto nº 6  > Coluna logística a Madina (IX)

Guiné > Região do Boé > CCAÇ 1589 / BCAÇ 1894, "Os Tufas" (Bissau, Fá Mandinga, Nova Lamego, Beli e Madina do Boé, 1966-68) > 1967 > s/d >

Fotos (e legendas): © Manuel Caldeira Coelho (2018). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mais fotos do álbum do Manuel Coelho, ex-fur mil trms, CCAÇ 1589 / BCAÇ 1894 (Nova Lamego e Madina do Boé, 1966/68), o nosso grande fotógrafo de Madina do Boé (*). 

Escreve o nosso editor Luís Graça:

Cheguei a Bissau, pelas 21h00,  do dia 29 de maio de 1969,  5ª feira, no T/T Niassa. Tinha partido do Cais da Rocha Conde de Óbidos, em Lisboa, no sábado, dia 24. Cinco dias de viagem... Só na manhã  do dia seguinte, sexta feira, é que fomos despejados, qual mercadoria indesejada...

Dizem os registos que a a 31, sábado, no Depósito de Adidos, SEXA, o Comandante-Chefe das Forças Armadas, Brigadeiro António de Spínola, passou revista às tropas em parada, com pompa e circunstância,  e dirigiu-nos palavras de boas-vindas.

Jã não me lembro dessa "cena", como diriam os putos de hoje...  Muito menos me lembro do discurso, pronunciado naquela inconfundível voz de ventrícola do nosso Homem Grande (Essa voz, sim, reconhecê-la-ia até no inferno, voltei a encontrá-lo, mais tarde, no destacamemto do rio Udunduma, foi-me lá desejar boas festas de Ano Novo)...

Lembro-me isso, sim, de deambular pelas ruas de Bissau, eu e outros camaradas, completamente desidratados, sufocados pelo calor e a humidade típicos do início da época das chuvas... Estávamos nos Adidos, apanhámos uma boleia num Unimog 404... Procurávamos, desesperadamente,  bebidas frescas, algo que matasse a nossa insaciável sede...que não nos largaria desde o desembarque...

 Já não sei o que bebi: talvez a primeira e única Fanta da minha comissão na Guiné... Aprenderia depois a beber uísque com água de Perrier... Do que não me esqueço foi dos boatos que fervilhavam em Bissau: Madina do Boé, Gadambel, Guileje...

Devo ter passado pela 5º Rep, nesse fim de semana. o famigerado Café Bento, ao pé da Amura... Acho que foi aí que começamos a perder, se não a guerra, pelo menos a vontade de a ganhar... Terá sido lá, ou nos Adidos, que ouvi as primeiras "galgas" sobre o que se passava no mato... A"boataria" devia fazer parte da guerra psicológica do PAIGC ou, pelo menos, fazia o seu jogo...

Não fazia a mínima ideia onde ficava Madina do Boé, mas já sabia, através dos jornais da metrópole, da tragédia que ocorrera no rio Corubal, 3 meses e tal antes, em 6 de fevereiro de 1969... Não sabia onde era Madina, Gandembel ou Guileje, era lá para o mato profundo, no sudeste ou no sul... E sobre Madina do Boé viria logo a conhecer pormenores da operação de retirada das NT, através da boca de quem lá terá estado iu era de lá (por exemplo, soldados africanos que estavam no Centro de Instrução Militar de Contuboel, aonde cheguei logo no dia 2 de junho, ao fim do dia. ..

Em Contuboel e depois em Bafatá e em Bambadinca, contavam-se histórias, terríficos, das colunas logísticas que abasteciam Béli e Madina do Boé, das dezenas e dezenas de viaturas que lá ficaram, da tragédia que se abateu sobre os rapazes da CCAÇ 2405 e da CCAÇ 1790... A CCAÇ 2405 pertencia ao BCAÇ 2852, cujo comando e CCS estavam em Bambadinca...

Enfim, massacraram as nossas cabeças de "periquitos" com histórias medonhas: uma ideia, naturalmente distorcida com que fiquei, logo em junho de 1969, era a de Madina do Boé poderia ter sido o nosso Dien Bien Phu, a última e decisiva batalha da guerra da Indochina, onde depois de um longo cerco de várias semanas as tropas da União Francesa capitularam em 7 de Maio de 1954, perante o poderoso exército do general Giap, do Viêt Minh, com perdas brutais de um lado e do outro (mortos, feridos, prisioneiros, desaparecidos).

 Disseram-me que o nosso quartel estava situado estupidamente num vale, tal como Dien  Bien Phu, rodeado de colinas... Os nossos camaradas eram apanhados à mão, e se levantavam a cabeça, nos abrigos, apanhavam logo com umas canhoadas... Os abrigos de Madina, imaginem, estava ao alcance das granadas de mão dos guerrilheiros do PAIGC... Spínola, o "homem grande", decidiu tirar os nossos rapazes daquele inferno, tal como já tinha mandado retirar Béli... Teria sido uma brilhante página da nossa história militar se não tem acontecido o desastre do Cheche...

Hoje, ver ao foto nº 1 do Manuel Coelho, a vista aérea do quartel e da pequena tabanca de Madina,  e as restantes cinco que documentam a chegada de uma coluna logística com apoio aéreo (T 6)  (fotos nº 2 a 6), concordo com a decisão, ajuizada, do nosso com-chefe mas reconheço que as histórias que se contavam no "mentidero" do Café Bento também eram um bocado exageradas...

Não sei se Madina era "defensável", estou de acordo, sim, com a opinião generalizada de que não era fácil levar os comes & bebes, mais as munições, aos bravos que defendiam aquele bocado de terra... O fantasma de Dien Bien Phu chegou a pairar por aqui... e pelo café Bento, a famosa 5ª Rep...

Muitos, a começar pelo cor inf Hélio Felgas, desprezaram o valor estratégico e simbólico de Madina do Boé... Amílcar Cabral e os seus diplomatas souberam fazer de Madina do Boé um verdadeiro ícone da "guerra de libertação", levando todo o mundo a crer que a declaração unilateral de independência, em 24 de setembro de 1973, foi lá...

Na realidade, há muitas formas de conquista: Madina do Boé, tal como Béli, Guileje, Gandembel, Ponta do Inglês e outras posições do exército português no TO da Guiné, não foram conquistadas pelo PAIGC, foram retiradas pelas NT. Em  Dien Bien Phu houve uma batalha, e essa batalha foi perdida pelos franceses. Em Madina do Boé poderia a história repetir-se. Spínola aprendeu com os erros dos outros... Mas o rio Corubal, em Cheche, tramou-nos. Para nós, Madina do Boé ficará para sempre associada ao desastre do Cheche. (Se calhar, em parte injustamente, esquecendo o sacrifício dos que a defenderam e a abasteceram durante vários anos, até à retirada, em 6/2/1969.)

O PAIGC fez de Madina do Boé, o que devia (e tinha a) fazer; um instrumento de propaganda, um "ronco",  um troféu de guerra... As guerras não se ganham só com as espingardas (a força), ganham-se também pelas palavras (a inteligência)...

PS - Escreveu o nosso fotógrafo, num mail que me enviou, em 26 do corrente: "Sobre as colunas de reabastecimentos a Madina e Béli, o Poste 13336, de Domingos Gonçalves , é a melhor descrição que se possa fazer. Fabuloso!" (**)...

