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sexta-feira, 23 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23641: Companhias e outras subunidades sem representantes na Tabanca Grande (4): CCAÇ 2637, mobilizada pelo BII 18, Ponta Delgada, Açores (Teixeira Pinto, 1969/71), e a que pertenceu o fur mil enf Fernando Almeida Serrano, natural de Penamacor e futuro novo membro da Tabanca Grande




Guião e crachá da CCAÇ 2637 (Teixeira Pinto, 1969/71). 

Coleção: Carlos Coutinho (com a devida vénia...)


1. Ontem, no 49º almoço-convívio da Magnífica Tabanca da Linha, em Algés, fiquei,  na mesa,  ao lado do camarada Fernando Almeida Serrano. Foi a segnda vez que ele veio a esta tertúlia, onde não conhecia ninguém. Fui eu que o puxei para a minha mesa. E tivémos uma longa, agradável, franca e proveitosa conversa. 

Fiquei a saber que era professor primário, natural de Penamacor,  conterrâneo, amigo, colega e camarada do Libério Lopes (ex-2º srgt mil, CCAÇ 526, Bambadinca e Xime, 1963/65). Falámos também da sua terra, e do seu ilustre conterrâneo, o médico cristão novo António Nunes Ribeiro Sanches (Penamacor, 1699 - Paris, 1783), cujas obras  (as principais, em edição moderna da Universidade da Beira Interior, em formato pdf), lhe fiquei de mandar uma cópia em próxima oportunidade. (É um dos grandes pioneiros da saúde pública, e o nosso maior médico do séc. XVIII, especialista em "males de amores", e figura que eu muito admiro; é o único português que tem uma entrada na famosa enciclopédia de Diderot e D'Alambert, Paris, 1751-1772, justamente sobre "venerologia": "Maladie vénérienne inflamatoire chronique", ou seja, "doença venérea inflamatória crónica").

O Fernando reside desde 1972 em Carnaxide, Oeiras onde deu aulas juntamente com a esposa.  Foi furriel mil enfermeiro da "açoriana" CCAÇ 2637 (Teixeira Pinto, 1969/71), de que, como é frequente, com as unidades moblizadas pelo BII 18, Ponta Delgada (e também BII 17 e BII 19), não temos nenhum representante na Tabanca Grande... A emigraçao, nomeadamente transatlântica, levou para longe muitos dos nossos camaradas açorianos e madeirenses. 

O Fernando Almeida Serrano conhece o nosso blogue e manifestou vontade em juntar-se aos 864 membros da Tabanca Grande. Tem uma forte ligação aos seus "irmãos açorianos", se bem que muitos dos antigos militares da CCAÇ 2637, tenham seguido os caminhos da emigração.  A sua casa é a casa deles, qaundo vêm ao Continente, e a casa deles, nos Açores, é a sua casa, quando ele lá vai.   

Tem uma página na Net, que eu ainda não localizei, "Guiné-Recordações" (julgamos que se trata de uma página no Facebook, de um grupo privado, com 5 mil membros, criado há 2 anos). Tem também página pessoal no Facebook. É amigo (e cunhado) do nosso grã-tabanqueiro, ten cor art ref, José Francisco Robalo Borrego (qye foi fur art,  Grupo de Artilharia n.º 7 de Bissau, e 9.º Pel Art, Bajocunda, 1970/72). Aporesentei-o ao António Graça de Abreu, que esteve em Teixeira Pinto, no CAOP1, em 1972, ao tempo do coronel paraqueista Rafael Durão, mas não chegaram a estar juntos, o Fernando e o António, já que a CCAÇ 2673 terminou a sua comissão em agosto de 1971.

Publicamos, para já a ficha da unidade, referente a esta companhia, mobilizada pelo BII 18.


Ficha de Unidade > Companhia de Caçadores nº 2637

Identificação: CCaç 2637

Unidade Mob: BII 18 - Ponta Delgada

Crndt: Cap Inf José Cândido de Oliveira Bessa Meneses

Divisa: "As armas não deixarão enquanto a vida não os deixar"

Partida: Embarque em 220ut69; desembarque em 280ut69 | Regresso: Embarque em OçSet71


Síntese da Actividade Operacional

Em 300ut69, seguiu para Teixeira Pinto, a fim de efectuar o treino operacional sob orientação do BCaç 2845 e substituir a CCaç 2368 no reforço àquele batalhão e depois ao BCaç 2905, como subunidade de intervenção e reserva do sector, a partir de 17Dez69, tendo realizado diversas acções nas regiões de Pechilal, Bajope e Belenguerez, entre outras.

Em 07Jan70, mantendo o comando em Teixeira Pinto, passou a orientar a sua actividade para a realização dos trabalhos dos reordenamentos de Bassarel, Bajope, Chulame, Blequisse e Batucar, este último até 150ut70, e para a promoção socioeconómica das respectivas populações.

Em 28Jun71, com a instalação da CCaç 3327 em Bassarel, transferiu a sua sede, temporariamente, para o reordenamento de Chulame, permanecendo efectivos da subunidade nos reordenamentos de Bajope e Blequisse.

Em 20Ago71, foi substituída nos reordenamentos por efectivos da CCaç 3327 e recolheu a Bissau, a fim de aguardar o embarque de regresso.

