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quinta-feira, 28 de maio de 2015

Guiné 63/74 - P14673: Tabanca Grande (465): José Rodrigues, ex-Fur Mil TRMS da CCAÇ 1419/BCAÇ 1857 (Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) - 689.º Grã-Tabanqueiro

1. Convidado através do facebook a fazer parte da nossa tertúlia, recebemos do nosso camarada José Rodrigues, (ex-Fur Mil TRMS da CCAÇ 1419/BCAÇ 1857, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67), a seguinte mensagem:

Boa tarde Carlos
Uma falha grave da minha parte, não me ter apresentado nas devidas condições.
Como castigo, não adianta dares-me uma carecada, porque não há nada para cortar. Deixo ao teu critério o castigo a aplicar.

Histórias sobre a guerra, não vale a pena pois o meu percurso foi igual ao de milhares de "mancebos", mas tive a sorte de regressar vivo. Digo vivo, porque mentalmente quer queiramos quer não, todos viemos com "pancada".

Mas recordo-me que havia um nativo que poderíamos apelidar de "ordenança", pois dava apoio à nossa moradia em Bissorã.
Pedi-lhe um dia que fosse à cantina comprar-me um sabonete e disse-lhe uma marca que na altura estava muito em voga "CADUM". Passados minutos aparece-me com meia dúzia de sabonetes.
Admirado, perguntei-lhe... porquê tantos sabonetes?
- Furriel disse-me para trazer um de cada um !!!

No dia 6 de Janeiro de 1966, ele e mais cinco camaradas, tombaram ao pisar um fornilho.
Para ele e para todos os camaradas, minha homenagem!!!

Recebe um abraço amigo,
Zé Rodrigues

José Rodrigues a caminho da Guiné, diz o editor observando aquelas divisas tão novinhas


2. Comentário do editor:

Caro amigo e camarada José Rodrigues, bem-vindo à Tertúlia.
Já nos conhecemos pelo facebook onde vais acompanhando a Tabanca Grande. Aqui fazes companhia ao teu e nosso amigo Manuel Joaquim de quem foste camarada na CCAÇ 1419. A tua cara não nos é estranha pois já publicámos várias fotos dos convívios da Magnífica Tabanca da Linha onde apareces, como neste último convívio de Maio.

José Rodrigues no Encontro da Magnífica Tabanca da Linha, 21 de Maio de 2015

Já sabes que estamos disponíveis para publicar as tuas fotos e uma ou outra memória dos tempos de Guiné que surja e queiras partilhar.

Se quiseres conviver com a tertúlia da Tabanca Grande, terás a primeira oportunidade no dia 16 de Abril do próximo ano. Muita da malta da Tabanca da Linha é assídua dos Encontros nacionais, assim como muitos camaradas da grande Lisboa pelo que até nem darás pela diferença.

Em nome da tertúlia da Tabanca Grande e dos seus editores, aqui fica um abraço de boas-vindas.

Carlos Vinhal
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Nota do editor

Último poste da série de 26 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14665: Tabanca Grande (464): António Melo de Carvalho, Coronel Inf na situação de Reforma, ex-Cap Inf, CMDT da CCAÇ 2465/BCAÇ 2861 (Có e Bissum-Naga, 1969/70), Grã-Tabanqueiro 688

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Guiné 63/74 - P13535: Blogoterapia (260): A minha toca (Ernesto Duarte, ex-Fur Mil da CCAÇ 1421)

1. Mensagem do dia 13 de Agosto de 2014, do nosso camarada Ernesto Duarte (ex-Fur Mil da CCAÇ 1421/BCAÇ 1857, Mansabá, 1965/67):

Tenham coragem
Leiam até ao fim
É um pedido


A MINHA TOCA

Sou serrenho
Nasci na serra
Numa toca
Não na grandeza de uma caverna
Habitada por homens superiores
Tinha como vizinhos
As raposas astutas
Passava o Sr. Melro
Sempre impecavelmente vestido
No seu fato preto de alta pena
Lá mais ao longe voava a cotovia
Também cantava o rouxinol
Bebia água pura com sabor a champanhe
No riacho ao lado passeavam-se peixinhos
Cantavam as rãs e os sapos
Os corvos também apareciam, com o seu mistério
Comia frutos silvestres com as aves e as abelhas
Colhia das árvores as frutas com que me banqueteava
Em noites de trovoada, eram lindos os desenhos feitos com os relâmpagos
Em noites calmas, ouvia-se o gemido do mocho e da coruja
Nas noites em que o vento dava concertos
As árvores dançavam loucamente
Qual artistas de cabarés de elite
Ou mesmo como nos palcos dos bailados
Mas a fama do império chegou à minha toca e eu tive que partir
A desilusão não conta
Voltei mais louco
Perdi-me
Iludi-me não voltei à minha toca
Fiquei numa gaiola normal e modesta
Havia gaiolas de luxo
Havia até gaiolas douradas
Todas tinham porta com fechadura
Também havia jaulas com celas
Tinham presos por que tinham falado
As gaiolas hoje são em excesso
Há carência de jaulas
Há tanta gente que fala, fala e não esta preso
Gostava que não fosse assim
Vou voltar a procurar a minha toca sem porta
A minha gaiola com porta e fechadura
Onde criei o meu mundo e dos meus
Foi assaltada
Foi devassada
Não ficou nada de valor
Nada com valor moral
A porta e a fechadura da gaiola alta palavra em tecnologia
Vou voltar à minha toca
Aos meus antigos vizinhos
Riam-se da caricatura da mensagem!
Mas pensem pelo menos uma vez
No quanto estão inseguros
E o valor que as vossas coisas têm e que se não apercebem
Não quero lançar o medo
Não! Isso nunca!
Mas quem sabe pode haver uma coisita a fazer e fazerem e assim, não terem razões para dizerem, casa roubada tranca na porta!

Um grande abraço a todos
Ernesto Duarte
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Nota do editor

Último poste da série de 21 de Agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13521: Blogoterapia (259): Mensagem de agradecimento de Rui Alexandrino Ferreira à tertúlia, a propósito do lançemento do seu último livro "Quebo - Nos confins da Guiné" e da passagem do seu 71.º aniversário

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Guiné 63/74 - P13485: Blogoterapia (258): Palavras (Ernesto Duarte, ex-Fur Mil da CCAÇ 1421)

1. Mensagem do dia 5 de Agosto de 2014, do nosso camarada Ernesto Duarte (ex-Fur Mil da CCAÇ 1421/BCAÇ 1857, Mansabá, 1965/67):

Olá Carlos, Olá Luís
Tudo de bom para vocês.
O meu modesto contributo, para quem está de Oficial Amanuense dia, poder dizer recebi mais um email!
Pois a pobreza aqui não é fruto da crise!

Palavra!
Palavras, há quem diga que são fios de ouro do pensamento!
Eu direi pepitas, pepitas grandes, gigantes!
Jóias raras, de uma grandeza que hipnotizam!
Lindas mesmo!
Ditas aqui com um sentido, ouvidas ali com outro!
Férias!
É uma dessas palavras!
Linda, mesmo muito linda!
Mas tão diferente!
Não só de lugar para lugar!
Mas de fulano para fulano!
E com a féria a ditar leis!
Como ela é importante e fundamenta!
Eu sou daqueles jovens que em teoria vou de férias!
Sim porque da nossa juventude, a grande maioria já está sempre de férias!
Tento ter o espírito da época!
Não perder tempo!
Ouvir o mundo à minha volta!
Mas continuar a pô-lo em causa!
Já tenho a noite na alma mas sem beijos de socorro, resta-me dançar com as árvores sem forma!
Estou assim como que perdido neste jardim de flores pretas e secas, e palavras, palavras que se não entendem!
Desculpem eu esquecia-me que sou daltónico, que sofro de miopia e de surdez!
Não me perdi nas matas misteriosas!
Nas bolanhas e rios sem fundo!
Nos caminhos cheios de lama!
Nos caminhos cheios de um pó que sufocava, e que em cada curva era retraçado o meu destino!
Contra minha vontade comecei em guerra, e vou acabar em guerra!
As armas são outras!
Muito mais difíceis de manusear!
Já não encontro os velhos da minha terra!
Sensação estranha sobe-me a coluna vertebral, o velho sou eu e os da minha idade!
Encontramo-nos, sentimos alegria!
As conversas são tão diferentes!
Os netos são o tudo!
Depois vem a nossa parte cultural!
Sim porque estamos muito mais cultos!
Sabemos algo de culinária!
Conhecemos alguns vinhos!
Mas o nosso forte é medicina e industria farmacêutica!
Conhecemos tanto médico!
Conhecemos hospitais!
Conhecemos e sabemos de exames médicos!
Sabemos o nome de tanto medicamento!
Já vamos sabendo nomes de lares!
Não é pessimismo é realidade!
As férias dos jovens da nossa idade, sejam elas com muita ou pouca féria, passadas no Polo Sul, ou no Polo Norte, as palavras diferem pouco!
Mais confusos!
Palavras mais confusas!
Fruto do tempo!
O tempo é outro, isso não há a mínima dúvida!

