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segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25216: Notas de leitura (1670): "A Cidade Que Tudo Devorou", por Amadú Dafé; Nimba Edições, 2022 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Setembro de 2022:

Queridos amigos,
Se um grande romance é uma história bem contada, Amadú Dafé recebe a cotação máxima com esta "A Cidade Que Tudo Devorou", vamos embrenhar-nos na cidade de Bissau, palco de assassinatos, guerra civil, roubalheiros de toda a ordem, ninho de paixões, corredor da droga, cenário de mística, mundo dos balobeiros, conversas entre mortos e vivos; uma Bissau desmazelada, onde impera o caos, um povo surpreendentemente resignado com décadas de desgovernação; e uma arquitetura literária de primeiríssima água, os sonhos de Amílcar Cabral não se cumpriram mas os guineenses roubaram-nos muito bem a língua, este belíssimo romance é a prova provada de que a língua se renova, se universaliza na identidade que lhe é dada pelo escritor em nome da fala comum dos povos que são a matéria prima da sua escrita. É com muito orgulho que vejo alcandorado Amadu Dafé ao lado de Abdulai Sila, Mia Couto, Pepetela, Luandino Vieira, Ondjaki, João Paulo Borges Coelho, entre outros. Que nos surpreenda mais com outras gemas literárias, são os meus sinceros votos.

Um abraço do
Mário



Paraninfo para um escritor maior da literatura luso-guineense (1)

Mário Beja Santos

Já conhecia um livro belíssimo de Amadú Dafé, Ussu de Bissau, uma denúncia corajosa do desvio de crianças guineenses para o tráfico sexual e escravatura, só lamento que esta joia quase seja mantida no anonimato, possui uma tessitura muito própria, uma construção subtil que confirma que não há esmalte literário se a história não é bem contada e não a retivermos como valor no edifício dos nossos princípios.

A obra que acaba de dar à estampa coloca-o ao nível dos primeiros nomes da literatura da Guiné a alcandora-o a expoente entre as figuras principais da literatura lusófona. Ele pega numa frase do investigador António Duarte Silva para construir a radiografia da Guiné atual, centra-se em Bissau, A Cidade Que Tudo Devorou, Nimba Edições, 2022. A urdidura das peripécias que ele vai narrar investem no realismo mágico, há para ali uma língua portuguesa que é desossada, recebe injeções de crioulo, desce ao terreno da laterite, mete golpismo, assassinatos, delinquência, gente que conversa com fantasmas, paixões desmesuradas, desmonta-se o machismo, aquele maldito mercado da droga, ali se fala sem cessar das crianças misteriosamente desaparecidas do arquipélago dos Bijagós. São narrativas que se entrepõem, há falas para irmos até ao abismo das mentes e perceber o que move N’Sunha Sprança, Sonya, Lante Ndam Kdutar, Tabaco, Almirante, Kanserá Só, todos a contracenar num palco dramático, porque este primor literário não é só uma radiografia, é o espelho de uma tragédia, onde se fala permanentemente do caos em que vive uma nação mas onde os jovens ainda têm uma réstia de esperança.


É literatura da modernidade, as mulheres são mostradas fora da submissão, mas não se deixa de mostrar a moral vigente:
“Estava feliz. Não teria mais de suportar aquele ardente desejo de ser casada, aquela pressão social de ter de encontrar um homem bom, pressão esta que lhe fez espécie desde que se formou badjuda. Era ela e eram todas as outras mulheres da terra. Mesmo aquelas que tinham, pela alcunha, uma premonição menos favorável, ansiavam pelo aparecimento de um homem para casamento. A sorte da mulher é na porta do casamento, dizia-se. Um dos mais fortes sinais de machismo e misoginia enraizados nesta sociedade, é este castramento de sonhos e construção de dependências. As mulheres só podem sonhar com casamento; são frágeis e sensíveis e por isso precisam de alguém que cuidasse delas. Já os homens podem sonhar alto, almejar riquezas, lutar pelo poder e desposar mulheres, várias. Podem juntá-las na mesma casa, como peças de mobiliário, e podem consigná-las a casa um, casa dois, casa três, ou a vários lares a seu bel-prazer, sem lhes atribuir a propriedade da própria felicidade. Conseguem-no em nome da mentira e a custo de uma manipulação desenfreada. A troco das dependências e fragilidades a que elas se sujeitam.”
A conversa entre mãe e filho é palpitante, o pai morrera de forma tão dramática, vivia tão arredio da paixão da mãe que esta guardou no espírito a imagem de um homem que já não lhe pertencia.

E entra em cena N’sunha, e em simultâneo com a paixão de jovens fala-se do morto, Lante Ndam Kdutar, há pouco tempo houvera uma guerra civil em Bissau, vamos saber o que aconteceu: “Ficou claro, mais tarde, para os que se juntaram aos dois oponentes nesta barbarice, de que tinham arriscado a vida em vão. Mataram civis inocentes, pilharam armazéns e desgraçaram o país, deixando-o refém nas mãos dos políticos mal preparados, por causa de um cisme absurdo. Foi vendida a todos a ideia de uma divergência sobre a venda de armas aos insurretos do país vizinho, porém, por maior que seja a montanha, jamais envergará o Sol.” Lante apresentou-se no quartel de Mansoa, assistiu à crueldade de uma chacina dementada: “Quando as tropas da junta militar invadiram aquele quartel, não fizeram reféns nem presos de guerra. Os corpos mortos dos chamados aguentas, crianças e jovens guineenses que lutaram ao lado dos militares estrangeiros, vindos do Senegal e da Guiné-Conacri, para a junta governamental, foram largados nas ruas para os jagudis, os cães, gatos e corvos se alimentarem. A cidade tresandava a sangue podre e a almas desabrigadas.” É nesta altura que Lante vai conhecer uma rapariga de seu nome Sán’nan. Gozando de uma vida familiar às direitas, é nessa altura envolvido numa operação golpista, o móbil é o assassinato do presidente da República, por portas e travessas o presidente escapa e é levado para uma tabanca, cena hilariante, da mais refinada tragicomédia, os papagaios vão botando palavrões, o presidente disserta sobre a classe política, nunca diz explicitamente de que etnia fala, mas tece um comentário cheio de vitríolo: “Esta gente, por natureza, vive pelo poder. Embora durante a nossa luta de libertação se tenham mantido esquivos, porque eram os grandes aliados dos colonizadores, disfarçando-se sempre de comerciantes desinteressados, sempre tiveram o poder em mira. São uma espécie de camaleões venenosos e conseguem disfarçar com uma perícia do caralho… Até a sua religião, que é de uma particularidade diferente da das crenças nacionais, fá-los passar despercebidos.”

E, mais adiante: ”Depois da nossa independência e ao verem-se perseguidos pelo partido que os considerou traidores, por terem sido aliados dos colonizadores, enveredaram-se pela estratégia de espionagem, disseminação de intrigas e conspirações nas fileiras das nossas forças armadas e nas nossas estruturas políticas, em busca da recuperação dos privilégios perdidos ao longo das últimas décadas (…) Nunca aceitaram Cabral como um herói. Ainda hoje veneram os seus líderes que há séculos fizeram aquelas incursões de ocupação desta região e acabaram por transformar toda a zona num lugar de confusões, conspirações e instabilidades, a partir das quais dominaram os planaltos à volta dos rios, essenciais para a pastorícia e o comércio. A verdade, porém, é que foram sempre uma minoria nesta zona, mas com a estratégia de dividir para reinar, tomaram conta de tudo e de todos.” O presidente deposto acaba baleado.