Observações > Tem História da Unidade (Caixa n.º 86 - 2.ª Div/4ª Sec, do AHM)

Fonte: Excerto de Portugal. Estado-Maior do Exército. Comissão para o Estudo das Campanhas de África, 1961-1974 [CECA] - Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974). 7.º volume: fichas das unidades. Tomo II: Guiné. Lisboa: 2002, pág. 384.

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Nota do editor:

sábado, 9 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23418: Os nossos seres, saberes e lazeres (511): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (58): De novo em São Miguel, é infindável a romagem de saudade - 3 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Maio de 2022:

Queridos amigos,
Prossegue a romagem em território onde se viveu alguns meses, vai para 55 anos, tudo começou em Mafra, da Ilha de São Miguel se saltou para a Amadora para formar batalhão, dado como ideologicamente inapto fui recambiado para a rendição individual. Por desígnios da roda da fortuna até nasceu na Guiné uma grata amizade com médico oftalmologista, era inevitável deambular por lugares e espaços associados a gratas recordações, no dia-a-dia, após trabalho no quartel, era por aqui que se andava pelo próprio passo, e jamais esqueceu o aprazimento de tais vivências. Agora vai-se até ao interior, até à Bretanha e aos Mosteiros, requintes do rochedo vulcânico em perpétua conversa com a espuma do oceano.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (58):
De novo em São Miguel, é infindável a romagem de saudade - 3


Mário Beja Santos

É imperioso regressar aos meus lugares mágicos, àqueles a que me afeiçoei, vai para cinquenta a e cinco anos. Era aqui à esquina, vindo da Rua de Lisboa, e depois de tomar o pequeno-almoço no mesmo local, merecendo sempre a distinção de um pãozinho quente com queijo da Ilha e galão, que tomávamos a viatura militar que nos conduzia aos Arrifes, o meu camarada Vasconcelos Raposo limitava-se a sair do Palácio da Conceição, onde vivia o Governador, lá íamos na caixa todos a monte, eram cerca de 7 quilómetros até chegarmos ao Batalhão Independente de Infantaria N.º 18, era seu comandante um distinto oficial Clodomiro Sá Viana de Alvarenga, demitiu-me de gerente de messe, eu, para evitar ficar encalacrado com dívidas, pus os oficiais a chicharro, ovos preparados de toda a maneira, carne guisada, houve levantamento, era gente fina, de boca delicada, agradeci a demissão, deixei as contas em ordem, passei a dormir sossegado, quem me antecedeu passou de facto um mau bocado, teve que desembolsar cerca de 100 contos, eu vivia a contar os meus 1100 escudos, até deu para convidar a minha mãe a visitar esta terra dos meus sonhos.
Aqui vim pedir, antes de regressar ao Continente, que o meu amado Jesus me desse o bom comando, saber ajudar, ser destemido e dar o melhor aos subordinados. Por razões que a Deus pertence, fui ouvido, deram-me bravos soldados guineenses para comandar, é um outro território de saudades, complementar a este. A imagem deste Deus-Homem sempre me acompanhou, sempre nos demos muito bem, irrecusável era esta visita, na parede lateral a este computador em que escrevo tenho uma réplica no registo do Senhor Santo Cristo feito por uma artífice de gabarito, a Graça Páscoa.
A igreja tem muita harmonia e belíssimos azulejos. Como gosto de apreciar a devoção alheia, espequei-me a ver quem entra, e de facto o ponto magnético é aquela grade, no ponto oposto a esta imagem, onde se conserva a relíquia que qualquer açoriano invoca, não só os tementes, mas todos aqueles que nesta relíquia encontram um dado indispensável do seu bilhete de identidade, faz parte da sua pertença.
Imagine-se, no sétimo ano dos liceus dávamos literatura do século XIX, e falava-se nos sonetos de Antero, o meu professor, Padre António Dias de Magalhães, estudara-o afincadamente, criava aos alunos uma atmosfera tão forte que era impossível não deixar de ficar impressionado com aquele Santo Antero que num ato de desvairo, num banco que tinha por cima a palavra Esperança pôs termo à vida, ainda hoje me perturba o que leva o ser humano ao suicídio, aqui fiquei em contemplação, não há nada como amar a vida até ao último dia, na ciência de que devemos dar a nós e aos outros de acordo com os talentos recebidos.
Perco-me a ver estes motivos da calçada, todos tão engenhosos e felizmente tão bem cuidados, há seguramente um apreço cultural nesta minha ilha mágica pelo chão bem tratado, a presença constante da lava que o Homem domestica para sua comodidade.
Aqui me venho prostrar diante deste altar que me parece uma renda de bilros, nada sei sobre esta devoção a São Sebastião, é um templo grandioso marcado pelo gosto dos primitivos povoadores (há dias, a ver o livro da minha neta de História e Geografia encontrei a barbaridade de se falar em colonização dos Açores, como é que é possível não se saber a diferença entre colonização e povoamento?), temos aqui bastante requinte manuelino, muito barroco, o templo é gracioso, impossível não percorrer os altares, primeiro o altar-mor, e depois as devoções, como aqui se mostram.
Vinha com a fisgada de poder visitar o tesouro, conversei com o sacerdote, tinha trabalho litúrgico pela frente, vinha acompanhado de um inglês e queria mostrar-lhe duas dalmáticas e duas casulas do século XIV, do que me foi dado perceber alfaias religiosas adquiridas depois da Reforma, aqui vieram parar, mas há muitos mais outros tesouros para ver, seguramente fica para a próxima viagem.
Tive sorte com a hora do dia, uma luz crua que não permite contraste com os tons de alvenaria e o rendilhado manuelino, tanto da porta principal como da lateral, com estes belos medalhões, a Igreja de São Sebastião tem conhecido intervenções capazes, não vejo nada desfigurado, é sempre com satisfação que ando à volta deste belo património, outro traço da identidade nacional, é com orgulho que olho para estes primeiros traçados da aventura portuguesa fora do Continente Europeu.
Finalizo por ora esta deambulação, primeiro as Portas da Cidade, todos os dias aqui me vinha enamorar deste ornamento de pedra que possui o dom não de ser volátil, mas de abraçar quem chega. E ali perto vejo a fachada de um prédio onde, no primeiro andar ia visitar José Luís Bettencourt Botelho de Melo, tudo começou na Guiné, limpou-me os olhos depois de uma mina anticarro, nasceu uma linda amizade, veja-se esta foto ali na praia do Pópulo, fomos comer, como era da praxe, os filetes de abrótea, na companhia da filha. Melancolia, perdi o amigo que aqui me recebia sempre de braços abertos. Deixo aqui o meu preito de homenagem.
(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 2 DE JULHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23404: Os nossos seres, saberes e lazeres (510): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (57): De novo em São Miguel, é infindável a romagem de saudade - 2 (Mário Beja Santos)