Um muito grande abraço para ti Carlos
Um muito grande abraço para ti Luís
E muito boas férias

Ernesto Duarte
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Nota do editor

Último poste da série de 2 de Agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13456: Blogoterapia (257): Julgo que pelo menos a maioria de nós tínhamos medo, eu tinha, e às vezes muito, mas procurava não mostrar (Manuel Carvalho)

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Guiné 63/74 - P12692: Direito à indignação (12): Por favor, respeitem a verdade dos factos... E, sobretudo, respeitem, os mortos e os vivos… de um lado e do outro da guerra! (Ernesto Duarte)

1. Mensagem do dia 5 de Fevereiro de 2014, do nosso camarada Ernesto Duarte (ex-Fur Mil da CCAÇ 1421/BCAÇ 1857, Mansabá, 1965/67):

Meu bom Amigo Carlos Vinhal
Cá vou eu até Mansabá!
Se achares que tem algum interesse em publicar é todo teu.


Duas linhas sobre o nosso direito à indignação

O país, excepto o ataque terrorista no Norte de Angola, nada mais sabe da guerra do ultramar, a não ser alguma coisita que o regime achava que lhe era útil, era preciso se acreditar que aquilo era um mar de rosas.
Relatos parvos, fáceis de desmontar, eram úteis, eram como que a prova de que aquilo que o Estado dizia era verdade.
Nós somos os culpados, porque não falamos.
Ou falamos muito pouco do que lá vivemos.
Muitos de nós começamos a cortar relações com o exército ainda cá.
O entusiasmo histórico pelo Ultramar, a desilusão que foi aquele Bissau.
Aquilo era muito pior, pior que tínhamos imaginado.
Por muito cedo termos compreendido e começado a gostar daquela terra.
Por muito cedo começarmos a ver o erro em que tínhamos sido metidos.
Por muito cedo condenarmos e sentirmos remorsos pelo que tínhamos feito ou visto fazer, ou saber que se tinha feito.
Por muito cedo vivermos naquele turbilhão de ódios e de amores.
Para não preocuparmos os familiares, não contamos, quase nada.
As pessoas não sabiam.
Sabiam o que o regime queria.
Se falássemos, afastavam-se, porque não acreditavam porque tinham medo.
Isto junto à dificuldade em contar como é disparar uma arma contra alguém, como é o assobiar de uma bala, junto ao ouvido, ouvir rebentamentos e ver os estragos.
Nós falámos muito pouco, contámos muito pouco.
O regime tinha interesse nisso, como possivelmente apoiava relatos, que fossem facílimos de se ver que não tinham pés nem cabeça, em que ninguém acreditasse.
Nós somos os culpados de tudo.
Porque fomos atores lá no teatro.
Porque não fomos capazes de ter contado o que se lá passou, o que lá vivemos, o mais próximo possível de como aquilo tinha sido, mas na devida data.
Só entende a guerra quem a viveu.
E os mortos só pesavam às famílias e a meia dúzia de amigos.
Não me surpreende muito aqueles disparates.
Rodaram muitos por este país.
E tal como os tipos da minha terra que foram condecorados pelo Hitler, este país sempre teve e tem uma costeleta de uma cor algo esquisita, e sabem guardar muito bem o que os pode prejudicar.
E vejam o que têm feito com o 25 de Abril.

Um Grande Abraço
Ernesto Duarte
1965 / 1967
BCAÇ 1857/CCAÇ 1421
Mansabá
Oio
Morés
____________

Nota do editor

Último poste da série de 5 DE FEVEREIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12679: Direito à indignação (11): Por favor, respeitem a verdade dos factos... E, sobretudo, respeitem, os mortos e os vivos… de um lado e do outro da guerra! (Belarmino Sardinha / Cândido Morais)

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Guiné 63/74 - P12287: Memórias de Mansabá (30): Um nunca acabar de recordações (Ernesto Duarte)

1. Mensagem do nosso camarada Ernesto Duarte (ex-Fur Mil da CCAÇ 1421/BCAÇ 1857, Mansabá, 1965/67) com data de 9 de Novembro de 2013:

Olá amigo Carlos
Olá caro camarada Mansabense
Pois é tu estiveste duas semanas ausente, eu estou, ou ando a maior parte do tempo ausente!
O tempo é o grande mestre! Claro que ter deixado a minha serra e ter vindo trabalhar para Lisboa as escolhas eram muito poucas, e com aquele pequenino pormenor de o pais ignorar o que se passava no Ultramar, logo não se poder falar muito.

Entre a minha época e a tua já houve uma diferença, cada vez era mais difícil esconder as coisas. Mas quando me reformei não tive a noção das minhas limitações, e ao ter ficado com a casa que era dos meus pais soube muito bem e não me doíam os ossos, não me custava nada lá ir e ia com gosto e alegria, hoje aborrece-me muito, ou pelo menos já não tem a graça que tinha, mas não quero abandonar as coisas, e lá vou indo e isto tudo para dizer que só no principio da semana recebi o teu email que desde já agradeço, assim como agradeço, a fortificação de Cutia e o mapa da nossa área critica!
Mas antes faço um reparo a mim próprio eu esqueci-me um pouco que tu também lá estiveste em condições de “hospitalidade“ diferentes na rua, mas na prática iguais. Tenho lido muito e quando há tempos vi que andaste por Manhau, não senti como que uma necessidade de te fazer perguntas sobre aquilo, mas disse cá para os meus botões, mais um que lá andou a arriscar a pele.

Não sei se no teu tempo ainda havia uma serração a funcionar em Mansabá! Era logo à entrada à esquerda quando se ia de Cutia. O dono fez o favor de me convidar e a mais dois ou três para irmos lá almoçar, jantar! Não eram ofertas por pura simpatia, era a necessidade que ele tinha de se dar bem connosco, tendo as relações piorado muito, quando nós não trouxemos de Banjara um trator enorme de lagartas que lá tinha ficado quando ele fugiu de lá.
Esse senhor com meia dúzia de caçadores africanos, mais os lenhadores e mais uns loucos como eu que íamos à caça, cortava madeira na zona de Mansomine, não passava aquela zona sem floresta antes de Cucuto e também não se aproximava muito de Demba Só.

Imediações de Mansabá que a CART 2732 palmilhava frequentemente, não evitando mesmo assim o mau feitio da vizinhança. Vd. Carta de Farim 1:50.000
Legenda: CV

Para o lado de Morés, nada, e depois com um certo à-vontade em frente e para a direita em relação à pista de aviação. Eu falo disto com muita emoção, mas o engraçado, ultimamente quando vou ao Algarve já não levo computador, se levo não abro, até porque a banda larga é uma porcaria, eu leio e penso, tento recordar! Eu lembro-me de sair de casa, já camuflado, com uma mala numa mão e um saco ao ombro, mas não lembro emoções nenhumas nem de pessoas terem falado comigo. Só lembro uma enfermeira da terra que veio no mesmo comboio que eu, Lagos – Barreiro se preocupar muito comigo!

Depois de termos desembarcado na Madeira e nos últimos dias de viagem, eu comecei a sentir uma certa expectativa em relação a Bissau. Depois de tanto ter ouvido da história dos portugueses e seus feitos, eu ia finalmente pisar uma cidade, capital de província, deveria ter que ver. Não digo que foi uma desilusão, digo onde estás Bissau, não sei que se passa com meus olhos que te não enxergam, estou a passar por ti e não te enxergo.

Uns campos, uns montes de bagabaga e eis que estou noutra grande cidade, Mansoa!

Tiro-lhe o Man e fico com o soa!
Mas não soa
Não soa os ecos da cidade.
Soa o estrondo das armas
Não soam risos de crianças
Soam choros de criança
Não soam risos de gente feliz
Soam gritos de gente com raiva
Soa o silencio de uma cidade em guerra
Parto para Mansabá que tem algumas casas com traços de arquitetura mas com janelas e terraços tapados a tijolos de terra batida.
Mansabá com a sua rua principal chegava a ter alguma beleza, quando as acácias floriam e se enchia com o garrido das bajudas, talvez se passeando!
A Mansabá, tirando-lhe igualmente o Man fico com sabá
Sabá rainha do saber
Foste uma rainha para muitos de nós
Não pelo saber
Não pelos teus encantos
Mas pelo teu poder total
Porque nos prendeste
Porque nos acorrentaste
Porque nos escravizaste
Porque nos obrigaste a fazer coisas que não queríamos
Porque transformaste nossos cérebros
Porque transformaste nossas personalidades
Porque transformaste nossas vidas
Porque transformaste a vida dos nossos familiares
Porque dispuseste de nós como te apeteceu Incluindo deformar nossos corpos
Incluindo tirar nossas vidas
Nunca ouvindo nossos pedidos de clemência
Mas eu não te odeio
Se calhar até tenho saudades tuas

Carlos, o texto são mais umas linhas para juntares a tantas que tens recebido.
As fotos são para voltares a ver aquilo que nunca esqueces.

