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segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25188: Banco do Afeto contra a Solidão (28): Parece que me safei desta! (Valdemar Queiroz, Hospital Amadora-Sintra, 14/2/2024)


Hospital Amadora-Sintra, fevereiro de 2024: o Valdemar Queiroz no seu "posto de trabalho"... [Trabalho, tripálio, etimologia: do latim, "tripaliu(m)", instrumento constituído por "tres pales"que servia, no tempo dos romanos,  para "tripaliare", torturar... ]

Foto: © Valdemar Queiroz (2024). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem do Valdemar Queiroz, que continua interado no Hospital Amadora-Sintra (*):

Data - quarta, 14/02/2024, 20:50 
Assunto - Parece que me safei desta

Luís, obrigado pelo teu cuidado. O meu filho disse que falaram ao telefone, mas entretanto o telemóvel desligou-se. 

 Acabei de fazer a biópsia à bexiga, indicada pela eco. O exame não detectou tumor na bexiga, antes uma ferida, já em tratamento com antibiótico, devido ao toque da algália contra a próstata. Quer dizer que não entrei nos 95% dos fumadores com tumor na bexiga que deixam, mesmo, de fumar.
 
E cá vou ficando com a companhia da DPOC e um "pacemaker" no coração. 

 Abraço e saúde da boa. 
 Valdemar Queiroz


2. Algumas mensagens de solidriedade que entretanto aqui foram recebidas e lhe foram retransmitidas (*):

(i) Tabanca Grande Luís Graça (by email):

Meus caros: aqui vão notícias (animadoras...) do nosso Valdemar... Esperemos que tenha rápida recuperação e volte em breve ao nosso convívio, mesmo que "virtual"... Mando a alguns dos camaradas que têm, publicamente, perguntado por ele e desejado as suas melhoras. Falta-me, de momento, o endereço de email do JL Fernandes, que não tenho aqui à mão. 
Ab, Luis

18/02/2024, 17:13

(ii) Eduardo Estrela:

Já estranhava a tua ausência e pensava que tinhas ido parar ao hospital, o que infelizmente se confirma. Desejo e espero que recuperes rapidamente de modo a podermos continuar a usufruir da tua assídua presença no blogue.

Tudo de bom para ti. Abraço fraterno
Eduardo Estrela

7 de fevereiro de 2024 às 23:02

(iii) Joaqum Luís Fernandes:

Também eu estranhei a falta de comparência do camarada Valdemar Queiroz, nos seus habituais comentários. Algo se passava.

Agora que já sabemos, resta-nos encorajá-lo a resistir aos incómodos e sofrimento que a falta de boa saúde lhe apresenta, neste processo de a recuperar.

Que seja rápida essa recuperação de melhor saúde.
Um abraço, JLFernandes

7 de fevereiro de 2024 às 23:21

(iv) Joaquim Costa

Meu caro amigo Valdemar, Mais uns dias de ausência e reprovavas por faltas. Vamos relevar estas mas não abuses.

É extraordinário a forma como encaras essa M.... da DCOP. Deu-nos ao menos a guerra esta resiliência. Nada como uns mimos da família para te pores fino.

As melhoras, caro amigo. Um grande abraço.
Joaquim Costa

7 de fevereiro de 2024 às 23:47

(v) Hèlder Sousa:

Sinceramente, acho que todos (quase todos....) estranhámos a ausência das habituais perspicácias do Valdemar, dos seus comentários , certamente não poucos, pensámos e especulámos (pelo menos internamente) sobre o que se poderia passar e, também não menos suspeitaram de que algo não estaria "normal"..

Veio agora a informação.Não é boa, não é, mas também, dentro das circunstâncias, não é totalmente má.Preocupante, sim, mas sabendo da tua resiliência, do teu bom humor (natural e/ou forçado), acho que é mais uma "missão" que vais superar e não vai ser uma dorzita por causa dessa coisa da algália que te abaterá:

Força nisso! Vais conseguir!
Abraço e..... saudinha da boa!

Hélder Sousa

8 de fevereiro de 2024 às 00:23

(vi) Fernado Ribeiro:

... e no fim, o Valdemar ainda pede desculpa por incomodar! Oh, Valdemar, grande valente! O que incomoda é o silêncio, não são as notícias.

Votos de rápidas melhoras.

8 de fevereiro de 2024 às 02:32

(viii) Luís Graça:


Valdemar, fazes muita falta ao blogue!...O teu humor, desconcertante, o teu poder aquilino de observação, a tua companhia fraterna diária, a tua cumplicidade,o teu exemplo de como lidar com ( e superar) a filha de putice de uma doença crónica como a DPOC, a tua alegria de viver mesmo "emparedado"...

Fico emocionado, Valdemar!...E já não nos vemos desde Contuboel, Junho de 1969...

8 de fevereiro de 2024 às 09:53

(ix) José Teixeita:

Valdemar. Tu que já engoliste costureirinhas, vais ultrapassar mais esta complicação física. Sei que estás disposto a gemer se for o caso, mas não a desistir.

Anda daí que fazes cá falta. Um grande abraço, com votos d rápidas melhoras.
Zé teixeira

8 de fevereiro de 2024 às 11:03

(x) Francisco Baptista:

Amigo e camarada Valdemar uma doença incapacitante com dores horríveis é o pior dos males. Eu também tenho essa doença rara mas felizmente para mim, por enquanto, está controloda, consigo fazer uma vida normal e sem sofrimento. Desejaria que conseguisses viver pelo menos como eu. As tuas rápidas melhoras meu amigo.

Um forte abraço, .Francisco Baptista

8 de fevereiro de 2024 às 11:56

(xi) Cherno Baldé:

Caro amigo Valdemar,

Ficamos todos aliviados com as tuas boas notícias, como diz o artista: "afinal não sou o único" a sentir a tua ausência.

Estranhei muito quando estive debaixo de fogo cruzado devido aos meus habituais atrevimentos e traquinices e não vieste em meu socorro como sempre a fim de voltarmos juntos e de braços dados para a nossa aldeia de Guirô-Ierô-Bocar, nos confins de Gabu.

Votos de rápidas melhoras e boa recuperação.

Aquele abraço desde Bissau, Cherno Baldé

8 de fevereiro de 2024 às 12:36

(xii) Alberto Branquinho:

Não conheço o Valdemar, mas estava a faltar a perspicácia dos comentários atirados à "mouche".

Acho que tudo isto foi um pretexto para sair de casa com apoio aéreo...

Rápida recuperação!

Um abraço

8 de fevereiro de 2024 às 16:27

(xiii) José Botelho Colaço:

Silêncio e tanta gente. Abraço amigo.

8 de fevereiro de 2024 às 18:32

(xiv) Tabnca Grande Luís Graça;

"Isto" é o melhor que a Tabanca Grande tem... Não somos apenas um "bando", um grupo "excursionista e jantarista", uma "tertúlia literária", um "blogue de veteranos saudosistas", uma "rede social", mas também um grupo de autoajuda, mesmo "virtual" (nem todos nos conhecemos "face a face"), um grupo de amigos e camaradas da Guiné que se preocupa quando um dos "seus" deixa de aparecer no radar... E já perdemos tantos!...

Valdemar, agora cuida de ti.

8 de fevereiro de 2024 às 19:59

(xv) António Tavares:

Camarada Valdemar,

Rápidas melhoras. Abraço do António Tavares.

9 de fevereiro de 2024 às 00:29

(xvi) Juvenal Amado:

Um abraço fraterno as melhoras e muita coragem

10 de fevereiro de 2024 às 10:54

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25146: Banco do Afeto contra a Solidão (27): Fui apanhado distraído, camaradas! (Valdemar Queiroz, Hospital Amadora-Sintra)


Valdemar Queiroz, minhoto por criação, lisboeta por eleição, ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70; aqui, na foto, em Contuboel, 1969. Tem tudo para ser... feliz (inclouindo uma neta luso-nerreçandesa que é j´~a uma craque do futebiol feminino),  exceto o raio de uma DPOC (Doença Pulmonar Obstrutiva Crónica).


1. Mensagem do Valdemar Queiroz:

Datta - 7 fev 2024 21:05

Assunto - Fui apanhado distraído

Luís Graça,

No passado 27 de janeiro, ao fim da tarde, fiquei que nem um bebezinho: 28 pulsações!... Bombeiros, médicos do SNS 24 e outros todos atarefados para acudir a um DPOC que esteve na guerra da Guiné.

Entrei em Cardiologia do Hospital Amadora-Sintra e pouco tempo passou já estava na reunião do ataque ao coração fracote, mas com muito para dar. O ataque foi noite dentro com um pacemaker alimentando por linhas eléctricas o objectiviteit (... termo ilegível, é neerlandês, quer dizer "objetividade"...)

Serviço feito e com a duração garantida por 10 ANOS!!!. Assim ainda dizem mal do nosso SNS. Mas… o pior de todo o ataque foi a necessidade de meterrrr (!!!) uma algália à bexiga, f... de p... de dor que desde o dia 28 me tem dado dias horríveis.

O meu filho, nora e neta aproveitaram férias de carnaval e estão a fazer grande companhia, por cá. Agora já está a ser feita nova acção de combate para eliminar um não sei quê na bexiga e como conheço a zona lá vou eu para o inferno. E deve durar mais duas semanas.