Mudamos agora de campo de ação. Alguém, inominado, está a ordenar papéis, veio até à Guiné numa missão tão mística quanto divina, veio para impedir uma guerra civil iminente, leva uma existência entre o pretérito, o presente e o futuro, é assumidamente a filha de um fantasma e conta-nos onde começou este sonho messiânico, como chegou à Guiné-Bissau, vamos agora navegar entre feitiçaria, doenças do foro da saúde mental, há espaço para as almas do outro mundo e conversação com os mortos, esse alguém veio seguramente de Portugal. E parece que estamos a mudar de cenário, vamos conhecer o balobeiro de Bissilanka, voltamos a ouvir falar em Sán’nan e apresenta-se Sprança: “Cresci como Sprança, sem o é, porque o é, transfigurado de raiva, também da minha parte, expulsou esse alguém, afastando-o dali, fisicamente.” Sprança conheceu N’Sunha Badjuda junto ao pátio da escola de djembrem (barraca), ao lado da casa do General Anónimo, ela acaba por ter por ele embeiçamento, há sempre fantasmagoria, chegou a hora de mostrar a importância dos irans, cabe a N’Sunha a narrativa: “Dizia que ao crescerem juntos, os poilões, habitat natural dos irans, passam os dias a competir, cada um a querer ser o melhor, a tentar captar mais a atenção do resto da floresta e ver-se mais cortejado pelos animais. Entregam-se ao som do vento para verem quem dança melhor. Atiram-se de cabeça desgrenhada às trovoadas, à prova de oposição contra os raios piromaníacos e contra as tempestades devastadoras. Enquanto uns penetram o solo até ao manto, outros engrossam as suas raízes para a superfície. Se uns alargam os ramos para abraçar toda a floresta, outros aumentam o verdume das suas folhas para cromatizar todo o ambiente.”

Aqui se interrompe a recensão, segue no próximo número, adverte-se o leitor que estamos perante um caso muito sério do que melhor existe na literatura luso-guineense.

Leitura imperdível.

(continua)

Bissau, feira de Bandim em hora de ponta
Apreensão de cocaína na Guiné, imagem retirada do site VOA Português – Voz da América, com a devida vénia
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Nota do editor

Último post da série de 23 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25204: Notas de leitura (1669): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (13) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25194: Historiografia da presença portuguesa em África (410): Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (7) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Junho de 2023:

Queridos amigos,
O Tenente Costa Oliveira estava muito longe de ser um ilustre desconhecido na Guiné. Antes de ser nomeado comissário para a demarcação das fronteiras, o que ocorreu em 1888, acompanhara as obras do presídio de Bolor e, como se verá num texto posterior, trabalhou a cartografia da Guiné, dedicou mesmo um artigo sobre a matéria ao seu amigo Luciano Cordeiro. O que ele descreve em jeito de considerações finais e conclusão, e que dita o final do seu trabalho, que aqui se resumiu, tem muita matéria para reflexão, fica-nos mesmo a impressão de que se estava a candidatar a governador: pronuncia-se sobre os efetivos militares indispensáveis para manter os indígenas a respeito, propõe mesmo embarcações à prova de bala, é a favor da mudança da capital para Bissau, sugere concretamente nomes de locais a ocupar, antevê a prosperidade económica da colónia na cultura do amendoim. E nas conclusões emite mesmo um juízo drástico: a Guiné ou é rica ou não é, ou se aposta no seu florescimento ou ela continuará a ser um sorvedouro de dinheiros e um matadouro de funcionários - neste caso o melhor é ofertá-la à França, é potência próspera, está ali mesmo à volta, será perda indolor. Para que conste, também assim se pensava em 1888

Um abraço do
Mário



Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (7)

Mário Beja Santos

O Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, 8ª série, números 11 e 12, 1888-1889, acolhe um documento de grande valor histórico intitulado “Viagem à Guiné Portugueza”, o seu autor é E. J. da Costa Oliveira, Oficial da Armada Real, Comissário do Governo para a delimitação das possessões franco-portuguesas da costa ocidental de África. Fez-se a viagem de Bolama até ao Sul, o Tenente Costa Oliveira não esconde o seu deslumbramento com tanta beleza natural e vai perseguir com as suas ricas observações que permitem ao leitor de hoje perceber o que era a vida no Sul não só da Guiné portuguesa como da Guiné francesa. Depois de curta estadia em Bolama, seguiu para o Casamansa. No final do seu importantíssimo documento vai tecer considerações e elaborar uma conclusão que nos deve merecer a melhor atenção.

As suas observações decorrem do facto de ser um conhecedor da realidade guineense, anteriormente a esta missão da demarcação de fronteiras já estivera na Guiné. Agora as suas considerações são tanto de caráter político-militar como deixa explicitamente recados ao modelo de desenvolvimento do território que muda em Portugal a imagem da colónia. Em termos militares dirá coisas como esta:
“Geba, Farim e Cacheu são Praças de guerra só no nome, pois com as suas muralhas rotas, peças de ferro em deplorável estado e apeadas, guarnecidas por meia dúzia de soldados indisciplinados e mal-armados, estão completamente à mercê do gentio, admirando-nos até como o nosso prestígio, e não outra coisa, tem contido em respeito as tribos próximas.”

Reportando-se à natureza das embarcações indispensáveis para a navegabilidade dos rios, escreve:
“Permitam-me agora descrever rapidamente as lanchas que conviriam ao serviço da Guiné, devem satisfazer as seguintes condições: 1) Demandar desde 30 até 50 centímetros de águas; 2) Terem fundos chatos por causa dos encalhes; 3) Poderem conduzir até 50 praças com o respetivo armamento, etc.; 4) Terem velocidades superiores a 8 milhas por hora; 5) Terem duas máquinas independentes e separadas por uma divisória longitudinal, acionando duas rodas na popa; 6) Um aparelho de luz elétrica; 7) Costado de aço impenetrável às balas de qualquer espingarda, com tombadilho e castelo, e o intervalo entre estes protegidos também por chapas de aço; 8) Guarita couraçada para abrigo do comandante e homem do leme; 9) Armamento – metralhadores e peças de tiro rápido; 10) Finalmente, que possam queimar indiferentemente lenha ou carvão.”

Nas considerações gerais, dá prioridade à escolha da capital da província, é contrário à opinião que a capital esteja no rio Grande de Bolola, é a favor de Bissau, e explica porquê:
“Está situada no ponto mais central da província e na embocadura do rio Geba, de cujas margens e dos sertões por onde corre se deve esperar toda a prosperidade da colónia; tem um porto excelente e de fácil acesso para navios de grandes dimensões e tonelagens, com um ilhéu fronteiro, o ilhéu do Rei, de salubridade incontestável e cuja situação eminentemente favorável deve ser aproveitada para se construir ali o sanitarium, enfermaria militar, aquartelamentos, etc.; com outro ilhéu próximo, o de Bandim, onde se deve instalar o lazareto.” E propõe mesmo medidas para modificar as condições climatéricas de Bissau, desde arrasar o muro que cerca a vila até proibirem-se os correios e chiqueiros dentro dela, havendo de fazer o plano da nova cidade, ele não deixa de fazer sugestões sobre praças ajardinadas e como deve ser a residência do governador.

