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quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25124: Historiografia da presença portuguesa em África (407): Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (4) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Junho de 2023:

Queridos amigos,
Foi uma viagem de demarcação de fronteiras onde não faltaram peripécias de todo o tipo, desde ataque de formigas, a beber água com sanguessugas, carregadores velhacos com ameaças, o Tenente da Armada Real não vacila perante todo aquele resplendor vegetal, o reconhecimento das riquezas, põe várias hipóteses para intensificar a presença portuguesa neste território que passou a ter fronteiras demarcadas, só vê vantagens no estabelecimento de alianças com os potentados locais, já chegaram a Buba, não esconde o seu assombro com a paisagem fascinante, e, como veremos seguidamente, dar-nos-á uma interpretação de como a que fora tão florescente economia das feitorias do rio Grande de Buba caíra no mais completo declínio, a que se seguiu o abandono, era insuportável mercadejar no meio de tão sanguinária guerra entre Biafadas e Fulas.

Um abraço do
Mário



Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (4)

Mário Beja Santos

O Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, 8.ª série, números 11 e 12, 1888-1889, acolhem um documento de grande valor histórico intitulado “Viagem à Guiné Portugueza”, o seu autor é E. J. da Costa Oliveira, Oficial da Armada Real, comissário do governo para a delimitação das possessões franco-portuguesas da costa ocidental de África. Fez-se a viagem de Bolama até ao Sul, o Tenente Costa Oliveira não esconde o seu deslumbramento com tanta beleza natural e vai perseguir com as suas ricas observações que permitem ao leitor de hoje perceber o que era a vida no Sul não só da Guiné portuguesa como da Guiné francesa.

A missão luso-francesa está de regresso a Buba, partirão mais tarde de Bolama para o Casamansa. Viajam por itinerários separados. O grupo português saiu de Damdum e acampa na margem direita da ribeira Tucumen, logo uma observação: “No arvoredo frondosíssimo das suas margens abundam os macacos-cães que toda a noite nos incomodaram com os seus guinchos, tão semelhantes ao latir dos cães.” E logo a seguir passamos para um episódio turbulento, um tanto cómico:
“Alta noite fomos acordados pelos gritos da nossa gente. Quando abrimos os olhos ficámos surpreendidos com o que se passava no acampamento! Os carregadores seminus, as raparigas Fulas, o Maia, mal alumiados pela chama vacilante das fogueiras, pareciam dançar uma dança desesperada, infernal, acompanha de gritos e movimentos desordenados! Não pude conter o riso, e assentado num leito de viagem interroguei os mais próximos. Ninguém me respondeu! Alguns indígenas, correndo para as fogueiras, fazendo esgares, dando saltos, gritando, largando a linha, para se esfregarem e sacudirem. Foi então que pude compreender e ver o que se passava. Perto do meu leito movia-se um grosso cordão formado por milhões de formigas. No seu caminho, sempre em ziguezague, encontraram deitado um desgraçado carregador, que atacaram com violência. Tudo se resolveu com cinza quente e depois todos voltámos ao sono.”

É um exímio contador de peripécias, vejam esta:
“Quando chegámos a Saála mandámos à ribeira encher um garrafão de água e como viesse muito fresca e eu estivesse sequioso, despejei uma porção num copo de ferro esmaltado e bebi sem olhar, contra o meu costume. Imediatamente senti uma grande picada na faringe, e como que um objeto ali agarrado, tomo um pouco de licor de Kermann e gargarejo! Nada! Repito a operação e a dor não desaparece, bebo alguns goles, a mesma coisa! O chefe de Saála que assistia, espantado, a esta cena muda, pergunta-me o que tinha. Não sei, respondi-lhe eu, bebi água da ribeira e suponho que tenha agarrado à garganta um grande bicho.
O homem sorria, fez sinal para eu sossegar e esperar, e desapareceu. Passado pouco tempo, volta trazendo na mão a metade de uma cabaça com uma água acinzentada, cheia de grumos escuros, malcheirosa e repugnante, e entregando-ma, convida-me a tomar aquela poção. O estômago tocou a rebate, e eu sem refletir recusei! O chefe escandaliza-se, e chamando o seu herdeiro apresenta-lhe a cabaça, que ele leva à boca, bebendo metade aproximadamente do seu conteúdo. Então, levei a cabaça à boca e bebi o resto daquela beberragem. Mas, ó caso maravilhoso, logo ao segundo gole senti desprender-se da garganta o que quer que era, ficando-me apenas uma impressão dolorosa que durou horas. O bicho, que se havia agarrado à faringe, era uma sanguessuga, e o remédio um soluto de sabão indígena!”


Avança-se para Buba, o oficial rende-se ao esplendor da natureza:
“É formosíssimo o sertão de Buba! Quem vê a Guiné de fora, e conhece os seus mangais e os lodos das suas extensas planícies morbíficas e pestilenciais, não pode imaginar sequer as belezas que o seu interior encerra. Cursos de água cristalina correm em todas as direções e sentidos; grandes manadas de gado vacum pastam sossegadamente a era viçosa e fresca dos seus vastos prados; matizados pelas cores variegadas de mimosas boninas; campos cultivados pela mão de mulher africana que, com o filho às costas envergada sobre o peso de cestos cheios de maçaroca de milho, lá vai a caminho da povoação; florestas impenetráveis onde abundam o ébano, o mogno, o pau-sangue e tantas outras madeiras apreciadas na Europa.
E dizem ser pobre Guiné!
Pois será pobre um país onde a vegetação é tão vigorosa e rica; aonde há milhares de cabeças de gado bovino e lanígero; aonde vive o elefante em numerosos rebanhos, aonde há mel, cera e oiro nativo, aonde a árvore da borracha é vulgaríssima, e como que a completar todo este esplendor rios enorme e navegáveis por onde se podem conduzir todas as riquezas às suas capitais? Não, não pode ser! A Guiné é rica, muito rica, mas… desconhecida, e tanto basta!”


É agora na marcha para Kolibuiá que temos mais um episódio que podia ter terminado em tragédia, os carregadores tinham aceitado a contratação, mas pelo caminho começaram a fazer longas paragens e a reclamar mais dinheiro, a equipa de Costa Oliveira chegou a temer serem roubados ou assassinados, tudo terminou em bem porque apareceu inopinadamente um enviado de Mudi-Yaiá. Costa Oliveira explica a falsidade da reclamação dos carregadores que tinham ameaçado não continuar a marcha se não se pagasse mais por dia, tanto a homens como a mulheres, e tece um comentário amargo: “Ouvindo, admirados, esta proposta, no fundo um ultimato, compreendemos imediatamente a velhacaria dos negros e a razão por que haviam descansado tantas vezes. Quiseram distanciar-se, e distanciar-nos dos carregadores permanentes e soldados, que caminhavam apressados, sem se lembrarem que nós, ficando sozinhos com aqueles patifes, podíamos ser roubados e até assassinados se resistíssemos!”

É nesta situação críticas em que estavam resolvidos a vender cara a vida que apareceu o tal enviado de Mudi-Yaiá, que sabendo da presença da comissão portuguesa tão perto de Guidali, vinha de propósito cumprimentar-nos em nome do seu soberano. Resolvida esta situação de tão desagradável mal-estar, Costa Oliveira apresenta-nos Kolibuiá: “É uma povoação pequena, situada na margem esquerda da ribeira Tenheleol. Foi uma estação comercial importante, mas está hoje completamente abandonada pelos negociantes europeus, como atestas as ruínas das suas feitorias". É neste quadro de prestes a entrarem em Buba que Costa Oliveira nos deixa um texto primoroso sobre o abandono das fazendas agrícolas e feitorias do rio Grande dos portugueses. Primeiro a chegada:
“Cobertos de pó e lodo, com o fato esfarrapado pelos acerados espinhos das florestas e extenuados de fadiga entrámos em Buba, aonde éramos esperados pelos membros da comissão francesa, comandante da praça e destacamento.” Como é habitual do seu espírito de observação, apresenta-nos esta povoação histórica da presença portuguesa:
“Buba, cabeça de concelho de Bolola, magnificamente situada na margem direita do rio Grande, defendida pelo lado de terra por forte paliçada e onze peças de artilharia e duas metralhadoras – mas sujeita a qualquer insulto pelo lado do rio – com clima relativamente saudável, foi uma estação comercial florescente quando a mancarra era cultivada naquela região.”

E dá-nos um quadro primoroso, sucinto, da guerra do Forreá.