Desculpem estar a incomodar com estas notícias que nada tem a ver com a guerra na Guiné, porra até parece!

Saúde da boa para todos.
Valdemar Queiroz

Enviado do meu iPhone


2. Comentário do editor LG:

Porra, Valdemar, mas que grande susto nos pregaste!... O teu último comentário no blogue
data de 26 de janeiro, às 21:21 (*). Depois disso, comecei a estranhar a tua ausência, o teu silêncio,  já que o blogue também é parte da tua "garrafa de oxigènio", o teu companheiro, o mesmo é dizer é também um bocadinho o teu "banco do afeto contra a solidão"... 

Confesso que comecei a suspeitar do pior: comecei a ligar-te a partir da tarde de 4 de fevereiro (evito fazê-lo, porquer sei que ficas atrapalhado, não podes nem deves falar, nem muito nem pouco)... Mandei-te então uma mensagem: 

"Isso não anda bem, Valdemar, a avaliar pelo teu silêncio no blogue. Diz só onde estás. Ab. Luís" (SMS, domingo, 4/2/2024, 15;46). 

Sem qualquer resposta, com o teu telemóvel no silêncio, mandei outra, pensando que poderias estar na terra da tua neta ou, mais próximo, no teu já velho conhecido serviço de cardiologia do Hospital Amadora-Sintra: 

"Valdemar, estás com o teu filho, nos Países Baixos, ou no hospital?" (SMS, segunda feira, 5/2/2024, 19:26)...

Desgraçadamente estavas no hospital, aqui perto!... (Por estes dias, tenho estado em Alfragide.) 

Fico mais aliviado por saber notícias tuas... "chez les vivants"... Vamos esperar que esses duas semanas no "estaleiro" passem o mais rápido possível, e sobretudo sem as tais dores terríveis... Vamos acender uma velinha aos nossos bons irãs... Manda-me o telefone e o endereço de email do teu filho (às vezes dá jeito). Não te deixes outra vez "apanhar distraído"... Com a família por perto, vais arribar!

Um chicoração fraterno. (**)

PS1 - Valdemar, não publico a tua foto "entubado", porque um gajo entubado num hospital é não é uma coisa linda de se ver... e tu és um rapaz minhoto fotogénico!...O Valdemar Embaló das "bajudas" de Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari... E de Afife, e de Lisboa e do Cacém!...

PS2 - Camaradas, não lhe telefonem, acho que podem mandar-lhe  um SMS: telem 965 290 110

segunda-feira, 21 de agosto de 2023

Guiné 61/74 - P24572: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (7): Sozinho, como um cão

 

Foto: © Luís Graça (2011)  


 Contos com mural ao fundo (7)  > Sozinho, como um cão

por Luís Graça (*)

Estive no seu leito de morte. Um fatal cancro dos pulmões, porventura curável nos nossos dias, roubara-lhe a vida, há uns trinta anos atrás. Teria hoje  os seus 80 anos,  se fosse vivo. Morreu jovem, demasiado jovem.

Era um dos meus heróis da adolescência, o Doc. Tinha lentamente recuperado a alegria de viver, depois de uma grave crise que ele próprio qualificara de “existencial”.

A origem dessa crise remontaria, pelo menos, a setembro de 1967,  altura em que ele regressara da Guiné, onde havia conhecido a “guerra, pura e dura”.

Era um dos meus amigos, da época  da minha adolescência. Dele  guardarei para sempre uma grande saudade, não obstante as nossas vidas, cruzadas como tantas outras, se terem separado no final da década de 1960.

Nessa altura eu fui para a tropa e ele estava a retomar, a custo, em Coimbra, os seus estudos de medicina que a vida militar viera interromper abruptamente.

A imagem mais dolorosa que guardo dele, é a da cama de um  hospital, em Lisboa, num quarto, minúsculo, ao fundo de um corredor sombrio. Sem janelas. Sozinho como um cão, anichado em posição fetal, a escassas… 48 horas de exalar o seu último suspiro, como virei a saber mais tarde, pela… telefonista de serviço 

Reconheceu-me só pela voz, não se moveu nem um centímetro, estava lúcido, mas já em grande sofrimento. Só lhe sussurrei, quase em cima do ouvido,  um tímido “Olá, Doc”. E acrescentei, estupidamemente: "Coragem!".

As suas únicas (e últimas) palavras, roucas, cavernosas,  inumanas, soaram-me a despedida, irremediável, sem retorno. Senti-as como um punhal cravado no meu peito. Guardei-as para o resto da minha vida: 

 Luisinho (tratava-me sempre por Luisinho), vai-te embora, vai-te embora!  implorou. (Nunca saberei se era uma súplica, uma ordem ou uma expressão de raiva e impotência.)

Trinta anos depois, não me envergonho de o dizer, essas palavras, as últimas, as únicas, que ele proferiu, no seu leito de morte, na minha presença, ainda hoje me martelam a cabeça. 

Senti um enorme  sufoco por ver a morte triunfar, impante, sobre a vida, e ao mesmo tempo vergonha  por ter sido incapaz de lhe tocar!... Como se ele já fosse cadáver!... Por pudor ou medo atávico da morte, não consegui sequer tocar-lhe. Muito menos dizer-lhe uma palavra de consolo, de conforto, de carinho. Só um tímido,  inócuo e cobarde... "Coragem!".  

Mais tarde, talvez para tranquilizar a minha consciência e não sentir o peso da minha fraqueza e sentimento de culpa, iria interrogar-me sobre o significado que ainda poderia ter o meu gesto de compaixão, no momento mais pungente e solitário da vida de um homem… Que é quando um gajo agoniza, lúcido mas a sofrer, longe do mundo, já muito longe daqueles que nos amaram e que nós amámos!…

Em boa verdade, ele não tinha ninguém à sua cabeceira, morreria dois dias depois, “sozinho como um cão” (uma expressão que ele próprio usava, nos seus aerogramas, para falar da sua condição de combatente na guerra da Guiné, em 1965/67).  

Morreria sozinho como um cão, aos 48 anos, longe da família, de que, aliás, só restava a irmã, e os sobrinhos que mal o conheciam. Não tinha filhos, pelo menos que se soubesse.

Tive um ataque de choro, convulsivo, enquanto saí dali, confuso, quase aos trambolhões, daquele corredor estreito e sombrio do hospital, sufocado, em busca do ar fresco do pequeno bosque que circundava o pavilhão, conhecido como o “terminal da morte”.

Recuando há muitos anos atrás, lembro-me do seu regresso da Guiné. Eu era o único amigo de que ele se lembrava. Ou melhor, eu era talvez o único amigo que ele ainda não queria esquecer.

Tinha regressado da guerra em 1967, no final do  verão que iria marcar, ironicamente, o fim, político, do homem, o Salazar,  que o mandara defender a Pátria, a milhares de quilómetros de casa. 

Tinha regressado da Guiné e não avisara ninguém da família. Nem sequer a namorada, a Xana. Muito menos os amigos, poucos, que vinham do tempo do colégio e do grupo de teatro amador, como era o meu caso. E eu, seguramente, era o mais novo.

De facto, nem sequer se dignara escrever-me, a mim, que era o seu correspondente e confidente (trocávamos correio  enquanto ele esteve na Guiné, entre 1965 e 1967) e, no grupo de teatro, secretário, moço de recados, ponto, datilógrafo, figurante, aprendiz de ator, colador de cartazes… Além de sermos amigos e vizinhos de bairro, se bem que eu fosse mais novo do que eu uns bons seis anos.

Sentia-me lisonjeado com a sua amizade, mas também sabia que ele era um pessoa “difícil”, frequentemente “imprevisível e desconcertante”, "irascível e às vezes duro e até cruel, se não mesmo desumano”, como escreveu um dos seus "amigos críticos", no jornal da cidade, na notícia necrológica. 

Sim, o Doc era bipolar (como a maioria dos seres humanos).  Era uma pessoa de extremos, daí o facto de nunca  ter tido muitos amigos. Mesmo assim, houve gente decente da nossa terra, que compareceu ao seu funeral, que seria organizado pela sua irmã, professora universitária. 

Não tinha, por isso, ninguém à sua espera, no Cais da Rocha Conde de Óbidos, nessa manhã de setembro de 1967. De resto, vinha sozinho, como me explicará mais tarde. Eu ainda não percebia nada de tropa, mas fiquei a saber, pelos aerogramas que trocávamos, que ele era de “rendição individual”: isto é, "fui sozinho e regressarei sozinho, no caso  de não lerpar"... "Lerpar"?... Morrer, explicar-me-á ele, no aerograma seguinte...  

E, como tal, não havia regressado no navio com os seus camaradas da última companhia onde estivera, no sul da Guiné, os quais, sendo mais novos, ainda ficaram a cumprir calendário. Ou, como ele dizia, com sarcasmo, “a cumprir o resto da pena de desterro”.  

Tanto quanto me apercebi, o Doc tinha receio que a família e alguns amigos lhe quisessem fazer uma surpresa, indo esperá-lo no cais de desembarque. Seria a última coisa que ele iria aceitar, “a última cena, grotesca, da tragicomédia da tropa e da guerra”. 