Há alguns aspetos curiosos das suas sugestões, por exemplo:
“Em Cacheu ou Buba fabricava-se tijolo e telha. Julgamos indispensável fazer renascer essa indústria para acudir às necessidades da província. Todos sabem que nos plainos da Guiné não há pedra; mas a Holanda também a não tem, e o tijolo é quem a substitui até nos passeios laterais de algumas ruas de cidades formosas e importantes. Também se nos afigura convenientíssimo montar em Cacheu uma serração de madeiras. Assim que a nova Bissau estiver nas condições de receber o chefe de província e de mais funcionários, a sede do governo será transferida de Bolama, ficando ali só a ala esquerda do batalhão, e delegações da Alfândega, Capitania dos Portos e Correio. Haverá que proceder a ocupações: ocupar S. Belchior e mandar pôr o forte em condições de poder resistir a qualquer ataque pelo gentio, depois tomar posse de Sambel-Nhantá e cuidar de Geba, bem como ocupar um bom número de povoações no Corubal".

Mas o Tenente da Armada Real não se fica por aqui. Tem opiniões próprias sobre as alfândegas, a Capitania dos Portos, as missões, as cadeias, os hospitais e enfermarias, o dispositivo militar. Não se compadece com a míngua do que existe na agricultura, indústria e comércio, é a favor de todo o apoio à cultura da mancarra, mas também da purgueira, cana do açúcar, tabaco e algodão. Recorda que no anexo do seu relatório vem o traçado completo da delimitação do território tal como foi definido pela convenção luso-francesa. Recorda a quem o lê que se impõe atuar em continuidade para que haja paz no território, e escreve:
“Para tranquilidade da Guiné, e para se poder desenvolver agrícola e comercialmente, deve o chefe da província obstar por todos os meios ao seu alcance, incluindo os da força, às guerras entre as tribos que povoam o território chamado português. Desde que se delimitaram as fronteiras da província, as suas condições políticas mudaram consideravelmente; por exemplo, outrora não convinha por forma alguma intrometermo-nos na política gentílica, atualmente é uma necessidade. Os Fulas ocupam há muito terrenos pertencentes aos Biafadas; o bom senso aconselha que se convide Mamadu Paté, atual chefe do Forreá, a abandoná-los, e como esta ocupação não se poderá fazer sem Mudi-Yaiá pugnar os seus imaginários direitos sobre aquele território, será conveniente ouvir a França que também deve desejar fazer iguais arranjos.” O tenente da Armada Real tem uma tese muito própria sobre a independência do Forreá, era a favor da independência do Forreá português e francês, havia também que delimitar os territórios dos Biafadas e Nalus, auxiliando aqueles que se mantivessem sossegados e fiéis à nossa bandeira, castigando os conflituosos, demitindo o prendendo os chefes, e nomeando outros à nossa escolha.

E chegamos assim às conclusões: "pretendemos demonstrar que a Guiné portuguesa, apesar de tudo quanto dela se diz, é uma colónia de futuro comercial brilhante, se cuidarmos da sua organização interna. O nosso país é pobre, bem sei e não pode nem deve arriscar capitais imprudentemente; todavia, deste dilema ninguém poderá sair – ou a Guiné é rica ou não é. Se é rica e pode ter ainda um futuro brilhante, dê-se-lhe o que for preciso para a fazer desenvolver, prosperar. Se não é rica e o défice cresce anualmente em progressão assustadora, e é um sorvedouro dos dinheiros da metrópole e um matadouro de funcionários, ceda-se à França".

Em suma, não se pode dizer que este documento escrito por quem foi não tem algo de profético e ressuma uma mentalidade muito própria do seu tempo, um olha imperial onde não falta o empirismo, o conhecimento científico e um inequívoco fervor, apostando no futuro da Guiné. Resta esclarecer o leitor que voltaremos a Costa Oliveira e a um outro importante documento, a cartografia da Guiné.
Carta da Guiné Portuguesa, século XIX, Arquivo Histórico-Ultramarino
Carta da província da Guiné, 1912
Carta da colónia da Guiné, 1933
Antiga Sede do Banco Nacional Ultramarino em Bolama, posterior Hotel do Turismo, hoje completamente desaparecidoAtual edifício do Centro de Formação Pesqueira de Bolama. Imagem retirada do blogue Alma do Viajante, com a devida vénia.

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Nota do editor

Último post da série de 14 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25172: Historiografia da presença portuguesa em África (409): Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (6) (Mário Beja Santos)

terça-feira, 23 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25102: Memórias cruzadas: o que o PAIGC sabia sobre Bissau, em 1969: (i) o "ataque" a Bissalanca em 19/2/1968; (ii) a carestia de bens essenciais como o arroz; (iii) a discriminação da população local no acesso aos cuidados de saúde; (iv) casos de violência verbal e física contra civis...


Vasco Cabral, membro do "bureau" político do PAIGC.
aqui em missão no exterior. Foto, s/d, s/l, cortesia do portal
Casa Comum >Arquivo Amilcar Cabral.
(Reeditada pelo Blogue Luís Graça
& Camaradas da Guiné, 2024)

1. É sempre interessante conhecer o que é que, numa guerra, os contendores sabem (e/ou pensam) uns sobre os outros... Mesmo quando a guerra acabou há muito, como foi o caso da guerra na Guiné (1961/74)... Daí esta série "Memórias cruzadas"...

As Forças Armadas Portugueses tinham as suas próprias fontes de informação: os serviços de informação militares p.d., a PIDE, a administração civil, os prisioneiros, os desertores, os gilas, etc. 

O PAIGC tinha também, embora mais elementares, os seus próprios serviços de recolha e tratamento de informação, quer de natureza política quer militar, a começar pelos seus próprios combatentes, e outros, incluindo os gilas (que atravessavam as fronteiras e faziam jogo duplo), os seus simpatizantes e militantes civis em Bissau e no mato, etc.  

Muitas das informações que o seu quartel-general recebia era grosseiras, pouco ou nada válidas em fiáveis,  porque a "ideologia" aldrava a "realidade": na ânsia de mostrar resultados no campo de batalha, comandantes e comissários políticos das FAPLA acrescentavam sempre muitos pontos aos seus contos... Mas, se calhar, era isso que os "Cabrais" (o Amílcar, o Luís, o Vasco, o Fidelis...) gostavam de ouvir...lá no bem-bom de Conacri. 

O documento que abaixo se reproduz,  é um exemplo das informações em bruto, que chegavam a Conacri, onde o PAIGC tinha o seu "quartel-general" e a sua "inteligentsia"...