Carta da Guiné Portuguesa, século XIX, Arquivo Histórico-Ultramarino
Carta da província da Guiné, 1912
Carta da colónia da Guiné, 1933

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 24 DE JANEIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25106: Historiografia da presença portuguesa em África (406): Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (3) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 20 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24679: Historiografia da presença portuguesa em África (386): Grandes surpresas na publicação "As Colónias Portuguesas", Revista Ilustrada (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Fevereiro de 2023:

Queridos amigos,
O que surpreende nesta publicação, para além de gravuras que julgo completamente inéditas, como é o caso da localização dos estabelecimentos comerciais no Rio Grande antes do seu desaparecimento em consequência da guerra do Forreá, é a franqueza dos comentários, o alerta permanente para a debilidade do nosso posicionamento político-militar, são narrativas em que não se ilude minimamente o estado da vida colonial, deplora-se o desmazelo com que foi tratada a intervenção tardia no Forreá, a má qualidade das tropas, o armamento anacrónico, alerta-se para os métodos capciosos da presença francesa no rio Nuno e fundamentalmente no Casamansa, haverá acusações severas a administrações negligentes nos presídios, como veremos no ano de 1885 (no presente texto faz-se uma súmula das referências aos anos de 1883 e 1884). Estranha-se que a historiografia não tenha prestado a devida atenção ao que se escreve nesta importante publicação.

Um abraço do
Mário



Grandes surpresas na publicação As Colónias Portuguesas, Revista Ilustrada (1)

Mário Beja Santos

A publicação "As Colónias Portuguesas", revista ilustrada, publicou-se entre 1883 e 1891, era inequivocamente dirigida à classe política, não descurava a atração de investimentos, procurava dar informação aos funcionários da administração colonial e a potenciais estudiosos do Terceiro Império. Comecei, na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa, por percorrer o volume referente a 1883 e a 1884. E fui surpreendido por gravuras para mim totalmente inéditas, mesmo que conhecesse o conteúdo. Por exemplo, desconhecia por inteiro a marcação das feitorias portuguesas no Rio Grande de Buba, na sua época áurea, foi um período flamejante que acabou de forma caótica por causa da guerra do Forreá, mesmo quando as autoridades portuguesas conseguiram encontrar um régulo fiel que estabilizasse as relações entre Fulas e Biafadas, os estabelecimentos comerciais apagaram-se. A imagem deixou para a posteridade a localização desses empreendimentos que depois se reduziram à insignificância ou ao apagamento. Nada mau, para quem pretenda investigar a localização destes empreendimentos.

Os aspetos mais curiosos da revista ilustrada eram as pequenas notícias, seja da autoria da redação, seja de alegados correspondentes. Logo no n.º 1 se diz que o clima da Guiné é incompatível com o aturado serviço de europeus. “Aceite este princípio, qualquer organização militar terá que subordinar-se ao emprego do soldado preto como principal componente. Os quadros de oficiais, sargentos e cabos seriam europeus, porém na condição única em que o homem branco pode utilizar-se na Guiné, não servindo efetivamente mais de um ano. A permanência levada além deste período é a doença, a inutilidade.” E avança-se com mais observações sobre o modo de emprego da guarnição militar: ou pela ocupação permanente dos diversos estabelecimentos da Província, fracionando a força; ou a concentração dela na capital, quando o prestígio militar tivesse assegurado o respeito do gentio ou o seu receio, mediante alguns corretivos cujo efeito moral repercutido em todo o país o intimidasse. E avançam-se mais elementos sobre o que deve ser a formação da força armada: um efetivo de 570 homens, 4 capitães, a força disseminada por Geba, Farim, Bissau e Bijagós.

O autor inclina-se para a colonização da Ilha das Galinhas, usando a etnia Fula. Quem assina o artigo é Augusto de Barros que volta à carga no n.º 5 de maio de 1883 com o artigo intitulado "A Praça e o Porto de Buba no Rio Grande de Bolola". Vale a pena reproduzi-lo:
“A praça de Buba é o estabelecimento da Guiné, modernamente assinalado pelos sucessos militares a que a sua sustentação tem dado lugar. Acha-se este estabelecimento a 39 milhas de Bolama no terminal navegável do Rio Grande de Bolola. Este ponto apresenta todo o interesse de um moderno estabelecimento comercial e militar.
Nos primeiros anos de administração da recente Província, ocupou Buba incessantemente a melhor parte da atenção das autoridades, tanto pela importância que adquiriu como mercado de produtos do interior e importados como pela necessidade premente de resolver as relações duvidosas com os chefes gentílicos e a sua complicada política no Forreá (ou território de Fulas-Forros) cuja posse não estava definitivamente reconhecida aos atuais ocupantes. Os negociantes portugueses e estrangeiros estabelecidos em Buba e em outras dependências do Rio Grande, pagavam aos chefes gentílicos uma renda anual pelo direito de ali comerciarem. Cometeram-se abusos por parte dos senhorios, foi o caso da tolerância na posse de escravos. Daí o conjunto de episódios de ocupação militar.”


Elenca o rol de desavenças com o chefe de Bolola, relata como se fortificou Buba com o apoio da população Mandinga e não deixa de referir que diariamente afluía a Buba uma média de 20 a 30 escravos que imediatamente eram tornados livres, ganhara-se a guerra do Forreá, desistira-se do imposto (de nome daxa). Mas mantiveram-se incessantes as lutas entre Fulas-Futas e Fulas-Forros, com consequências sérias na economia. A cultura da mancarra, principal elemento de tráfico, não aguentou esta permanente instabilidade, os negócios paralisaram no Rio Grande e todos os comerciantes franceses retiraram-se.

As notícias sobre a Guiné sucedem-se na publicação, como se exemplifica. Alerta-se para o facto de os rios Nunez (hoje, rio Nuno) e Casamansa absorverem nos flancos a decrépita Guiné toda a atividade e todos os capitais que podiam operar em S. Domingos, no Geba e Rio Grande de Bolola. E, então, o autor faz o seu comentário amargo:
“Uma província que apresenta estes sintomas de derrocada financeira e tem já o orçamento num desequilíbrio de 89 contos de défice, exige que se lhe acuda com algumas medidas salvadoras. A par deste estado lastimoso da fazenda, está hoje a complicada questão política gentílica: a guerra por toda a parte, ameaçando os pontos ocupados onde o nosso domínio se refugia, o desprestígio da falta de dinheiro, o desprestígio da falta de homens dedicados, porque a dedicação em pura perda acaba por mandar tudo ao diabo; a falta de saúde sem compensação, a falta de soldados, a falta de tudo, tem feito da província da Guiné uma tristíssima exibição de inépcia administrativa.”

Quem assina o artigo é Augusto de Barros que volta à liça no n.º 8 (1883) referindo o estabelecimento português no Rio Grande de Bolola, dizendo que se trata de uma paliçada de 900 metros, aproximadamente construída ao modo gentílico, é isto a fortificação de Buba. E volta a lamentar-se: “Que compensações pode oferecer a qualquer aliado gentílico um governador sem dinheiro, com pouco força armada, sem influência séria sobre os naturais, para chamar ao seu campo aliado por quem se bate?”

Passamos agora para o n.º 6 da revista de junho de 1884. Está em cima da mesa o caso de Ziguinchor, dá-se notícia das palavras do deputado Soza Machado (um dos deputados de Cabo Verde) a propósito dos acontecimentos em torno do presídio de Ziguinchor: “Não há soldados na Guiné e os poucos que compõem o batalhão de caçadores e a companhia de artilharia são em geral tão maus que passam a maior parte do tempo metidos no calabouço.”

O redator efetivo António A. Ferreira Ribeiro torna claro que as condições militares na Guiné eram péssimas: as espingardas Lee-Enfield distribuídas tanto ao batalhão como à companhia de artilharia estavam em tal estado de que se tornavam mais um perigo na mão dos soldados que um meio de defesa. E faz um reparo verdadeiramente brutal:
“Não são soldados os que servem na Guiné; são depósito de malfeitores enviados para aqui da metrópole e das outras províncias, a qual, considerada por todos como a pior, é tida pelas nossas justiças militares e civis como o tabelado onde outrora se executavam os assassinos, os ladrões e os traidores à Pátria.”