É inteiramente justo lembrar aqui o nome do nosso camarada Domingos Gonçalves, um dos bravos do Boé, ex-Alf Mil da CCAÇ 1546 / BCAÇ 1887 (Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68). membro da nossa Tabanca Grande.
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 26 de julho de  2018 > Guiné 61/74 - P18871: Para que os bravos de Madina do Boé, de Béli e do Cheche não fiquem na "vala comum do esquecimento" - Parte III: A operação rotineira de manobra e montagem da segurança da jangada que fazia a travessia do Rio Corubal, no Cheche: fotos do álbum do Manuel Coelho (ex-fur mil trms, CCAÇ 1589 / BCAÇ 1894, Bissau, Fá Mandinga, Nova Lamego, Béli e Madina do Boé, 1966/68)

(**) Vd. poste de  27 de junho de 2014 > Guiné 63/74 - P13336: Memórias da CCAÇ 1546 (Domingos Gonçalves) (3) - Reportagens da Época (1966): Viagem a Madina do Boé

(...) MEMÓRIAS DA CCAÇ 1546 (1966)  - REPORTAGENS DA ÉPOCA - 3. VIAGEM A MADINA

Dia 20 

Começaram os preparativos para o transporte de abastecimentos a Madina do Boé.  Os géneros começaram a ser transportados para o destacamento do Ché-Che, onde ficam armazenados.
Não devem faltar muitos dias para que a companhia de caçadores n.º 1546 atravesse de novo o rio para escoltar as viaturas que transportarão os géneros e as munições para o abastecimento, durante a época das chuvas, da companhia n.º 1416, aprisionada dentro de um rectângulo de arame farpado, numa terra a que ainda se dá o nome de Madina do Boé. Um nome que apenas faz lembrar, a quem o escuta, o sofrimento de um grupo de homens valorosos que, estoicamente, ali vão permanecendo.
Eles, sim, merecem ser chamados de heróis. 

Pelas onze horas e meia o pelotão do Alferes Y, partiu para o Ché-Che, escoltando as primeiras viaturas carregadas de géneros.  Não almoçaram porque à hora em que saíram ainda não havia almoço.  Não jantaram porque, quando chegaram, era tarde e já não havia jantar...  Não receberam ração de combate, porque a companhia precisa de economizar algumas dezenas de rações... Passaram fome! (...)


(...) Dia 22 
Pelas onze horas chegou, sob o comando do capitão, o restante pessoal da companhia.  O Tenente Coronel X, comandante do meu Batalhão, veio, também, na coluna.  Parte do pessoal atravessou, ainda cedo, para a margem Sul do Corubal e ocupou a zona ribeirinha. Entretanto, durante toda a tarde, a jangada foi transportando para a margem Sul as viaturas e os géneros.
Toda a companhia passou a noite na margem Sul.  Durante a noite choveu muito.   Como não havia local onde nos abrigássemos apanhou-se com a chuva toda. Foi o suficiente para ninguém dormir nada. 

Perto da margem do rio rebentou uma armadilha anti-pessoal sob a roda de uma viatura. Fez apenas estragos ligeiros e não feriu ninguém.  A mina anti-pessoal rebentou, perto do tronco de uma árvore, onde, normalmente, todos temos tendência para nos encostar.  Foi uma sorte a viatura ter passado primeiro. (...) 

Dia 23 
Continuou a travessia de géneros para a margem Sul, onde nos encontramos.  É uma operação lenta e muito perigosa.  A jangada está arruinada e não oferece nenhumas condições de segurança.
Hoje, caiu outra viatura ao rio e por lá ficou mergulhada, a tomar banho.  Desta vez também não tivemos, ainda, desastres pessoais. Temos andado com muita sorte.  Se um dia o raio deste calhambeque perde a estabilidade quando transportar soldados, será uma catástrofe..
De noite, as formigas e os mosquitos não deixaram dormir ninguém. O local onde se pernoitou, devido às chuvas, transformou-se num enorme lamaçal.


Dia 24 

Ainda cedo iniciou-se o transporte dos géneros para Madina do Boé.  Fiquei todo o dia, com o meu grupo de combate, emboscado na zona da tabanca do Vilongo, uma povoação abandonada, cujo espaço o capim depressa se encarregou de conquistar.

Pelas duas horas da tarde, já perto do cruzamento Béli/Madina, explodiu uma mina anti-carro sob a roda de uma viatura.  Uma das secções do meu pelotão, que seguia do Vilongo [Bilonco] para o Ché-Che, a prestar segurança às viaturas, foi toda projectada para o chão.

Todos os soldados dessa secção ficaram feridos. Todos menos o Eusébio que, por simples acaso, não seguia naquele meio de transporte.  Reparei que o rapaz trazia um terço pendurado ao pescoço.
Nenhum dos feridos corre perigo, mas foram todos transportados para Bissau de helicóptero.


Ao cair da noite fomos para Madina do Boé, onde se pernoitou.  O nosso comandante de batalhão acompanhou-nos sempre durante esta aventura.  É dos poucos (ou talvez o único dos) comandantes de batalhão que se metem nestas andanças. (...)

Dia 25 
De manhã, partindo de Madina, a companhia foi ao monte (uma pequena elevação) junto ao cruzamento de Béli/Madina, fazer uma pequena operação. Depois, um dos pelotões foi ao Ché-Che buscar mais géneros. De tarde voltou toda a gente para Madina.

O comandante de Nova Lamego veio a Madina.  Como não podia deixar de ser, veio de avião.
No regresso ofereceu boleia ao meu comandante de batalhão [tenente-coronel de infantaria Manuel Agostinho Ferreira] , mas ele não aceitou. Prefere regressar, acompanhando-nos, conhecendo o nosso dia a dia, e as dificuldades que em cada encruzilhada estão à nossa espera. (...) 

Dia 26 
Às sete horas da manhã iniciou-se a viagem de regresso a Nova Lamego. Caminhou-se quase sempre sob uma chuva intensa.  Recuperou-se a viatura que accionou a mina anti-carro.

Ao anoitecer as viaturas já estavam todas na margem Norte do rio Corubal. Desta vez a jangada portou-se bem. Não nos pregou nenhuma das partidas do costume. Já merecíamos ter alguma sorte na travessia deste rio.

Cansados e famintos, atingimos Nova Lamego quase à meia noite.  Foi quase uma semana de fome, sede, fadiga e trabalho sem fim. Acima de tudo foi uma semana de tensão nervosa contínua, onde a miragem do perigo foi constante, tocando, às vezes, os limites da resistência psíquica de cada um de nós. Mas, estoicamente, todos vão aguentando...  Todos vão passando além dos limites da capacidade de aguentar...  Regra geral, a nossa capacidade de resistir é sempre maior do que aquilo que nós próprios pensamos.  Somos sempre capazes de chegar um pouco mais longe...  

Impressionou-me, nesta viagem, a personalidade do capitão da companhia de Madina do Boé [, Ccaç 1416]. É um homem especial.  É mesmo um homem invulgar. Dele pode dizer-se que é um guerreiro nato. (...)

sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Guiné 61/74 - P18062: Blogpoesia (542): "À Virgem", poema de Domingos Gonçalves, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 1546

Nossa Senhora da Conceição
Com a devida vénia a Leça da Palmeira

 
1. Mensagem do nosso camarada Domingos Gonçalves, (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 1546 / BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68) com data de7 de Dezembro de 2017:

Saúde para todos os frequentadores da tabanca Grande.
Para efeitos de eventual publicação envio um pequeno poema.