Vasco Cabral (Farim, 1926 - Bissau, 2005) foi um dos mais qualificados quadros dirigentes do "Partido". (Não tinha qualquer relação de parentesco com o líder histórico do PAIGC, embora também fosse de origem cabo-verdiana ). Estudou em Portugal (licenciou-se em Ciências Económico-Finaneiras, pelo ISCEF/UTL),  apoiou a candidatura de Norton de Matos à Presidência da República em 1949, enquanto membro do MUD Juvenil, lutou contra o Estado Novo-

Não há muita informação (independente) sobre a sua biografia: foi preso político em Portugal, entre 1953/1954 e 1959, até que, já na clandestinidade, conseguiu fugir, em 1962, de barco até Tânger (cidade já itegrada, desde 1956, na soberania marroquina), juntamente com Agostinho Neto, com a ajuda (dizem)  do PCP - Partido Comunista Português. 

A partir daqui a sua história mistura-se com a de outros dirigentes (políticos) do PAIGC. Escapou à morte no atentado que tirou a vida a Amílcar Cabral.  Pertenceu ao "bureau" político e exerceu funções governativas depois da independência. Não se opôs ao "golpe de Estado" do 'Nino' Vieira, de 14 de novembro de 1980. Foi também escritor e poeta. E tem, juntamente, com Amílcar Cabral a melhor caligrafia de todos os dirigentes do PAIGC, a avaliar por esta amostra manuscrita que aqui hoje publicamos.

Não sabemos exatamente  onde decorreu esta "audição de camaradas fugidos de Bubaque" (sic), transcrita por Vasco Cabral em 5/12/1969 (*). Tudo indica que tenha sido em Conacri. Os três "camaradas", provavelmente de etnia bijagó (tal  como o Inocêncio Kani, o carrasco do Amílcar Cabral), eram o Marcelino Banca, o Marcos da Silva e o José Albino Sonda.  (Não parecem ter deixado "peugadas" na história do PAIGC...).

Vasco Cabral destaca o M.S. (Marcos da Silva) como informante priveligiado, que mostra conhecer razoavelmente Bissau (cidade que, ao tempo,  o Vasco Cabral já não devia cohecer de todo):

(i) fala, embora de maneira fantasiosa e propagandística, sobre a flagelação a Bissalanca, em 19 de fevereiro de 1968, quando um pequeno grupo, comandado por André Pedro Gomes e Joaquim N’Com,  fez uma incursão noturna na área de Bissau, atacando a BA 12 com tiros de morteiro e armas ligeiras; esta ação, embora audaciosa mas de alcance limitado, foi habilmente explorada por Amílcar Cabral para mostrar, sobretudo no exterior, a sua  capacidade para desferir ataques nos prósprios santuários do inimigo, neste caso a capital;

(ii) indica a localização dos principais quartéis em Bissau, Bissalanca e Brá, coisa que não era nenhum segredo militar, sendo conhecida de toda a gente; referência a um alegado "paiol da pólvora", a 800 metros abaixo do QG (Santa Luzia), de que nunca ouvimos falar;

(iii) refere o problema dos preços e do alegado racionamento de alguns bens essenciais como o arroz e o açúcar: já no meu tempo, em meados de 1969, em Bambadinca, o preço do arroz (comprado pela população) andava  à volta dos 6$00; o pré dos nossos soldados guineenses (600$00 + a diária para a alimentação, sendo desarranchados, 24$50) dava para eles compraram 2 sacos de 100 quilos de arroz (com que se podia alimentar uma família extensa e numerosa);

(iv) enfim, denuncia alguns casos (que naturalmente terão existido, pontuais)  de violência física e verbal contra a população civil de Bissau, já no tempo de Spínola...

Vamos lá a ver se há leitores que queiram cruzar,  com estas, as suas memórias de Bissau daquele tempo (1968/69).



ORGANIZAÇÃO, FORMAÇÃO POLÍTICA E IDEOLÓGICA
5-12-69

Audição de camaradas fugidos de Bubaque [folhas nºs, 13-16 ] 

(A láspis, no alto da folha nº 1, está escrito: "Informações recolhidas pelo camarada Vasco Cabral")

M.S.  [Marcos da Silva ]  - Depois do ataque do Partido a Bissau,  
[em fevereiro do ano passado,
muitos africnos em Bissau ficaram contentes com isso. Os colonialis-
tas reagiram violentamente no dia seguinte atacando algumas taban-
cas mais próximas do campo de aviação como as tabancas de Bis-
salanca e de Plaque. Fizeram-lhes de madrugada uma emboscada, 
tendo matado algumas pessoas, ferido outras, e prendido toda a popu-
lação restante. Mais tarde,vieram a soltar alguns presos, mas outros fi-
caram presos até lá até agora.

A partir desse ataque os tugas tomaram outras medidas: reforçaram
a vigilância; agora, a partir das 6h da tarde, dirigem-se para o cam-  



po de aviação 4 ou 5 camiões grandes Unimog 
[no original, Hanomag], 
 [cheios de soldados
e vigiam o campo até de manhã. De vez em quando efectuam bombar-
deamentos pelas redondezas. Minaram as imediações do campo. Puseram 
à volta do campo 2 filas de arame farpado que deve ser electrifica-
do, pois puseram avisos em que se diz: "Perigo de alta tensão!" - avis-
ando o povo para se manter afastado.

Com o ataque que se fez, ficaram destruídos aviões, hangares 
 [angares, no original]  uma parte 
importante da Central Elétrica, o que ocasionou falta de luz durante
1 dia.

A população de Bissau não se deixa influenciar pela popaganda do 
tuga de uma Guiné Melhor. Dizem que o Spínola segue uma política por


causa da guerra, mas sabem que a guerra não vai acabar,

Há em Bissau milhares de soldados. À  [há, no original] volta de Bissau  há
7 quartéis: o Quartel-General que está em Santa Luzia; há
uns 800 metros mais abaixo o Paiol de pólvora;  há o quartel
da Amura; o Batalhão de Serviço de Material perto da Amura;  em
Brá há o Quartel de Engenharia; há também em Brá mais 
dois quartéis: o de Comandos e um outro de Adidos. Há ainda
o Quartel dos Fuzileiros, ligado à ponte de Pidgiguiti.

Perto do campo de aviação há ainda 2 quartéis: o dos Páras e outro
da Força Aérea. Estes 2 quartéis estão dentro da cercadura de arame
farpado.

= Há bichas em Bissau para a compra de arroz e de carne. Isto acontece du-


rante todo o ano. O preço do arroz varia com frequência. O ano passado vendia-
-se a 5$60 / kg., agora custa 6$90/kg. Há grande falta de açúcar.

Estabelecem às vezes para a venda do arroz um contingente máximo de venda   
[avulsa
de 1 kg. Também para o açúcar estabelecem 250 gramas, por pessoa.  Mas  
[açúcar
falta âs vezes durante 15 dias ou mais.


Há dificuldades sanitárias grandes: em 1º lugar , às consultas; fazem-
se bichas para as consultas e há muita gente que não é atendida, às vezes
durante 1 mês; em 2º lugar quanto a medicamentos que faltam em grande
quantidade. Afirmam que os medicamenmtos são só para os militares.

Não há bichas para os europeus civis, é só para os africanos.

Também qanto às outras bichas, são só para os africanos, uma única


excepção do Serviço dos Correios, onde os europeus também entram nas bichas.

= Coisas que os soldados tugas dizem dos africanos abertamemte nas
ruas: "Barrote queimado", "saco de carvão", "nharro", "negro",
nas suas relações com os africanos.