Edificações do quartel em Bolama, finais do século XIX
(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 13 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24647: Historiografia da presença portuguesa em África (385): O império da Casa Gouveia em 1970, a grande empresa guineense (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 2 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23044: Historiografia da presença portuguesa em África (306): "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada (10) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Abril de 2021:

Queridos amigos,
Sendo facto que se procura dar desenvolvimento ao trabalho produzido por Senna Barcelos, começa agora a ser compreensível, para quem acompanha os sucessivos episódios, a importância historiográfica do mesmo. Este oficial da Marinha foi meticuloso na investigação e retirou da poeira dos artigos documentos de primeira grandeza quanto ao que se passava na Guiné. Temos aqui descritos tumultos em permanência, rebeliões dos próprios militares portugueses, pilhagens, um sobressalto praticamente permanente em torno das praças e presídios; para haver boas relações com a vizinhança eram obrigatórios presentes; o período em análise é de extrema agitação em Portugal, teve obrigatório impacto tanto em Cabo Verde como na Guiné. No que a Cabo Verde tange, Senna Barcelos esmiuça depredações, a violência dos assaltos e piratarias, o cortejo das fomes, as manifestações de descontentamento. A Guiné, insista-se, vai minguando, já existe governador do Senegal e a França quer aumentar o seu espaço territorial à custa de Portugal, já que não tem coragem de enfrentar os ingleses que se instalaram no rio Gâmbia; e os ingleses saem da Serra Leoa e querem Bolama e o Rio Grande. É na iluminação deste cenário que se pode perceber o comportamento excecional de Honório Pereira Barreto, o pai fundador da Guiné-Bissau que os descendentes teimam em valorizar o papel que ele desempenhou na defesa e consolidação de um território que passou de colónia a estado independente. Se a História da Guiné escrita durante o período da luta armada se podia dar ao luxo de praticar o panfleto, um Estado consolidado há meio século tem o imperativo de tratar condignamente os criadores da sua Pátria, colocando-os, de acordo com a história das mentalidades, no lugar certo para a interpretação dos factos e não para o uso e abuso da interpretação à custa de uma mera conjuntura.

Um abraço do
Mário


Um oficial da Armada que muito contribuiu para fazer a primeira História da Guiné (10)

Mário Beja Santos

São três volumes, sempre intitulados "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, a parte III, de que ainda nos ocupamos, em 1905; o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada, oficial distinto, condecorado com a Torre e Espada pelos seus feitos brilhantes no período de sufocação de sublevações em 1907-1908, no leste da Guiné. O levantamento exaustivo a que procede Senna Barcelos é de relevante importância e não há nenhum excesso em dizer que em muito contribuiu para abrir portas à historiografia guineense.

É um período fértil de acontecimentos, sempre as pressões a norte no Casamansa e a Sul de Bolama e Rio Grande de Bolola. Em fevereiro de 1854, era governador-interino Honório Pereira Barreto, foi feita uma convenção com os régulos de Bolor que cederam à coroa o território de Egual. Revela-se verdadeiramente apaixonante as cópias de correspondência trocadas entre o governador da Guiné com o delegado do governador francês no Selho, tudo por causa da questão do presídio de Ziguinchor, esta documentação foi enviada pelo governador-geral António Maria Barreiros Arrobas ao Ministro da Marinha. O ministro respondeu pedindo que em termos de cortesia o governador-geral se dirigisse ao governador do Senegal, pedindo-lhe que ordenasse ao delegado de Selho que não pusesse impedimento à navegação portuguesa no Casamansa e que houvesse de ambas as partes uma conduta que era devida entre nações amigas. Mas o delegado francês revelava-se imparável, enviou uma nota ao comandante de Ziguinchor protestando contra o facto de três canoas portuguesas que chegaram a Selho subissem o rio com destino a Pacau, onde os gentios assassinaram muitos franceses que ali foram negociar, roubando uma parte das mercadorias.

As intenções britânicas em Bolama exploravam conflitos com os povos dos Bijagós. Recorde-se que Honório Pereira Barreto tinha feito tratado com os régulos dos Bijagós e fizera-se o reconhecimento da soberania portuguesa na margem esquerda do Rio Grande de Bolola. É nesse contexto que Honório Pereira Barreto envia um importante relatório sobre Bolama ao governador-geral, com data de 7 de maio de 1856:
“Em janeiro deste ano soube com mágoa que estrangeiros combinados com portugueses indignos deste nome intentaram concorrer para que nas dependências de Canhambaque se estabelecesse uma feitoria estrangeira que servisse de canal para o contrabando que devia ser introduzido nesta praça (Bissau). No dia 18 às 7 horas da noite larguei para o Orango cujo rei tem uma decidida influência sobre todas as outras ilhas Bijagós; são todas independentes, mas sempre consultam o rei de Orango em casos graves. Cheguei a Orango no dia 20 ao meio-dia, fui recebido com uma salva de artilharia. É este o único que por toda a Guiné merece o nome de rei; apenas desembarcados fomos em direitura a sua casa, que é coberta de telha, conquanto seja construída de barro e feita à maneira das outras. A sua figura denota que é um monstro engolfado em todos os meios que produzem uma crassa ignorância, e um poder absoluto e tirânico. Ele é o único senhor das pessoas e bens dos seus súbditos; nas suas expressões se vê que ele tem consciência do brutal poder que exerce, julga-se igual a Deus, conquanto falando ironicamente se pinte a si mesmo como um pobre e humilde, quando tudo nele demonstra uma selvagem vaidade”.

Senna Barcelos não deixa de observar que o resgate dos escravos decretado em 1854 só se efetivou em 1857, com consequências de toda a ordem. O comércio na Guiné chegou a uma tal decadência que o governador Barreto chegou à atenção do governador-geral em 21 de março de 1857, propondo-lhe medidas para salvar a colónia. E o autor observa que “muito trabalhava aquele governador, empregando a sua influência e os seus meios, para evitar ali a crise comercial que se manifestava gravemente devido à barateza dos géneros estrangeiros que eram vendidos aos gentios por um preço inferior aos que podiam vender os negociantes portugueses. O passivo de Bissau era grande e as casas comerciais só giravam com créditos e não com fundos, e os estrangeiros que eram os maiores credores, e os únicos que vendiam a crédito, resolveram cessá-los, limitando-se a vender à vista. Encaminhando os estrangeiros um negócio para o Rio Nuno, Selho e Gâmbia, e retirado o crédito aos portugueses, passaram os gentios a permutar os seus géneros com aqueles. Era de esperar esta crise com o fim da escravatura”.

Barreto tornara-se na figura mais influente na Senegâmbia Portuguesa, de tal modo que em 7 de junho de 1857 foi dirigida uma representação dos moradores de Bissau ao governo pedindo a recondução dele naquele governo, por ser Barreto desinteressado e probo, tendo sacrificado os interesses da sua casa em Cacheu às necessidades do país. O ministro deferiu o requerimento de Honório que solicitava a demissão. O governador-geral propôs para que a Guiné se constituísse como governo independente uma vez que se estabelecessem comunicações entre Bissau, Goré ou Gâmbia. E é nesta atmosfera que se reacende a questão de Bolama. O ministro de Portugal em Londres, conde de Lavradio, apresentou a Lord Malmesbury um enérgico protesto em janeiro de 1859, este responde-lhe sustentando que a ilha de Bolama pertence à Grã-Bretanha. Um ano depois o então governador Zagalo escreve ao governador-geral dizendo que a presença inglesa em Bolama aumentara e recebera do governador da Gâmbia três impressos que este chamava tratados e pelos quais declarava pertencer à Grã-Bretanha não só a ilha de Bolama, mas outros lugares. Ele responde-lhe refutando a argumentação britânica e observa: “Além das circunstâncias apontadas, ainda hoje existem, tanto em Bolola, como em Guinala e Buba, grandes vestígios dos antigos estabelecimentos portugueses, e atualmente existem em todo o Rio Grande, até Bolola e Guinala, trinta feitorias portuguesas, e apenas uma só feitoria pertencente a David Lourenço, que se diz inglês, não obstante ter nascido escravo no Rio Pongo, território português”.