Um obrigada por tudo
Um abraço aqui de Mansabá
BCAÇ 1857 / CCAÇ 1421
Ernesto Duarte
Furriel Miliciano

 Ernesto Duarte em Mansabá(?)

O Fur Mil Ernesto Duarte junto ao memorial da sua Companhia (CCAÇ 1421), "Os Caveiras" 


 Duas vistas aéreas de Mansabá no tempo de Ernesto Duarte

Ernesto Duarte na "avenida" de acesso à Porta de Armas do aquartelamento de Mansabá, tão bem descrita com a sua alma poética, acima, no texto

Ernesto Duarte numa das paradas do aquartelamento de Mansabá

Fotos: © Ernesto Duarte. Todos os direitos reservados. (Edição e legendagem: CV)


2. Comentário do editor:

Caríssimo Ernesto Duarte
As tuas palavras, quando falas de Mansabá, são apaixonadas, deixando transparecer o quanto ficaste marcado por aquela "terra onde se arde vivo", assim designada no livro "Guiné 1965 Contra Ataque", de Amândio César. Compreendo-te porque ali permaneci 22 meses e 11 dias.
A minha actividade operacional e ocupação das "horas livres", ajudando na Secretaria, não dava para grandes convívios na tabanca. Conheci meia dúzia de civis, os nossos dedicados guias e milícias e nossos camaradas do Pel Caç Nat 57. Lembro-me bem dos domingos em que nos vestíamos umas horas à civil, para arejar a roupa, e íamos passear a tabanca. Sentia-se um ar diferente nestes dias. Quase só os pelotões de piquete e serviço estavam ocupados. Com a noite voltava o sentir da guerra e os sentidos entravam todos em modo de emergência.

As horas mal dormidas em alerta permanente; os sucessivos ataques ao aquartelamento e tabanca; as sempre perigosas colunas para Mansoa e Farim; a protecção, com emboscadas quase diárias, durante meses aos trabalhos de pavimentação do troço da estrada Bironque-K3; as emboscadas nocturnas no fim da pista e no Alto de Bissorã; os patrulhamentos diurnos e nocturnos, assim como as operações, são parte da nossa memória que se apagará só no último dia das nossas vidas.

Quanto à Serração de que julgo falares, no meu tempo estava já desactivada e era um local de passagem muito perigoso.
Havia contudo um branco, não sei se é do teu tempo, o senhor José Leal que, com uns quantos colaboradores locais, abatia árvores algures nas imediações de Mansabá. Não precisava de protecção e tanto quanto me lembro nunca foi atacado. Provavelmente explorava a área que referes. Sinceramente não me lembro se ele tinha alguma serração ou se trazia os toros já limpos do local. Lembro-me que a camioneta era muito velha, que só tinha a cabina em cima do chassi onde transportava os toros.
Fica aqui a sua foto para ver se te lembras dele. Morava do lado de fora, quase encostado ao arame que cercava o quartel, por trás da casa do gerador e da mecânica, quem ia para a tabanca do lado esquerdo, quando se saía a porta de armas.

Mansabá, Abril de 1971 - Senhor José Leal segurando a sua filhota, o Cap Mil Jorge Picado, ajuda, e o Alf Mil Manuel Casal, assiste.
Foto e legenda: © Caros Vinhal. Todos os direitos reservados.

Não de Mansabá, mas de Leça da Palmeira, recebe camarada mansabense Ernesto, um fraterno abraço e os melhores votos de boa saúde.
CV
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Nota do editor

Último poste da série de 14 DE OUTUBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12150: Memórias de Mansabá (29): A tabanca de Manhau já não existia em 1965 (Ernesto Duarte)

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Guiné 63/74 - P12150: Memórias de Mansabá (29): A tabanca de Manhau já não existia em 1965 (Ernesto Duarte)

1. Mensagem do nosso camarada Ernesto Duarte (ex-Fur Mil da CCAÇ 1421/BCAÇ 1857, Mansabá, 1965/67) com data de 28 de Setembro de 2013, a propósito de uma pergunta que lhe foi feita sobre a tabanca de Manhau:

Uma boa noite com cordialidade, Carlos.
Uma boa noite por Mansabá.

Vou falar um pouco sobre Manhau.
Não, em 1965 a Tabanca de Manhau já não existia e segundo o que ouvi devia ter ardido por fins de 1962, melhor entre 1961 e 1963. Dizia-se também que foi naquela região onde a revolta se deu. Mas isto são conversas de Tabanca e não havia unanimidade.

Diziam que tinham assaltado uma camioneta de passageiros, tendo-a queimado, ainda lá estava no meu tempo, tendo morrido uma professora.

Algumas das tabancas desactivadas no tempo da CART 2732 dentro da sua zona de acção, que a Leste, terminava na bolanha de Manhau.
Ver Carta de Farim

Logo quando se passava a Bolanha, indo de Mansabá, havia uma subidinha antes da zona mais plana, onde esteve o aquartelamento, onde ainda se podia ver o esqueleto da camioneta.
Dizia-se que um oficial Português de nome Pita Alves, que eu conheci em 64 em Tavira, tinha sido lá ferido. Pouco tempo depois a tabanca tinha sido incendiada. O incêndio terá sido medonho, dizia-se.

Por um lado, Ussado, Cubande, por outro, Mantida, Gussará, Uália, Bambaia, Bagadage, Gendo, Biribão, Canjambari e outros nomes que eu já não lembro, estavam cheios de população.
O comando decidiu construir Cutia, Manhau, Banjara e mais tarde o K3.

Destacamento de Cutia 
Foto: © César Dias

Quando cheguei, Cutia estava acabadinho de fazer. Eram todos iguais, a estrada ao meio do quadrado, um buraco a cada canto, mais quatro buracos entre os cantos e mais uns dois ou três para comando e transmissões.
Dizia-se que nos ataques violentos a Cutia tinham deixado no terreno, dois cubanos e uma bazuka 8.8.

Em Manhau ainda a 1421 participou nos acabamentos.
Nos ataques violentos que fizeram, deixaram no terreno um morteiro 8.2 rachado como se uma granada tivesse rebentado no cano.

Destacamento de Banjara
Foto: © Alfredo Reis (2009). Direitos reservados.

Em Banjara a 1421 foi prestar segurança aos trabalhos e limpar a estrada desde Mantida.
Apanhou-se muita gente, à qual se deu conservas e se disse para irem espalhar a boa nova. Nem um voltou.

Eu na metrópole nunca tinha ouvido falar no BCAÇ 1858, nem na companhia 1422.
Instalados em Mansabá, com uma Companhia dos Águias Negras, eles em quadrícula, nós em intervenção, saíamos todos os dias e algumas delas grandes, tanta tabanca queimada, tanto campo de milho destruído, tanto prisioneiro. Era hábito aparecerem outras tropas para irem connosco, ou nós com eles, desde Paraquedistas, Comandos e Caçadores, sempre com pelotões africanos.

Uália, mais ou menos a norte de Manhau, já tinha sido visitada umas quantas vezes, e naquela noite era mais uma. A minha Companhia, não sei como foi com as outras, desde logo se organizou em três grupos de combate, tendo ficado um alferes, um santo, livre. Mas houve necessidade de se proceder a uma substituição e coitado dele, aquilo calhou de maneira que ele foi a todas.
Ele não tinha muito jeito, se isto tem alguma lógica dizer, e os soldados também não sentiam o apoio de que se calhar necessitavam. Com os sargentos, gordos e barrigudos, o problema ainda foi pior. Eu e uns quantos éramos velhos, tínhamos quase 24 anos, a maioria dos milicianos, ainda não tinha os 23 anos.
Naquela noite de chuva com uns fulanos que eu não conhecia, lá fomos até Manhau, para dali, altas horas da noite, sairmos para o Ualia, e lá estava o Verissimo.

Como as condições eram nulas eu fui para a cabine da GMC que era o carro da água.
Passado pouco tempo veio apanhar abrigo o capitão, grande homem. Então lá estás mais uma vez por conta do barco, tens que olhar por fulano e o ajudar. Entretanto a conversa continuou e nós começamos a pensar que o combinado, que era sair em direção a Mansabá e de pois voltar à direita e subir a bolhanha, não era muito viável. A bolhanha era um rio, decidimos, apanhar o lado de uma picada que em tempos tinha sido perpendicular à estrada, atravessando o quartel. Reunimos em cima da hora no comando para dar esta informação, tudo certo.