Curioso, sendo um “homem do teatro”, tinha um enorme pudor em manifestar em público as suas emoções e sentimentos. Aliás, ele não era propriamente ator mas encenador. Em boa verdade, eu nunca o vira representar, nem no palco do teatro nem no palco da vida. 

Ficaria trancado em casa nos primeiros dias, sem querer ver ninguém. Eu e a Xana teremos sido as primeiras pessoas, fora do círculo familiar, que ele condescendeu em receber depois do regresso.  

Para a namorada, seria aliás o fim de um relacionamento que já antes tinha tudo para não dar certo.  Julgo até que ela foi a primeira vítima da sua rutura com o passado.  

Segundo me contou depois a irmã do Doc (a dra. Mena, que eu tratava com deferência por ser bastanto mais velha do que eu e já formada), terão tido uma discussão violenta, acabando tudo entre eles nessa tarde. Para grande desgosto da mãe, que via na Xana, a alma gémea do seu filho. Os inimigos do Doc respiraram fundo, com a notícia do rompimento do impossível namoro entre "a Bela e o Monstro" (sic). (A Xana era um rapariga cobiçada pela sua beleza, talvez a rapariga mais bonita da cidade.) 

O Doc desabafou co0migp, explicando-me que estava a fazer um “cura de sono”… Na altura, em 1967, não havia psiquiatras e psicólogos como há hoje, e eu, na ingenuidade dos meus dezoito anos, nem sequer pus a hipótese de ele estar a passar  por uma “crise de depressão”.  

Na época, não se falava de "saúde mental" (falava-se de loucura) e muito menos ainda de “stress pós-traumático de guerra”, nem eu imaginava sequer o que fosse essa estranha entidade clínica…

− Só as mulheres é que têm depressão pós-parto – dizia o pai dele, que nestas coisas tinha sempre um certo ar de sobranceria e fazia questão de emitir a opinião arrogante e definitiva do "catedrático da universidade da vida".

As relações pai-filho também não eram as melhores. Aliás, nunca foram lá muito boas. Contrariamente à mãe, o pai só lhe terá dito, à chegada, bruto, curto e seco:

 Olá, filho, sê bem vindo… Finalmente, em casa! 

Eram os dois parecidos, pai e filho, em  muita coisa, mas chocavam-se quando, por exemplo, discutiam a “guerra do ultramar” (como dizia o pai) ou a “guerra colonial” (como preferia chamar-lhe o filho). Uma questão terminológica que lhe punha os cabelos em pé, ao ponto de um dia  ter partido a louça posta para o jantar.

Mesmo se tivesse “cunhas” (o que não era o caso), o pai nunca  se humilharia perante ninguém para interceder pelo filho, livrando-o do ultramar ou, pelo menos, da Guiné… E depois a tropa e a guerra iriam "fazer dele um homem", como fora o seu caso, que  combatera os alemães, os "boches", em Moçambique na I Grande Guerra.

− Lusinho (tratar-me-ia sempre por Luisinho, até ao fim da vida), não me leves a mal, mas  não ouças o tonto do meu “Velho”…

Quando ele desembarcou, a única coisa que ele queria, era chegar a casa, não ver ninguém, não estar com ninguém, fechar as cortinas, enfiar-se na cama… E acrescentou algo que me chocou e perturbou: 

− Sabes que mais?… Tenho asco a tudo o que é humano! 

Não alcancei o que ele queria dizer com aquela estranha expressão. Mas ele insistia que precisava de dormir um “sono reparador”:

− … Dormir um dia inteiro, uma semana, um mês… Porventura, um ano ou até o resto da vida… Queria poder hibernar o resto da vida. Esquecer. Esquecer a tropa, a guerra, a Guiné…

Ainda ensaiei uma tímida tentativa de diálogo mas ele correu comigo, pondo-me fora do quarto… Aí assustei-me, fiquei chocado com a sua brutalidade mas sobretudo ao ver e rever o seu ar acabrunhado, as olheiras fundas, a cor da pele amarelada,  a barba de vários dias, por fazer…

Afinal, era um “ataque de paludismo”, tranquilizou-me a pobre mãe que, à força de muitas súplicas e lágrimas, lá o convencera a ser visto pelo médico, amigo da família, e que, sendo de saúde pública, sempre devia perceber alguma coisa de doenças tropicais…

Nas costas da mãe e do médico, nesse fim de semana, despejou uma garrafa de uísque.

Na altura, confesso, eu até pensei que ele poderia estar com ideias parassuicidárias, como se diz hoje. Fiquei assustado com o estado de saúde, física e mental, do meu amigo. 

E ainda estava fresca, na memória de toda a gente da terra, a morte por enforcamento do pai de um antigo colega meu de escola. Estava eu de piquete na redação do jornal, fazia os "faits divers", os nascimentos, batizados, casamentos e óbitos,  e ainda vi, enquanto se aguardava a chegada da autoridade de saúde, o corpo a baloiçar numa barrote da caldeira onde  trabalhava. Era o adegueiro.

Reconstituindo o que se passara nessa manhã de neblina, em que desembarcara, no Tejo, de um velho navio, misto, de mercadorias e passageiros, da carreira colonial, o Doc contou-me que durante a viagem e à chegada tinha tido “pensamentos confusos e impulsos contraditórios”.

Chamara um táxi e estendera ao condutor um bocado de papel  com a morada de casa. Pediu para o acordar quando chegasse ao destino. Nem sequer fez questão de perguntar em quanto ficaria o serviço de táxi, sendo para fora de Lisboa. Tinha os bolsos cheios de notas, o “patacão sujo da guerra” (sic), em Bissau trocara um maço de “pesos” por escudos metropolitanos.

Ao fim de três horas e tal de viagem (ainda não havia autiestradas nesse tempo), estava na cama, na casa dos seus pais, na região Centro, na sua cama de solteiro, no seu quarto, com as estantes dos seus livros e discos de vinil, os cartazes e os póstres, estava tudo como ele tinha deixado há dois anos atrás. Arrumado. impecável, sem um grão de pó, graças ao desvelo da sua mãezinha que o adorava.

Justamente ia fazer dois anos que não se viam, ele e os pais e a irmã. Ele não viera de férias, por “razões disciplinares”: tinha apanhado uma “porrada” (sic) e, em consequência do castigo, tinha sido transferido para outra companhia, como mandava o RDM, o regulamento de disciplina militar (segundo depois me explicou).

Senti que esse episódio o marcara muito, mas nunca me deu grandes pormenores. E eu respeitei a sua revolta e sobretudo o seu silêncio. Era evidente que o assunto o incomodava, não gostando de falar dele.  

Em aerograma que mandara aos pais, terá arranjado uma desculpa esfarrapada para justificar a impossibilidade de comparecer à festa, comemorativa  dos  30 anos de casados, marcada para o verão de 1966. (E se a mãe tanto insistira com ele para marcar as férias para o mês de julho de 1966!). 

A releitura dos seus aerogramas não me permitiu esclarecer cabalmente esta história que lhe sujou a “caderneta militar” (documento, aliás,  a que eu nunca pus a vista em cima,  se é que ele não o destruiu em vida).

Há dois episódios que poderão estar na origem  da tal “porrada” ou castigo… Vejamos cada um, sem  entrar em grandes pormenores. 

primeiro  tem  a ver com uma exaltada discussão  com a Polícia Militar, em Bissau, quando ele tirou uns dias para ir ao estomatologista. Traduziu-se numa participação contra ele, tudo por causa de um cena de pugilato com outro militar (de que desconheço a patente, mas o mais provável era ser um 1º cabo).

O meu amigo Doc, que estava numa esplanada, perto da conhecida fortaleza da Amura, quis fazer justiça  pelas suas próprias mãos, contra  um grupo de “velhinhos”, ruidosamente festejando o fim de comissão e a véspera de embarque. Deram-lhes para se meter com os “djubis”, os miúdos que vendiam “mancarra"  (amendoim), nas ruas da Bissau velha. frequentada pela tropa… Aliás, miúdos e miúdas. 

Fizeram-lhes uma série de tropelias, o que começava a incomodar quem estava na esplanada, seguramente todos militares, uns fardados, outros à civil. O Doc interpretou isso como um ato de violência gratuita, se não mesmo racista, para mais sendo as vítimas crianças, indefesas, que tentavam ganhar a vida… Porém, de nada lhe valeu, a ele,  puxar dos galões. O grupo estava alcoolizado e ninguém mediu as consequências dos seus atos. Às tantas generalizou-se a pancadaria, até que chegou a Polícia Militar e restabeleceu a ordem. 

Abreviando a história, houve várias detenções. O Doc foi levado para o quartel da PM, que era ali mesmo ao lado, na Amura. Ficou lá cerca de duas ou très horas. Mas houve testemunhas que abonaram a seu favor. Nomeadamente, outros alferes que estavam sentados na esplanada, e que, por cobardia ou cautela,  não se quiseram meter ao barulho. "Afinal, um militar fardado, para mais oficial,  está ou não está 24 horas por dia de serviço?", interrogava-se o Doc, a limpar o sangue do sobrolho e ainda a espumar de raiva contra o grupo de arruaceiros.