Quando não é a questão de Bolama e de Bolola voltamos à questão do Casamansa. Há informações que os franceses pretendem atacar os Felupes de Varela. As autoridades portuguesas jogam na antecipação. Em 19 de abril de 1861, Salakir, regente de Varela, faz a declaração da solene sessão e reconhecimento da Coroa de Portugal como possuidora do território. Nesse mesmo dia, o governador da Guiné, António Cândido Zagalo, participa ao comandante de Goré e ao governador do Senegal a ocupação de Varela. Zagalo viaja para Ziguinchor e descobre as péssimas condições em que se vive no presídio, com armamento rudimentar. Os presídios de Farim e Ziguinchor eram defendidos por uma estacada e por baterias de barro, que se cobriam de palha. No presídio havia dois bairros: o do Poilãozinho e o de Vila Fria e para ambos havia um juiz do povo. Nomeou o governador dois destes juízes subordinados ao delegado administrativo. O comércio em Ziguinchor estava representado por duas casas francesas: o comércio em todo o rio, era quase só feito por franceses e em Ziguinchor o mais importante era o do sal. A força militar estava reduzida a dois soldados; Zagalo organizou provisoriamente uma companhia de 2ª linha, na qual se alistaram voluntariamente a maioria dos moradores. De Ziguinchor seguiu para Bissau, onde teve conhecimento pelo encarregado do governo do conflito que houvera entre o presídio de Geba e os Beafadas de Badora. O encarregado do governo fora a Geba para apaziguar uma questão com aqueles gentios; estes prenderam-no e para ser solto teve que satisfazer condições bem onerosas para o presídio e para o governo. Voltemos um pouco atrás para observar o talento e firmeza com que Honório Pereira Barreto respondia às provocações vindas dos representantes franceses.

Quando o delegado francês descreve ao comandante de Ziguinchor, este prontamente reencaminha para Honório Pereira Barreto que lhe responde com frontalidade:
“A mim só é que pertence responder a Vossa Senhoria, pois é da minha exclusiva competência, como governador da Guiné, a direção das relações com as autoridades estrangeiras dos portos vizinhos; e, portanto, rogo a Vossa Senhoria de sempre se dirigir a mim em idênticos casos. Agradeço, como deve, a Vossa Senhoria a bondade que quis ter, segundo diz, de buscar evitar que a canoa de Ziguinchor passasse até Pacau, pelo receio que tinha dos gentios daquele país atacarem a dita canoa, pois os franceses têm a deplorar o assassínio de muitos comerciantes e o saque de muitas mercadorias praticado pelos mesmos gentios. Porém, achando-se o meu governo com força suficiente para se vingar das afrontas e vexames que os gentios desse rio intentarem fazer aos nossos, podemos prescindir do apoio e forças de Vossa Senhoria. Sinto não poder ter a honra de satisfazer ao pedido de Vossa Senhoria sobre manifesto e matrícula para as canoas que forem mercadejar nesse rio, porque havendo os portugueses, verdadeiros descobridores desta costa, sempre feito este comércio, livremente, não é justo que hoje se lhe ponham peias e embaraços, não só inúteis, mas prejudiciais; e eu tenho estrita obrigação de proteger o comércio português. Estou certo da justiça de Vossa Senhoria e da grande nação francesa, sempre generosa, que não haverá abuso da força para impedir a passagem, dessa Feitoria, às canoas portuguesas, porque os franceses passaram em frente de Ziguinchor, para ir fundar este estabelecimento, e, portanto, não pode haver hoje direito de impedir aos portugueses navegar e comerciar por todo esse rio. Permita-me Vossa Senhoria que lhe faça uma simples observação: esse rio não pode de maneira alguma ser considerado, de facto, exclusivamente francês como Vossa Senhoria parece julgar. Não quero entrar na questão de direito porque esse pertence ao gabinete das nossas Nações”.

Veremos adiante como Honório Barreto se manterá incansável na defesa dos interesses portugueses.

(continua)

Mapa histórico da Senegâmbia em 1707
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Nota do editor

Último poste da série de 23 DE FEVEREIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23020: Historiografia da presença portuguesa em África (305): "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada (9) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P22956: Historiografia da presença histórica portuguesa em África (301): mapa francês dos anos de 1680 que mostra a região de Casamansa, Cacheu Farim e Bissau

 

La coste d'Afrique | A costa ocidental de África


La coste d'Afrique depuis la  rivière de Gambie  jusques à celle de |Cherbe (?) ou Madrebombe (?), presentée à Monsieur  "monseigneur de Pontchaulyaire (?) | Mapa da costa da África O´cidental desde o rio Gâmbia ao de Cherbe  (?) ou Madrebombe (?), apresentado a Monsenhor de Pontchaulyaire (?)

Eschelle de quarante lieuz (?) françaises et anglaises | Escala de quarenta lugares (?) franceses ingleses


Royaume de Cazamance | Reino de Casamansa

Feloupes sauvages |  Felupes selvagens



Feloupes sauvages | Felupes selvagens 

Feloupes dociles | Felupes pacíficos ... Fort portuguais | Forte português (Cacheu)...Royaume des Baguns  | Reinos dos Banhuns


 Farim colonie portugais... Gesves (?), colonie portugaise | Farim, colónia portuguesa... Geba (?), colónia portuguesa


Cacheau, colonie portugaise... Bolol... île de Boulama... Bissaau | Cacheu, colónia portuguesa...Ilha de Bolama,,,Bissau

R. de St. Domingue... Bolol.. Mata de Poutama (?) | Rio de São Domingos...  Bolor... Mapa de Putama



Fotos (e legendas): © João Schwarz da Silva (2022). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Mensagem de
 João Schwarz da Silva, membro da nossa Tabanca Grande, nº 768, desde 30 de março de 2018. (Recorde-se que o João nasceu em Alcobaça em 1944, e foi para a Guiné pela primeira vez com 4 anos. Depois da morte do seu avô Samuel Schwarz em Lisboa, em 1953, voltou para Bissau onde frequentou o Colégio Liceu Honório Barreto, onde a mãe era professora, até à sua vinda para a universidade, em Lisboa, em 1960; vive em Paris; é o autor da página Des Gens Intéressants, onde tem perpetuado as memórias de amigos e familiares; Tem já uma dezena e meia  de referências no nosso blogue.)


Data - quarta, 26/01/2022, 08:52


Assunto - Mapas da Guiné

Caro Luis

Nas minhas andanças pela BNF - Biblioteca Nacional de França, em Paris,  descobri um mapa muito interessante que mostra a região da Guiné nos anos 1680. Aparentemente o mapa est baseado nas viagens de um Michel de la Courbe que era delegado da companhia do Senegal e que visitou Cacheu, Bissau e Farim.

Aqui vão as imagens.

Um grande abraço

João Schwarz da Silva

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Nota do editor:

Último poste da série > 26 de janeiro de  2022 > Guiné 61/74 - P22941: Historiografia da presença portuguesa em África (300): "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada (5) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 24 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22746: Historiografia da presença portuguesa em África (291): O estudo "Gonçalo de Gamboa de Aiala, Capitão-mor de Cacheu, e o Comércio Negreiro Espanhol, 1640-1650", por Maria Luísa Esteves; Centro de Estudos de História e Cartografia Antiga, 1988 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Fevereiro de 2021:

Queridos amigos,
É incontestável que o período filipino foi altamente danoso para a presença portuguesa na Senegâmbia, a retração foi enorme, o abandono e a incúria chegaram a levar a crer que a presença portuguesa estava definitivamente condenada. Cacheu era um ponto fulcral para o comércio negreiro e até para a economia de Cabo Verde. D. João IV, ouvido o Conselho Ultramarino, procurou tomar medidas eficazes, e por mais controversa que possa ser encarada a atividade de Gonçalo de Gamboa de Aiala, Capitão-Mor de Cacheu, por ele nomeado, apresentou resultados, o fundamental foi melhorar a presença portuguesa, Gamboa criou Farim e Ziguinchor, perseguiu com todos os meios ao seu alcance os navios estrangeiros, viveu em permanente tensão com os comerciantes de Cacheu que faziam o jogo duplo, juravam fidelidade a D. João IV mas ansiavam pelo regresso dos Áustrias. Maria Luísa Esteves oferece-nos o retrato de uma década e mostra à evidência que se deve a Gamboa ter travado o descalabro em que se encontrava a então denominada Senegâmbia Portuguesa. Resta acrescentar que neste século XVII a mobilidade da nossa presença se circunscrevera entre os rios Casamansa e Nuno.

Um abraço do
Mário



Gonçalo de Gamboa de Aiala, Capitão-Mor de Cacheu (1640-1650)

Mário Beja Santos

O estudo "Gonçalo de Gamboa de Aiala, Capitão-mor de Cacheu, e o Comércio Negreiro Espanhol, 1640-1650", por Maria Luísa Esteves, Centro de Estudos de História e Cartografia Antiga, 1988, trabalho que se associou às comemorações do IV Centenário da Fundação de Cacheu, permite-nos visualizar os danos sofridos durante o período filipino na então denominada Senegâmbia Portuguesa. Com a Restauração, descobre-se que aquela zona de África estava praticamente desguarnecida tanto do ponto administrativo como militar, e, no entanto, era uma das principais saídas do comércio negreiro. O primeiro rei Bragança encontrou dificuldades inesperadas, como observa a historiadora Maria Emília Madeira Santos: “Os comerciantes locais, beneficiando de uma rede de comércio internacional montada por poderosos mercadores de Sevilha e Cádis, iriam resistir a um corte de relações tão lucrativas. Os corsários franceses, holandeses e ingleses, legitimados pela guerra contra Espanha, atacavam ferozmente qualquer tentativa portuguesa de domínio na área. Gonçalo de Gamboa de Aiala, o Capitão-mor da Capitania de Cacheu, encarregado de construir uma fortaleza naqueles rios, precisaria de lutar em várias frentes: a oposição das populações locais, os interesses dos comerciantes negreiros, a rede comercial intercontinental com sede em Espanha, os corsários de todas as nacionalidades”.