O capitão perguntou a mim e ao malogrado Feijão:
- Vocês já sabem como é na frente?

Eu disse:
- Vou eu à frente.
- O Feijão já te está a armar em chefe, quem vai sou eu. Anda lá vamos os dois e fulano vai sempre comigo.

E fomos saindo os dois, pondo a coluna em marcha, recomendando para não se afastarem porque como estava muito escuro podia-se perder o contacto.
Penso que a coluna ainda não tinha saído toda do arame, um moço de Coimbra gritou:
- Arame.

Voei para a cova do lixo, ficando todo cortado pelas latas. Levantei-me fui ter com o Feijão, era o que gritava mais. Peguei nele ao colo, pontapeei todos os que se não levantavam. Ele morreu nos meus braços. Fui buscar mais e mais e o meu homem com o pânico instalado.
Começaram a aparecer luzes não sei de onde.

O Veríssimo apareceu no blogue quando eu te mandei isto e ele leu. Ele diz que quem estava para ir à frente era ele. De facto era, mas era no plano inicial. Claro que eu nunca esqueci e o Capitão também não esqueceu.

Quando eu fazia serviço em Mansabá, alta noite, ele ia ter comigo e bebíamos um trago de brandy. Dizia ele:
- A culpa não é tua é só minha.

Eu sei que não mandava, mas estive de acordo e quando nos despedimos em Abrantes, a nossa culpa esteve presente.
Muito mais tarde quando nos reencontramos, a conversa veio todinho ao de cima.
Claro que senti alguma alegria, alegria infantil, quando encerramos Manhau, quando destruímos aquilo tudo à granada de mão. Mas antes ainda, e também na ausência do comandante de Pelotão, apanhei uma emboscada, antes de chegar à Bolanha, que a artilharia teve que bater os lados da estrada.

Furaram o carro da água todo e os bancos das viaturas.
E ainda há outra, que também tem a sua história.

Numa viatura,  4 a 8 fulanos iam às laranjas a Mantida. Foram uma vez, foram duas, foram muitas, mas naquele dia não foram porque uma mensagem avisava da passagem de uma coluna de metralhadoras pesadas, que ia passar a caminho de Bafatá.
O terreno era duro e direito, eles entraram pelo capim. Que estragos meu Deus. Isto já não consegue mexer mais comigo, mas se faz parte daquelas coisas que continuam a me encher de raiva e a tirar o sono.

Um abraço, Carlos e tudo de bom para ti
Mansabá, 28 de Setembro de 2013
____________

Nota do editor

Último poste da série de 24 DE SETEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12081: Memórias de Mansabá (28): Minas na estrada de Mansabá (Francisco Baptista / Carlos Vinhal)

quarta-feira, 10 de julho de 2013

Guiné 63/74 - P11824: Os nossos médicos (64): A propósito do nosso anedotário médico militar... (Rui Silva)


1. Mensagem do nosso camarada Rui Silva (ex-Fur Mil da CCAÇ 816, BissorãOlossatoMansoa, 1965/67), com data de 3 de Julho de 2013: 

Estimados caros amigos Luís, Vinhal e Magalhães Ribeiro: 

Recebam um grande abraço e os maiores votos da continuação de uma boa forma para a sustentação deste querido Blogue.
Rui Silva



A propósito de médicos militares na Guiné

Ultimamente tem-se “falado” no Blogue de médicos incorporados nas tropas na Guiné e então fez-me lembrar um episódio; episódio que tem o valor que tem, ou que lhe queiram dar.

Não indico, por razões de princípio e óbvias, os nomes dos principais protagonistas: Médico psiquiatra no Olossato e Furriel com a cisma do “Paludismo crónico”.

A minha Companhia era das ditas independentes. Independente de quê, não cheguei a saber. Era, era bem dependente do Batalhão. Primeiro do BArt 645 os “Águias Negras” (águias com 3 cabeças!) e depois deste vir embora passou para a alçada do BCaç 1857.

Um e outro com sede em Mansoa. Zona de Ação: Oio, ou grande parte deste.

As Companhias ditas independentes eram assim como Companhias bastardas e ao que parecia as mais sacrificadas, para fazer jus ao epíteto. As do próprio Batalhão eram mais protegidas. Isto era o que bem parecia e o que se dizia. Terá sido bem assim? Bom, que a minha Companhia era quase sempre o Grupo de Assalto…

Não, não. Não pretendo fazer juízos de valor, e então lembrar-me dos que andaram por exemplo na operação Tridente, dos que estiveram em Guileje, Guidage, na fase final da guerra, entre outros lugares… Irra (!) por bons sítios ainda andei eu, afinal.

A minha Companhia não tinha médico próprio e, em Bissorã, quando estávamos ali com a 643 (Companhia de BArt 645) julgo que ali havia um clínico permanente e que pertencia ao efetivo do Batalhão. Não tenho a certeza porque, felizmente, não tive necessidade dos seus préstimos, isto em cerca de 5 meses que a Companhia 816 ali esteve.

No Olossato onde a Companhia 816 trabalhava já sozinha, a visita do médico era esporádica, mas, mais ou menos regular, convenhamos.

A messe dos Furriéis no Olossato. As portas da fachada, são as do refeitório e a primeira janela do lado esquerdo é a do meu quarto, onde ficava com mais 3 camaradas. Ali, no refeitório, comia-se menos mal, escreviam-se os aerogramas, ouvia-se a toda a hora o Roberto Carlos (quase sempre “Quero que todo o mais vá pr’ó inferno”) e jogava-se a batota à noite, e às vezes com batatada pelo meio (só ameaços).
Foto do álbum fotográfico do meu amigo José Augusto Ribeiro, ex-Furriel mil. da 566, que aqui reproduzo com a devida vénia.

E por falar de saúde, aqui se ilustra e se interroga se estávamos a tratar da saúde ou a dar cabo dela. Depois das “operações vaca” não faltavam uns miolos fritos bem regados com cerveja (bebia-se tipo trompete).  Era um pitéu que acontecia muitas vezes e ao meio da manhã. E tão bem que sabia! Dimais! Travessa e pratos da época: alumínio engelhado. Copos? não me lembro!

Estávamos então uns poucos de Furriéis na nossa messe no Olossato quando chega um Furriel camarada, da consulta no médico.
Perguntamos-lhe então qual era o problema.
- “O que é que o médico disse?”
- “Ele respondeu que isto passava, que, do que eu me queixo, ele anda bem pior, mas que não dá importância, que isso passa”.
- “Disse-lhe que me doía a barriga e ele aponta-me o sítio: “É aqui.?” “É mesmo aí Sr. Doutor”, ao qual ele me reponde: “É exatamente como eu, ando aí com umas dores…, mas, nem ligo, é melhor não tomar nada, que isto passa.”
- “Bom, como vi que o médico afinal ainda andava igual ou pior do que eu, vim resignado”.

Aqui então é que se despoletou a discussão.
- “Oh(!) caramba!!,” - disse outro após aquela queixa e ulterior resultado:
- “Ele também disse que andava pior do que eu. Queixei-me das costas e após algumas perguntas sobre outros sintomas ele diz-me”: 
- ” Olhe, eu também ando exatamente como você e não me queixo. Isto passa.”

Outros ratificaram o diagnóstico/ terapêutica quase taxativo do médico, sobre os seus casos, e chegamos à conclusão que era uma boa maneira psicológica de tratar os pacientes. Podia era não chegar. Não havia drogas, o que dava um certo conforto, e o pessoal queixoso esquecia o seu mal.

- “Afinal quando o médico se queixa mais do que eu…”. Nem sequer sinal dos tais comprimidos que “saravam tudo”.

Aqueles comprimidos brancos de cerca de um centímetro de diâmetro que eram dados dois, embrulhados num papel, que nos davam na tropa na metrópole. Os comprimidos LM. Estava ali tudo neles, o que era preciso para curar, tudo (ou quase tudo).

Na Guiné não dei por eles. Os micróbios, fungos, parasitas e outros seres microscópicos que por ali andavam eram bem outros e mais variados (à la carte).

- “Porque é que estes seres não são visíveis para que a gente possa dar conta deles antes que eles nos “cosam?” - como dizia um camarada meu, ajuntando que era um defeito da natureza.

Curiosa a imagem seguinte e legenda subsequente obtida e aqui reproduzida, com a devida vénia, do Blogue http://bart1914.blogspot.pt

Por que foi que deixaram de fabricar os comprimidos "LM"?... Acudiam a tudo - diarreias, cefaleias, bicos de papagaio, panaríssios, enjoos, malária, gripes, tremideiras, eu sei lá mais o quê?

Após alguma pesquisa viemos a saber que o médico ali no Olossato era um Psiquiatra.