De vez em quando os fuzileiros liquidam africanos. No Alto Crim
este ano mataram 4 mulheres, uma rapaz em Santa Luzia, 3 pessoas
(2 rapazes e 1 rapariga) na Avenida Gago Coutinho. Para isso fazem
provocações.

Este ano a 2 de Novembro houve um incidente no Alto Crim entre 
um fuzileiro e um rapaz africano. Este agrediu o fuzileiro. Então.
ele queixou-se no quartel dizendo que um terrorista o agredira. Mais



tarde mandaram do quartel um pelotão de soldados que incendiou
casas, bateram em várias pessoas e feriram outras.

Ha frequentemente incidentes entre a população e a tropa colonialista.
Há habitualmenmte cenas com as raparigas africanas que passam nas
ruas. Os soldados tentam beijá-las, como elas reagem, às vezes, batem-
-lhes. Quando os africanos se dirigem à Polícia, para se queixarem
de certos abusos dos europeus, a Polícia não liga, não toma nenhumas medidas.

= É proibido ouvir-se a nossa Rádio em Bissau. Mas há muita gente
que ouve. Um tio do camarada Conrado foi preso por estar a ouvir
a nossa Rádio, em Julho deste ano. Ainda está preso por isso.


Foram ouvidos os seguintes camaradas:
- Marcelino Banca
- Marcos da Silva
- José Albino Sonda

(Seleção, transcrição, fixação / revisão de texto, itálicos e negritos: LG. Observ: Mantivemos a ortografia usada por Vasco Cabral)
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Citação:
(1969), "Informações sobre o Arquipélago dos Bijagós. Organização, formação política e ideológica dos Bijagós", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_41391 (2024-1-16) (Com a devida vénia...)

Fonte: Casa Comum | Instituição: Fundação Mário Soares
Pasta: 07073.128.006 | 
Título: Informações sobre o Arquipélago dos Bijagós. Organização, formação política e ideológica dos Bijagós. | Assunto: Informações de carácter militar, extraídas da audição com os "camaradas" vindos dos Bijagós, sobre Soga, Bubaque, Formosa, Uno, Caravela, Orango, Orangozinho, Canhabaque, Galinhas e Uracane. Organização e formação política e ideológica dos Bijagós, manuscritos por Vasco Cabral. | Data: Terça, 2 de Dezembro de 1969 | Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Relatórios 1965-1969. | Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral | Tipo Documental: Documentos.
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Nota do editor:

(*)Vd. último poste da série > 16 de janeiro de 2024 > Guiné 61/74 - P25076: Memórias cruzadas: o que o PAIGC sabia sobre Bubaque, em 1969... "O antigo governador Schulz ia lá de vez em quando, com outros militares e algumas mulheres. O atual governador nunca lá esteve morado. Foi só visitar."...

sábado, 13 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25064: Por onde andam os nossos fotógrafos? (17): António Murta, ex-alf mil inf MA, 2ª C/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74) - Parte II: chegada no T/T Uíge, as primeiras impressões, Spínola em Bolama, início da IAO...


Foto nº 5

Guiné > Arquipélago dos Bijagós > Ilha de Bolama > Bolama > 27 de março de 1973, desfile perante o gen Spínola



Foto nº 6

T/T Uíge > 20 de Março de 1973 > Jantar de despedida. "Eu sou o rapaz da esquerda, aí no pequeno corte (...). À minha esquerda  está o Alf Torres da 1.ª CCaç (Buba), e à direita,  com a cara sobreexposta, o Alf Mota da 3.ª CCaç (Aldeia  Formosa). Do outro lado da mesa, dois Alferes do QP (presumivelmente,  SGE). 


Foto nº 7 

T/T Uíge > 20 de Março de 1973 > Jantar de despedida. "Eu sou o rapaz da esquerda, aí no pequeno corte (...). À minha esquerda  está o Alf Torres da 1.ª CCaç (Buba), e à direita,  com a cara sobreexposta, o Alf Mota da 3.ª CCaç. (A. Formosa). Do outro lado da mesa, dois Alferes do QP (sfuramente SGE) 
 


Foto nº 8 

Guiné > Arquipélago dos Bijagós > Ilha de Bolama > Bolama >  CIM > Abril de 1973 – Capitão B. C. (cmdt da 1.ª C/BCAÇ 4513) observa uma granada de RPG 7 (ou 2 ? ). A seu lado, um dos elementos do Grupo de Combate do Marcelino da Mata, "Os Vingadores".


Fotos (e legendas): © António Murta (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


1.  Nesta série, "Por onde andam os nossos fotógrafos?",  começámos agora a revisitar, selecionar,  recuperar e reeditar  algumas das melhores fotos do António Murta (de seu nome completo António Manuel Murta Cavaleiro), ex-alf mil indf MA, 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74) (*). 

Vive na na Figueira da Foz. É autor da notavel série "Cadermos de Memórias do António Murta", de que nos socorremos para enquadrar, melhorar e complementar as legendas. (**)

  
Fotos nºs 6 e 7 > BCAÇ 4513, a caminho do CTIG, a bordo do T/T Uìge


(...) 20 de Março de 1973 (terça-feira) – N/M "Uige", jantar de despedida

Estava quase no fim a viagem e isso era marcado por um jantar de despedida. Não muito diferente dos outros jantares, teve, todavia, algo indefinível que o tornou mais solene. (...) A ementa, impressa a bordo, dizia assim:

"O Capitão de Bandeira, Comandante, Oficiais e restante tripulação do navio apresentam as suas despedidas aos Exmos. Oficiais, assim como a todos os componentes do Contingente Militar desejando muita saúde e as maiores felicidades. Paquete “Uíge”, 20 de Março de 1973"

Seguiam-se as páginas com a lista completa dos oficiais (e sargentos?) a bordo. (Não sei o que me passou pela cabeça para, muitos anos mais tarde, ter digitalizado a capa da ementa e pequenos fragmentos daquela lista e ter destruído todo o resto.) (...)


22 de Março de 1973 (quinta-feira) – Chegada a Bissau

 
(...) Desloquei-me para o outro lado do navio, olho em frente, e lá estava Bissau, ainda distante mas já ali. Eram 9h50 locais, 11h50 de Lisboa. Reparei, ainda, que o resto dos passageiros já devia estar ali na amurada desde manhã cedo a observar. Alguns faziam comentários mas, se calhar a maioria, conjecturava em silêncio. Os rostos, curiosos, eram de ânsia e apreensão.

A cidade de Bissau vista dali do navio parecia muito rasa de edifícios, e subia ligeiramente a partir do cais. Tudo o mais, quer olhássemos à esquerda ou à direita, parecia uma fita verde quase ao nível das águas, para trás da qual nada mais se via. O navio continuou fundeado ao largo entre a Ilha do Rei e a cidade. 

Todo o dia foi passado a bordo e era suposto aí permanecermos até ao transbordo para as lanchas da Marinha que nos levariam a Bolama, nosso primeiro destino. Mas à noite, já atracados à ponte-cais que liga ao porto propriamente dito, convencemos o comandante do Uíge, com a intervenção influente do cap B. C. – que conhecia Bissau visto ter feito na Guiné o estágio do seu curso de capitão, antes de regressar à Metrópole para se integrar no nosso Batalhão – convencemos o comandante, dizia, a deixar-nos sair para uma pequena exploração e, se possível, beber uns copos.