O segundo episódio prende-se com uma situação algo semelhante, em que vem ao de cima o lado “justiceiro” e "solidário" do Doc, mas desta vez envolvendo um oficial superior (julgo que seria um major) que terá tratado mal (com insultos e ameaças de porrrada) alguns militares de um pelotão de caçadores nativos, adido à  companhia de comando e serviços do batalhão a que pertencia o Doc. 

Resumo o essencial da versão do Doc, num dos  aerogramas que me escreveu: os militares, todos guineenses, estavam a abrir valas, à volta do perímetro do aquartelamento… Calaceiros, mandriões  e outros epítetos ainda mais injuriosos terão acompanhado as ameaças do  major (2º comandante, ao que percebi), impaciente com a fraca produtividade dos "nharros", dos "barrotes queimados" e outros insultos de semelhante teor (que o Doc interpretou como sendo racistas)...

À hora do bridge, e depois dos uísques do costume, a seguir ao jantar na messe de oficiais, o Doc, que assistira à cena da tarde, “impotente mas indignado”, caiu na asneira de comentar, em tom subtil mas jocoso, em voz alta, a versão do major sobre o "incidente", ao mesmo tempo que incriminava o alferes, comandante do pelotão em causa, por deixar os seus homens ao deus-dará... Este, cobardolas, estava enfiado na cadeira com o rabo entre as pernas...

O Doc terá citado um provérbio popular, muito usado na sua região: "Quando o mar bate na rocha, quem se lixa é o mexilhão"... Caiu o  Carmo e a Trindade, na messe de oficiais… O major ficou lívido, "à beira de um ataque de nervos", era de resto um homem "histérico e irascível". O comandante veio de imediato em defesa dele e dahontra do convento, dando ordens ao alferes, ao Doc,  para se recolher de imediato ao seus aposentos.

O médico do batalhão, que era conhecido do Doc, do tempo de Coimbra e da crise estudantil de 1962, terá interferido a seu favor, junto do tenente-coronel.  Em vão, ao que parece. Não sei o desfecho da história. A verdade é que, passado pouco tempo, em maio de 1966, o Doc é transferido de unidade…

O castigo disciplinar, desproporcionado,  teve consequências graves na sua vida militar na Guiné: perdeu, de imediato, o direito ao gozo da licença de férias, e passou, de uma região  relativamente calma, o Leste, para outra, o Sul,  onde a atividade operacional era mais intensa…  

Tal como chegou, sozinho, assim partiu: nenhum dos seus camaradas, alferes milicianos, se dignou ir ao bar de sargentos beber um copo de despedida com ele. Teve apenas, à mesa, dois ou três furriéis que o estimavam... E julgo que o médico.

E, pior ainda, ele que tinha uma especialidade relativamente burocrática (era oficial de operações e informações), passou a andar no mato, de camuflado e de G3 em punho, como comandante de um grupo de combate numa companhia de caçadores…

Nunca soube ao certo por onde ele andou o resto da comissão… Porque nos aerogramas só vinha o SPM, o código do Serviço Postal Militar. E tinha sempre o cuidado de nunca se identificar. Assinava, na correspondência para mim,  como  “o teu amigo Doc”…

Num dos últimos aerogramas que me escreveu, já perto do final da comissão, confidenciara-me:

“Tenho a mania que vou endireitar o mundo. A liberdade de expressão na tropa paga-se caro, com língua de palmo. Nestes quase quinze  meses cá em baixo, na região a que chamam de Tomba...li, já conheci os múltiplos tormentos do inferno desta guerra: a sede, a fome, a insolação, os ataques de abelhas, a exaustão física e emocional, os tufóes e outras intempéries tropicais, a merda que te cobre o corpo, a solidão, a alienação, a desumanidade… Para não te falar do medo das minas e armadilhas, e das emboscadas, mais do que dos ataques e flagelações aos nossos quartéis, onde, apesar de tudo, tens um buraco para enfiar os cornos”…


A mãe não conteve o espanto e as lágrimas quando ele, o Doc, de rompante, espavorido, lhe entrou pela casa dentro, à hora do chá, um hábito colonial que o casal mantinha desde Moçambique… Com duas malas na mão, uma com a roupa e os demais objetos pessoais, e outra com o resto dos seus livros, algumas garrafas de uísque, mais algumas peças de arte africana.

Eu só soube da sua chegada da Guiné, passados uns dias. A mãe, quando ia ao velho mercado local, a praça do peixe, frutas e legumes, viu-me de relance, na redação do jornal, parou, espreitou, entrou e disse-me:

− Luisinho (também me tratava por Luisinho, como o filho), o teu amigo Doc chegou!... Está vivo e inteiro, graças a Deus, Mas não está nada bem da cabeça, o meu pobre filho!... Está há dias ferrado a dormir, fechado no quarto, diz que não quer ver ninguém… Passa por lá, no fim de semana, pode ser que ele, por ti, se queira levantar e falar um pouco… Só lhe fazia bem...

A dona Domitília Meneses era uma santa senhora. Era professora primária, já reformada.  Tinha sido minha professora da 4.ª classe e do exame de admissão ao liceu. Era moçambicana, de origem goesa, descendente de gente da pequena nobreza local, um dos seus antepassados teria sido vice-rei da Índia em meados do séc. XVIII, ao tempo do senhor Dom João V.

Já o mesmo não se poderia dizer do marido, também ele professor do ensino primário, velho republicano, maçónico... Era mais velho do que ela uns bons quinze  anos, e fora aposentado compulsivamente da função pública na sequência, dizia-se,  do apoio à candidatura do general Norton de Matos à Presidência da República em 1949.

Eu conhecia-o mal, era um homem amargurado, pouco sociável, para não dizer misantropo… Aliás, confesso que tinha medo dele, ou melhor, não gostava dele. Respeitava-o apenas por ser o pai do meu amigo e o marido da minha querida professora. 

Na realidade, ele tinha sido  marginalizado,  legalmente pelo poder político central e socialmente  pela elite local. Passando a ser declaradamente um “oposicionista, um indivíduo contra a situação” (sic), deixara de ser convidado para integrar os corpos sociais das diversas associações locais de que era sócio ou membro  (a filarmónica, os bombeiros, o clube recreativo, desportivo e cultural, o núcleo local da liga dos combatentes, etc.). Em boa verdade, foi a sua "morte social". Amargurado, foi obrigado a deixar as suas funções de encenador das récitas e cegadas que na época carnavalesca animavam o palco do teatro local bem como as ruas da cidade.

Raramente saía à rua, a não ser em algumas efemérides patrióticas, como o 1º de dezembro de 1640 ou o 5 de outubro de 1910. Ou para ir a Lisboa, consultar vários arquivos públicos. Dedicava-se aos seus livros, era um apaixonado africanista, correspondente da Sociedade de Geografia de Lisboa, interessando-se, muito em particular, sobre a história da colonização de Moçambique, no tempo da monarquia constitucional e da I República.

O único ponto em que estava de acordo com a política do Estado Novo era na questão da “defesa intransigente do Ultramar”. Tinha estado na sua juventude em Moçambique, primeiro como expedicionário e depois, mais tarde,  como professor. E alí viria a conhecer a mulher em meados dos anos 30. O filho nasceria, na Beira, em 1942. E tivera como ama de leite uma jovem mãe negra. 

Parecidos em muitos aspetos de personalidade, pai e filho, separados por quase cinquenta  anos de diferença, engalfinhavam-se com frequência em discussões, por vezes violentas, sobre o que se estava a passar nos territórios ultramarinos portugueses (mas também na África Austral do "apartheid").

Tinha ideias, o “Velho”, sobre o futuro desses territórios (“possessões ou colónias, como queiras chamar-lhe”, dizia ele ao filho), defendendo todavia o princípio da autodeterminação progressiva, a par da criação de uma "Commonwealth" à portuguesa. Era um admirador incondicional da colonização britânica e da formação de elites locai.

Apoiava o esforço militar do País, contra o “terrorismo internacional” (sic), mas era crítico em relação à vontade e à capacidade de Salazar de enveredar por uma “solução política” para o problema, nomeadamente em relação a Angola e Moçambique, que eram,  para ele,  as verdadeiras “joias da Coroa”, depois de perdida, “miseravelmente” (sic), a Índia Portuguesa.

O meu amigo Doc era, para mim, o irmão mais velho que eu nunca tivera, separavam-nos uma meia dúzia de anos. Tínhamos alguns interesses intelectuais em comum, a começar pelo teatro, a literatura, a arte e, claro, a política.
 
Nessa época, poucos jovens da minha idade tinham ainda “consciência política” (como então se dizia), porque só uma minoria tinha acesso a um educação de nível superior e a fontes de informação, independentes e credíveis. Vivíamos num regime de partido único, não havia opinião pública, os jornais estavam sujeitos à censura, havia a polícia política, a PIDE, e a única televisão de que dispúnhamos, a RTP, era a voz do dono, tal como a Emissora Nacional… Era o tempo dos 3 FFF: Fátima, Futebol e Fado, três coisas que o meu amigo Doc solenemente detestava…

O que é que eu sabia do que se passava em África, no nosso glorioso Império Colonial? Racismo, colonialismo, trabalho forçado, revoltas nacionalistas…? Não, nunca ouvira falar...  Só me lembro, na igreja, teria eu 10 anos, por volta de 1958, de pedirem dinheiro ao meu avô, para ajudar as missões católicas, o mesmo era dizer, os “pretinhos da Guiné”...