Bom, de Psiquiatra também precisávamos e não era pouco, pois os neurónios da malta não andavam bem sincronizados, naquela situação, mas precisávamos mais alguma coisa da medicina, obviamente. E então de erupções na pele havia para todos os gostos. Logo as virilhas com a “flor do congo” à cabeça. Manga de erupções cutâneas, em forma de borbulhas de rosetas, de manchas, etc.

Aqui, os enfermeiros, com o 1214, também resolviam boa parte dos problemas de pele. Os alérgicos à tintura de iodo (raros), às vezes ficavam era ainda bem pior. O Ásterol era bom mas dava para chamar “oh da guarda!!”
Só que o 1214 não sarava tudo, o que era na pele, claro.

Mas que o Dr. Psiquiatra diagnosticou e “terapeuticou” muita gente, à custa de “boas palavras” e com (no mínimo) razoáveis resultados, lá isso foi uma boa verdade.

Tive um colega meu (julgo que o único caso do foro), que cismou que tinha o Paludismo crónico. Chegou a acordar-me alta madrugada com o “Simpósium terapêutico” na mão a apontar-me os sintomas do Paludismo crónico. E que era isso mesmo que tinha.
Os sintomas, que o livro preconizava, coincidiam precisamente c’os dele, isto na sua maneira de ver, claro. Chegou a comprar um termómetro e a andar com ele no bolso.

Um dia, em Bissau, andávamos juntos a passear, quando a certa altura dei por a falta dele ao meu lado. Olho para trás e ele estava encostado a uma árvore a medir a temperatura na axila.
Ao ler, olha para mim e diz-me:
- “Vês? Há pouco tinha 37.2 e agora já tenho 37.4. Vês? É uma característica do Paludismo crónico: oscilação da temperatura. Estou f…..”

Sei que após algum tempo recuperou, não sei se foi o aludido Psiquiatra que o curou. Se calhar até foi!

Passem bem!
Rui Silva
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Nota do editor:

Último poste da série de 9 DE JULHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11820: Os nossos médicos (63): O dr. Sousa Fernandes, o VCC de Guileje, era de Coimbra e infelizmente já nos deixou em 2000 (José Crisóstomo Lucas)

terça-feira, 2 de julho de 2013

Guiné 63/74 - P11789: Blogoterapia (230): A alegria de subir mais um degrau, seguindo em frente, mesmo já tendo muito mais para quando olho para trás de que quando olho para a frente (Ernesto Duarte)

1. Mensagem do nosso camarada Ernesto Duarte (ex-Fur Mil da CCAÇ 1421/BCAÇ 1857, Mansabá, 1965/67) com data de 23 de Junho de 2013, a propósito do seu aniversário ocorrido no passado dia 9 de Junho:

Um grande abraço e muito obrigado a todos os homens grandes da Tabanca grande, por se terem lembrado de mim*.
Não respondi logo porque eu tenho caído muito, e já vou vivendo noutra dimensão e como tal vou começando a fazer tudo a esse nível, inclusive passar a pagar os impostos também assim com atraso.
Não! Sou desleixado, desorganizado e não ligo à data e este ano calhou com a mudança para a minha gruta, caverna.
Mais uma vez um obrigado muito grande.
Ainda tenho coragem para escrever duas linhas de loucura.

Ernesto Pacheco Duarte
Mansabá
Morés – Oio


Tenho andado afastado

A alegria de subir mais um degrau, seguindo em frente, mesmo já tendo muito mais para quando olho para trás de que quando olho para a frente.
Para mim é como que a época de fazer uma espécie de balanço, o fim de um ano, o principio de outro, o Verão é o meu verdadeiro inicio de ano.
Gosto muito do Verão.
Gosto muito do campo.
Gosto muito do calor.
Gosto muito da época das colheitas.
Gosto muito de pôr para o lado os casacos.
Gosto muito de esquecer, embora por um período o frio.
Gosto muito da praia.
Gosto muita da paisagem de Verão, ainda com verduras de primavera, mas já muitos louros de Verão.

E é maravilhoso dizer fiz mais um ano, subi mais um degrau, em frente, cheguei a um patamar mais alto, olhando lá de cima para trás a vista é imponente, as imagens passam a uma velocidade vertiginosa, mas mesmo assim é muito bom.
É certo que também tem que se dizer, e não se o consegue fazer sem pelo menos alguma saudade, já falta menos um.
Muitos partimos para esta vida sem objectivos muito definidos.
O nosso grande objectivo é viver.
O nosso grande objectivo é viver de cabeça erguida, com dignidade.

Gostamos muito da nossa liberdade, da liberdade dos espíritos, não nos conseguimos comprometer com as particularidades das religiões, logo nada disso será um objectivo, com as particularidades das politicas, o mesmo, a não ser continuar a ser livre, espíritos mais ou menos independentes.
Enquanto se sobe as encostas suaves e floridas, algumas mais inclinadas, até com grau de dificuldade, há um número de coisas que ficaram, que vão aparecendo depois no nosso horizonte, mas vamos subindo, e além das encostas começarem a ser mais inclinadas, as forças começam a faltar.
Já subimos, nunca é muito, mas já estamos na zona onde as encostas já são escarpas, os horizontes em frente já são muito mais pequenos e é forte aquela tendência que temos em olhar para trás e fazer comparações.
Vemos o caminho que ficou para trás e queremos e dizer a nós próprios, que temos que ir em frente nas mesmas circunstâncias, sonhar não paga ainda qualquer imposto.
E é a única maneira de não sermos como que absorvidos pela própria vida é teimarmos em continuar o caminho de sempre, a subida de sempre, mesmo que ele já não atravesse encostas verdejantes e suba é mais escarpas agrestes e até dizermos que isso é normal.
Mas e as forças e a vontade que deixa de ser espontânea e passa a forçada e a comparação e a saudade, que começa a estar presente em nós e quando não está é lembrada?
Gritamos para nós próprios que nada é diferente que nada muda, de degrau para degrau que subimos, mas até a própria sociedade nos lembra permanentemente dizendo-nos que já não temos idade para isto ou aquilo, e ele são as consultas para isto ou aquilo, ele são as indicações dos lares clandestinos aos 7 estrelas, ele são enfermarias cheias de menos jovens que começamos a ver, ele é visitas constantes à farmácia, sem darmos por isso já estamos vivendo outro mundo, já estamos tendo contacto com uma outra sociedade.
Mas como bom ex-militar digo: andaram, passaram muito próximo, e até um dia.

Abraços
Ernesto Pacheco Duarte
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Notas do editor

(*) Vd. poste de 9 DE JUNHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11684: Parabéns a você (587): Ernesto Duarte, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 1421 (Guiné, 1965/67)

Último poste da série de 18 DE JUNHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11728: Blogoterapia (229): Muito obrigado a todos os camaradas que se lembraram de mim, no meu dia de anos (Juvenal Amado)

segunda-feira, 24 de junho de 2013

Guiné 63/74 - P11759: Blogpoesia (348): Pedir desculpa é pouco (Ernesto Duarte)

1. Mensagem do nosso camarada Ernesto Duarte (ex-Fur Mil da CCAÇ 1421/BCAÇ 1857, Mansabá, 1965/67) com data de 29 de Maio de 2013: 

Camarada Carlos Vinhal
Tudo de Bom para ti e para os teus.
Assim como tudo de bom para todo pessoal do blogue.


PEDIR DESCULPA É POUCO

Eu sei
Não sou nada não sou ninguém
Mas também sei a força das palavras
Palavras que hoje perdem muito da sua força, porque essa força dilui-se muito na quantidade
Palavras que ganham força quando ditas no momento oportuno
Palavras que igualmente ganham força quando ditas no momento errado
Eu no meu canto esqueci-me do dia 8 de Junho, data que para mim nos últimos anos tem sido vivida de uma maneira diferente
Os meus ossos doem muito
Tenho os meus netos, parcialmente para olhar
Deixei de dar as voltas que costumava dar, principalmente pelo meu amado Marrocos
Desde sempre pensei que essa data seria, como será, como calhar
Esqueci-me totalmente do grito à vida, que vai ser o convívio da Tabanca
Pedir desculpa é pouco
Reconheço que meti a pata na poça, e que aquelas palavras loucas ou não, saíram no momento menos próprio, uma infelicidade
Mas também sei que vozes de burro não chegam ao céu
Sei que o convívio será muito grande
Sei que ficará como mais um episódio grande, dos muitos que estes fulanos efetuaram com uma farda a servir de pele e que têm continuado a efetuar já sem farda mas com o mesmo espírito de amizade.