Eram precisamente 23h55 quando, pela primeira vez, pisei terra africana. Sem prazer nem desprazer, embora com alguma curiosidade. (...)


23 de março de 1972 (sexta feira) - Partida para Bolama

(...) Deitei-me à 1h30 da madrugada (última noite no navio), para me levantar às 3 horas e preparar a saída para Bolama, com os soldados de duas Companhias, a bordo de uma LDG da Marinha. Pelo menos outra se lhe seguiria com o resto das tropas. Saímos de Bissau às 5 horas da madrugada e chegámos a Bolama às 10 horas. Era uma sexta-feira, 23 de Março de 1973. (...)

(...) O que recordo foi a recepção que nos fizeram dezenas de crianças e algumas mulheres, habituadas que estavam a que à sua terra estivessem sempre a chegar novos contingentes, à medida que outros saíam. E zumbiam à volta dos tropas a oferecer os préstimos das lavadeiras que, sabiam, poucos iriam dispensar. Pediam também dinheiro (patacão) de mão estendida. Eram uns safados e umas safadas, muito batidos naqueles contactos, mas muito bonitos e gentis. Foi o primeiro contacto com o calor humano local, a suavizar angústias, medos indefinidos e dúvidas sobre o futuro.

Faltava instalarmo-nos e fazer o reconhecimento da cidade. Um espanto! Como fora possível que uma cidade daquelas, tão pequena e desprezada, tenha sido a capital da Guiné? Só estou a ver uma explicação: em toda a Guiné não havia outra com melhores condições e infra-estruturas para ser a capital da colónia. Até ao desenvolvimento de Bissau. (Ou seria por estar a bom recato das beligerâncias do interior da colónia? Ou para evitar novas ocupações estrangeiras? Em termos de história, isso foi anteontem, em quinhentos anos de presença portuguesa...). Ainda assim, uma avenida – não asfaltada – leva-nos, subindo, a um grande jardim público abandonado, no topo do qual se apresenta o imponente edifício que fora a Administração da colónia. Lateralmente e não muito distante havia o Hotel Turismo, pequeno mas com alguma nobreza, que fora a filial do Banco Nacional Ultramarino inaugurado em 1903 e que, agora, era a Messe de Oficiais.

Para além dos quartéis, havia as escolas, a igreja, a tipografia, o Clube dos Bombeiros com os seus matraquilhos, ping-pong e bar, onde íamos à civil beber uns copos e observar as senhoras brancas, mulheres dos outros oficiais. Junto ao cais, na baixa, havia uma piscina que só utilizei uma vez por receio daquelas águas. Melhor que tudo era o restaurante de portugueses onde, quando era possível, tirávamos a barriga e a alma de misérias.

Esta pequena urbe empoeirada e quente não é nada do que tinha imaginado mas, nas horas amenas dos fins de tarde, dava-me imenso prazer deambular pelas suas ruas quase desertas, apreciando as suas casas coloniais, muito abandonadas, com as sua varandas típicas, e ir descendo até ao cais onde me sentava sozinho a assistir ao pôr-do-sol, imaginando as praias da minha Figueira da Foz. Depois, lembrava-me que estava sentado ao contrário, virado para o canal de Bolama e para o continente, e que à minha esquerda tinha o norte e não o sul, e levantava-me irritado e virava costas. Para mais, dali de frente, de S. João, é que têm partido os mísseis do PAIGC nos ataques à cidade, segundo nos dizem, para susto dos periquitos. Mas, quando podia, voltava lá.

Nesses entardeceres cálidos e perfumados mas cheios de luz, era um espectáculo apreciar os bandos de morcegos, aos milhares, num esvoaçar barulhento e nervoso. Tudo era novidade. E os abutres (jagudis) com o seu ar decrépito nos ramos secos das árvores? Quando escurecia continuavam a ver-se as suas silhuetas, atentas e diligentes, para bem da salubridade da cidade. (...)


Foto nº 5 > Desfile do BCAÇ 4513 perante o gen Spínola


27 de Março de 1973 – (terça-feira)[ou dia 28?] – Chegada do General Spínola
 

Há muito que todo o Batalhão se encontrava em formatura frente ao edifício da Administração, no topo do grande jardim central de Bolama, aguardando a chegada do General. 

(...) Como me tinham prevenido os “velhinhos” de Bolama, com ar de gozo, o discurso que o General faria às tropas, começaria assim: «Conheço-vos a todos! É como se tivesse vindo convosco no barco. Etc., etc.» 

E o General disse-nos do alto da escadaria: «Conheço-vos a todos! É como se tivesse vindo convosco no barco. Também eu sou um soldado como vocês! Etc. etc.».  (...)


21 de abril de 1973 (sábado) – Primeiras mortes

(...) Soube hoje – fim da 2.ª semana de campo – que um alferes que viajou comigo no Uíge, mas que não recordo, e que estava a fazer a IAO no interior da província e não em Bolama, morreu acidentalmente com uma rajada na cabeça. Era de noite e levantou-se para ir urinar. Ao regressar, uma das sentinelas, seu soldado, não o reconheceu. É a versão que corre. 

Ontem, aqui no porto de Bolama, estava também num caixão, dentro de um barco da Marinha, o corpo de um rapaz que morreu nas mesmas circunstâncias. É o medo e a inexperiência a fazerem das suas.

Aqui em Bolama continuamos a estranhar a ausência de um ataque com mísseis do PAIGC a partir de S. João, ali no continente, mesmo em frente a esta parte da ilha. Todos os Batalhões que nos antecederam foram atacados, quase sempre logo após a chegada, com objectivos evidentes. (...)


(Continua)

(Seleção, revisão/fixação de texto, negritos, edição de fotos: LG)

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Notas do editor LG:


(**) Vd. os primeiros postes da série:

16 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14373: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (1): Embarque para a Guiné, 16 de Março de 1973

terça-feira, 26 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P25005: Excertos dos melhores escritos de António Eduardo Ferreira (1950-2023), ex-1º cabo cond auto, CART 3493 / BART 3873 (Mansambo, Cobumba e Bissau, 1972/74) - IX (e última) Parte: De Cobumba para o COMBIS; em Bissau, em novembro de 1971, e fim da comnissão em abfril de 1974


Guiné > Bissau > Café Bento > c. setembro de 1972 >  
Foto tirada na esplanada do café Bento, local de encontro não só para quem prestava serviço na cidade, mas também para muitos que pelas mais variadas razões passavam por Bissau

Era cerca de meia noite quando a foto foi tirada, estávamos todos muito animados… Os três que estão trajados à civil não eram da minha aldeia, Moleanos, com o posto de primeiro sargento enfermeiro prestavam serviço no hospital militar de Bissau. O que está com o copo na mão era nosso vizinho, de Alcobaça, o primeiro sargento Canha.