A autora começa por nos dar uma visão geral das consequências que a perda da independência acarretou para as colónias portuguesas, dá-nos depois a situação da Guiné, aquando da Restauração e finalmente a ação desenvolvida por Gonçalo de Gamboa da Capitania de Cacheu. Não há nenhum excesso em dizer que o domínio castelhano acentuara as dificuldades de manutenção das possessões portuguesas, houvera que seguir a sua política internacional, completamente desastrosa para o nosso império, vinham ataques de todas as proveniências e D. João IV ascende ao trono com obstáculos aparentemente insuperáveis e numa vastidão incomportável: Guerra da Independência, uma força marítima mais do que insuficiente, tempos de decadência da arte de construção naval, falta de armamento, situação financeira crítica, a crónica exiguidade de meios humanos. A Guiné, a concorrência comercial de franceses, ingleses e holandeses era feroz, todos sedentos da compra de escravos. “Quando rompeu a madrugada do 1.º de Dezembro de 1640, a presença portuguesa na Guiné limitava-se à faixa compreendida entre o Casamansa e o Bolola. O comércio da escravatura, fonte de riqueza da colónia, estava praticamente na mão dos negreiros espanhóis que embarcavam para as Antilhas todos os escravos que podiam arranjar, fugindo ao pagamento dos direitos aduaneiros e provocando com isso o descalabro da vida económica. Para além da quebra de rendimentos, resultante do contrabando que os mercadores de escravos praticavam, acrescia ainda o facto de as receitas da colónia estarem arrendadas a contratadores particulares que depositavam em Lisboa o pagamento dos seus contratos. As autoridades da Guiné ficavam, deste modo, sem recursos para satisfazer as necessidades mais prementes, com os ordenados dos funcionários e quaisquer obras de fortificação que impedissem o comércio ilícito”.

Assim se explica a decadência, a fácil fixação dos ingleses na Gâmbia, a incapacidade de agir do governo de Cabo Verde. “Cacheu era, na altura da Restauração, a praça mais importante da Guiné, a presença portuguesa naquela região, como em toda aquela costa, era precária, embora fosse o núcleo populacional mais numeroso de toda a colónia”. A autora debruça-se sobre Cacheu e os seus mercadores de escravos, não se pode iludir a anarquia e indisciplina que grassavam em consequência dos abusos cometidos pelos comerciantes espanhóis e outros estrangeiros. O Capitão-mor de Cacheu é Luís de Magalhães que pede ao rei que tome medidas tendentes a evitar a ruína total, entre elas a permissão do resgate de escravos para o Brasil e o incremento das relações comerciais nas ilhas de Cabo verde. O rei pretende agir, ordena a construção da fortaleza e escolhe para futuro Capitão-mor Gonçalo de Gamboa de Aiala, Capitão-mor e Feitor de Cacheu por três anos, este oficial servira no Brasil e na Índia, aqui acobertara-se de valor militar. Gamboa vai demorar tempo a chegar a Cacheu, elabora a relação de material e pessoal que precisava para construir, artilhar e guarnecer militarmente a futura fortaleza; precisa de algum poderio naval para salvar a Guiné das pretensões estrangeiras, é um processo demorado. Enquanto tudo isto se passa, chegam ao rei e ao Conselho Ultramarino notícias inquietantes provenientes do Governador de Cabo Verde: Luís de Magalhães era acusado de cumplicidade e trato com os castelhanos; comerciantes de Cacheu insistem em embarcar escravos com destino ao Brasil, pagando direitos na feitoria de Cacheu, o monarca acede.

Finalmente o novo capitão-mor encaminha-se para Cacheu encarregado da construção da fortaleza, o dinheiro destinado à obra estava confiado à guarda do Capitão Paulo Barradas da Silva, os dois muito cedo entrarão em litígio, ora por falta de materiais, ora por não haver concordância quanto ao local escolhido, e Gamboa não esquece a obrigação de procurar suster a presença constante de navios estrangeiros nas costas da Guiné. Barradas da Silva queixa-se ao rei das afrontas praticadas por Gamboa e diz proteger os devedores de grandes somas à Fazenda Real. Dado fundamental, Gamboa põe-se em campo para resistir às tentativas espanholas de ocupação, fortifica e guarnece de artilharia Ziguinchor, o presídio adquiriu extraordinário valor como centro comercial e de fixação portuguesa. Gamboa tinha a noção de que precisava de controlar a navegação no rio Farim ou de S. Domingos, arrendou em nome da Fazenda Real o comércio do rio Geba, recorde-se que nesta altura os moradores do presídio de Geba tinham-se, na sua generalidade, transferido para Cacheu e para a recém-fundada Farim. O capitão-mor dá como reforçada a presença portuguesa na região e lança-se na perseguição dos concorrentes, apresa barcos espanhóis. No entanto prosseguem as tensões entre Gamboa e Paulo Barradas por causa do dinheiro que este retém e que é fundamental para a construção da fortaleza. Os moradores de Cacheu fazem queixas ao rei, protestam-lhe lealdade, se bem que Gamboa os acusa de traidores e partidores de Castela.

O estudo de Maria Luísa Esteves está altamente documentado, toda a sua investigação assenta em documentos do Arquivo da Torre do Tombo e do Arquivo Histórico Ultramarino. Atenda-se às suas conclusões. Gamboa trazia a incumbência de conservar e desenvolver Cacheu, afastar o ocupante espanhol e perseguir o comércio ilícito. Fundou e fortificou a povoação de Farim, construiu o presídio de Ziguinchor, o melhor porto do Casamansa que irá dominar durante dois séculos o tráfego no rio; Farim será a extensão natural de Cacheu e de grande importância para o comércio local. Foi-lhe confiada a missão de construir a fortaleza, faltaram-lhe materiais, pessoal e encontrou séria oposição de Paulo Barradas da Silva, encarregado da cobrança do dinheiro destinado às fortificações. Não deu tréguas a perseguir os estrangeiros que se entregavam ao resgate de escravos. Sufocou com firmeza qualquer sintoma de insurreição interna. Como observa Maria Luísa Esteves, “foi decisiva a sua ação no conflito provocado pelo choque de interesses que o opôs aos ricos e poderosos comerciantes negreiros de Cacheu e à própria população local, grandemente prejudicada com o corte das relações prejudiciais com a Espanha. Gamboa procurou, igualmente, canalizar o resgate de escravos para o Brasil, sabendo como este Estado, depois da tomada de Luanda pelos holandeses, carecia de braços para os engenhos de açúcar. Assim, tentou desviar os negreiros para este comércio com a intenção de disputar à cobiça dos espanhóis o caudal dos escravos da Guiné. Vai ser uma luta tenaz não só contra o comércio negreiro espanhol, mas ainda contra os holandeses, ingleses e franceses interessados neste lucrativo tráfico”.


Uma aldeia perto de Cacheu, gravura proveniente do livro África Ocidental, Notícias e Considerações, por Francisco Travassos Valdez, Lisboa, 1864
Um panorama da Fortaleza de Cacheu
Interior da Fortaleza de Cacheu, vêem-se os restos das estátuas apeadas depois da Independência
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Nota do editor

Último poste da série de 17 DE NOVEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22725: Historiografia da presença portuguesa em África (290): Entre os primeiros contributos para o conhecimento da Guiné: André Alvares de Almada e André de Faro (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 17 de junho de 2020

Guiné 61/74 - P21084: Historiografia da presença portuguesa em África (213): Para Luciano Cordeiro, de um oficial da Armada que definiu as fronteiras da Guiné - Carta do Capitão-de-Fragata da Armada Real, Eduardo João da Costa Oliveira, publicada no Boletim da Sociedade de Geographia de Lisboa (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Dezembro de 2019:

Queridos amigos,
Nada como dar a palavra ao oficial da Armada nomeado comissário para a delimitação das fronteiras da Guiné Portuguesa. Eduardo João da Costa Oliveira dirige-se a Luciano Cordeiro e a sua carta é tudo menos inocente, nela se exaltam as potencialidades de uma colónia que aguarda planos de desenvolvimento. Mas tudo tem o seu preço, é necessário travar as lutas interétnicas e marcar presença. Descreve os rios, e vê-se nitidamente que sabe do que está a falar, alerta para as riquezas que poderiam representar a agricultura e o comércio no Geba.
Este seu importante trabalho precede outro, a que nos referiremos adiante que é a sua viagem à Guiné Portuguesa, um documento preciosíssimo, estranhamente pouco invocado pelos estudiosos.
Gradualmente, se vai confirmando a dívida do território com estes distintos oficiais da Armada, que cartografaram, definiram fronteiras, revelaram a navegabilidade dos rios e das rias e que num dado momento puseram a colónia no mapa do império, basta pensar nos nomes de Sarmento Rodrigues, Teixeira da Mota e Pereira Crespo.