Um grande abraço amigo, para todos os camaradas.
Domingos Gonçalves

**********

À VIRGEM

Por estas noites feitas só de medo,
Em que sombras vagueiam silenciosas,
Lembrando inimigos, em segredo,
Às minhas sentinelas receosas;

Por estas horas mortas, dolorosas,
Tão longas e sombrias, do degredo,
Tristes, - são a noite -, e tão penosas, 
Em que nunca tenho um sonho ledo;

Eu sinto que vens à minha solidão,
Com teu sorriso de anjo salvador,
Acariciar meu rosto, com tua mão.

E a luz das tuas faces, muito leve,
Afasta de mim todo o pavor,
E brilha a meu lado, mais do que a neve.

Domingos Gonçalves
____________

Nota do editor

Último poste da série de 3 de dezembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18040: Blogpoesia (541): "Timidez da neve", "Voo alado..." e "Feira das ideias...", poemas de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

domingo, 13 de novembro de 2016

Guiné 63/74 - P16715: Memórias da CCAÇ 1546 (Domingos Gonçalves) (16): Os nossos dois soldados, cadastrados, que tentaram fugir para o Senegal... Para sorte deles e tranqulidade minha, foram apanhados logo, uma hora depois, pelas milícias que lhes mandei no seu encalce...

1. Mensagem, com data de 11 do corrente,  de Domingos Gonçalves [ex-alf mil inf da CCAÇ 1546 / BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68), autor de O Céu de Guidage (edição de autor, 2004]

Braga/11/11/2016

Antes de mais, boa noite de S. Martinho, para todos os que navegam pelas ruas largas da Tabanca Grande, com muitas castanhas, e bom vinho.

Depois, envio mais um texto que poderá´ser publicado.

Com um abraço amigo,
Domingos Gonçalves


2. CCAÇ 1546  > Destacamento de Guidaje, dia 18/07/1967

De tarde dois soldados tentaram fugir para o Senegal. Eram duas da tarde quando iniciaram a fuga. Eu estava sentado junto do abrigo da 1ª secção quando olhei para os lados da fronteira e vi dois indivíduos brancos, em tronco nu, atravessar a bolanha para o outro lado. Achei estranho. De imediato dirigi-me à porta de armas e perguntei ao sentinela o que se passava, e quem eram os fugitivos.

Tratava-se de dois cadastrados que vieram de outras companhias, já com diversos castigos, e que o comandante de companhia enviou para este paraíso. Deu-lhes um lindo prémio! Mas, apesar deste meu reino ser um verdadeiro paraíso, eles quiseram fugir. São da raça de satanás, que tinha o gozo do paraíso e preferiu as profundezas do Inferno!. Mas eles tiveram mais sorte do que o diabo. Acabaram por não perder o céu donde quiseram sair. Afinal eu mandei buscá-los às portas do Inferno...

São dois loucos. Saíram do destacamento em tronco nu, armados de G3, e de granadas de mão, atravessaram a fronteira na bolanha e seguiram pelo Senegal dentro.

Quando me apercebi do que se passava mandei chamar as milícias nativas e mandei-as em perseguição dos fugitivos, em território do Senegal.

A decisão que tomei teve de ser muito rápida. Bastariam alguns minutos de hesitação e eles já estariam do outro lado, muito dentro do Senegal, onde não teríamos nenhuma hipótese de os prender.

Cerca de uma hora depois, as milícias conseguiram prendê-los, a mais de dois quilómetros de Guidage, já bastante longe da fronteira.

De imediato informei o comando da companhia sobre o sucedido e pedi que os viessem buscar.

Guidage não pode transformar-se num manicómio, e muito menos numa prisão de qualquer tipo de cadastrados. Pelo menos vou tentar que isso não aconteça.

Só não consigo é adivinhar o que terá passado pela cabeça destes dois rapazes, que nem são ingénuos, para que tenham planeado, de forma tão irracional, a fuga para o outro lado. Não consigo mesmo entender para onde pretendiam fugir, ou a quem se queriam entregar.

Desertar da tropa, a partir desta terra, dada a vizinhança da fronteira, nem é difícil... Eles é que tiveram azar quanto ao momento em que pretenderam concretizar uma fuga mal pensada... Mesmo para eles, penso que este deve ter sido o melhor desfecho para toda esta história triste.

Se tivessem sido apanhados pelas autoridades senegalesas, não se livrariam de trabalhos. Se por acaso fossem os turras a prendê-los, iriam passar, por certo, bastantes mais problemas. Assim, resta-lhes apenas cumprir o castigo que a tropa entender aplicar-lhes.

Como não participei, por escrito a ocorrência, ficando tudo pela mensagem em que pedi para os retirarem de cá, pode muito bem acontecer que não venham a ser molestados.


Destacamento de Guidaje, dia 19/07/1967

Veio de Binta [, sede da companhia,]  uma coluna de viaturas. Para facilitar o trabalho aos que vinham a escoltar a coluna, mandei picar a estrada até Ujeque.

Trouxeram só três viaturas e passaram bem...

Das coisas que fazem falta no destacamento não trouxeram nenhuma. Vieram apenas buscar os dois indivíduos que ontem tentaram fugir. É um problema a menos que deixo de ter aqui.

De tarde dei uma volta pelos arredores de Guidage, para me certificar do andamento dos trabalhos agrícolas.

Está tudo muito adiantado. Esta gente tem trabalhado bastante. O calor e a chuva não têm prejudicado o andamento dos trabalhos.

Estes campos verdes de milho que cresce à volta de Guidage fazem-me lembrar os da metrópole. Eles têm um pouco da verdura do Minho... E fazem-me olhar para muito longe. É a saudade!...
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Nota do editor:

Último poste da série 28 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16534: Memórias da CCAÇ 1546 (Domingos Gonçalves) (15): 1 de Abril de 1967, o dia em que se verificou a morte, em combate, do Alferes Linhares de Almeida

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Guiné 63/74 - P16670: Blogpoesia (478): Neste Dia de Finados - "Campo Santo", da autoria de Domingos Gonçalves, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 1546

Cemitério de Omaha, Costa da Normandia


1. Mensagem do nosso camarada Domingos Gonçalves, (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 1546 / BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68) com data de 31 de Outubro de 2016, trazendo até nós um poema alusivo ao Dia de Finados que hoje se celebra:

Prezado Luis graça.
Tomo a liberdade de enviar mais um pequeno poema, que poderá ser publicado.

Com um abraço amigo,
Domingos Gonçalves


CAMPO SANTO

I


Da vida resta amorfo pó.
Terra
Barro
Nada.

As flores na tumba são engano.
Ilusão de ser.
Mágoa
Dó.

Cemitério...
Pó humano
Verdade feita espada
Fim de tudo
Humilhação
Passagem.

Ai! Vida! Tu és só
Calor de uma ilusão,
Folha caída,
Nuvem de pó
Miragem


II

É lá que a aldeia
Adormece
No sono eterno
De cada filho
Seu.

É lá que a aldeia descansa
Da labuta e da dor
De cada vida que passa.

Cemitério...
Terra humilde
De barro humano
Em tantos anos feita.