Dos que estávamos com farda militar, o do centro era eu, Jerónimo, a primeira vez que vim de férias, o  outro, a seguir ao Canha,  era o Inácio (António Ferreira da Silva Inácio, pertencia à polícia militar, o único da nossa aldeia que passou todo o tempo de comissão em Bissau); e o último da direita era o Faustino (José Fernando Pimenta Faustino, de seu nome completo, assentou praça em em agosto, era soldado condutor auto, embarcou, em rendição individual, para a Guiné em 12 de março de 1971, no navio Uíge; esteve seis meses em Teixeira Pinto, CAOP 1, o resto da comissão foi passado em Bissau; veio uma vez de férias à metrópole; regressou por via aérea a de fevereiro de 1973).



Guiné > Bissau > Combis > Aqui estava encostado a uma papaeira, no local onde passei os últimos meses de comissão, COMBIS, faltavam poucos dias para regressar à metrópole, mas a incerteza quanto ao regresso era total, o tempo “normal” de comissão há já muito que terminara. Só no dia, e com o avião no ar, nos convencemos que era mesmo verdade, estávamos a deixar a guerra e a regressar a casa, eram cerca de dez horas locais quando embarcamos no aeroporto de Bissalanca.

Antes, tinha aproveitado para gastar o resto dos pesos que tinham sobrado, eram poucos, depois foi o tão desejado embarque. Durante cerca de vinte minutos o avião esteve sujeito a uma turbulência nada agradável, mas pensar que aquela era a viagem que muitos de nós chegamos a pensar que poderíamos não chegar a fazer…

Depois desses minutos agitados, a que fomos sujeitos, o resto da viagem decorreu normalmente. Na tarde desse dia 2 de abril de 1974, o avião aterrava no aeroporto da Portela com saída pelo Figo Maduro e, dali para o RAL1 (creio que se chamava assim) onde fizemos o resto do espólio, depois foi o regresso à vida civil.


Guiné > Região de Tombali > Cobumba > CART 3493  > 1973 >  Eu com a minha companheira de vinte seis meses e mais uns dias junto ao local onde todas as noites que estivemos em Cobumba fiz reforço. Durante a noite disparavávamos muitos tiros mesmo sem inimigo à vista. Certa noite um desses tiros cortou um fio condutor de energia que suportava a fraca iluminação junto ao arame. O  eletricista Vieira é que ficou muito aborrecido teve de interromper o sono para reparar a avaria, eu não fiquei menos… Chego a pensar se ainda lá estivesse hoje a disparar tiros provavelmente não voltava a conseguir cortar o fio.

Fotos (e legendas): © António Eduardo Ferreira (2013). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Série com pequenos excertos dos melhores postes do António Eduardo Jerónimo Ferreira,  (Évora de Alcobaça, Alcobaça, 15 de maio de 1950- Moleanos, Alcobaça,  19 de outubro de 2023) (ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493 / BART 3873, Mansambo, Cobumba e Bissau, 1972/74) (*).

O nosso camarada na tropa e na guerra era mais conhecido por Jerónimo. Lutou quase 20 anos, desde 2004, contra um cancro. Criou em 2012 o blogue Molianos, viajando no tempo que manteve até 2017.



IX ( e última)  parte - Novembro de 1973: de Cobumba para o COMBIS, em Bissau; abril de 1974: fim da comissão


Chegou o dia do regresso a Bissau. Nessa manhã a única viatura que tínhamos operacional avariou, todas as coisas que tínhamos connosco para levar para a LDG que nos foi buscar, tiveram de ser transportadas às costas. 

Mas por essa altura eu estava fisicamente bastante fragilizado, tive que pagar a um homem da população para me levar o caixote com os meus pertences, tendo eu levado apenas a G3, as cartucheiras, e um pequeno malote onde transportava dois ou três quilos de peso, mesmo assim, ao fim de escassas centenas de metros até chegar ao barco, já não conseguia caminhar mais. 

Há pouco tempo tinha passado por lá o médico, que creio estava sediado em Bedanda (CCAÇ 6),  a quem eu me queixei, tive como resposta:

- De facto, estás doente, mas não te posso mandar para Bissau.

Deixámos Cobumba descendo o rio Cumbijã, alguns quilómetros mais abaixo estava outra companhia à espera para seguir connosco para a cidade, vindo de Cafal Balanta. Dessa companhia fazia parte um vizinho meu, o Victor Santos, da Lagoa do Cão. Se um vizinho deixava aquela zona, um outro que o tinha ido render ficava bastante triste e só:  era o José Balbino... Sabendo que eu vinha a caminho de Bissau,  quis vir ver-me, não foi fácil para ele, como não seria para qualquer um, despedir-se de um vizinho com a comissão quase terminada… e ele ainda no inicio e numa zona tão má como era aquela.

Normalmente as companhias quando vinham do mato para a cidade era para regressar à Metrópole, ou para fazerem trabalhos de menor risco. Sabíamos ir estar mais alguns meses na cidade, o que não sabíamos era que a nossa companhia ia passar a ser cem por cento operacional, só os criptos exerciam a sua especialidade, todos os outros faziam os mesmos serviços. 

Para além do serviço de segurança à cidade (missão atribuída ao COMBIS),  que constava de percursos a pé durante a noite na periferia, em grupos de três ou quatro homens, serviços ao paiol, ao Palácio do Governador, no cais quando chegava algum barco da Metrópole, e também serviço junto ao arame farpado, que em alguns sítios circundava a cidade.

Como se tal não chegasse com vinte e seis meses de tropa, fizemos uma coluna a Farim, viagem de alto risco. Por essa altura a minha saúde não era a melhor, pela primeira vez tinha tido paludismo, e dois dias antes de se realizar a coluna fui ao médico tentando que ele me dispensasse de serviços pesados.Tive sorte, fui dispensado de ir a Farim, apenas eu e outro camarada que estava também de baixa não fomos.

No tempo em que estivemos em Bissau, o quartel ficava a poucos quilómetros do centro da cidade, na COMBIS,  em Brá, nós de vez em quando íamos até lá. Na cidade havia muito movimento apesar de mesmo por lá as coisas começarem a não ser totalmente seguras. 

Por essa altura, rebentou um engenho explosivo no café Ronda, sempre muito frequentado por militares. Também dentro do QG houve uma explosão, e no Pilão certa noite houve tiroteio durante bastante tempo, estando a nossa companhia pronta para sair. A tropa esteve mais de uma hora em cima das viaturas à espera de ordem para avançar, era cerca da meia noite os tiros pararam pelo que o estado de prontidão foi suspenso. Nesse dia eu estava de cabo dia, razão pela qual se a companhia tivesse saído eu teria ficado no quartel.

Um dos locais com paragem obrigatória para quase todos que vagueavam pela cidade, era o café Bento, ou a 5ª Rep,  como toda a gente lhe chamava. Assim que nos sentávamos, ainda antes do empregado de mesa, chegavam os engraxadores que se preparavam e insistiam para nos engraxar as botas a troco de dois pesos e meio, ou três. 

Naquela tarde sentei-me na esplanada e logo apareceu um dos muitos engraxadores, o Marreco. Disse-lhe que só lhe dava dois pesos e meio, ele começou a engraxar as botas, quando acabou a primeira disse-me:

- Olha que são três pesos!