Eu vivia numa pequena cidade da região centro, onde só os mais afortunados iam estudar para Coimbra (que ficava mais perto do que Lisboa)… A maioria dos jovens da minha geração sabia lá o que se passava em África… Mal sabiam do se passava à sua volta, nos campos e nas fábricas, no mar, nas escolas, nos quartéis, nos hospitais… 

Aliás, o que é que a gente sabia e podia saber? Só o que "eles" queriam que a gente soubesse... "Saber ler, escrever e contar", acrescentava o meu amigo Doc, "o que não quer dizer... saberes pensar pela tua própria cabeça"...

Além disso, as nossas aldeias, vilas e pequenas cidades do interior começavam a ficar envelhecidas, com a saída dos mais jovens, para o ultramar e a emigração (interna e externa). Muitos dos meus colegas de escola nunca mais os vi. Alguns como eu fixaram-se em Lisboa ou no Porto, onde eram maiores e melhores as oportunidades de emprego. Ou foram para França, a maioria "a salto".


Enquanto ele, o Doc, esteve na Guiné, correspondiamo-nos regularmente, uma oiu duas vezes por mês. Eu guardei religiosamente os aerogramas que ele me mandava. Tinha intenção de os organizar por data e devolvê-los ao remetente, logo que ele chegasse, “são e salvo”, como eu esperava que ele chegasse.

Quando eu o fui visitar, não me deixou sequer falar dos aerogramas, que naturalmente lhe traziam recordações dolorosas da Guiné, que ele queria extirpar para sempre da memória. A sua resposta, brusca e mal humorada, foi:

− Queima-os, Luisinho, queima-os!
− É um pedido?
− Não, é uma ordem!

Não lhe fiz a vontade. Devia tê-lo feito? Continuaram guardados ao meu cuidado. Sempre pensei que ele poderia, com os anos, mudar de opinião. Mas, nunca mais quis falar da Guiné e desses "anos de chumbo" em que esteve na tropa e na guerra... (Acabei por entregar os aerogramas à irmã, no dia do seu funeral, e hoje tenho pena de não os ter fotocopiado, limitei-me a copiar alguns excertos. )

Curiosamente ele nunca me escrevia cartas, mas apenas aerogramas, que eram de borla. "Com o dinheiro que poupava nos selos, comprava livros, revistas, peças de artesanato e... uísque", dizia-me ele, a gozar. 

Eu tinha receio que a correspondência, trocada entre nós, pudesse um dia ser intercetada pela PIDE. Ele tranquilizou-me a esse respeito. Tinha confiança no SPM (acrónimo de Serviço Postal Militar) que lidava todos os dias com várias toneladas de papel (cartas, aerogramas, encomendas, jornais,. revistas. etc.), a circular pelos diversos territórios ultramarinos. 

Por outro lado, e até pelo conhecimento pessoal que ele tinha da PIDE na Guiné, com quem tinha de lidar, a contragosto, na sua qualidade de oficial de informações e operações, ele conhecia relativamente bem os pontos fortes e fracos daquela polícia, a começar pela sua estrutura, a sua organização e a qualidade do seu pessoal… 

Os recursos humanos, dizia-me,  deixavam muito a desejar: fracas habilitações literárias, baixo nível cultural, insuficiente conhecimento de línguas estrangeiras (a começar pelo francês e o inglês), iliteracia política, tacanhez de espírito, sistema de informação artesanal… "Até o português escrevem mal e porcamente!"... 

Por outro lado, havia alguma rivalidade e até desconfiança em relação ao exército… (e vice-versa). “Os gajos eram uns cepos, eram capazes de desconfiar de uma inofensiva bíblia protestante mas passavam por cima de um livro do Franz Fanon, que era dinamite” – afiançava o meu amigo. 

Cepos?... "Só não eram maus a torturar, a arrancar informações dos pobres diabos que a gente, o exército, lhes entregava, para eles fazerem o trabalho, sujo,  que lhes competia... Felizmente, que o meu pelotão de informações e operações não foi treinado para torturar e  eu, por mim, nunca tolerei essas práticas", garantiu-me o Doc (a quem um dia perguntei que raio de especialidade era aquela que lhe haviam atribuído).

Cepos ou não, eu é que não ia na conversa do Doc: com os meus verdes anos, e com os medos  que alguns amigos mais velhos, no liceu, me haviam metido na cabeça, achava que a PIDE era como Deus, omnipotente, omnisciente e omnipresente. Pelo sim, pelo não, não fosse o diabo tecê-las, era melhor pôr a salvo a correspondência do Doc, para mais sabendo que ele tivera “chatices” na Universidade e, depois, na Guiné.

Sabia que o meu avô, materno,  era da “situação”… Era um bom homem, ia à missa, raramente discutia política, e muito menos comigo… Não gostava do Salazar, é verdade, mas tolerava-o. Encolhia os ombros e, às vezes, desabafava com os filhos e netos, quando jantávamos lá em casa:

− Meus filhos, hoje o Salazar, amanhã, quem sabe, talvez pior, o diabo em figura de gente…

O meu avô, coitado,  era dos que acreditavam que o Salazar é que nos tinha livrado da guerra, com a ajuda da Nossa Senhora de Fátima… Um seu irmão mais novo, que eu nunca cheguei a conhecer,  tinha sido  expedicionário nos Açores, durante a II Guerra Mundial, e tinha regressado a casa, “são e salvo"...,  para morrer, afinal,  uns meses depois, de "doença do peito", de tísica, de tuberculose... Falava-me que tinha tido muito medo, por causa do irmão,  dos submarinos alemães que infestavam o Atântico Norte… e que chegavam a Cabo Verde. Ele ouvia a BBC.

De resto, tinha a sua tertúlia, os seus amigos, os seus petiscos. Mais importante: o meu avô tinha uma adega, a que chamavam a “adega do povo”, aberta a todos os amigos e vizinhos, embora já fora da cidade… Na adega também tinha o seu escritório e o seu arquivo.

O meu avô estava acima de todas as suspeitas. Era um homem respeitado e respeitável, guarda-livros de profissão, conhecia os “podres” das várias famílias importantes da terra… Razão por que todos o estimavam (e temiam), pondo as mãos no lume por ele. Em contrapartida, podiam contar com o seu “silêncio de ouro”.

Eu gostava muito dele, tinha bonomia e bom humor, nunca se chateava comigo. Dizia-me na brincadeira que era ele, o guarda-livros, quem tinha uma das três chaves do céu…

− Então?... E as outras duas, avô?

− Tem-nas o padre e o médico!...

A pior desgraça que podia acontecer a um guarda-livros era ser despedido (e, nalguns casos, preso) por abuso de confiança:

− Tens a chave mas não podes abrir a porta… E houve casos, meu filho (tratava-me por filho) de gente, nesta profissão, que não soube qual era o seu lugar, na ordem natural das coisas… Olha, um matou-se, o outro foi parar à prisão…


O Doc nunca me deixou publicar nenhuma notícia, a seu respeito, no jornal, um quinzenário, onde eu trabalhava, como estagiário e, em boa verdade, como “pau para toda a obra”, desde paquete a repórter, embora ainda sem cartão e jornalista (que era emitido pelo sindicato corporativo). Tínhamos uma secção, “Correio dos Heróis do Ultramar”, onde publicávamos notícias dos filhos da terra a cumprir “missões de soberania além-mar".

O jornal, regionalista, tinha uma orientação editorial que não se coadunava, de todo, com as ideias (políticas, estéticas, éticas e culturais) do meu amigo que, de resto, era conhecido na cidade como filho de um oposicionista, e já teria, ele próprio, ficha na PIDE (o que, em boa verdade, nunca foi confirmado pelo próprio, que não terá tido tempo, vontade e pachorra para ir  à Torre do Tombo ver o seu processo). 

O Doc estava a estudar em Coimbra, na faculdade de medicina, quando foi inesperadamente chamado para a tropa. Na secretaria, explicaram-lhe secamente que, tendo chumbado a uma cadeira, deixava automaticamente de beneficiar do privilégio do adiamento da incorporação militar… Nunca se chegou a apurar a verdade relativamente à suspeita de ter sido a PIDE a despoletar a questão na reitoria ou na direção da faculdade. Enfim, estivera também envolvido na crise académica de 1962, embiora fosse um "segunda linha"...

Preciso, entretanto, de acrescentar algo mais sobre o jornal onde eu trabalhava (e que foi, de resto, o meu primeiro emprego). O “meu” jornal estava ligado a uma família local, política, social e economicamente influente. O proprietário era o presidente do Grémio do Comércio.

A filha mais velha, por sinal minha catequista, casara com um “jovem e promissor advogado” que viera de Coimbra, no princípio dos anos 50, e que aqui se fixara.