Cemitério...
Último refúgio
Da vida
Que aguarda serena,
Simulando ser pó,
O som das trombetas.
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Nota do editor

Último poste da série de 30 de outubro de 2016 > Guiné 63/74 - P16659: Blogpoesia (477): "Um banho de cor..."; "Pedras ao lago..." e "Eclipse quase total...", poemas de J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Guiné 63/74 - P16534: Memórias da CCAÇ 1546 (Domingos Gonçalves) (15): 1 de Abril de 1967, o dia em que se verificou a morte, em combate, do Alferes Linhares de Almeida

1. Mensagem do nosso camarada Domingos Gonçalves, (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 1546 / BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68) com data de hoje, 28 de Setembro de 2016:

Prezado Luís Graça:

Antes de mais, votos de boa saúde.

Depois, na sequência do texto enviado pelo Dr. Adão Cruz, tomo a liberdade de remeter mais um apontamento, que poderá ser publicado, sobre os acontecimentos ocorridos no dia 01/04/1967, dia em que se verificou a morte em combate, do Alferes Linhares da Almeida[1].

Um abraço para todos os camaradas.
Domingos Gonçalves

************

Às cinco horas da manhã saiu de Guidage uma coluna de quatro viaturas, transportando dois grupos de combate. Cerca de 200 metros antes da antiga tabanca de Ujeque os dois grupos desceram das viaturas e seguiram a pé, ao longo de uma picada que segue para Uália.

Cerca de 1000 metros antes de se atingir esse local montou-se, em sítio previamente escolhido, uma emboscada. A nossa força permaneceu emboscada até às nove horas.


Posição relativa de Ujeque, Samoje/Talicó/Sambuiá, Binta e Bigene
Infogravura: © Luís Graça & Camaradas da Guiné

Durante o período em que permanecemos emboscados não passou ninguém pela picada. Todavia, pelo carreiro adiante, existem muitos vestígios da passagem dos gajos.

Pouco antes das oito horas, não muito longe de nós, desencadeou-se um tiroteio bastante intenso. O detonar das granadas, e as rajadas das armas ligeiras, diziam que tudo se estava a passar relativamente perto. Contudo, não sabíamos se o fogo era com a Companhia 1547, de Bigene, ou se era com a 1585, e com os “Roncos” de Farim.

Durante cerca de quinze minutos o fogo deixou de se ouvir, para voltar, de novo, a iniciar-se, com a mesma intensidade.

Pelas nove horas levantou-se a emboscada, armadilhou-se a picada, e iniciou-se o regresso a Ujeque e, de seguida, a Binta.

De tarde chegou-nos a notícia: Os tiros que tínhamos escutado tinham sido travados com a Companhia de Bigene, que sofreu dois mortos, um dos quais o Alferes Almeida, a quem chamávamos o Bijagó, por ser natural aqui da Guiné.

No espaço de quinze dias já morreram na península de Sambuiá cinco dos nossos homens, sendo três negros e dois brancos. Os feridos, alguns com muita gravidade, também já são bastantes. Apesar de todo este sacrifício, em homens e material, o mito de Samboiá ainda continua vivo. Não é com este tipo de forças, que temos aqui, que se destruirá aquela base inimiga. Até hoje não foi possível chegar ao coração da base dos gajos. Todo o nosso trabalho, e todas as nossas canseiras, têm sido inúteis.

Para além disso, os estúpidos dos comandantes mandam fazer operações naquela área algumas vezes sem qualquer apoio aéreo. Tudo isto não passa de uma autêntica loucura. Infelizes, os vivos! Para os mortos, apenas poderá haver lágrimas, e saudade.

O Vidal Cambayo, empregado da Casa Ultramarina, foi preso pela PIDE, de Farim. Desde há bastante tempo que havia suspeitas sobre a filiação dele no PAIGC.

Era uma pessoa que não nos inspirava confiança, e que vivia paredes meias com a tropa, em condições de recolher todo o tipo de informações sobre os nossos movimentos.


Texto, retirado do relatório de actividades do batalhão. 1887

"A morte do alferes Linhares de Almeida foi extraordinariamente sentida na sua companhia, por ser o seu elemento mais destacado na actividade operacional em que revelou inexcedível coragem e valentia, que arrastavam e entusiasmavam pelo exemplo os restantes elementos. A estas qualidades notáveis aliava qualidades pessoais também notáveis, que lhe granjearam além do respeito, grande amizade e simpatia de todo o pessoal. Nesta operação, como de costume, o alferes Linhares de Almeida distinguiu-se pela forma como, após os primeiros tiros, marchou à frente de seus homens numa zona manifestamente perigosa, e como após os primeiros tiros ainda tentou reagir, até ser mortalmente atingido."
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Nota do editor

[1] - Vd. poste de 27 de Setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16528: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (8): O Tanque

Último poste da série de 7 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16366: Memórias da CCAÇ 1546 (Domingos Gonçalves, ex-Alf Mil): O padre de Guidaje (imã)

domingo, 7 de agosto de 2016

Guiné 63/74 - P16366: Memórias da CCAÇ 1546 (Domingos Gonçalves) (14): O padre de Guidaje (imã)

1. Mensagem do nosso camarada Domingos Gonçalves, (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68) com data de 1 de Agosto de 2016:

Com votos de saúde, e de boa férias, tomo a liberdade de remeter mais um pequeno texto, que poderá ser inserido no Blogue. 

Aproveito também a oportunidade para mandar ao Dr. Adão Cruz, médico do Batalhão 1887, a que pertenci, UM GRANDE ABRAÇO.

Domingos Gonçalves


MEMÓRIAS DA CCAÇ 1546

O padre de Guidaje (imã)

O sacerdote da religião muçulmana é, talvez, a pessoa mais importante e mais influente de Guidage. É um homem virtuoso e bom. Para além da actividade religiosa propriamente dita, a que se dedica com muita devoção, ele é também o professor de árabe, que todos os dias vai ensinando à criançada os segredos da língua em que foi escrito o Sagrado Alcorão.

Como seria bom que existisse aqui, também, uma escola e um professor, onde estas crianças pudessem aprender, em simultâneo com o árabe, a língua portuguesa! Mas a nossa administração, infelizmente, nunca se preocupou com isso.

Mas o padre, dá gosto vê-lo, junto da sua casa humilde, rodeado de crianças que seguram nas mãos pequenas tabuinhas, onde vão escrevendo, com uma tinta preta, o alfabeto árabe, ou outros exercícios que, pacientemente, lhes vai ensinando.

Sob a capa de um homem simples, que de facto é, esconde-se uma personagem culta, conhecedora da história do seu povo. Às vezes falo com ele, sempre com muita seriedade, por forma a que das diferenças entre aquilo em que os dois acreditamos, nada surja que o possa magoar.

Recentemente ofereceu-se para me ensinar a língua árabe. Estive tentado a iniciar as lições. Todavia, porque não irei ficar por aqui o tempo suficiente para assimilar seja o que for, preferi não dar início ao estudo. Mas fica-me uma certa pena.

Em conversa recente dizia-me:
- Hoje são os portugueses que estão na Guiné e mandam nesta terra e neste povo. Mas não foi sempre assim. Tempos houve, já muito longínquos, em que foi o meu povo que mandou em Lisboa(1). Foi destas terras que partiu um conquistador poderoso que dominou pela força das armas todas as terras africanas a norte da Guiné, e chegou mesmo a mandar em Lisboa. Foi uma dominação quase que efémera, mas que aconteceu.