sábado, 25 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23383: Os nossos seres, saberes e lazeres (509): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (56): De novo em São Miguel, é infindável a romagem de saudade - 1 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Abril de 2022:

Queridos amigos,
Era fatal como o destino, a primeira ancoragem depois do confinamento tinha de ser aqui, por razões do coração, pela aprendizagem recebida, há bem mais de meio séculos atrás. Em qualquer um destes lugares desta ilha, digo-o sem fanfarra, devo ter posto os pés. Logo à chegada à Lagoa, é assim que esvoaçam as lembranças, me recordei daquele Natal de 1967, que foi preparatório do milagre que se deu no Natal de Missirá, no ano seguinte, graças a mãos amigas, andei a saudar quem tinha feito a recruta comigo, andei pela Ribeira das Tainhas, Remédios, Lomba da Maia, Ribeirinha, e muitíssimo mais, as viagens multiplicaram-se, entranhou-se o gosto por este mundo ilhéu, o seu falar doce, com um picante um tanto francês, um certo espavento quando os familiares e os amigos se encontram, a gostosa comida e doçaria, tudo somado e multiplicado em trouxe a São Miguel, e já no rescaldo anda por aqui uma moinha a pedir para voltar.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (56):
De novo em São Miguel, é infindável a romagem de saudade - 1