E eu disse-lhe que não, e ele levantou-se e foi embora, deixando-me com uma bota engraxada e outra não, mas o mais caricato é que as minhas botas uma era mais velha que a outra e eu coloquei primeiro a nova a jeito de ser engraxada, e assim a mais velha mais mal ficou a parecer ao pé da engraxada. Anda prometi os dois pesos e meio aos outros engraxadores que estavam por ali, para me engraxarem a outra, mas solidários com o Marreco nenhum quis. Não me restou outra alternativa a não ser sair pela porta oposta à esplanada e voltar a sujar a bota engraxada, com terra para não parecer tão mal.

Os serviços continuavam na cidade, o tempo normal de comissão já há meses que tinha passado, e nós sem saber quando seria o nosso regresso à Metrópole. Poucos dias antes de virmos embora tivemos uma baixa, o furriel Trindade, o homem que tantas minas tinha levantado, ao ser atropelado pela viatura que lhe ia levar o almoço, quando se encontrava em serviço com alguns homens num dos postos de guarda junto ao arame farpado que existia em alguns sítios em redor da cidade.

Faltavam três dias para o nosso regresso, fomos informados que teríamos de fazer mais uma coluna a Farim pelo que à tarde fomos levantar as viaturas que íamos levar na madrugada seguinte. Estávamos completamente arrasados, a dois dias de terminar o nosso tempo de Guiné, irmos fazer uma coluna a Farim, para essa também eu já tinha levantado viatura, mas a poucas horas do inicio da viagem alguém teve o bom senso, e decidiu que não seriamos nós a ir na coluna.

Faltavam dois dias mas não tínhamos a certeza que seria assim, só quando nos encontrámos dentro do Boeing e já no ar acreditamos que era desta que a nosso regresso ia acontecer. Embarcamos perto do meio dia em Bissau no dia  2 de abril de 1974 e chegámos ao fim da tarde a Lisboa.

Passados trinta e oito anos da minha chegada à Guiné,  dando uma volta pela memória encontrei os factos aqui relatados, certamente muitos não terei conseguido lembrar-me, mas fiquei satisfeito com aqueles que consegui lembrar em apenas três semanas.

Se alguém chegar a ler este relato de vida que foi a minha, durante o tempo de tropa que passei em África, e que foi também o de muitos jovens do meu tempo, em particular aos que passaram pela Guiné, verá que as coisas agora não são tão más como parece! 

(Seleção / revisão e fixação de texto / negritos: LG)

segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P24969: Capas da Gazeta das Colónias (1924-1926) (5): Angola, Companhia do Amboim: a roça "Ajuda e Amparo"... E propaganda da Guiné, por Armando Cortesão: "Ainda há 10 anos Bissau era um pequeno povoado, cercado por uma muralha e ai do europeu que dela se atrevesse a afastar-se umas centenas de metros"...

 

Angola - Um trecho da roça "Ajuda e Amparo",  da Companhia do Amboim 

Fonte: Gazeta das Colónias: quinzenário de propaganda e defesa das colónias, Ano I, nº 25, Lisboa, 19 de setembro de 1925 (Cortesia da Hemeroteca Digital de Lisboa...)


Amboim fica na província do Cuanza Sul, uma região cafeeira por excelência, "Em 1922 eram já dignas de relevo as plantações da Companhia de Amboim, Marques Seixas & Companhia, Companhia do Cuanza Sul, além da Horta & Companhia. Também, tendo chegado a Angola em 1893, constituiu Bernardino Correia, em 1922, a Companhia Agrícola de Angola (C.A.D.A.), que foi o maior conjunto cafeeiro do território."


Gazeta das Colónias: quinzenário de propaganda e defesa das colónias, Ano I, nº 25, Lisboa, 19 de setembro de 1925. Diretor: Leite de Magalhães; editor: Joaquim Araújo; propriedade da Empresa de Publicidade Colonial, Lda. (O diretor, António Leite de Magalhães, era major do exército, e será governador da Guiné, no período de 1917 a 1931, tendo sucedido ao coronel Velez Caroço (1921.1926),


1. Nos 38 números da "Gazeta das Colónias", publicados (entre 19/6/1924 e 25/11/1926) e disponíveis em formato html e pdf na Hemeroteca Digital de Lisboa, não encontrámos nenhum cuja capa exibisse um motivo guineense (monumento, topónimo, paisagem, etnia...).   As estrelas do império eram, sem dúvida, Angola, seguida de Moçambique, duas colónias que despertavam a cobiça dos nossos rivais. ;Mesmo depois da I Grande Guerra, e da criação da Sociedade das Nações, a soberania portuguesa sobre estes territórios estava longe de estar acautelada. 

Muito esporadicamente surge, na "Gazeta das Colónias", uma pequeno artigo sobre a colónia da Guiné, como é o caso deste que reproduzimos a seguir, na íntegra. Trata-se de um resumo de uma conferência realizada na Sociedade das Ciências Agronómicas, em Lisboa, pelo engº agrónomo Armando Cortesão, já nosso  conhecido, o primeiro Agente Geral das Colónias, e diretor do respetivo boletim, entre 1925 e 1932.

O conferencista, conhecedor do terreno, e grande patriota, enaltece as potencialidades agrícolas, pecuárias e silvícolas do território. E passa uma mensagem de tranquilidade para o seu auditório: 

"Ainda há 10 anos Bissau era um pequeno povoado, cercado por uma muralha e ai do europeu que dela se atrevesse a afastar-se umas centenas de metros"... 

Não é surpreendente  a sua observação: 

"Embora perdêssemos quase toda a costa ocidental de África,que descobrimos até ao Equador, sempre ficámos com o melhor que ela tinha, ou seja, a atual Guiné Portuguesa!" (...).

E não poupa "a falta de coragem e a inabilidade de alguns diplomatas nossos" que permitiram que os franceses nos tivessem arrancado "Ziguinbchor, que representa uma verdadeira preciosidade"...

Não tem dúvidas, por fim, em antever um futuro próspero para a Guiné... Anti-salazarista, Armando Cortesão (Coimbra, 1891 -  Lisboa, 1977)  parte para o exílio em 1932 e só volta a Portugal vinte anos depois,  dedicando-se  ao ensino e à investigação da história e da cartografia.

Diz um seu biógrafo,Rui S. Andadre, no Dicionário de Historiadores Portugueses

(...) "No início de 1932 é afastado por motivos políticos das altas funções que exerce, vindo a ocupar-se da redação das suas investigações históricas iniciando então um período em que se desdobra em conferências sobre Cartografia antiga e temas históricos, como a questão colombina. 

"Cortesão, enquanto funcionário colonial insere-se num grupo de quadros científicos e técnicos, indissociável da política ultramarina seguida pelo Estado na primeira metade do século XX. A questão do regime político era relativamente secundária, uma vez que, o chamado Ultramar era considerado uma questão nacional, em torno da qual alinhavam diferentes posições políticas e ideológicas, desde o republicanismo liberal e democrático ao nacionalismo retórico do Estado Novo". (...)







Fonte: Gazeta das Colónias, Lisboa, Ano 1, nº 2, Lisboa, 10 de julho de 1924, pp. 7/9. 

(Seleção, recotes, notas: LG)

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Nota do editor:

Último poste da série > 17 de dezembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24965: Capas da Gazeta das Colónias (1924-1926) (4): Uma plantação de cana de açúcar,em Guara-Guara, Manica e Sofala, Moçambique... e um elogio ao governador da Guiné, Velez Caroço (1921-1926)