Um abraço do
Mário


Para Luciano Cordeiro, de um oficial da Armada que definiu as fronteiras da Guiné

Beja Santos

A carta do Capitão-de-Fragata da Armada Real, Eduardo João da Costa Oliveira para Luciano Cordeiro, publicada no Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, no número constante desta imagem, é um belíssimo documento para quem pretende acarrear e inventariar a documentação essencial sobre a presença portuguesa na Guiné, quando a colónia passou a ter fronteiras. E ninguém melhor posicionado para o fazer de quem contribuiu para o facto.
O documento começa assim:
“Meu caro Luciano Cordeiro, tomo a liberdade de te enviar e oferecer um modestíssimo esboço do território português da Senegâmbia”. O oficial de Marinha é profundo conhecedor do território, percorreu os rios e faz uma síntese do que julga mais significativo para enviar ao político em Lisboa:
“Rio de Cacheu ou de Farim – rio profundo de margens pitorescas e navegável para grandes navios mais de cem milhas aproximadamente acima da foz. Na margem direita deste formoso rio está situada a nossa praça de Farim, outrora importante pelo seu comércio, e a cinco milhas a jusante um excelente fundeadouro para grandes navios”. E mais acrescenta que os nomes dos afluentes principais deste rio e das povoações ribeirinhas foram revistos e corrigidos pelo Sr. Cleto, funcionário público da Guiné, um dos cavalheiros mais sabedores daquelas zonas. Esclarece ainda que os chamados rios de Jata, Âncoras, Nhabo e Impernal são verdadeiros canais.
Rio Geba – o traçado deste rio até à embocadura do Corubal é tão exato quanto possível. E cita um trabalho de Lopes de Lima: “Entre Geba e Farim há comunicação fácil, sendo a distância entre os dois presídios de dezoito léguas, de que doze se andam em canoas pelo rio de Farim até à aldeia de Tandegú, e as seis por terra de Tandegú a Geba. Este rio é navegável para grandes embarcações somente até a Pedra Agulha, por causa dos bancos de areia que existem umas trinta milhas, pouco mais ou menos, acima da sua foz, deixando apenas um estreito canal, por onde podem passar duas canoas a par”.

Refere detalhadamente o fenómeno do macaréu e adiciona a seguinte informação: “Algumas lanchas do Estado, como a Honório e a Cacine e outras, vão muitas vezes a Geba em serviço da Província e não me consta ter havido nenhum desastre proveniente do macaréu”. E pela primeira vez emite um parecer político, sobre as potencialidades da Guiné: “Para mim, é ponte de fé que o futuro da Guiné está ligado a este rio. Geba é um ponto estratégico importantíssimo do sertão, e, se fosse convenientemente guarnecido e defendido, assim como S. Belchior e Sambel Nhantá, o comércio, à sombra dessa protecção havia de desenvolver-se rapidamente, e Bissau, capital natural da Guiné, já pela sua posição geográfica, já pela sua importância comercial, podia ser, num futuro não muito remoto, o empório daquela rica e extensa região”. E não escusa de informar o político em Lisboa de importantes trabalhos vindouros, de modo a assegurar uma presença duradoura da soberania portuguesa: “Os pontos a fortificar desde já no interior da Guiné e a proteger eficazmente, seriam, segundo o nosso humilde modo de ver, Farim, Geba e Buba, e consequentemente Bolor, Bissau e Colónia, no rio Grande de Bolola. Alguns pontos intermédios, tais como S. Belchior e Sambel Nhantá, no rio Geba, e Cacheu no rio do mesmo nome. Mas sem lanchas a vapor bem armadas e apropriadas para aquela difícil e perigosa navegação, nada se deve tentar, se quisermos evitar algum tremendo desastre, semelhante ao de Bolor, onde foram massacrados dois oficiais, trinta soldados e mais de duzentos habitantes afeiçoados ao nosso Governo, pelos gentios Felupes”.

Rio Mansoa – este rio, que na largura, profundidade e importância comercial não é muito inferior ao Geba e Farim, corre paralelamente a estes dois rios e comunica com o de Armada, podendo reduzir a um terço o tempo da viagem, que ainda se faz em dois ou três dias entre a vila de Bissau e a praça de Cacheu por caminhos perigosos. Parece que o Mansoa é um grande esteiro engrossado por numerosos ribeiros e não um rio propriamente dito.

Rio Corubal – dizem que nasce em altas montanhas do Futa-Djalon; é profundo e largo, navegável muitas milhas pelo sertão dentro e despenha-se de quatro metros de altura próximo de Consinto (Cussilinta?). Há dois pequenos rápidos pouco distantes desta formosa catarata, e vai misturar as suas águas cristalinas com as do rio Geba.

Rio Grande de Bolola ou dos Portugueses – é conhecidíssimo este rio, ou, antes, esteiro, onde vem desaguar muitos outros esteiros mais pequenos e riachos. É navegável para grandes embarcações até milha e meia abaixo de Buba. Foi importante o comércio da mancarra e outros géneros neste rio. Atualmente pode afirmar-se sem receio de controvérsia que está abandonado pelos negociantes nacionais e estrangeiros”. E especula sobre as razões de tal degradação, desde a quebra dos preços da mancarra no mercado internacional até às guerras entre Fulas e Beafadas, conhecidas como as guerras do Forreá. E afirma: “O que nos causa espanto é que não se ponha cobro a estas guerras sempre desastrosas aos nossos interesses e bom nome, por serem feitas em territórios chamados portugueses”. E a propósito da imposição da soberania, e para travar completamente as guerras interétnicas, sugere: “Aí pelos arsenais do Exército e da Marinha existem pequenas peças de bronze, de alma lisa, que para nada servem; porque não se lhes manda fazer reparações ou carretas de ferro e se enviam para a Guiné a fim de guarnecerem as praças de Buba, Farim, Geba e Cacheu, e os postos militares em S. Belchior e Sambel Nhantá, Bolor, etc.?”

Rio Cacine – navegável até à feitoria de Amadu-Bubú, é também um enorme esteiro, onde vão desaguar numerosas ribeiras, que, na época das chuvas, devem formar caudalosos rios. A borracha é o produto indígena que ali se permuta por armas brancas e de fogo, pólvora, etc.

Finda esta descrição, o Capitão-de-fragata adiciona outras informações antes de dar por finda a carta. Observa o seguinte:
“Os Fulas do sertão do rio Grande, desde Contabane até Damdum, são geralmente hospitaleiros, obsequiadores, leais e susceptíveis de se nos afeiçoarem. Não bebem álcool. Apreciam unicamente as contas de alambre, de coral, o bertangil, fazendas brancas e de cor, tabaco em folha, pólvora, chumbo de caça, zagalotes e balas. Desde Contabane até Buba, já o álcool tem apreciadores distintos, e o nosso dinheiro, conhecido por dinheiro do Forreá, serve para adquirir os géneros precisos”.

O Capitão-de-Fragata Eduardo João da Costa Oliveira era sócio da Sociedade de Geografia de Lisboa, e foi o comissário português encarregado de estudar a demarcação para o tratado entre Portugal e a França relativo à Guiné.