Mário Beja Santos

Aqui arribei no início da segunda semana de outubro de 1967, promovido a aspirante fui recambiado para dar recrutas no Batalhão Independente de Infantaria N.º 18, sito nos Arrifes, a cerca de 7km de Ponta Delgada, aqui tinha quarto, janta, alguns fins de semana por minha conta, o entardecer, o anoitecer, era a descoberta de me ter por conta e risco, e sem nenhuma ilusão de que em breve seria convocado para uma área de combate nas Áfricas. Ainda não contei tudo sobre este período de felicidade, as amizades feitas e duradouras, a descoberta desta ilha esplendente, o prazer de conversar e ouvir o acento tão melódico do ilhéu, uma linguagem ímpar. Fizera a jura ser aqui a primeira deslocação depois do período do confinamento, vim em romagem de saudade, mesmo de gratidão, pois foi aqui que pude sentir, naquela convivência das recrutas, que possuía algum dom para a liderança, muito jeito me deu para a vida que levei até agosto de 1970, depois mudei de agulha, até na vida profissional fugi do comando, adquiri outros interesses. Guardo ainda a imagem daquele meio da tarde em que o Carvalho Araújo sulcava em direção a Ponta Delgada, sempre em paralelo com aquelas reentrâncias, falésias a pique, rochedos de negrume, a bruteza das águas a espumar sobre as penedias, a alvura das casas, um belo contraste, as grotas a verter caudais de água, como toda aquela massa vulcânica expelisse em permanência todo aquele líquido, por desnecessário. Aqui cheguei, era o fim do inverno, mão amiga me acompanhou até à Lagoa, havia que amesendar, foi um luxo, não pelo queijo fresco com pimenta da terra ou as lapas com molho Afonso, o banquete foi um peixe porco bem grelhado, inhames, legumes saborosos, e vinho do Pico para apaladar. Pois a primeira imagem era para homenagear quem preparou o banquete, aqui se mostra uma área portuária da Lagoa, tudo me remeteu para aquela segunda semana de outubro de 1967, a era do meu descobrimento.
Depois da Lagoa, pedi ao meu anfitrião que me deixasse ver as praias, muito antes do Pópulo temos a praia das Milícias, que tanto aprecio, sempre me deslumbrou esta articulação entre a rocha verdejante, a areia e a ondulação. Melhor receção eu não podia ter. Arrumada a tralha na cidade, houve o gosto de ir até aos jardins, todos eles são assombrosos.
Ponta Delgada tem alguns dos jardins mais aprazíveis que eu conheço, o Jácome Correia, foi palácio de marqueses, hoje é residência oficial do presidente do Governo Regional; o de José do Canto, outra formosura, tal como o jardim botânico António Borges, também cheio de plantas exóticas, é delicioso estar sentado num banco de jardim a contemplar o monumento a Antero de Quental, bem perto da biblioteca municipal da Igreja do Colégio, hoje núcleo de arte sacra do museu Carlos Machado. Mas tive saudades do jardim da Universidade dos Açores, aqui me receberam para palestrar, aqui entrevistei para um programa de televisão o professor Vasco Garcia, aqui vim visitar um querido professor, Machado Pires, que foi reitor desta casa. É um jardim modesto, mas tem o quanto basta para me lavar a alma, os metrosideros, as araucárias, as estrelícias, a terbentina, as obrigatórias azálias, a fiteira, a sumaúma, o dragoeiro. Entro no jardim e demoro a ver estas raízes que lutam contra o asfalto, bem podemos molestar a natureza, no fim ela é sempre imperativa e possidente.
Está no ADN do ilhéu a convivência floral, os primitivos povoadores, os que desembarcaram no que hoje se chama a Povoação devem ter ficado estarrecidos com tanto matagal, houve que o desbastar para produzir comida e habitação, tudo sempre cheio de temores, segundo o grande cronista Gaspar Frutuoso, viviam aterrados com os roncos que vinham do Vale das Furnas, houve quem pensasse que para lá daquela imensidão verde havia um inferno. A jardinagem e o gosto pelas flores faz parte do direito costumeiro, mesmo aqui, que não é um ambiente luxuriante como no jardim António Borges, onde não há nem estufas nem pavimentos em bagacina vermelha, apetece contemplar estes troncos rugosos, talvez fibras para têxteis ou cordas de ancoragem, ou cestas, esta palmeiras que lembram coqueiros, o dragoeiro com a sua seiva vermelha, lá fora, isso sim, proliferam os plátanos, permanentes sentinelas nas estradas.
E não falta uma gruta, já vi arcos armados em rocha vulcânica, aqui é tudo singelo, tudo rocha vulcânica, não há chamamento ao mistério ou caminhos sinuosos, ela lá se impõe e nos chama à atenção no meio de intensa vegetação.
Anoiteceu e ando em busca do meu passado, ali mais ou menos em frente à torre da Câmara Municipal e não longe da estátua dedicada ao Arcanjo havia um café-restaurante onde eu era comensal. Estou no Largo da Matriz, em frente de uma porta lateral ao sabor manuelino, mais tarde aqui irei entrar, sempre deambulei por estas Portas da Cidade, e percorria a avenida Infante D. Henrique, e lá longe me era dado avistar, entre as brumas, todas aquelas penedias em direção ao Salto do Cavalo, se não era bem assim eu imaginava. Pois aqui me detive para recordar doces lembranças de há 55 anos atrás.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 18 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23363: Os nossos seres, saberes e lazeres (508): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (55): Christine Garnier na Guiné e nos Açores (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 24 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20897: Esboços para um romance - I (Mário Beja Santos): Peço a Deus que tu regresses são e salvo (4)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Fevereiro de 2020:

Queridos amigos,
Vou a caminho dos 23 anos, saí definitivamente de casa, ganho consciência de que posso comandar homens sem voz do trovão nem requintes de militarão. É a primeira vez na vida que tenho que gerir os meus tostões, sem pedir nada a ninguém. E em menos de seis meses sou alvo de um acolhimento excecional, faço amizades inquebrantáveis, senti-me confortado por trabalhar e viver num local paradisíaco.
Terei ainda o privilégio, nos 50 anos subsequentes, de ir acompanhando as transformações que se irão operar nesta região atlântica, um dos pontos do meu país que mais progrediu.
Aquele dia de outubro de 1967, a minha mãe agarrou-se dizendo que pedia a Deus que eu regressasse são e salvo, parecia que eu ia fazer uma expedição para o Ártico, era a separação, agarrar-se-á com a mesma fortaleza um ano depois, em 24 de julho de 1968, com o mesmo apelo ao divino. Tudo correu de feição, e quer os Açores quer a Guiné marcaram-me indelevelmente, tal como o amor que a minha mãe me deu.

Um abraço do
Mário


Peço a Deus que tu regresses são e salvo (4)

Mário Beja Santos

Estou a pagar o preço de remexer em papéis que tinham ficado intocados durante décadas. E de uma gaveta há muito fechada à chave a minha filha entrega-me uma bandejinha de prata, que na época recebi com tanta emoção, recordação do 5.º Pelotão, tem no verso o nome da ourivesaria, Martins do Vale & Irmão, LDA., Rua Machado dos Santos, 89-91, Ponta Delgada, posso imaginar o que significou esta prova de gratidão para quem a deu e a recebeu. Não merecia ter ficado tanto tempo escondida, tratada como peça de sótão, fui buscar um limpa-metais, removeu-se a injusta negridão, um tanto às três pancadas, ainda há marcas de cré, limpar-se-á melhor depois, para pôr em lugar de destaque, era imperioso aqui se expor e agradecer, com eterna lembrança aos autores da dádiva.