Um grande abraço para ti
Um grande abraço para todo o pessoal da Tabanca
Um grande abraço para todo o pessoal do blogue
Ernesto Duarte
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Nota do editor

Último poste da série de 24 DE JUNHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11755: Blogpoesia (347): A outra guerra; Meus cabelos brancos; Serenatas do sul de África; Lembrando serões (J. L. Mendes Gomes)

sábado, 15 de junho de 2013

Guiné 63/74 - P11710: Blogpoesia (345): Estou vivo (Ernesto Duarte)



1. Mensagem do nosso camarada Ernesto Duarte (ex-Fur Mil da CCAÇ 1421/BCAÇ 1857, Mansabá, 1965/67) com data de 27 de Maio de 2013:

Cumprimentando todos os meus amigos do blogue
Cumprimentando todos os meus ex-camaradas
Eu atrevo-me a escrever duas linhas
Para dizer que estou vivo
E sempre revoltado, contra a fórmula deste mundo
Eu não sou nada
Eu não sou ninguém
Estou cansado
Muito cansado
Estou intranquilo, algo me incomoda
Morro de saudades do que vivi
Morro de saudades do que não vivi
Quero olhar só a beleza das rosas,
Mas só vejo figuras desuni formes, medonhas
Ou talvez sejam políticos
Metem medo, suas fisionomias quadradas
Fazem lembrar portas de crematórios
Que em resultado das novas tecnologias e redução de custos
Só passarão a aceitar utentes que se desloquem pelos seus meios
São sempre escuros como as longas noites de temporal
Até os relâmpagos são escuros,
As estrelas são escuras
Não iluminam a noite, queimam a noite
No meio dessas figuras desuni formes medonhos
A minha serra chama por mim
Eu parto
O passo é incerto, por caminho duro e pedregoso
Sofro da bebedeira da idade
E da falta de força por muito ter andado
Deixo para trás casas conhecidas, com gente estranha
Tudo mudou, eu mudei
No meu olhar não consigo ver a beleza das rosas
Só vejo os seus bicos enormes
Aliados ás figuras medonhas,
Ás figuras de morte
Continuo a andar
O passo é cada vez mais incerto, mais lento, já é trôpego
É já com muita dificuldade que continuo a subir a minha serra
Já não tem pássaros
Só tem insectos
Insectos enormes, alimentam-se de restos humanos
A velha fonte já não existe
A pedra que servia outrora de banco, está lá e ri-se
A árvore enorme em sua frente de quem tinha ciúmes
As pessoas sentavam-se mais pela sombra, do que pelo conforto do assento
Está moribunda
Tem muitos braços já mortos
Os poucos que ainda tem estão quase sem folhas
O cenário já não é alegre, é triste
É triste como eu e tudo ali é um cenário fúnebre
Não passa ninguém
Está deserto
Há muitos anos atrás sentava-me ali e pensava
Sentava-me ali e pensava que ia partir
Que mais amanhã mais depois ia partir para o Ultramar
Se não voltasse quantas saudades iria ter de aquele sitio
Como eram dolorosos esses pensares
Tocaram-me balas na pele
Vi muita violência, desnecessária
Toda a violência é desnecessária
Vi muito sofrimento
Vi muito sangue
Vi muita lágrima derramada
Chegou a abençoada hora do regresso
E eu acreditei no mundo melhor
Vibrei com os grandes inventos para o bem da humanidade
Vibrei com todas as máquinas que iam aparecendo
Para tirar o trabalho ao homem
Estava já muito esquecido o sofrimento dos outros tempos
E aquela terra amada e odiada lá ia
Mas hoje aqui sentado na minha pedra
Onde foi meu cenário de sonho e esperanças
Eu trémulo, mas hei-de vender o último suspiro
Eu digo outra vez com os olhos rasos de lágrimas e cheios de saudade
Deixando um cumprimento fraterno a todos os camaradas
A todos os camaradas e amigos
Quarenta e muitos anos depois ai estamos
Digo a alegria de voltar não tem descrição
É indescritível, só quem a viveu, a pode entender
Mas aquela parte em que deveríamos ter contribuído para um mundo melhor
Onde ficou
Toda a tecnologia que vimos nascer
E que acarinhamos
Penso que não correspondeu às expectativas
De povos carentes e com dificuldades
Penso que a nós, a muitos de nós particularmente já mais perto do fim
Levamos um pontapé dado com outra bota talvez,
Mas da mesma grandeza daquele
Que levamos já há muitos anos atrás
Oxalá que seja eu que estou num mau observatório
E estou a ver tudo errado.

Ernesto Duarte
Mansabá 
Mores – Oio

Foto: Natura Algarve, com a devida vénia
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Nota do editor

Último poste da série de 11 DE JUNHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11691: Blogpoesia (345): War is over, baby [ A guerra acabou, querida] (Luís Graça)

sexta-feira, 15 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11257: Blogoterapia (224): Cozinhas de campanha (Ernesto Duarte)

1. Mensagem do nosso camarada Ernesto Duarte (ex-Fur Mil da CCAÇ 1421/BCAÇ 1857, Mansabá, 1965/67) com data de 9 de Março de 2013:


Cozinhas de campanha

Eu até gostei do Exército

Da minha serra à cidade de Lagos eram para aí 30 quilómetros, aonde eu ia muitas vezes porque tinha lá a viver muitos familiares, que naquela rua estreita era a porta em frente ao Caçadores 4, ou seria Infantaria 4. Muito miúdo ainda, hoje espreitava um pouco, amanhã outro e dentro de pouco tempo eu andava lá por tudo quanto era sítio.

Tudo aquilo era um encanto para mim, só nunca lá vi foi munições, agora armamento vi todo desde as armas ligeiras até às pesadas, postas em cima de carros puxados a cavalos ou machos e mulas, acho que não havia nenhuma viatura mecânica.

Nos concelhos à volta de Lagos todo o gado cavalar e muar estava na tropa, com caderneta e tudo e os donos tinham que as ir mostrar de quando em quando e sempre que vendiam alguma ou compravam tinham que tratar dos respetivos registos, papelada de militar.

O Quartel tinha a sua quantidade de bestas. Naquele tempo, ali, a vida de soldado era varrer, varrer, limpar os bichos dar-lhe palha e água. Passavam lá muito tempo, porque eu conhecia uma série de malta, eu ia e voltava e eles continuavam lá de vassoura na mão.

Dizer que deixei de gostar do Exército é muito forte e inofensivo, diga-se assim, comecei a retribuir-lhe a mesma simpatia que ele, Exército, tinha pelos seus soldados.

Eu fui o primeiro fulano a chegar à CCaç 1421 em Abrantes, tendo recebido um molho de chaves e não sei quantos cabos quarteleiros, tendo estado para aí uma semana só, até que o RI2 emprestou um alferes e um 2º sargento. Aquilo passou e eu ganho, como prémio, ir para Santa Margarida à frente receber material e militares de outras unidades que iam para lá formar a companhia.

Aí eu levei o primeiro grande pontapé no estômago, em relação ao Exército! Entre o que recebi, recebi uma cozinha de campanha que rebocámos para o sitio onde ficaria a funcionar. Aí na segunda semana já tinha muita gente comigo. A cozinha era de chapa, com juntas soldadas em vários sítios. Assentámo-la e o ultimo acto foi abrir a tampa.

A cozinha não estava branca, estava amarela, o que é, o que não é, chega-se à conclusão que era maça consistente. Fui ter com o sargento Barrigudo, foi simpático e colaborante mas todas as que vimos estavam na mesma, cheias de massa. Lá me disse como aquilo era chapa, entre uma utilização e outra, tinham que fazer aquilo, porque segundo ele, assim era melhor que ferrugenta, deu-me potassa e uns esfregões.

Lavamos a cozinha, escaldamos, mas o cheiro a ranço nunca passou, cheirou sempre e a comida era intragável. Ali a uns metros havia as messes, eu tinha nascido e crescido em comunidade, não entendia tamanha diferença, mas volto a encontrar o cheiro a ranço.

Cozinha de campanha > Comando da Zona Militar da Madeira (ex-GAG-2) > S. Martinho > Funchal

Foto: © Carlos Vinhal

O tempo passou e nós lá aparecemos dentro do Niassa, com uma ida à Madeira onde foi tudo passar uma noite louca.

Trago comigo para o naviuo o meu 1º Sargento, um homem grande e bom, mas que teimava em trazer umas garrafas de vinho da Madeira. Lá vamos por aqueles corredores fora, até que nos apercebemos de algo de anormal, conhecemos logo outro grande homem, o 1º Sargento da 1419, grande amigo, uma amizade que durou muito tempo cá fora. Estava cercado por tipos vestidos de branco.

Eu não sei se todos os que viajaram de Niassa, foram alguma vez ao fundo dos seus porões onde os nossos homens dormiam em beliches que chegavam quase cá acima, como o tempo era pouco para limpar, aquilo cheirava a ranço e a vomitado, para muitos era insuportável, nunca foram lá ao fundo.