A minha terra sempre acolheu bem “os de fora”. De imediato, esse advogado foi admitido no “seleto clube local” e aí não levou tempo a perceber quem poderia ser a sua futura clientela e, mais do que isso, quem eram as meninas casadoiras… Era ali que estava a elite local, aquela que tinha património, estatuto, influência, charme, poder e... algum dinheiro.

Ora um dos seus primeiros clientes foi justamente a empresa do futuro sogro, grande (para a época) armazenista de vinhos que exportava para África, e proprietário urbano, “dono de uma rua inteira da cidade” (como se dizia, não sem exagero).

Numa altura em que ainda não havia agências bancárias na província, e com os negócios a prosperar durante a II Guerra Mundial e no pós-guerra, o “Tio Patinhas” (como a gente lhe chamava, nas costas…), era o “banqueiro do povo”, emprestando dinheiro a taxas de juro, usurárias, dizia a má língua do povo. E também se acrescentava que ele fizera fortuna na II Guerra Mundial com os refugiados que se instalaram na nossa costa (Lisboa, Cascais, Ericeira, Figueira da Foz, Espinho, etc.), aguardando um visto para as Américas.

Também dizia a “santa inquisição local” que ele tinha costela de... “cristão novo”.  O que toda a gente sabia, isso sim, é que ele tinha duas filhas casadoiras, as suas "princesas", que estavam à espera dos seus "príncipes encantados". E esses só poderiam vir de fora. Uma, a mais velha, a minha catequista, como disse, irá casar com o “jovem e promissor advogado de Coimbra”; a mais nova irá dar o nó com um médico, também coimbrão, que igualmente se fixara na nossa terra.

O meu futuro patrão, o advogado, teve, como uma das prendas de casamento 
a direção do jornal (a menos valiosa, materialmente falando, mas nem por isso despicienda para o seu projeto de promoção pessoal, profissional e até polílica). 

Na realidade, era um "jornaleco", um "pasquim" (como lhe chamava o Doc), que todavia se irá tornar, mais tarde, no consulado marcelista,  num influente semanário regionalista com algum prestígio, audiência e até qualidade. 

Dentro de todos os condicionalismos da época (censura, autocensura, ausência de formação profissional e de  regras de deontologia, não dissociação da propriedade e da direção, etc.) foi para mim a minha escola de jornalismo e de escrita, muito embora o Doc andasse sempre a gozar comigo por causa do meu “jornaleco”… Penso que ele não gostava sobretudo da pessoa do diretor…


Tínhamos uma diferença de quase trinta anos, eu e o meu diretor,  a quem, confesso, devo alguns favores.  Numa conversa franca, “cara a cara”, que tive com ele, diretor,  na redação, no dia em que o Marcelo Caetano substitui o Salazar no Governo, ele fez questão de desvendar alguma coisa sobre a sua algo obscura vida coimbrã…

Vivia numa república de estudantes, envolvendo-se na política, no MUD Juvenil, o movimento juvenil democrático, constituído em 1945, no rescaldo da guerra…

− Paixões da juventude, coisas de garotos, que às vezes têm um preço alto – comentou ele, de um modo algo enigmático.

Como diretor do jornal, gostava de acarinhar os “jovens literatos” da terra, onde me incluía, gente que tinha saído do liceu, uns, poucos, que haviam entrado na universidade, outros, como eu, que esperavam a “sorte grande” da tropa…

Ele próprio me confessara que em Coimbra publicara um livro de poemas, de “qualidade sofrível” (sic), na linha estética da revista "Vértice" (ou seja, do neorrealismo, acrescentei eu, com alguma irreverència e ousadia).

Admirava agora os jovens, da geração 60, que estavam a aparecer, e que tinham até mais talento e cultura literária do que a sua geração… Para esses havia um cantinho no jornal, uma página juvenil… onde poderiam escrever, “sempre era uma melhor alternativa do que andar por aí a dar cabo da vida e da saúde, e a comprometer o seu futuro, em antros imorais e quiçá subversivos" (sic)...


Percebi o seu "recado" (que, no meu caso, visava "más companhias" como o meu amigo Doc)... Mas só mais tarde é que eu vim a contextualizar toda esta conversa "de pai, mais do que de patrão": tinha como pano de fundo uma campanha que alguns “estado-novistas” estavam a fazer para refrescar as velhas e bolorentas fileiras da União Nacional, de que o proprietário do jornal era um histórico na região… 

Não admira por isso que o “meu patrão” se tornasse rapidamente um entusiástico defensor da “primavera política” do Marcelo Caetano e das suas "conversas em família"...

Voltando ao meu amigo Doc… que nessa altura já estava, de regresso, a Coimbra e em risco de ser suspenso da Universidade, pela segunda vez.

Sempre o tratei por Doc, a partir do momento em que ele entrou na faculdade de medicina, ou até antes, quando ele começou a manifestar a sua intenção de abraçar a carreira médica, já no último ano do liceu… Eu, por meu turno, ainda estava longe de saber o queria fazer da minha vida... Mas começava a preocupar-me com a guerra que alastrava em Angola e com a mobilização dos meus vizinhos e conhecidos, mais velhos...

Em 1962 houve a crise académica, que só mais tarde vim a saber o que era... Em 1964 o Doc foi chamado para a tropa e, menos de um ano depois, estava na Guiné.

Parte da minha formação intelectual e até literária devo-lha a ele, ao meu amigo Doc. Emprestava-me livros, trazia-me livros e revistas quando vinha de Coimbra nas férias, incluindo alguns jornais e revistas, estrangeiros, franceses, que não chegavam à província, como “Le Monde” ou “Le Nouvel Observateur”…

Depois da sua prolongada “cura de sono” (que passou também por uma clínica de desintoxicação alcoolólica, devo acrescentar sem trair a sua memória…), acabou por voltar a Coimbra e à sua “doce boémia”… Com as economias que trouxe da Guiné, conseguiu assegurar a sua independência económica. Fez algumas cadeiras atrasadas no ano letivo de 1968/69. Mas o curso marcava passo. Houve mesmo quem apostasse comigo que ele nunca chegaria a ter o diploma de médico, "quanto mais a poder receitar uma aspirina a um morto"…

Mas foi também a época em que eu deixei de ver o Doc, com regularidade. Soube depois que se tinha incompatibilizado de vez com o pai, por causas eleições legistivas de 1969, rompendo de vez com a sua cidade natal. Há muito que  deixara definitivamente o teatro da cidade, que de resto passou a ter um novo diretor, quando ele foi mobilizado para a Guiné. Enfim, fixou-se de vez em Coimbra.

E eu nessa altura já estava na Guiné, onde votei em branco nas eleições para a Assembleia Nacional. Ia tendo algumas notícias dele pela sua mãe, sempre extremosa, mas também pela irmã que estava em Lisboa, onde tirara o curso de  germânicas, e que não escondia os seus cuidados pela saúde do irmão, mais novo. Depois perdemos o contacto... Deixámos mesmo de ser íntimos, se bem que a nossa amizade estivesse para durar até ao fim da vida...

Soube, por outras vias, que o Doc  se envolvera também na crise de 1969, fora desta vez suspenso por dois anos, e tivera que ir trabalhar na Propaganda Médica (o que terá sido deveras penoso para ele).

Não tenho aerogramas dele do meu tempo de Guiné. Nunca nos correspondemos nesse tempo. E um ou dois que lhe escrevi, não tive coragem, confesso, de os pôr no correio...

Depois do meu regresso à Guiné, e da minha própria "cura de sono", soube notícias, já a viver e a trabalhar em Lisboa,  da família do Doc:  a dona Domitília Meneses não sobrevivera a um cancro da mama, uns bons anos antes da morte do filho.

Por seu turno, o marido já tinha morrido antes dela, não sem ter tido, porém, duas alegrias: a de ver o seu filho finalmente formado em medicina, aos 30 e picos anos, e logo a seguir a de ter podido dar vivas à liberdade, no 25 de Abril de 1974. (À boa maneira republicana, lançando o chapéu ao ar, enquanto alguns dos seus tradicionais inimigos políticos se trancavam em casa para ver em que paravam as modas.)

A entrada do Spínola para a Junta de Salvação Nacional ainda lhe dera algum alento quanto à possibilidade de se organizarem "eleições livres", com vista à independência da Angola, Guiné e Moçambique, mas os acontecimentos precipitaram-se e a descolonização que se seguiu foi um dor de alma para o “Velho”, como lhe chamava o filho; morreu em finais da década de 1970, sem ter realizado  o sonho de "um dia ainda poder voltar a Moçambique", terra que ele amava de alma e coração.


Por onde andou o Doc, agora médico de pleno direito, depois do 25 de Abril e até morrer, em 1990?

Apaixonou-se por Trás-os-Montes, onde fez o Serviço Médico à Periferia, fez medicina do trabalho numa empresa mineira e numa empresa da pesca do alto, praticou clínica geral nas caixas de previdência da margem esquerda do Tejo, integrou-se na carreira de clínica geral, criada em 1983, pediu uma licença sem vencimemto para se poder alistar como voluntário numa ONG francesa que tinha uma missão médica na Amazónia...