Primeiras instalações do BNU em Bissau (1917)

Carnaval Felupe, imagem da investigadora Lúcia Bayan, gentilmente cedida ao blogue
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Nota do editor

Último poste da série de 10 de junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21062: Historiografia da presença portuguesa em África (212): A Guiné há um século, segundo Fortunato de Almeida em "Portugal e as Colónias" de 1918 (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

Guiné 61/74 - P20605: Historiografia da presença portuguesa em África (196): Relatório do Governador da Guiné, Contra-Almirante Francisco Teixeira da Silva, referente a 1887-1888 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Janeiro de 2019:

Queridos amigos,
São documentos preciosos que se encontram na Biblioteca da Sociedade de Geografia, espelham a realidade da nova Província da Guiné, do estado em que se encontrava, o Governador não esconde ao Ministro as carências de toda a espécie e propõe medidas. Será governador por pouco tempo, era um oficial da Armada com larga experiência colonial, foi rapidamente destacado para Macau.
Sobre a sua governação sugere-se a leitura da obra de Armando Tavares da Silva "A Presença Portuguesa na Guiné", a partir da página 169, é neste tempo que fomos forçados a abandonar Zinguinchor, com muita dor da população local, Tavares da Silva relata com detalhe os muitos conflitos que se registaram nesta época.

Um abraço do
Mário


Relatório do Governador da Guiné, Contra-Almirante Francisco Teixeira da Silva, referente a 1887-1888

Beja Santos

O oficial da Armada foi surpreendido em Angola com a sua nomeação para a Guiné, daqui seguirá também como Governador para Macau. O seu documento é muito económico, revela uma limpidez de caráter, não se escusa a abordar as questões mais ásperas e a propor medidas de revitalização, fundamentais num período em que a presença francesa aparecia como um cerco ao enclave português. Não esconde no documento destinado ao ministro que lhe falta alguma informação e diz claramente que a presença portuguesa está altamente condicionada.

As primeiras páginas introdutórias levam-no a dizer que a Província compreende todo o continente africano entre o Cabo Roxo e a Ponta Repin, a superfície total da Província, incluindo as ilhas, seria aproximadamente de 40 mil quilómetros quadrados. Escreve que a população que se diz civilizada não ultrapassa as 10 mil almas. Estabelece as condicionantes, ocupava-se a ilha de Bolama; Bissau, Cacheu, Geba, Buba e Farim só a parte fortificada; Cacheu está sempre em armas; em Bissau, há quem proteste contra a destruição das muralhas da praça, com medo dos vizinhos; em Geba e Farim, todos temem o Mussá-Muló e em Buba desconfia-se de Mamadu Paté, chefe Fula, de Mamadu Jolá, chefe Beafada. E explica a natureza das tensões:

“Este mal-estar deve-se principalmente à política de intervenção nas questões indígenas e ao costume de lhes pagar tributos e dar presentes que mais provam vassalagem do que suserania. Hoje não se pagam tributos e dão-se-lhes poucos presentes”.

E procura fazer um retrato da capital da Província, dirá repetidamente que anseia por ver Bolama ascender a cidade:

  “A capital da Província é na ilha de Bolama na sua parte mais insalubre. Convinha dominar a entrada do Rio Grande – diz-se. Data este estabelecimento de 1879 e se não é hoje como Luanda que conta séculos de existência, não é inferior a São Tomé ou a Benguela em edificações públicas e particulares. Se me é lícito advogar uma causa que mais pertence à municipalidade, proporia que a sede da Província da Guiné na ilha de Bolama fosse elevada à categoria de cidade… Capital de uma Província não deve ser aldeia nem vila. O concelho de Bolama abrange toda a ilha. O poder judicial e administrativo não vai além da vila e aldeias próximas por ser difícil o seu exercício nas tabancas das diferentes raças cujos costumes temos respeitado”. E dá uma nota de franqueza para o estado da capital: “Em Bolama não há nem cemitério nem calcetamento das ruas, nem um edifício camarário que não seja alugado”.

E pronuncia-se sobre os administradores de concelho e chefes de presídio, os representantes do Governo nos pontos ocupados:

“Uns e outros acumulam a parte civil. Veem-se em cada passo embaraçados quando pretendem cumprir as ordens do Governo, e na parte política da administração têm de lutar contra a natural desconfiança dos indígenas, sempre excitada pelos habitantes da localidade, políticos a seu modo, intervindo em todas as questões gentílicas com o fim principal de promover os seus interesses que não os do país que lhes deve o seu atraso, as suas discórdias, as suas guerras e o seu mau estado financeiro”.

Depois de dizer abertamente que vota pela extinção das câmaras municipais em Bissau e Cacheu, e depois de informar que Buba já tem comissão municipal, pronuncia-se sobre a gestão das questões gentílicas:

“É simples a minha política: é a de não interferência nos negócios indígenas, a não ser a de bom conselho dado sem interesse. É o castigo pronto ao morador, ao grumete do presídio que comete extorsões nos territórios gentílicos ou nos mercados públicos à sombra da autoridade. É a exigência da amarração de qualquer gentio por crimes contra cristãos ou moradores e grumetes, tomando reféns até que se faça a troca. É não dar presentes aos chefes das tribos, nem aceitá-los. Os presentes constituem hoje uma obrigação, a que eles dão o nome de daxas ou tributos”.

É favorável a que se arrasem todas as muralhas e paliçadas, não obstante havia que conservar em bom estado as fortalezas, era a melhor maneira de mostrar aos indígenas que não tinham medo deles.

É severo num conjunto de apreciações quando fala da administração, da justiça, da missionação, etc. Recorda ao ministro que há situações do mais flagrante atentado à saúde, é o caso de Bissau: “Tem 80 casas, se tanto, apertadas por uma muralha de três metros de altura torneada por um fosso que serve de despejo. Limpa-se o fosso, dá-se-lhe vazão para a praia, entulham-no outra vez”. A justiça estava pela hora da morte: “Crimes, quem é que os paga, se não há quem os julgue? Os juízes ordinários ali dizem que não têm escrivães. Não há administrador de concelho, delegado de saúde: não há quem ali vá com eles com olhos de ver que se não ria daquela muralha e de quem pede a sua conservação. E a muralha fica de pé, devendo eu também entrar no número daqueles que não toma uma deliberação”.

Pronuncia-se meticulosamente sobre obras públicas, correio, administração da Fazenda, da Alfândega e volta ao tema da justiça e não se coíbe de tecer observações sobre a administração eclesiástica:

“O vigário-geral é o único sacerdote que há hoje em toda a Guiné Portuguesa. A Diocese de Cabo Verde compreende as cristandades da Guiné sobre a direcção do Vigário-geral. A diocese tem um seminário na ilha de São Nicolau que, se dá padres, não chegam à Guiné. No reino não se ordenam em número proporcional às necessidades das províncias africanas. Vêm do Oriente, espalham-se por todas as colónias como se têm espalhado os cirurgiões da Escola de Goa”.

Sempre objetivo, sem teias numa narrativa de verdade, diz o que pensa sobre as velhas fortificações em ruínas, o estado degradado em que se encontra a artilharia, as necessidades prementes de manter unidades da Armada na Guiné.

E termina o seu relatório relembrando várias propostas:

“mostrei a conveniência de elevar Bolama a categoria de cidade;
disse que o concelho de Bolola não tinha hoje razão de ser;
provei que Cacheu não tem elementos de vida municipal;
pedi a reorganização da Secretaria Geral do Governo;
que os chefes dos presídios sejam gratificados com 300 mil reis anuais;
que a despesa com a instrução primária passe a cargo das câmaras e comissões municipais;
que se crie na capital da Província uma escola principal;
que venham de Angola cinco pretos resgatados para servirem nas obras públicas como aprendizes de ofícios;
que, quando os portos da Guiné Portuguesa estiverem suspeitos ou sujos, haja carreira directa de vapores para a metrópole;
que se arrasem as muralhas de Bissau e se destrua a paliçada de Cacheu;
que se mande vir de França o material preciso para construções na Província e principalmente em Cacine, etecetera, etecetera".

O relatório é assinado na ilha Brava em 26 de outubro de 1888, nessa altura Francisco Teixeira da Silva é ex-Governador da Guiné nomeado Governador de Macau.


Ruínas do BNU de Bolama, posteriormente Hotel do Turismo, 
Imagem de Bruno Kestemont, retirada do blogue Rio dos Bons Sinais, com a devida vénia.




(Continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 8 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20539: Historiografia da presença portuguesa em África (195): A Guiné vista pelo seu primeiro governador, Pedro Inácio de Gouveia (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 24 de abril de 2019

Guiné 61/74 - P19712: Historiografia da presença portuguesa em África (160): Relatório para o Sr. Governador da Guiné, assinado em Buba, em 6 de dezembro de 1882, pelo Capitão Caetano Filipe de Sousa (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Agosto de 2018:

Queridos amigos,

Trata-se de uma documentação de valor histórico apreciável. Em diferentes peças, o leitor ficará ciente de que chegara a hora da decadência de Buba e a perda de influência do Rio Grande, guerras étnicas devastam o Forreá, captura-se gente, levam-se reféns. O secretário do Governo envia instruções a Caetano Filipe de Sousa para proceder a um diagnóstico da situação, importa a todo o transe abrir o eixo comercial entre Buba e a região do Futa, estabelecer tratados de paz, fazer retirar os Fulas-Pretos para o Corubal, atrair os chefes do Futa, tratar com deferência o chefe Mamadu Paté, dar presentes, entre outras questões de grande pertinência.