Ainda há pouco tempo fui convidado para ser o “padrinho” de uma menina recém nascida. E ele lá estava na cerimónia.

A dado momento, enquanto o sangue de uma galinha decepada jorrava para o chão, perguntaram-me o nome que dava à criança. E eu respondi:
- Quero que se chame Fátima. É um nome muito bonito.

E ele, o padre, respondeu-me:
- Sim! É um nome muito bonito! “Alfero” sabe. É o nome da filha do profeta. Trata-se do nome de uma grande mulher que todos veneramos e por quem temos muito respeito.

E acrescentou:
- O “Alfero”, ao escolher o nome já sabia que o povo ia gostar muito. E a menina, quando crescer, vai sentir-se orgulhosa do nome que o “alfero” lhe deu.

Em conversa recente lamentava-se:
- Quando a guerra começou a tropa dizia-nos que ao fim de três ou quatro anos tudo estaria terminado. Mas isso ainda não aconteceu. Os anos foram-se passando, e a guerra, em vez e terminar, tem continuado cada vez mais implacável e dura. E a paz não se vislumbra ainda no horizonte.

Com uma certa tristeza perguntava-me:
- “Alfero”... Esta guerra quanto tempo mais irá ainda durar? Este povo, quando voltará a ter paz? Todo este sofrimento a que o povo está sujeito, por quanto tempo ainda se prolongará?

Com alguma dificuldade respondi-lhe que esta guerra ainda vai durar muitos anos e que ninguém poderá vaticinar-lhe o fim.

Ele entende que nós, os que estamos aqui, não temos nas mãos o poder que permita decidir seja o que for nesta matéria, assim como ele, e o resto do povo, que também não têm voz activa em nada que respeite à definição do futuro desta terra e desta gente.

Ele entende, e bem, que o futuro de muitos é decidido pelo capricho de uns poucos, que indevidamente assumem e exercem um poder que ninguém lhes confiou. Quer nós, quer os turras, dizemos que é em nome do povo, e para bem do povo, que esta guerra se faz. Mas, ninguém perguntou ao povo o que de facto pretende, que futuro deseja ter. Todos pretendem falar em nome do povo. Todos pretendem actuar e fazer a guerra em nome desse mesmo povo. Todos mobilizam os filhos do povo para a guerra, colocando guinéus contra guinéus.

E o povo, esse, termina por não ter nada daquilo que precisa, destruindo-se mesmo ao lutar de um e do outro lados.

Nota:

(1) - Referia-se, penso eu, às invasões muçulmanas, dos almorávidas, provenientes do Norte de África
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 Nota do editor

Último poste da série de 21 de janeiro de 2016 > Guiné 63/74 - P15648: Memórias da CCAÇ 1546 (1967) - Reportagens da Época (Domingos Gonçalves, ex-Alf Mil) (13): Dias 13 e 14 de Dezembro de 1967

terça-feira, 22 de março de 2016

Guiné 63/74 - P15887: Inquérito 'on line' (48): Bebedeira colectiva durante um assalto ao bar do Zé D'Amura (Domingos Gonçalves, ex-Alf Mil da CCAÇ 1546); O pifo monumental do "Jeová" no Domingo de Ramos de 1969 (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf da CCAÇ 2381)

1. Mensagem do nosso camarada Domingos Gonçalves, (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68) com data de 11 de Março de 2016:

Prezado Luís Graça:
Naquele tempo também eu me habituei a gostar de Whisky, misturado com a água Perrier.
A bebedeira era, em certos casos, um problema complicado, quer entre os soldados, quer entre os graduados.
Envio a descrição sumária de uma bebedeira, a que chamo quase colectiva, que teve lugar em Bissau, na breve passagem da Companhia pela cidade, por alturas do NATAL DE 1967.

Um abraço amigo para todos
Domingos Gonçalves


Bissau, 20/12/1967

À noite, o pessoal quase todo, fez um assalto ao bar do Zé D'Amura. A intenção era esgotar-lhe todas as bebidas finas que ele tivesse no estabelecimento.
Os empregados foram trazendo para as mesas marisco, passarinhos fritos, cerveja fresca ....
E tudo foi acabando...

Depois, foi a vez do whisky, do gin, dos brandys ...

Experimentou-se de tudo quanto o estabelecimento possuía, para vender. No fim, compraram-se as últimas garrafas, ou o que delas restava, para beber no quartel, em ambiente esfuziante, todos aqueles líquidos que transportam as pessoas para outros mundos. Para um estado de espírito onde tudo quanto é mau se esquece.
Onde a vida parece que fica pintada cor de rosa.

É a paixão da bebedeira. Talvez a tentativa de esquecer a realidade que circunda a vida de cada um de nós.
Mas é só uma libertação momentânea, e passageira. A realidade nunca tarda a aparecer de novo.

E uns de cada vez iniciámos o regresso ao aquartelamento, que ficava a poucas dezenas de metros.
Os mais embriagados, sem que os empregados a tal se opusessem, talvez por receio, foram levando as cadeiras em que estavam sentados, e a que se agarravam para não cair.
Mas, uma após outra, foram-nas abandonando, ao longo da rua, pois, apesar de serem leves, já não podiam com elas.

E ainda há quem afirme que as bebidas alcoólicas dão força!

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2. Mensagem do nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux. Enf.º da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70) com data de 11 de Março de 2016:

Luís e Carlos.
Junto uma estória verdadeira que como vosso desafio veio ao de cima no sótão da minha memória.

Abraços.
Zé Teixeira


Vinho do Porto em Domingo de Ramos

Numa bela tarde de Domingo, no domingo de Ramos de 1969, estava em Buba a saborear uns bons copos (não havia cálices) de vinho do Porto, na companhia de dois conterrâneos. O saboroso néctar tinha sido levado por um deles no regresso de férias à Guiné.

Passou por nós o “jeová”, um soldado da minha Companhia que, alegando que a sua religião não o permitia, se recusava a usar a G3. Era um tipo muito esquisito este “jeová”. Muito fechado em si. Não bebia qualquer tipo de bebidas alcoólicas, quase não comunicava com os colegas e não reagia às provocações mais ou menos atrevidas e “ofensivas” de alguns camaradas, por ser um dos elos mais fraco da Companhia.
Era contido na comida e ninguém lhe conhecia amizades junto da população.
Ofereci-lhe um copo e ele desdenhosamente respondeu:
- Na minha terra lavamos os pés com essa “surrapa” - e foi-se embora.

Pareceu ao grupo que o “jeová” merecia uma lição e fui encarregado de o trazer até ao cantinho onde costumávamos acoitar, dentro da arrecadação para saborear uns petiscos cozinhados por um de nós – o Mário.
Ao fim da noite apareci com ele e logo lhe foi oferecido um copo de vinho do Porto que ele acabou por aceitar e gostou. Pediu outro e outro... e outro e nós a vermos a garrafa a ficar vazia.
Levantou-se de repente e foi embora a cambalear, notando à distância que não ia sozinho.

No outro dia de manhã, o cozinheiro foi procurar-me à enfermaria. O “jeová” estava a dormir num banco da cozinha, onde era auxiliar, e dormia tão profundamente que ninguém o conseguia acordar. Apenas eu e os meus dois amigos de outra Companhia, sabíamos o que lhe tinha acontecido.
Fiquei preocupado ao verificar que e o "jeová” estava no sono de Baco, ou seja, em coma alcoólico e ali ficou “dormindo” o dia inteiro, a noite seguinte e só “acordou” já o sol ia alto no terceiro dia.