Enfim, "ando por aí", como me garantiu, "a ver se ainda consigo reconciliar-me com a humanidade"... Mas nunca mais voltou à Guiné. Uma vez por outra falavámos ao telefone, ele é que me ligava (em geral, pelos meus anos), eu nunca sabia ao certo por onde ele parava... Gostava de cultivar o mistério de uma certa clandestinidade.

Tinha-me manifestado o interesse em tirar o curso de medicina do trabalho, queria fazer algo de  "socialmente útil"... E eu ainda o ajudei a preparar a candidatura. Detestava a "medicina da caixa" que ainda se fazia nesse tempo, por todo o lado... 

Entretanto, deixara de fumar... Tarde demais. O cancro pulmonar começava a cortar-lhe as asas dos seus sonhos de liberdade, já de si frágeis e erráticos... Teve altos e baixos, euforias e depressões. Tiraram-lhe um pulmão...

Finalmente, foi pela Mena, a irmã, que eu soube que ele estava a morrer. No hospital, num pequeno quarto escuro, ao fim de um corredor sombrio, por ironia a escassas centenas de metros do meu gabinete de trabalho… Um pneumologista,  seu conhecido do tempo de Coimbra, havia-o admitido no seu serviço. Por caridade. Para ali morrer, sozinho como um cão.

© Luís Graça (2020). Revisto: 19 de agosto de 2023.
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quarta-feira, 16 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23084: Passatempos de verão (28): Nova Lamego, CART 2479/CART 11 (1969/70), escola de cabos: duas fotos, sete diferenças (Valdemar Queiroz)


Foto nº 1 > Guiné > Zona leste > Região de Gabu > Nova Lamego > CART 2479 / CART 11 (1969/70) > Escola de cabos

Foto (e legenda): © Valdemar Queiroz (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.] (*)


Foto nº 2 > "Escolarização nas imediações de um aquartelamento, Guiné-Bissau: um graduado do Exército português ensina Matemática, numa escola improvisada a africanos radicadis naquela colónia"

In: Renato Monteiro e Luís Farinha > "Guerra Colonial: Fotobiografia". Lisboa, Publicações Dom Quixote e Círculo de Leitores, 1990, pág 166.



1. O Valdemar Queiroz mandou-nos, na passada quinta feira, dia 10, estas duas fotos que são parecidas, tiradas no mesmo local, mas são de fotógrafos diferentes... Ou de álbuns diferentes... Ele foi capaz de identificar sete diferenças entre uma e outra...

Ele é um excelente observador, está sozinho em casa, gerindo com estoicismo e inteligência emocional uma doença crónica, tramada, como é a DCOP - Doença Crónica Obstrutiva Pulmonar. A família mais próxima, a do seu filho, está na Holanda. Só vem à rua em caso de extrema necessidade, para abastecer a despensa, por exemplo, ou ir às urgências hospitalares. Muito menos pode abrir as janelas em dias como estes em que o céu de Portugal está estranhamente alaranjado por causa da tempestade de areia que vem do deserto do Saara.

Vamos colaborar com ele neste "passatempo"... Vamos ajudá-lo também a amenizar a sua dura jornada diária. Ele já nos confessou que o nosso blogue é, para ele, uma companhia diária imprescindível. E está grato a quem, de vez em quando, se lembra dele e lhe telefona.

Ainda não é verão (há de chegar, no seu devido tempo, haja saúde e paz!), mas vamos publicá-lo na nossa série "Passatempos de verão" (**).

Criada em 22/7/2012, a série chamava-se originalmente "Passatempos de verão: Hoje quem faz de editor é o nosso leitor"... Continua a ativa e a fazer apelo à (cri)atividade do leitor. Curiosamente, foi lançada na véspera do "nosso querido mês de agosto", que já não sabemos o que é desde 2019. 

Na altura queríamos chegar, no final do mês de agosto, aos 4 (quatro) milhões de visualizações... e no final do ano  de 2012 aos 600 (seiscentos) grã-tabanqueiros (membros registados na Tabanca Grande). 

Neste momento (março de 2022)  já chegámos aos 13,4 milhões de visualizações e aos 858 membros da Tabanca Grande.

PASSATEMPO

"Bom Observador: Quais as sete diferenças entre as duas imagens?" (Foto nº 1 e foto nº 2)


Soluções num próximo poste.


Saúde da Boa,
Valdemar Queiroz

PS - Luís: quando publicares no blogue este meu Passatempo, se quiseres podes fazer referência à fotografia que aparece no livro "Guerra Colonial: Fotobiografia", mas essa foto [a nº 2] é do Cândido Cunha que a emprestou ao Renato Monteiro para o efeito.


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Notas do editor:

sábado, 6 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22692: Banco do Afeto contra a Solidão (26): "Por favor telefonem-me, mandem-me um email, visitem-me!", um apelo dramátrico do Jorge Cabral, sozinho em casa, no Monte Estoril, em lutar contra o raio da doença


Foto de perfil do Jorge Almeida Cabral, "uma velhote simpático, gentil, afectuoso..." > Página do Facebook > 2 de novembro de 2021

 
Página do Facebook  do Jorge Almeida Cabral > Uma foto que tem 9 anos > O professor rodeado das saus queridas "almas"... A foto foi postada pela Patrícia Cunha, em 28 de outubro de 2021...


Página do Facebook  do Jorge Almeida Cabral > 3 de novembro de 2021 > A Sílvia Araújo Martins foi visitá-lo em casa e tirou esta selfie...


Guiné > Região de Bafatá > Bambadinca (Sector L1) > Missirá  > Pel Caç Nat 63 > 1971 > " Mato a sul, mato a norte, mato a este, mato a oeste...1971". À esquerda, à civil, o comandante do destacamento, alf mil at art Jorge Cabral... O Jorge republicou esta velha foto em 28 de outubro de 2021... Tem-no feito, de resto,  com outras, as poucas que lhe restam... As memórias da Guiné ajudam-no a superar a dor, a depressão, a solidão...

Fotos reproduzidas aqui com a devida vénia... Editadas por L.G.


1. O nosso querido amigo e camarada "alfero Cabral", nosso colaborador permanente, está há meses em tratamento devido a doença do foro oncológico.  Vive agora no Monte Estoril, perto do  filho, Tenho um neto. Mas sente-só e com sintomas de depressão. Vale-lhe o Facebook e o carinho das suas antigas alunas do Instituto Superior de Serviço Social de Lisboa, com instalações no Mitelo... Não sou "facebook...eiro", raramemte espreito as páginas do Facebook de amigos e camaradas. Tenho uma, onde não vou há mais de um década... (Nâo confundir com a Tabanca Grande Luís Graça, que não é uma pagina pessoal...). 

Mas hoje passei por lá  e fiquei chocado,com esta mensagem:

Minhas Queridas Ex-Alunas que comemoram os 30 anos do Mitelo. 

Como sabem,  luto pela Vida. 

Sabem também que lamento não poder comparecer. 

Após 4 meses de tratamentos,  a evolução não é positiva e não saio de casa há mais de um mês. 

Claro que caí em depressão profunda... 

Mas o meu Amor por vós continua intacto, como os amores antigos que só terminarão com a morte. 

Gostava  muito que me visitassem. Monte Estoril, Av Sabóia 595 B Apart.12,.  ao lado do Restaurante " O Sinaleiro". 

Sempre vosso. Jorge Cabral.

2.  E já antes o Jorge tinha deixado o seu endereço de email e o seu número de telemóvel nas redes sociais. Como quem diz, "Minhas almas, telefonem-me, visitem-me!"... 

Anteontem escreveu: 

"Há tempos o meu filho ofereceu- me um Telemóvel, útimo modelo. Era tão complicado que não consegui adaptar-me. Assim troquei. por este que deve ser do século xll. Por isso vos alertei Já recebi 83 msgs,que não posso ler, Por favor repitam por mail."

Mail: almacabral@gmail.com

Telemóvel: 967 865 576

De tenpos a tenpos (,em boa verdade, menos de meia dúzia de vezes por ano...)  telefono-me e adivinho, por detrás das suas palavras lacónicas, e da sua desconcertante auto-ironia  um homem em sofrimento e prisioneiro da solidão. Há dias disse -me que estava com dores insuportáveis. Mal deu para falar... Mudara-se há tempos de Lisboa para o Monte Estoril. Está a ser seguido pelo Hospital de Cascais.

Hoje, 6 de novembro, o Jorge faz anos. Temos que o ir buscar, se não fisicamente, pelo menos  virtualmente, e põ-lo no "Banco do Afecto contra a Solidão" (*). 