Nessa viagem iam mulheres de marinheiros, cabos EP, mulheres de outros soldados e penso que de policias e também muita criançada.
Como não tinham amarelos iam no porão, e o nosso primeiro Teixeira lutava para lhes dar uma casa, um quarto cá mais acima, como de repente apareceram muitos soldados, os homens de branco cederam e arranjaram um quarto cá em cima, e passaram a comer da nossa comida, meio roubado, meio clandestino.

Portanto quando cheguei a Mansabá, a minha simpatia pelo Exército era igual à que ele tinha por mim, pelos seus soldados, era nula.

 Ernesto Duarte em Mansabá

Se achares que tem algum interesse, é teu.

Um muito obrigado
Um grande abraço
Ernesto Duarte
Furriel Miliciano
BCaç 1857 / CCaç 1421
Mansabá – Mores – OIO
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 16 DE FEVEREIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11102: Blogoterapia (223): Agradeço as manifestações de pesar que me foram dirigidas a propósito do falecimento da minha mãe (Carlos Vinhal)

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Guiné 63/74 - P11160: Blogpoesia (322): Não sou nada, não sou ninguém (Ernesto Duarte)

1. Em mensagem datada de 19 de Fevereiro de 2013, o nosso camarada Ernesto Duarte (ex-Fur Mil da CCAÇ 1421/BCAÇ 1857, Mansabá, 1965/67) enviou-nos um poema de sua autoria a que deu o expressivo título:


Não sou nada, não sou ninguém

Aqui no alto das minhas recordações 
Aqui do alto da minha serra 
Aqui do alto de onde as recordações têm outro sabor 
Eu sempre soube o amanhã 
Eu sempre soube que todos os amanhãs são passos para o fim 
Eu sempre soube que nada é eterno 
Eu sempre soube que mesmo os amanhãs passos gigantescos para o futuro, são igualmente passos para o fim 
Eu já andei muitos passos 
Eu já me sinto cansado de tanto descer 
Eu já estou num patamar em que tenho mais passado do que futuro 
Eu sei que passo mais tempo a recordar do que a sonhar 
Eu sei que já posso dizer com um sorriso, que não sou ninguém, não sou nada porque eu sei que lutarei até ao fim, até para lá do fim 
Eu sei que posso dizer que a minha terra está muito longe 
Eu sei que posso dizer que a terra onde vivo não é a minha 
Eu sei que não conheço as pedras das calçadas 
Eu sei que não conheço as gentes que se cruzam comigo 
Eu sei que vivi sempre em terras que não eram as minhas 
Mas eu vou voltar à minha serra, nem que seja só por um dia, pelos caminhos de ontem de muitos ontens
As serras algarvias são diferentes das outras 
São mais pequenas 
Chove pouco, cai neve uma vez por século 
Mas têm uma luz única 
A paisagem é deslumbrante 
O Sol incide naquela extensão enorme de Oceano 
Naquela estrada marítima, naquele caminho marítimo 
Refletindo-se nas dezenas de barcos que a cruzam constantemente 
No muito ontem 
Já tocado pela história, fico horas ali tentando imaginar os grandes Portugueses do passado 
Os seus grandiosos feitos 
Como seriam surpreendentes aqueles novos pedaços de Portugal 
Coisas deslumbrantes e arrebatadoras com certeza 
Muito maiores do que a história 
Não a história maior do que eles 
E desejava mesmo um dia poder lá ir 
Extasiar na sua grandeza física, mas muito mais na sua grandeza humana 
O tempo foi passando e eu fui esquecendo mais, mas sempre tocado 
Sempre imaginando os feitos naquelas terras, as suas grandezas 
E um dia quase sem perceber apareci dentro de um barco, o Niassa 
Daquele barco naquele Atlântico eu olhei a minha serra com saudade 
Chego à Guiné e a desilusão é muito grande 
Eu chego mesmo a pensar que estou em 1400 
Interior comigo, encontro os de 1963 a quem vamos render 
Eles falam connosco, tentam nos dizer o máximo 
Cada palavra que nos dizem, é uma afirmação de que aquilo, esteve, continua a estar igual 
Quase dois longos anos se passam 
E um dia aparecem outros para nos render 
E nós temos para dizer o mesmo, nada 
Naqueles primeiros anos deram-se muitos tiros 
Limparam-se muitas estradas 
Fez-se muitos golpes de mãos, trabalhou-se duro e com sacrifício 
Resultados! 
Em cada rendição estava sempre tudo igual, para não dizer pior 
Mais triste me sinto hoje no meu emaranhado de recordações 
Quanto mais penso, mais confirmo a inutilidade 
E como posso dizer sou nada 
Não sou ninguém

Ernesto Duarte
____________

Nota do editor:

Vd. último poste da série de 17 de Fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11104: Blogpoesia (321): Não à filha-de-putice-da-vida, camarada! (Luís Graça)

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Guiné 63/74 - 10997: Blogpoesia (319): Sou nada (Ernesto Duarte)

1. Mensagem do nosso camarada Ernesto Duarte (ex-Fur Mil da CCAÇ 1421/BCAÇ 1857, Mansabá, 1965/67), com data de 24 de Janeiro de 2013:

Camarada Carlos Vinhal
Os meus fraternais cumprimentos.
Tenho aparecido pouco, os últimos 2 anos e tal foram muito duros para mim. Os ossos, as tenssões, as faltas de vitaminas, os vírus, as bactérias. Mas quase todos dias vou ao blogue.

Eu fiquei, ontem como hoje, amando e odiando aquela terra. Acho maravilhoso fulanos serem amigos 50 anos depois, como se fossem miúdos. E contra factos não há argumentos.
O blogue tem sido o grande aglutinador, o veio de transmissão dessas amizades. Claro o blogue não funcionam sozinho. Só funciona graças a esses corações maiores que o peito, a quem eu ficarei sempre grato.

Carlos, mando-te umas linhas, passam a ser tuas, do blogue. Se acharem que tem algum valor para publicar, reafirmo são vossas.

Um muito Grande Abraço
Ernesto Duarte
Furriel miliciano
CCAÇ 1421/BCAÇ  1857
1965 a 1967
Mansabá, Oio, Mores


Sou nada 

Eles estão ali 
Esfarrapados 
Mutilados 
Aos pedaços 
Cheios de sangue 
Cheios de lama, feita com sangue e de 
Uma terra que não era a sua 
Amada 
Odiada 
Gritando de desespero 
Gritando de dor 
Gritando pela mãe 
Gritando pela mulher 
Gritando pela namorada 
Gritando pelos filhos 
Vão sucumbindo na frente da nossa impotência e raiva 
Agarram-se a nós como se agarrassem a vida 
Para ela não lhes fugir 
Já sem forças 
Ainda murmuram 
Amei- vos Muito e Muito 
Já não se ouvem, só já mexem os lábios 
E nós ficamos vociferando 
Gritando de raiva até hoje 
Com aqueles que passaram 
O resto da sua vida chorando e dizendo 
Amei-te muito meu filho 
Amei-te muito meu homem 
Amei-te muito pai , mesmo sem te conhecer 
A guerra dizem que é para homens 
Amaldiçoada maneira de dizer que sou homem.
______

Nota do editor:
Ao nosso camarada Ernesto Duarte uma palavra de agradecimento pelas palavras que nos são dirigidas e de encorajamento para enfrentar o tempo que leva a recuperação das maleitas que nos vão chegando com a idade. Somos já um grande grupo de dinossauros que, como sabemos, foi sempre uma espécie ameaçada.
Caro Ernesto para ti um abraço solidário e a certeza de que vais ultrapassar este momento menos bom.
____________

Nota  de CV:

Vd. último poste da série de 19 DE JANEIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - 10962: Blogpoesia (318): Dizem-nos que estamos a envelhecer ( Luís Graça)

sábado, 22 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10845: Conto de Natal (12): O meu Natal de 1966 em Mansabá (Manuel Joaquim)

1. Mensagem de Manuel Joaquim (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67), com data de 17 de Dezembro de 2012, descrevendo o seu Natal de 1966 em Mansabá:


O meu Natal de 1966 

Em 1966 passei o Natal em Mansabá, em ambiente muito diferente do do Natal de 1965 em Bissorã*, quer militar quer civilmente. Bissorã era uma vila e Mansabá uma aldeia. E quanto à vida militar, esta era agora muito mais dura e espartana no dia a dia passado na povoação, já que na actividade operacional poucas diferenças haveria quanto ao perigo e aos esforços desenvolvidos.

Então vamos lá à “reportagem” do meu Natal em Mansabá, usando o que ainda retenho na memória e algumas fotos:

Para mim a festa natalícia começou com um pequeno lanche tendo por base um bolo-rei que a minha querida e sempre prestável namorada tinha enviado de Lisboa. “O bolinho serviu para mais umas libações, para reavivar o ambiente, para identificar melhor o dia. Fomos 14 a manducá-lo. Parece-me que até houve uma fotografia. Se ela aparecer enviar-ta-ei.”- assim lhe respondi agradecendo a bela gentileza. A foto, se existiu, nunca me apareceu.