Ninguém ousou pensar que estava sobre o efeito de álcool, pois sempre tinha sido abstémio. Confesso que estava a entrar em pânico e já estava a pensar em tentar dar-lhe um reconstituinte alimentar à colher, quando ele felizmente “acordou” pediu um copo de água e adormeceu, agora um sono verdadeiro que durou pouco tempo.
Quando acordou, levantou-se e foi à vida dele.

Calou-se para sempre sobre os copos de vinho do Porto que bebeu e continuou abstémio, que eu saiba, até ao fim da comissão. E o segredo ficou entre nós...
Não sei se chegou aos ouvidos de algum superior, mas se chegou, ninguém se preocupou.

Zé Teixeira
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Nota do editor:

Último poste da série de 17 de março de 2016 Guiné 63/74 - P15869: Inquérito 'on line' (47): Apanhei um "pifo de caixão à cova", uma, duas, três ou mais vezes... confessam 65 em 100! (Resultados finais)

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Guiné 63/74 - P15648: Memórias da CCAÇ 1546 (Domingos Gonçalves) (13) - Reportagens da Época (1967): Dias 13 e 14 de Dezembro de 1967

1. Mensagem do nosso camarada Domingos Gonçalves, (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68) com data de 11 de Janeiro de 2016:

Prezado Luís Graça:

Tomo a liberdade de remeter mais um pequeno texto que poderá ser publicado.

Para todos, continuação de feliz ano de 2016.

Com um abraço amigo,
Domingos Gonçalves


MEMÓRIAS DA CCAÇ 1546 (1967)

REPORTAGENS DA ÉPOCA - 13



Dia 13/12/1967

Às oito horas saí com duas secções e com os caçadores nativos para verificar a causa do rebentamento das armadilhas.
Afinal, tinham sido accionadas por bichos...
Rearmadilhei, sensivelmente nos mesmos locais, as duas estradas.

O destacamento já não recebe correio da metrópole há três semanas...
O envio das cartas ainda se consegue fazer, de quando em quando, através dos helicópteros que levam para Bissau os doentes, ou os feridos. Infelizmente estamos também a ficar sem aerogramas e selos.

Ontem expedi uma carta com duas moedas de 2$50 coladas ao envelope com fita adesiva...
Espero que a façam seguir...

À noite ouvia-se perfeitamente o batuque na tabanca senegalesa de Maria.
É um pouco de festa que nos chega de longe.

Do nosso lado os tempos já não permitem festas...
É uma tristeza...
Milagrosamente hoje conseguiu-se uma vaca para matar.
É a primeira vez que no rancho geral se vai comer carne em Guidage, desde que estou aqui em substituição do colega doente.

Foi uma aventura...
Durante a noite consegui que um nativo se deslocasse ao Senegal e roubasse o bicho...
O procedimento não é muito ético...
Mas a sobrevivência deve estar acima da moral caseira...
Pelas dez horas da noite o animal entrava, sem pagar qualquer imposto alfandegário, nos meus domínios.

Enquanto o roubo não der problemas...
Lá terá que ser...
É mesmo para continuar.

De quando em quando, a carne é um bem demasiado precioso para que se possa dela prescindir.
E como do outro lado da fronteira há muito gado, não é por causa de algumas vacas que a economia do Senegal se vai ressentir...
A economia dos donos das vacas, essa, enfim, poderá ficar um pouco tremida...


Dia 14 

Pela manhã a população do Senegal veio queixar-se dos turras, dizendo que eles, de noite, tinham roubado uma vaca...
Desta vez, eles ficaram com a fama...
E nós com o proveito...
Tenho que começar, também, a ser guerrilheiro...
A gente faz o mal...
A culpa cai para o lado dos outros...
Assim é que é bom...
E hoje não aconteceu mais nada de especial...
Nem tiros houve, para quebrar esta monotonia...
Chegaram a Ierã cerca de 100 turras vindos da zona do Oio.

Têm como missão carregar material bélico, alimentação e roupas para a referida área.
Conseguiram trazer do Oio 30 vacas para vender à população do Senegal.
O dinheiro conseguido com a venda dos animais destina-se à compra de alimentos.

O grupo que recentemente atacou Bigene e tentou atacar este meu reino continua em Ierã.
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Nota do editor

Último poste da série de 1 de julho de 2015 Guiné 63/74 - P14820: Memórias da CCAÇ 1546 (1967) - Reportagens da Época (Domingos Gonçalves, ex-Alf Mil) (12): Coluna a Farim

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Guiné 63/74 - P15536: Conto de Natal (23): O antigo Natal (Domingos Gonçalves, ex-Alf Mil da CCAÇ 1546)

1. Mensagem do nosso camarada Domingos Gonçalves (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68), com data de 23 de Dezembro de 2015:

O Antigo Natal

Pelo entardecer, o lavrador recolheu a casa. Era dia de consoada. Na cozinha, a mulher e a filha trabalhavam com afã na preparação da ceia.

A ceia de Natal, da festa grande, merecia canseiras especiais. Era necessário fazer os mexidos, a aletria, as rabanadas, enfim, preparar tudo para que a festa da família fosse mesmo uma festa. E o lavrador, esse, chamou o filho, pegou numa grande infusa de barro vermelho, e os dois foram para a adega, que era um espaço escuro, no rés-do-chão da casa, onde os pipos do vinho se alinhavam, cobertos de pó e de algumas teias de aranha.

Aquele era um espaço onde apenas a luz ténue da candeia de petróleo permitia descobrir as pedras negras do lagar, e a grande trave de carvalho, que o atravessava, com um fuso em madeira na extremidade, que servia para espremer os restos das uvas, por altura das vindimas. Os cascos do vinho repousavam ali, desde a colheita que tivera lugar ainda havia escassos três meses. Voltando-se para o filho, o lavrador murmurou, apontando para um pipo, não muito grande, feito de madeira de castanho, já muito escuro:
- Vamos experimentar este. Daqui costuma sair uma boa pinga.

Menos conhecedor daqueles segredos, que só os muitos anos ajudam a desvendar, o filho respondeu-lhe:
- Está bem, pai. Pode ser mesmo desse. De certeza que deve estar uma categoria.

O velho homem poisou a candeia ali ao lado, sobre um pequeno banco, passou a infusa para as mãos do filho e, servindo-se de uma verruma, começou a retirar de um pequeno orifício que existia na cabeça do pipo, a bucha de estopa que impedia que o vinho saísse para o exterior do casco.
Depois de retirada a estopa, começou a jorrar pelo pequeno buraco, para dentro da infusa, um vinho tinto maravilhoso, que se desfazia em espuma avermelhada, de impressionante beleza.

Ao fim de alguns segundos, o lavrador colocou de novo a bucha no orifício e, voltando-se para o rapaz, disse-lhe:
- Vamos prová-lo. Se não estiver em condições, experimentamos outro.

Num gesto quase religioso, tomou nas suas mãos calejadas a infusa, olhou para aquele líquido sagrado feito com as uvas vindas da generosidade das videiras e do trabalho das suas mãos e bebeu alguns tragos do elixir maravilhoso. Depois, voltando-se para o filho, desabafou:
- Vinho melhor do que este não pode haver. É uma verdadeira preciosidade.
Passando-lhe a vasilha para as mãos, ordenou:
- Anda! Prova também tu esta delícia.