Falei dos primeiros passeios, daquele deslumbramento progressivo, a descoberta da costa norte, o ficar especado num miradouro tendo como anfiteatro um casario disperso até ao longe, onde se avistavam as canadas, e depois o abismo sobre o mar, como se caminhasse para o infinito ouvindo o bramido das ondas enfurecidas. A estranheza que me causou aquela areia preta, mas tudo se superava com o fragor de toda aquela massa líquida com espuma alvíssima, o sibilar dos ventos, fazendo dançar as criptomérias e araucárias. E as pastagens, sempre verdejantes, o prazer de iniciar a instrução nos Arrifes tendo como pano de fundo aqueles montes, ouvindo o chocalhar das vacas, em busca de melhor ração. Descobrir a Lagoa das Sete Cidades, passear a toda a volta, foi acontecimento. Mas um dia, esta generosa amiga, Cremilde Tapia, fez questão de me mostrar uma outra feição do mundo genesíaco, a Lagoa do Fogo. Ainda hoje o meu coração balança, porque a memória não me atraiçoa, era um silêncio obsidiante, um ar fresco que me tomava os pulmões e só de quando em quando se ouvia aquele choro convulso dos cagarros, imagine-se, e isto não é pura fantasia, que mais tarde, nas noites expetantes de Missirá, andando a fazer a ronda junto dos postos de vigilância, conversando baixinho para quem policiava a mata em derredor, o choro das hienas, lembram crianças perdidas na floresta, pois nesses instantes, associava aquele choro aos cagarros, que descobrira na Ilha de São Miguel, um piar tétrico, felizmente, de curta duração.

Lagoa do Fogo

Para onde quer que me voltasse, quando regressava da instrução nos Arrifes, era quase inevitável passar pelo Coliseu, na altura decadente por fora e decadente por dentro. Conversando com os meus instruendos, descobri que uma boa parte deles jamais em tempo algum se tinha sentado numa sala de cinema. Andei às voltas, à espera de uma programação aliciante. E publicitou-se para a semana seguinte Lord Jim, pedi autorização para um transporte militar levar o pelotão dos Arrifes a Ponta Delgada e retorno, jantar cedo para chegar ao cinema um pouco antes das nove horas. Foi um êxito. Os mancebos ali estiveram de olho arregalado até assistir ao sacrifício de Lord Jim, mais de duas horas a fio. Abrira uma boceta de Pandora, outros aspirantes sentiram-se impelidos a repetir o evento com os seus instruendos. Pois sempre que passo por aqui, esta sala lindamente restaurada, lembro-me dessa noite e de gente feliz para quem se rasgara uma nova janela sobre o universo.

Coliseu Micaelense

Retorno à vida extremamente difícil destas famílias dos Arrifes, doía-me as carências alimentares, ver a avidez com que levavam a colher à boca, primeiro a sopa, depois as batatas com atum ou cavala, a satisfação com que partiam com a malga vazia, até à próxima, amanhã queremos saber quando é que volta a ser oficial de dia. Espero que estejam todos vivos, andarão pela casa dos sessenta anos, que a vida não lhes tenha sido madrasta, em S. Miguel, nos States ou no Canadá.


Quando saí de casa, em outubro de 1967, lembrei à minha mãe que quando regressasse iria tratar de mim, queria ser independente. Fiz um longo discurso em que lembrei a dívida impagável pelo amor, pela solicitude, pelo modo como me inculcara valores, merecia uma reforma descansada, sem mais filhos para tratar. Tudo correu às avessas. Não morrera de dois cancros, aquelas pernas começaram a encurvar, sofria horrores, com injeções a frio nos joelhos, o coração não resistiu, cedeu em 20 de janeiro de 1982, tinha 67 anos, vivera em Angola até aos 16, frequentou o curso de Canto no Conservatório, tirou o diploma de Magistério Primário, fez a campanha nacional de educação de adultos, era bibliotecária na Maternidade Dr. Alfredo da Costa. Graças aos amigos açorianos, veio conhecer S. Miguel e eu fiquei imensamente feliz, nessa altura já chegara a notícia de que ia regressar em breve, para formar batalhão, na Amadora.


Eis a minha gente, terá sido a derradeira fotografia de família. Foram mais de cinco meses e meio, duas recrutas em série, conheci alguma da gente mais amável do mundo, recebido com primores de hospitalidade, pela primeira vez na vida geria inteiramente o meu destino, suspirava para que o tempo de guerra passasse depressa, assentara ideias sobre o meu curso universitário. A roda da fortuna balançou em rodopio. Tempos depois de chegar à Amadora, serei dado como “ideologicamente inapto para a guerra de contraguerrilha, mormente no Ultramar Português”. Estava selado o meu destino. Disse-me o major, com sorriso escarninho e o desprezo na beiça, “agora vá infetar os pretos com as suas ideias…”. Aprendera nos Arrifes a ter confiança em mim próprio para aquelas lides militares, o que se seguiu não foi jugo leve, foi só a experiência que me burilou o caráter e me preparou para as tempestades e bonanças com que a vida nos compraz. Agora só me resta um relato, para pôr termo a estas elucubrações de saudade, fazer um curto périplo pelos últimos 50 anos de arrebatada paixão açoriana.