Em termos historiográficos, são peças singulares que dão conta de que no momento em que a colónia da Guiné se autonomiza o Forreá revela uma grande instabilidade, a que não é alheia a pressão dos franceses, eles estão altamente interessados em comprimir o território da colónia, como o comprovará a Convecção Luso-Francesa em 1886. O testemunho de Caetano Filipe de Sousa fala por si.

Um abraço do
Mário


Relatório para o Sr. Governador da Guiné, assinado em Buba, em 6 de dezembro de 1882, pelo Capitão Caetano Filipe de Sousa (3)

Beja Santos

Vamos hoje concluir o resumo do relatório de Caetano Filipe de Sousa, capitão e antigo administrador de Buba, escrito em Buba, em 25 de novembro de 1882 e que está depositado nos Reservados da Sociedade de Geografia de Lisboa. Depois de uma longa dissertação sobre os Fulas-Forros e os Fulas-Pretos, prossegue o seu historial do seguinte modo:

“O primeiro chefe a quem os Fulas-Forros tiveram chamava-se Sambali. Todo o chão de Bolola, até 1869, era habitado pelos Beafadas, alguns Fulas-Pretos, antigos aliados dos Fulas-Forros e a pequena tribo Fula-Forro com os seus novos escravos. Um dos chefes dos Beafadas declarou guerra ao seu chefe principal e para o ajudar chamou Sambali. O chefe rebelde venceu a questão, porém, o seu partido entre os Beafadas era pequeníssimo, e Sambali aproveitou esta circunstância, declarou então guerra ao único chefe dos Beafadas que havia em Bolola, isto é, o chão que então era habitado pelos cativos, segundo as suas tradições ficavam entregues aos Forros. Sambali, logo que se estabeleceu, mostrou desejo de estar em boas relações com o Governo Português, realizando-se entre ele e o Governador um convénio que teve lugar no cais de Bolola, no Rio Grande, em 1869, e para cujo fim ali foi a escuna Bissau, havendo a seu bordo, além do Governador do distrito, os principais negociantes portugueses de Bolama e Rio Grande. Este convénio foi realizado com grande pompa que ainda hoje entre gentios e civilizados dá pelo nome de A Paz de Bolola.

Os Fulas-Pretos que habitavam no Forreá julgaram-se tributários dos Forros e assim estiveram sem se incomodar até 1879, data da primeira guerra entre eles. Os Fulas-Pretos julgaram-se com direito a possuir o Forreá porque o seu chefe descende por parte do pai do chefe principal dos Beafadas, e que tendo este perdido o Forreá, eles o pretendem como sua legítima. Há já três anos que esta guerra existe e eu estou convicto que ela não acaba tão depressa, e até mesmo creio que, à hora em que estou escrevendo este pequeno relatório, estão-se preparando nos limites do Forreá e Cadi grandes massas de homens para se baterem uns contra os outros.

O chefe Mamadu Paté recebeu toda a sua família, excepto um sobrinho de 10 anos de idade, que, por enquanto, não se sabe para onde foi levado; mostrou-se satisfeito e agradecido ao Governo o ter-lhe restituído a sua família, estabeleceu de novo a sua tabanca em Bolola.

O Bacari Quidali, que ainda está na praça, promete fazer encaminhar o comércio do Futa, Timbo e Labé para esta praça logo que os Fulas-Pretos retirem do Forreá.

Neste espírito também se me oferece dizer alguma coisa: o Bacari Quidali chamou em tempo gente do Futa para o ajudar numa guerra que tentava fazer contra os Fulas-Pretos no Corubal, Badora e Firdu, esta gente está a caminho do Forreá, isto é, está reunida em Cadé sobre as ordens do chefe do Futa. Os portadores deste chefe precisam da sua ordem para cumprimentar o Bacari Quidali na sua tabanca, porém, eu, sabedor disto, mandei ali portadores meus a comunicar-lhes para que venham a Buba, quero orientá-los num tratado de paz que acaba de ser realizado entre o Governo e os Fulas-Forros; depois, avisá-los e aconselhá-los a que não prossigam no seu propósito de guerrear os Fulas-Pretos, mas creio nada conseguir porquanto o chefe do Futa chamou para o seu partido a gente do chefe de Timbo, e este mandou o seu próprio filho, de modo que o chefe do Futa não desistirá para não o acusarem de cobarde, como entre eles é costume.

O Bacari Quidali, estou certo, não andou nisto de má-fé, todavia, achava-se já comprometido com o chefe do Futa e agora não sabe o modo de sair desse compromisso, por esta forma os caminhos do Futa para Buba continuarão a estar fechados e apresto-me a dizer a V. Ex.ª que teremos de nos limitar, por enquanto, ao comércio do Forreá, que é do cuidado de não se ofender directa ou indirectamente o Bacari Quidali, cujo melindre é bastante apurado.

Em Buba, não vejo mais que uma pessoa que deseja ir a Futa (pondo de parte o meu nome) e este indivíduo chama-se Pedro Lopes e reside nesta praça. Pela sua ida pede mil réis, acho porém que este sujeito não pode servir para ser representante do Governo aos chefes de Futa e Timbo.

Os Mandingas residentes na praça vivem bem com os Fulas-Pretos e Fulas-Forros, porém, outro tanto não sucede com os Futa-Fulas por serem inimigos, noto mesmo que sempre que lhes falo deles prometem ser implacáveis.

Finalmente diria a V. Ex.ª que me parece que o meio mais pronto para fazer chegar ao mercado de rua o comércio do Futa está em manter as melhores relações de amizade com o chefe daquela tribo. Este chefe é bastante moderado, pouco exigente e mostra simpatia pelos brancos (as pessoas civilizadas, seja qual for a sua cor, são designados pelo gentio pelo nome de Brancos).

Para conseguirmos a sua amizade, é necessário presentes anualmente e mesmo em épocas em que ele venha à praça. Calculo, para estes presentes, a soma 1.200$000 e nesta importância é incluído também o presente que costumamos dar ao Bacari Quidali. Estes presentes, bem entendido, não é para que nos não ataquem a praça de Buba, porque se o tentassem sentiriam os efeitos, Buba propriamente dita está bem defendida”.

Após a descrição dos efetivos na praça e a possibilidade de proteger qualquer feitoria do Rio Grande e depois ter dado informações que no Porto de Buba há uma lancha a vapor ao serviço da praça e do Rio Grande, despede-se nos seguintes termos:

“Com estes elementos, as feitorias têm mais alguma confiança na protecção do Governo, garantem que os chefes do Futa e Forreá façam com que o comércio dali se dirija a Buba e a seguir com que os caminhos do Forreá estejam abertos aos negociantes do Futa, sem que estes receiem perder as suas mercadorias. É este o exemplo que nos é dado pelo Governo Francês, é assim que pratica para com as tribos do rio Nuñes e para com a praça de Timbo”.

Procede a uma larga referência às taxas e impostos municipais e despede-se com a saudação: Deus guarde a Vossa Excelência, Buba, 25 de Novembro de 1882, assina e adiante pode ler-se que está conforme, e temos a data de Bolama, 4 de maio de 1883, Caetano Filipe de Sousa.



Imagens do relatório de Caetano Filipe de Sousa, constante dos Reservados da Sociedade de Geografia de Lisboa, com a devida vénia.


Antigo Palácio do Governador, Ilha de Bubaque

Fotografia de Francisco Nogueira, retirada do livro “Bijagós Património Arquitetónico”, Edições Tinta-da-China, 2016, com a devida vénia.
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Nota do editor

Postes anteriores de:

10 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19665: Historiografia da presença portuguesa em África (157): Relatório para o Sr. Governador da Guiné, assinado em Buba, em 6 de dezembro de 1882, pelo Capitão Caetano Filipe de Sousa (1) (Mário Beja Santos)
e
17 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19688: Historiografia da presença portuguesa em África (158): Relatório para o Sr. Governador da Guiné, assinado em Buba, em 6 de dezembro de 1882, pelo Capitão Caetano Filipe de Sousa (2) (Mário Beja Santos)