Repetindo o gesto do pai, o moço levou aos lábios o bico da infusa, e saboreou uns golos daquele líquido sagrado, dizendo depois para o velho:
- Sim! Este vinho é uma verdadeira delícia. Não pode haver melhor para uma ceia de Natal.

Em seguida, o lavrador encheu a caneca com aquele vinho tão especial e voltando-se para o filho recomendou-lhe:
- Este, vai levá-lo ao senhor Rodrigues.

O moço lá foi, apressado, entregar aquele presente.
O senhor Rodrigues era um pobre homem que morava ali perto, jornaleiro de profissão, que vivia miseravelmente, com a mulher, também um pobre diabo, para quem a vida tinha sido mais madrasta do que mãe. Mas na noite de Natal aquela gente tinha direito a ter à mesa pelo menos um vinho de excelente qualidade, acabado de jorrar de um pipo acabado de violar.

Enquanto o filho foi à casa do vizinho, o lavrador, deleitou-se a fumar um cigarro, na penumbra da adega, aguardando que ele regressasse. Depois, quando o filho chegou com a infusa, ele encheu-a de novo e ordenou-lhe:
- Este, vai levá-lo a casa de fulana.

O rapaz lá foi de novo levar aquela oferta, que se repetiu várias vezes, generosamente, pois não podia faltar vinho na mesa dos pobres durante a ceia de Natal.
Quando o filho regressou, depois de entregar a última oferta, o homem encheu de novo a infusa e, acompanhado pelo rapaz, subiu para a cozinha que ficava no primeiro andar da casa. Na lareira, o lume ardia a bom arder. Os potes muito negros, feitos de ferro fundido, dispostos à volta do lume, ferviam havia muito tempo e deixavam soltar-se um vapor quente e perfumado, sinal de que a ceia estava quase pronta. Era uma mistura de odores agradáveis que se desprendiam das couves galegas já quase cozidas, do bacalhau e das batatas, que na noite de Natal têm sempre um cheiro e um sabor inconfundíveis.

Quando tudo estava pronto, a mulher do lavrador retirou os potes do lume, escoou a água fervente e colocou toda aquela comida sobre as travessas de porcelana, previamente colocadas sobre a mesa. Depois sentaram-se todos à mesa, na cozinha iluminada apenas pelo brilho da lareira e pela mortiça luz da candeia de petróleo e comeram daquelas iguarias quase sagradas e beberam daquele vinho maravilhoso feito ali, naquela casa, pelas mãos experientes e sábias do homem do campo.

Terminada a refeição, o lavrador e o filho voltaram para a lareira, enquanto a mãe e filha arrumavam os pratos e outra loiça. Foi então que o filho reparou que a mãe não tinha retirado da mesa a toalha de linho muito branco, apenas ligeiramente manchada por algumas gotas do vinho tinto. E voltando-se para ela perguntou-lhe:
- Ó mãe! Por que não retiras a toalha da mesa?

E a mãe, ocupada ainda com o arrumo das loiças, respondeu-lhe:
- Na noite de Natal, a mesa fica posta até ao dia seguinte.
- Então, porquê?
- É que, durante a noite, quando a escuridão baixar sobre a cozinha, as alminhas dos nossos antepassados vêm sentar-se a esta mesa e saciar-se com o nosso pão e com o nosso vinho. É por isso que na noite de Natal a mesa deve ficar posta. Vai ficar tudo conforme estava quando nós terminámos de cear. Depois de saciadas, de terem comido do nosso pão e bebido do nosso vinho, as alminhas vão para a igreja e ficam junto do presépio a adorar o Menino Jesus.

Naquela santa noite, e na casa daquele lavrador, havia como que um ressuscitar de todos os antepassados mortos. Só Deus sabe quantas gerações vinham ali conviver na solidão daquela mesa, na santa noite de Natal! Era a família toda, - as gerações desaparecidas só Deus sabe há quanto tempo, e as pessoas ainda vivas, que ali moravam a celebrar religiosamente a Santa Noite.

Depois de arrumar a cozinha, a mãe e a filha também se sentaram à lareira, junto daquele calor sagrado e toda a família ficou ali durante longo tempo, à espera que chegasse a meia noite, para celebrar o nascimento do Senhor.
Quando a hora sagrada chegou, o lavrador abriu uma garrafa de vinho do Porto, enquanto a mulher trazia o prato com as rabanadas e todos celebraram o Feliz Nascimento. Em seguida, acossados pelo sono, foram descansar.

Antes de sair da lareira, o filho reparou que a mãe retirou do fogo uma grande canhota de carvalho, que apagou com muito cuidado, colocando-a fora do lume.
Curioso, perguntou-lhe:
- Ó mãe! Para que serve essa canhota?

Com muito respeito, a mãe voltou-se para o rapaz, dizendo-lhe:
- Esta canhota é para ser muito bem guardada e serve para se colocar no lume a arder quando houver trovoadas ou tempestades. Por onde o fumo que esta canhota libertar, quando estiver a arder, for passando, a trovoada e a tempestade desfazem-se. É um fumo milagroso o que se liberta desta canhota retirada da fogueira de Natal. Nunca te esqueças disto. Quando fores grande, guarda sempre uma canhota de carvalho, retirada do lume do Natal, para proteger a tua casa. E, se puderes, quando trovejar muito, põe também no lume um bocadinho do ramo de oliveira benzido no Domingo de Ramos.

O filho guardou a mensagem. Nunca mais esqueceu aquelas palavras da mãe. E aquela família, cumprido que foi todo aquele ritual, uma mistura de fé em Deus e na força telúrica bebida ali à sombra do céu da aldeia, e na tradição antiga, que tantos antepassados foram passando de boca em boca, foi descansar. É que, pela manhã, muito cedo, todos tinham de ir à missa, beijar o Menino Jesus e admirar a simplicidade do presépio.

Quantas saudades restarão, hoje, no seio de tantas famílias, - meu Deus -, desse Natal distante?
Já não existem, por certo, pais a contar estas histórias, e também não aquelas lareiras aconchegadas.
Já não há crianças a distribuir infusas de vinho pelos pobres, nem alminhas que vêm pela noite comer na mesa dos mortais!
E já ninguém retira da lareira a canhota de carvalho, o lenho sagrado, capaz de afastar as trovoadas e as tempestades!...

O próprio Menino Jesus no seu presépio, já não é o que era!...
A ele, hoje, dá-se menos importância do que ao Pai Natal, - esse barbudo esquisito, que nesta época aparece por todo o lado, e até entra pelas janelas -, que o suplantou na distribuição das prendas à criançada!
Quem se lembra dele, a descer durante a escura solidão da noite, para deixar no sapatinho, junto à lareira, as tão desejadas prendas?!...

O Natal de outrora, já tão distante, é a saudade.
E não regressa mais!...
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Nota do editor

Último poste da série de 24 de dezembro de 2014 Guiné 63/74 - P14077: Conto de Natal (22): Uma bênção dos Céus (Domingos Gonçalves)

sábado, 12 de setembro de 2015

Guiné 63/74 - P15107: O segredo de... (26): Ser ou não ser furriel na data de embarque (Domingos Gonçalves, ex-Alf Mil da CCAÇ 1546)

1. Em mensagem do dia 2 de Setembro de 2015, o nosso camarada Domingos Gonçalves, (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68) enviou-nos o seu terceiro segredo.