(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 17 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20864: Esboços para um romance - I (Mário Beja Santos): Peço a Deus que tu regresses são e salvo (3)

sexta-feira, 17 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20864: Esboços para um romance - I (Mário Beja Santos): Peço a Deus que tu regresses são e salvo (3)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Fevereiro de 2020:

Queridos amigos,
São reminiscências que vêm a propósito do reencontro com velhas imagens, jacentes num álbum esquecido, não foi felizmente para a Guiné, teria acabado em cinzas. E assim me vieram à mente os primeiros tempos que vivia por conta e risco, sem qualquer vínculo familiar, numa atmosfera de rocha vulcânica e com gente com apelidos para mim pouco frequentes ou completamente novos, como Arruda, Carreiro, Medeiros, Bettencourt, Ávila, Brum, ou Velho Cabral.
Na primeira recruta dada, tinha um intérprete para falar com a gente de Rabo de Peixe, era um falatório que não se entendia. Chegavam circunspectos e intimidados, estes mancebos, conversavam abertamente que se sentiam felizes, havia carne e peixe duas vezes por dia, agradaram-se do banho diário, cabelo cortado e barba a preceito. À noite, rezavam coletivamente o terço na Caserna.
Fiz amizades inquebrantáveis, dolorosamente, vão partindo, um grande amigo, o oftalmologista José Luís Bettencourt Botelho de Melo, que me consertou a vista depois de uma mina anticarro, está no ocaso da vida, depois de um grave acidente cardiovascular.
E a Maria Cremilde Tapia, uma autêntica missionária leiga, partiu recentemente para o lado direito de Deus.
Assim se lançou a semente à terra deste meu amor inconfundível por São Miguel.

Um abraço do
Mário


Peço a Deus que tu regresses são e salvo (3)

Mário Beja Santos

Um tanto familiarizado com a cidade de Ponta Delgada, e enquanto não recebo o acolhimento da família Teves Lemos, por conta própria procuro transportes rodoviários ao fim de semana, quero começar pela Lagoa das Sete Cidades. O autocarro (“a carreira”) sai ao amanhecer de sábado, mal chega à povoação, pouco mais de uma hora depois, descubro que só tenho transporte de regresso ao fim da tarde, e comer nicles, restaurantes ou casas de pasto já no pico do outono é coisa que não existia, lá se negociou com uma particular um pastelão de chouriço com arroz branco e uma sopa de grão com macarronete, almoço inesquecível, a low cost. O dia estava um tanto chocho, o céu com capacete (“forrado”), mas deu perfeitamente para ver na longa deambulação que era local edénico. O tempo passou, e mesmo quando esfriou, alguém nos acolheu até chegar o autocarro, bendita viagem por conta própria. À noite, no café Gil, indaguei junto dos aspirantes micaelenses qual o recanto mais formoso, aventaram-se múltiplas hipóteses, alguém advertiu que nada há de mais celestial que ver nascer o dia na Ponta da Madrugada. Será local que só visitarei décadas depois, confirmando que deve ter sido ali o local genesíaco aonde Deus desenhou a criação do mundo.

Miradouro da Ponta da Madrugada, São Miguel

Percorro nos fins de tarde os locais de devoção. O ponto culminante está no Convento do Campo de São Francisco, onde se guarda a imagem do Senhor Santo Cristo dos Milagres, o Padroeiro supremo na crença açoriana, um busto que nos deixa especados, há naquela escultura e nos traços fisionómicos do Filho de Deus um sofrimento inescapável mas algo nos seus olhos nos transmite a sua capacidade de amor pelos homens, é um sofrimento perpassado pela misericórdia do perdão. E bate à porta das igrejas nesses fins de tarde ventosos ou esfriados, há interiores de templo de opulência discreta e com profundo recolhimento, como esta Igreja de São Pedro, ao tempo já muito perto do fim da marginal, ali havia uma piscina frequentada por gente afoita que víamos nadar em dias ensolarados ou enevoados, nadadores intrépidos.

Interior da Igreja de São Pedro, Ponta Delgada

Momento inesquecível foi a visita que pude organizar para a minha mãe, em casa da família Tapia, deram-lhe cama e mesa e um apetecível itinerário turístico por alguns dos pontos mais retumbantes. A minha mãe aterrou no aerovacas, os mais novos devem pensar tratar-se de uma lenda, era um campo onde as vacas pastoreavam, a torre de controlo informava a hora de aterragem, as vacas eram acolhidas e o avião descia do campo de pastagem, isto num ponto relativamente central, em São Miguel. Eu continuava a dar recruta, estava com a minha mãe ao fim da tarde e fizemos um fim de semana em que se andou pela Bretanha, Mosteiros, Capelas, Lagoa das Furnas, onde não faltou o cozido. Muitos anos depois, a minha mãe ainda falava do passeio à Povoação, ao Faial da Terra, Nordeste e Nordestinho.

Com Cremilde Tapia e a minha mãe

Digo e repito que o mais importante que me aconteceu na mente e no físico graças às duas recrutas dadas nos Arrifes foi descobrir esse dado insólito que era a liderança, tudo genuíno e sem pavoneio, o que era necessário comunicar aos mancebos, desde a simples informação das horas de atividades até às corridas a corta-mato, a carreira de tiro, tudo deslizou sem gritaria nem palavrão, relações sempre aproximadas e festivas, assim emergia um nível de autoridade que foi decisivo em território guineense. Logo a preocupação com o bem-estar desses mancebos que gostavam da comida e das novas práticas de higiene, a afeição das crianças, a procura de atividades lúdicas para o pelotão e houve aquele ponto elevadíssimo que foi o Natal de 1969, em que os marienses ficaram retidos, com lágrima no olho, pois fez-se festa rija, houve missa cantada nos Arrifes e consoada que muitas famílias propiciaram e jamais esqueci essa bondade em hora tão delicada.