Premonicamente foi ele que deu início a esta série. Escrevei ele em 4 de dezembro de 2008, algo premonitoriamente o seguinte (**): 

"Hoje mando uma estória diferente.Nem triste nem alegre. Real,  sim. Convém lembrar que nem só do pão vive o Homem. Apetece-me fundar o Banco do Afecto contra a Solidão. Jorge Cabral".
___________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 31 de janeiro de  2020 > Guiné 61/74 - P20609: Banco do Afeto contra a Solidão (25): Comandei um secção de morteiros em Gadamael Porto, fiquei surdo e recebo 37 euros mensais, inicialmente pagos pela Caixa Nacional das Doenças Profissionais (Mário Gaspar, ex-Fur Mil At Art, Minas e Armadilhas, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68)

(**) Vd. poste de 4 de dezembro de  2008 > Guiné 63/74 - P3562: Banco do Afecto contra a Solidão (1): A última comissão do Coronel (Jorge Cabral)

segunda-feira, 3 de maio de 2021

Guiné 61/74 - P22168: Desaparecido do nosso radar (1): António Duarte de Paiva, ex-sold cond ambulâncias, HM 241, Bissau, 1968/70







1.  A propósiio do Dia da Mãe e do belíssimo texto escrito pelo Francisco Baptista (*) ("as nossas não se esquecem, nunca morrem"), foi "respescar" o primeiro poste da série, "As Nossas Mães", escrito pelo António Paiva (**).

É um poema pungente, escrito pela mãe do nosso camarada, Leopoldina Duarte: "Recordação da Saudade"... com a seguinte nota de rodapá: "O que fez uma mãe dominada pela dor"... O texto merece ser de novo reproduzido... Na altura, o Paiva explicou-nos a sua origem:

(...) "Andando por aqui, nesta casa,  só, vasculhando malas e caixinhas, algumas do meu tempo de menino, pertences de minha mãe que me deixou em 1996, sou surpreendido por uma folha de papel dobrada em 12 partes, da qual não tenho a mínima ideia de ter tido conhecimento e com os nossos tertulianos quero partilhar. Minha mãe também a eles se dirigia.

 (...) "Minha mãe, mal sabia ler ou escrever, mas em quadras soltas era mestra. Hoje tenho pena de nunca ter escrito o que ela dizia. Não sei quem lhe escreveu isto à máquina, mas pouco importa. Está com data de 10 de Dezembro de 1969, em cima, mas não consegui aqui no scan apanhar data e assinatura, preferi a assinatura Leopoldina Duarte." (...)

Recordação da Saudade

Meu filho, a tua mãe
Tanto suspira por ti,
Até chego a pensar
Que não te lembras de mim.

Se tu soubesses, meu filho,
O amor que a tua mãe te tem,
Vejo vir os aviões
E notícias tuas não vêm.

Será que tu me esqueceste
Ou a carta se perdeu ?
Mas perdoa-me, meu amor,
Se a criminosa sou eu.

Tinha a carta quase feita
E ainda fui ao correio,
Agora estou satisfeita
Porque a notícia já veio.

Lá vinha o meu querido filho
A ler o que me mandava,
Com uma cara de riso
E eu com saudades chorava.

Agora estou satisfeita
Assim como tu também,
Já recebeste notícias
Da tua mãe por alguém.

Adeus, meu filho querido,
Eu do coração te peço
Que não esqueças a tua mãe
Que aguarda o teu regresso.

Trago-te no coração
Mas ando sempre em cuidados,
Daqui mando um forte abraço
Para todos os nossos soldados.

Eu aqui peço, a Deus
E à Virgem Santa Maria,
Que seja a vossa protectora
E de todos a vossa guia.

Adeus, amor, que eu cá fico,
Com o coração em pedaços
E saudades de não te ver
Para te apertar nos meus braços.

Leopoldina Duarte

[Revisão e fixação do texto: L.G.]

2. O António Paiva desapareceu literalmente do nosso radar muiti antes de 2018... E há 99,9% de probabilidades de já ter morrido... Já em 2017 (e antes) os problemas de saúde o atormentavam, para além da solidão... Creio que foi por essa altura que falei com ele, ao telemóvel, e soube que estava a ser tratado no IPO de Lisboa. Tentei ajudá-lo com contactos.

Simplesmente, até agora ainda não encontrei nenhuma fonte, escrita ou verbal, que confirme a funesta notícia  da sua morte. O seu telemóvel deixou de tocar. O seu mail, antoniodpaiva@gmail.com, deixou de responder. O último mail que lhe mandámos dizia o seguinte_:

Assunto - O que é feito de ti, camarada ?
Data - 15/12/2018, 22:49

António: boa noite, precisamos...da tua prova de vida!... Vamos saber se este teu endereço de email ainda está ativo... Tudo OK ? Luís Graça


Ele tinha entrado para a Tabana Grande em 2008 (***). E quem mais lidou com ele foi o nosso coeditor Carlos Vinhal. 

No final de 2008 descobtriu-nos com grande alegria e entusiasmo e fez um esforço por melhorar as suas competências em matéria de literacia informática de modo a acompanhar-nos... Publicámos inclusive algumas das suas histórias, mais de uma dúzia (****).. Descobriu ainda, através do nosso blogue (e conviveu ainda com)  alguns dos nossos camaradas que prestaram serviço no HM 241 como o Manuel Freitas.

Fazia anos em 16 de dezembro, tendo nascido em 1946 (*****).



Lisboa, CulturGest > 13 de Maio de 2011 >  O António Paiva e a Giselda Pessoa numa aparição pública a propósito do filme "Quem Vai à Guerra", da jovem realizadora Marta Pessoa em cuja elenco entraram, além da Giselda, as nossas grã-tabanqueiras, Maria Arminda, Rosa Serra e Maria Alice Carneiro.

Foto (e legenda): © Miguel Pessoa(2011). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís GRaça & Camaradas da Guiné]

3. Conhecemo-nos pessoalmente, julgo eu, em 2011, na altura da apresentação do filme da Marta Pessoa, "Quem Vai à Guerra". Depois disso, a sua colaboração no nosso blogue tornou.se mais esparsa (******). Mas mandava-nos todos os anos as "boas festas"...até 2015.

Em 16 de dezembro de 2018, o nosso coeditor Carlos Vinhal escreveu a seguinte nota no seu último cartão de parabéns: 

(...) As últimas notícias que tivemos do nosso amigo António [Duarte] Paiva davam conta de que ele estava muito doente. Chegou a ir à Tabanca da Linha e a outros convívios. Vivia muito só. Telefonou em tempos ao nosso editor a pedir ajuda. Agradecemos desde já a quem nos possa actualizar o seu estado de saúde uma vez que não é possível aceder ao seu telemóvel. Talvez o Manuel Freitas, de Espinho, que organiza o convívio anual do pessoal do HM 241 (Bissau), nos possa dar alguma pista. Oxalá tenhamos hoje boas notícias do Paiva, mas o Juvenal Amado diz-nos que o nº de telemóvel que nós tínhamos até 2016, não está atribuído, o que é mau sinal.(...)

Também não tinha página no Facebook, não fazendo parte dos amigos da Tabanca Grande Luís Graça.  Em 30 de setembro de 2010, tinha mudado de endereço de email, alegadamenet por razões de segurança:

"Caro Carlos: Suspeitando de mãos alheias a entrarem no meu correio, me vi forçado a alterar o meu e-mail. Se algum camarada recebeu e-mail com escritos em meu desabono, ou mesmo servindo-se do meu mail para tal, agradeço que me informem, para que não fiquem a pairar no ar duvidas sobre a minha pessoa. Não enviar nada para o e-mail anterior." (...)

Tudo indica, infelizmente, que o António Duarte de Paiva nos tenha deixado definitivamente, sem tempo sequer para se despedir de todos nós.  Não tinha família nem amigos próximos. Não será caso virgem: ao perfazermos 17 anos de existência, há muitos camaradas de quem deixámos de ter notícias. Nalguns casos, como o do António Paiva, podemos temer o pior. (LG)

__________

Notas do editor:



(****) Vd. postes de:


24 de nvembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3511: O meu baptismo de fogo (23): Uma vacina para o enjoo... (António Paiva)

13 de dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3615: Histórias de um condutor do HM 241 (António Paiva) (1): Corrida com triste fim

17 de dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3641: Histórias de um condutor do HM 241 (António Paiva) (2): Aventura de Domingo

22 de janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3775: Histórias de um condutor do HM 241 (António Paiva) (3): Ir a Mansoa, não é perigoso?

20 de fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3917: Histórias de um condutor do HM 241 (António Paiva) (4): Não cobiçar a mulher do próximo

20 de março de 2009 > Guiné 63/74 - P4058: Memória dos lugares (20): Hospital Militar 241 de Bissau (António Paiva)

5 de abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4143: Histórias de um condutor do HM 241 (António Paiva ) (5): A Justiça Militar ou um processo... kafkiano

17 de abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4203: Histórias de um condutor do HM 241 (António Paiva) (6): É uma alegria a notícia de que se vai ser pai

28 de maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4432: Histórias de um condutor do HM 241 (António Paiva) (7): 4 dias de inferno em Junho de 1969

30 de junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4613: Histórias de um condutor do HM 241 (António Paiva) (8): Pôr os pontos nos "is"

2 de julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4629: Histórias de um condutor do HM 241 (António Paiva) (9): Dois pequenos amigos de quatro patas

30 de março de 2010 > Guiné 63/74 - P6075: Histórias de um condutor do HM 241 (António Paiva) (10): Quando a missão não deixa ver

30 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6075: Histórias de um condutor do HM 241 (António Paiva) (11): Quando a missão não deixa ver




20 de julho de 2011  > Guiné 63/74 - P8580: Ordem de Serviço de 1970 do HM 241 de Bissau, uma relíquia com 41 anos (António Paiva)