Prezado Luís Graça: 
Confesso, por este meio, mais um dos meus pecados, 

Um grande abraço
Domingos Gonçalves

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Tinha no meu pelotão um furriel, (quando cometi este pecado ainda era cabo miliciano) do qual só posso dizer que era um bom rapaz.
Nado e criado na zona da Ribeira, no Porto, tinha todas as virtudes, e também alguns defeitos do ambiente em que crescera.
Uma das virtude, que cultivava, era a seguinte: Não gostava que lhe pisassem os calos.
Por isso, quando lhos calcavam, reagia mal. Daí que, entre ele e o comandante de companhia, que era especialista em calcar calos, gerou-se um sentimento de repulsa mútua.

O comandante, - na altura tenente -, andava à procura de uma oportunidade para lhe dar uma porrada. Estávamos num pequeno aquartelamento, no Pragal, perto do Cristo Rei, a aguardar embarque para a Guiné.
Num certo fim de dia, com outros colegas cabo milicianos, ele foi jantar num restaurante da zona, e embriagou-se. Coisas da vida, que aconteciam. Dadas as circunstâncias, as bebedeiras funcionavam, para alguns colegas, como uma espécie de refúgio, onde durante um pequeno período de tempo se esqueciam de um fantasma, que se chamava Guiné.

No regresso ao aquartelamento, devido ao estado em que se encontrava, perdeu, resumindo, o aprumo exigido a um militar fardado. O comandante da companhia, que andava à procura de um pretexto para dar uma porrada no rapaz, quando alguém o informou do sucedido, obrigou uma das testemunhas a elaborar a respectiva participação. Depois, por despacho, incumbiu-me de elaborar o processo de averiguações.

O cabo miliciano era do meu pelotão, e repugnava-me o facto de ser eu a propor qualquer porrada, face aos factos que fossem averiguados. Interroguei as testemunhas indicadas pelo autor da participação, que confirmaram que de facto tinham visto: o rapaz a vomitar, a contorcer-se, etc.

Interroguei o prevaricador, que confirmou os factos de que era acusado, mas que desabafou:
- Já viu a minha sorte! Vou para a Guiné como cabo miliciano. Sou casado! O gajo se puder, FFF.

Perguntei-lhe:
- Quem estava contigo no restaurante, durante o jantar? - Ele indicou-me o nome.

Voltei a perguntar:
- São teus amigos? Confias neles? Vão ser tuas testemunhas.
- Claro que confio.

Continuei:
- Então, se eles concordarem, vão dizer que durante a refeição tu não bebeste vinho, nem qualquer bebida alcoólica. Estavas mal disposto, e apenas bebeste água das pedras.

O rapaz olhou-me, com um olhar malandro que o caracterizava, sorriu-se, e perguntou:
- Vai fazer isso?
- Vou tentar, - respondi-lhe.

Interroguei, depois, os colegas que tinham estado com ele, pedi-lhe que lessem o texto do depoimento, com o qual concordaram.

Resumindo: Juraram por Deus dizer a verdade, e só a verdade, declarando que o colega estava doente, e que as cenas constantes na participação só podiam ser causadas pela forte dor de estômago, que já no restaurante o atormentava.

As conclusões foram óbvias. Não havia matéria que justificasse a aplicação de qualquer porrada. E entreguei o processo.

O comandante da companhia, - na altura tenente -, leu as conclusões, olhou-me com um olhar, daqueles olhares que nunca mais se esquecem, deu um murro na secretária, mas não disse qualquer palavra. Eu, também não abri a boca e, respeitosamente, retirei-me. E o cabo-miliciano, a partir da data do embarque, foi promovido a furriel, e a vida continuou...
Não houve porrada nenhuma, nem no Pragal, nem depois na Guiné.

Um abraço para todos os camaradas
Domingos Gonçalves
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P15053: O segredo de... (25): A caneta do Governador (Domingos Gonçalves, ex-Alf Mil da CCAÇ 1546)

sábado, 29 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P15053: O segredo de... (25): A caneta do Governador (Domingos Gonçalves, ex-Alf Mil da CCAÇ 1546)

1. Mensagem do nosso camarada Domingos Gonçalves, (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68) com data de 16 de Agosto de 2015:

Prezados camaradas:
Saúde para todos.

Durante os muitos meses de tropa, umas vezes por acção, outras por omissão, pequei muitas vezes.
Confesso, por este meio, mais um dos meus pecados.
Domingos Gonçalves

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Associação Comercial, Industrial e Agrícola de Bissau. 
Bilhete Postal, Colecção "Guiné Portuguesa, 144". (Edição Foto Serra, C.P. 239 Bissau. Impresso em Portugal).

Era fim de comissão. Estávamos em Bissau, em véspera de embarque para a Metrópole. Eu, e mais três furriéis da Companhia, no fim do almoço, trajando à civil, fomos tomar café na Associação Comercial. Era preciso gastar as ultimas divisas da moeda da Guiné, e fomos para aquela instituição passar um bocado de tempo.

Àquela hora a clientela não era muita, e ocupámos uma mesa das bastantes que estavam vagas. Por acaso estava esquecida, na mesa que ocupámos, uma caneta, creio que uma Parker. Nem sequer nos passou pela ideia que aquela coisa que servia para escrever pertencia ao Governador da Província que, antes de nós, tinha estado ali sentado, com outros oficiais superiores ou quaisquer outros cidadãos importantes da sociedade local.

Um dos furriéis meteu a caneta no bolso, e em voz baixa, murmurou:
- Esta já tem dono.

O empregado serviu-nos o café, e nós, de imediato, levantámo-nos e saímos para a rua. O colega furriel tirou do bolso a caneta, observou-a, e acrescentou:
- É coisa boa. Que jeito me vai fazer!

Naquele tempo, quando o uso da esferográfica dava os primeiros passos, a caneta era objecto de uso corrente, e aquela marca era das mais desejadas.

Passeámos pela cidade e fomos depois para outro estabelecimento beber cerveja e comer marisco. A dada altura, passou por lá um militar fardado a perguntar se alguém tinha passado pela Associação Comercial e levado, talvez por engano, a caneta do Senhor Governador. Nós, claro, dissemos que nem sequer tínhamos entrado em tal sítio.

Claro que, nem naquele dia, nem mais tarde, voltámos à Associação. Contudo, até ao dia do embarque havia em nós algum receio. Dos colegas que presenciaram o desvio da caneta, nada havia a temer. Era tudo gente séria. O problema poderia vir de alguém que nos tivesse visto na Associação Comercial.

O certo é que chegou o dia e a hora do embarque sem que o desvio da caneta fosse desvendado.
E a caneta do Governador arranjou novo dono.

Um abraço para todos.
Domingos Gonçalves
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Nota do editor

Segredos anteriores de Domingos Gonçalves nos postes de:

7 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14981: O segredo de... (22): O problema não eram os pecados, - os nossos segredos -. O problema acontecia quando quem mandava em nós desvendava os pecados (Domingos Gonçalves)
e
14 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P15004: O segredo de... (24): Segredo desvendado (Domingos Gonçalves, ex-Alf Mil da CCAÇ 1546)