Uma nova amizade, o Gabriel calçado e o irmão descalço

Coube-me na rifa o discurso do Juramento de Bandeira, guardei esse papelucho que tanto me deu que fazer, o Comandante do Batalhão, Clodomiro Sá Viana de Alvarenga, de quem corria o rumor de ter estado associado ao golpe de Beja, leu-o previamente, era o que faltava que perante aquelas altas e baixas patentes houvesse o devaneio de dizer uma bojarda contra o regime, pois bem, leu e nada emendou desse meu discurso onde não se falava do regime, nem da guerra, nem do dever pátrio, falava-se do civismo republicano e de ser militar dentro dessa longa tradição de valores de civismo e da proteção da soberania. Aqui fica o registo desse dia e dessa hora, atrás de um megafone com tripé.

Juramento de Bandeira, Arrifes, dezembro de 1967

Tinha perdido o fio a esta imagem, no reverso está a dedicatória para a dama dos meus cuidados, e tem a data de 30 de julho de 1968, primeiro dia em Bissau, seguramente que fui aos CTT com a foto oferecida, e assim a expedi para Lisboa. Ainda estou bem descontraído, só chegarei ao palco da guerra, cinco dias depois, viajarei num barco da mancarra, passarei, já noitinha, e na escuridão total, por Mato de Cão, levo comigo todo o meu enxoval que se irá incendiar em 19 de março de 1969, um garrafão de água e uma ração de combate. Tudo quanto aprendera em Mafra, tudo quanto se exercitara nos Arrifes, tudo quanto fora a minha formação por três mulheres de eleição na formação da minha personalidade, ia ser posto à prova. Mas voltemos a São Miguel, aos amigos e às lides da tropa.

No Uíge, julho de 1968, a Guiné está à vista, e eu ponho o futuro nas mãos de Deus

(continua)
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Nota do editor

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sexta-feira, 10 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20838: Esboços para um romance - I (Mário Beja Santos): Peço a Deus que tu regresses são e salvo (2)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Fevereiro de 2020:

Queridos amigos,
Trata-se de uma revisitação, no meu livro A Viagem do Tangomau, editado pelo Círculo de Leitores em 2012, falo da minha experiência na terra da bagacina, a terrível experiência de ter sido gerente de messe e a indignar desde o primeiro dia os senhores oficiais dando-lhes a comida mais barata, andava por ali o espetro de um anterior gerente de messe que pagava às prestações centenas de contos de prejuízo, felizmente que o Comandante do Batalhão, ele próprio amesendado com a família, me pôs rapidamente na rua.
Tive, nessas recordações do livro, circunstância para falar da descoberta da cidade e de quase toda a ilha, das amizades firmadas, sobretudo com o José Medeiros Ferreira, o casal que me recebeu e onde passava os fins de semana, a fabulosa festa de Natal, expediente encontrado para receber carinhosamente os instruendos marienses, as condições atmosféricas não tinham permitido que fossem passar o Natal à sua ilha, fez-se festa da rija nos Arrifes, com consoada organizada por muitas boas vontades.
O que aqui se conta tem laivos de revisitação, obedece a dois propósitos, homenagear uma amiga recentemente falecida, Cremilde Tapia e saborear uma porção de fotografias recentemente descobertas. Foram tempos que ficaram gravados no meu coração, guardo-lhes devoção e saudade.

Um abraço do
Mário


Peço a Deus que tu regresses são e salvo (2)

Mário Beja Santos

Adaptei-me facilmente à cidade de Ponta Delgada, uma escala perfeitamente humana, ganhei apreço ao basalto e às tonalidades cinza, como se fosse o espetro da lava, as belíssimas calçadas, empedrados perfeitos, passeios muitas vezes estreitos, mas na época o trânsito era reduzido. Regressávamos da instrução, e depois da higiene doméstica, cada um partia para o seu destino, só os continentais é que tinham que tratar de si, os oficiais micaelenses tinham as suas casas. Aluguei quarto na Rua de Lisboa, n.º 31, e era comensal junto do município, um café com porta giratória Arte Deco, o Nacional. Comensal significava que tinha direito a sopa, um prato de peixe ou carne, uma peça de fruta da região (eu pelava-me pelo ananás), havia por vezes uma entrada de queijo fresco com pimenta da terra. As contas bem controladas, um aspirante auferia cerca de 1100 escudos, havia que pagar o quarto, com tratamento de roupas, e as despesas de comensal. Não dava para uma vida estouvada. O Teatro Micaelense oferecia regularmente cinema e concertos com um ou dois solistas, regra-geral artistas em fase de arranque oriundos dos EUA e Canadá. Com bom tempo, ia para o Largo de São Francisco e lia até à hora de jantar. Com mau tempo, ia para o Café Gil onde à noite aparecia o José Medeiros Ferreira, tínhamos estado juntos na recruta e especialidade em Mafra, partiremos de Ponta Delgada para a Amadora, foi nos Açores que firmámos uma gratíssima amizade.

Largo do Município com a estátua de São Miguel Arcanjo, Ponta Delgada

Portas da cidade, Ponta Delgada

Esquina do Largo 2 de Março com vista do Palácio da Conceição, Ponta Delgada

José Medeiros Ferreira

A Avenida Marginal era muitíssimo mais reduzida do que é hoje, agora está totalmente rasgada pela nascente. Os primeiros passeios eram de pura exploração, contemplar a Matriz, manuelina de branca, barroca de negridão basáltica. Barroco é o que não falta em Ponta Delgada. Os antigos conventos do Campo de S. Francisco, o edifício do Museu Carlos Machado (antigo Convento de Santo André), a fachada jesuíta da Igreja do Colégio, ao tempo indisponível ao público, mas só a fachada dava para se ficar um bom tempo a saborear aquela composição paradoxalmente austera e voluptuosa. O século XIX deixou marcas indeléveis na arquitetura, basta pensar no Palácio de Santana.

Teatro Micaelense, Ponta Delgada

Largo de São Francisco, Ponta Delgada

O capelão dos Arrifes era o Padre Couto Tavares, que vivia no seminário. Intrigou-se por eu não ter ali nem família nem amigos, fez questão de me apresentar a um casal que habitava numa moradia na Rua Segunda de Santa Clara, n.º 2, ele, de nome Marino Teves Lemos, ela, Maria, a quem passarei a chamar a “mãe do oceano”. Impuseram que eu ali me fosse amesendar aos sábados e domingos, acedi inicialmente, até porque o Marino se ocupava de uma correspondência colossal com uma obra qualquer relacionada com cursos de cristandade, pôs-me o gira-discos à disposição, um cadeirão confortável, lia e ouvia música. É num desses sábados ou domingos que irrompe pela sala um vozeirão, uma mulher alta com um fato roxo, ia conhecer Maria Cremilde Morgado Tapia, será a madrinha da minha filha Glória, em sua casa, na Rua da Alegria 6A, bem perto da casa de Maria e Marino, elas passarão as férias de Verão, inesquecíveis.

Em casa de Maria e Marino Teves Lemos, na companhia da Maria Cremilde Tapia e José Braga Chaves

Dei duas recrutas no BII N.º18, a primeira com mancebos fundamentalmente de Santa Maria (mas havia gente da Graciosa e do Faial, pasme-se), começou em outubro e findou em cima do Natal, um dos mais belos natais da minha vida, voltarei a esse evento; a segunda, era exclusivamente composta por micaelenses. Ora um dos meus instruendos de Santa Maria, José Braga Chaves, de Vila do Porto, chamou-me rapidamente a atenção porque tinha o indicador da mão direita imobilizado, ou quase, fazia movimentos muito lentos, ele referiu-me ter tido um acidente em pequeno, ficara assim. Não me conformei. Pedi uma entrevista a uma das sumidades da terra, o Dr. Furtado Lima, se o podia operar, era inconcebível um homem ir para a guerra com tal limitação. Propôs-se fazer operação, coisa de somenos importância, havia que lancetar e corrigir, talvez um nervo ou um tendão, para o caso pouco importa, pediu-me uma importância, respondi-lhe que lhe pagaria todos os meses em prestações, aceitou. O Zé fez a convalescença em casa da Maria e do Marino, nessa altura também ali se aboletava uma professora do Liceu Antero de Quental, Isabel Bracourt.

Imagine-se a comoção que senti quando dei por este pequeno conjunto de fotografias dos três e os dois em casa dos nossos generosos anfitriões. O Zé foi para Moçambique, trocámos correspondência. Veio e ficou a viver em São Miguel, trabalhando na meteorologia do aeroporto, casou com a Fátima, já falecida. A vida separou-nos temporariamente, a ternura é intemporal. Perdi o rasto à Isabel Bracourt. A Maria e o Marino já partiram deste mundo, não me ocorre nenhum adjetivo satisfatório que expresse a minha gratidão pelo bem que me (e nos) fizeram. Quando regressava a Ponta Delgada ia visitar a neta, então a trabalhar na biblioteca da universidade. Um dos filhos do casal, Álvaro Teves Lemos, estava na Guiné na altura em que eu dava ali recrutas. Não descansámos enquanto não chegámos à fala, aqueles pais, o Álvaro compreendeu imediatamente, tinham tido um papel tão construtivo naqueles meses micaelenses que era impossível que ele não quisesse saber as histórias de todos aqueles tempos. Cremilde Tapia fazia questão de me ir mostrando os belos rincões da ilha. O primeiro passeio teve como itinerário S. Roque, a Praia do Pópulo, a Lagoa, a Serra da Água de Pau, e chegados aos Remédios fui confrontado com um testemunho único da natureza, a Lagoa do Fogo e depois o Pico da Barrosa, daqui tem-se uma vista simultânea das costas Norte e Sul, avista-se até à Ribeira Grande. Foi um passeio de estalo. A sedução pela ilha assentara raízes.

(continua)
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Nota do editor

Primeiro poste de 3 de Abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20806: Esboços para um romance - I (Mário Beja Santos): Peço a Deus que tu regresses são e salvo (1)