Não sei de outras festas de Natal no aquartelamento, devem ter existido, por isso vou só relatar a minha, passada na messe de sargentos. As “festividades” começaram ao jantar. Depois de bem “regados e comidos” seguiu-se a devida confraternização sempre acompanhada de líquidos mais ou menos alcoólicos, mais que menos (vd. foto 1). Num dos topos da sala montou-se um palco, alinhando várias mesas de refeição, onde se foram sucedendo as mais variadas atuações. Diversos “artistas” se exibiram, cantando ou dançando. Que grande exibição de dança flamenca fizemos, eu e mais dois ou três, com par “feminino” e tudo.

Foto 1

Acabada a sessão de canto e dança passou-se para a Tabanca Bar, para a “sossega”. Aqui, com o andar do tempo, as “camisas” de palha das garrafas que iam sendo esvaziadas viraram chapéus. Começou por mim essa utilização (foto 2) e não tardou ver- me a ser seguido no gesto, como se vê (foto 3):

Fotos 2 e 3

A cena começou então a ser “sacudida” com entradas inesperadas e improvisos declamatórios que chegaram a confundir os intérpretes, como se vê na foto abaixo onde três personagens parecem confusos no caminho a seguir (foto 4).

Foto 4

E o “happening” dos chapéus de palha terminou com a dita a arder em homenagem ao deus Baco (foto 5):

Foto 5

Com esta nossa atitude percebemos logo que Baco, o nosso adorado deus da “pinga”, tinha ficado tão satisfeito com a homenagem que nos incentivou a completarmos a liturgia com um refrescante banho de cerveja. Não nos fizemos rogados, como se pode ver na figura central da imagem (foto 6). Que linda figura a minha!

Foto 6

Acabada a homenagem baquiana, molhados e cansados, e alguns já bem toldados pelo “espírito” do deus romano, seguiram-se uns tempos de acalmia que foram curtos. Alguém se lembrou que, afinal, era dia de Natal e que nos estávamos alarvemente a desviar do espírito da comemoração, a do nascimento de Jesus.

Sentiu-se pairar sobre nós a voz da razão(?), ouvi a minha voz crítica interior a concordar com os possíveis ofendidos e, milagre!, inesperadamente alguém leva para a rua umas caixas de madeira e propõe fazermos uma fogueira de Natal. Dito … e mãos à obra!

As fotografias nºs 7-8-9-10 “iluminam“ o desenrolar do acontecimento:

Fotos 7; 8; 9 e 10

Definiu-se o guião a executar e que era o de, à volta da fogueira, se cantarem canções de Natal. Assim aconteceu e muitas gargantas, mais ou menos afinadas, algumas em voz gritada, soltaram com emoção as melodias que tinham aprendido na sua infância. Muitos de nós terão recordado outras fogueiras similares das suas terras longínquas e as canções que as acompanham!

-“Feliz Natal, feliz Natal … “

-“Alegrem-se os céus e a terra / cantemos com alegria / já nasceu o Deus Menino / filho da Virgem Maria” …

- “Arre burriquito / vamos a Belém / ver o Deus menino que a Senhora tem … “

 -“Adeste fideles …”

e algumas outras canções ecoaram pela tabanca, vindas das gargantas de soldados desterrados num lugar de guerra quando comemoravam o nascimento de alguém que veio ao mundo pregar a paz e a fraternidade.

Como que se sentia “presente” o espírito desses lugares longínquos que, naquela altura, também poderiam estar cantando canções de Natal à volta de uma fogueira. Uma sensação de comunhão cerimonial que a distância que nos separava não impedia. Senti-me comovido.

Findos estes improvisados momentos de convívio festivo dispersámo-nos, continuando alguns pela noite dentro extravasando os seus sentimentos com atitudes mais ou menos descontroladas, algumas incompreensíveis à primeira vista. Eu, cansado e moído emocionalmente, ainda procurei mais uma cerveja e dirigi-me à sala de refeições para me sentar e descansar um pouco. A sala não tinha ninguém naquela altura e dei por mim a olhar um quadro de “presépio” fixado na parede nua. Feliz Natal, dizia a composição. Senti-me a gostar de ser fotografado junto dela. Encontrei o “fotógrafo de serviço” que ainda andava por ali (infelizmente esqueci quem era). Montado o cenário, apostei que seria capaz de me equilibrar nele. E venci a aposta, como se vê por esta foto (Foto 11) que ficou para, felizmente, me fazer recordar a noite de Natal mais emotiva da minha vida.

Foto 11

É tempo de dizer que naquela altura eu não era crente, nem hoje o sou. Mas respeito a religião seguida pelos outros e todas as religiões me interessam como área de estudo. Gosto de frequentar templos e de assistir a cerimónias religiosas, gosto de estudar a teologia e a filosofia das religiões, “adoro” música e todas as artes com incidência religiosa.

Talvez assim se compreenda o teor da notícia que deste acontecimento dei à minha namorada. Dois dias depois, ainda na ressaca física e psíquica do que me tinha acontecido na noite de Natal, as emoções que então senti estavam a diluir-se; talvez porque não assentassem em fé religiosa mas na força do espírito amigo, solidário e comunitário daquele grupo de camaradas, força que então se manifestou a propósito de uma data de cariz religioso. Ou então a visão global do acontecido naqueles dois dias tenha feito arrefecer as referidas emoções e, por isso mesmo, me tenha trazido alguma desilusão:


“A noite de Natal cá se passou. Uma barulheira infernal, bebedeiras a torto e a direito, noite em branco, choros, convulsões, maluqueiras, gritos histéricos, socos, cabeças partidas, mesas, copos, cadeiras a quem aconteceu o mesmo.
Bem, isto não foi Natal. Foi Carnaval e do bom. Alegria falsa, no entanto. Se na noite de 24 para 25 ainda alinhei na coisa, ontem já não o consegui fazer. Era de mais. A alma estava tão triste!... E continua".

******

Notas finais sobre as imagens das fotos:
- Os militares das imagens pertenciam, na sua quase totalidade, ao BCaç 1857 (CCS, CCaç 1419, CCaç 1421).
- Apesar de reconhecer a maioria dos fotografados, optei por não os identificar, seja porque receio trocar os nomes de alguns seja porque de outros nem sequer tenho ideia do seu nome.
- Por fim chamo a atenção para a figura de um soldado que prestava serviço no bar. Aparece nas fotos nºs 6 (2º à esquerda), 8 (primeiro plano, à direita), 9 (1º à esquerda), 10 (à entrada da porta). Sem expressão, sem um sorriso, parece totalmente alheio ao que se passa, apesar de ser patente a sua curiosidade pelo que está a ver! Impressionante.

Para todos os meus camaradas da Guiné e restantes leitores deste blogue, umas Festas Felizes
Manuel Joaquim
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 21 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10839: Conto de Natal (9): O meu Natal de 1965 em Bissorã (Manuel Joaquim)

Vd. último poste da série de 22 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10842: Conto de Natal (11): O Neurónio do Natal (Jorge Cabral)

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Guiné 63/74 - P9350: Fragmentos da minha passagem pela tropa (Carlos Rios) (10): Fragmentos Genuínos - 8

FRAGMENTOS GENUÍNOS - 8

Por Carlos Rios,
Ex-Fur Mil da CCAÇ 1420/BCAÇ 1857, Mansoa e Bissorã, 1965/66



Quartel de Mansoa visto do cimo do depósito da água


Entretanto via-me envolvido por uma situação de ansiedade e constrangimento, na medida em que o nível de solidariedade, amizade e confiança que existiam já no grupo, para além da responsabilidade que sentia por ter sido um dos mais entusiastas na formação do mesmo, e depois das experiências negativas da participação em conjunto com alguns dos Grupos de Comandos, levavam-me a não querer já vir a ser transferido para aquela força. Completamente inibido de autonomamente me dirigir ao Comando para transmitir esta questão fui logo após ter chegado a Mansoa, mandado chamar ao Comandante de Batalhão, Ten.Cor. Ferreira de Lemos, que se me dirigiu com toda a educação e respeito, que eram seu timbre, e argumentando com lisonja e na convicção de que me estava a convencer, do que eu mais desejava.

Disse: - Então o nosso Furriel quer deixar-nos - e mais um prolixo discurso que praticamente não ouvi, tal era o sentimento de satisfação por me resolverem uma encrenca, da qual não me conseguia ver livre. Apenas respondi:
- Mas, meu Coronel eu já não quero ir!

Palavras ditas e de imediato chamou o chefe da secretaria para mandar fazer um requerimento que de imediato assinei sem sequer o ler.
Saí dali leve que nem uma pena. Nunca mais se falou no assunto.

Não tive tempo de saborear esta pequena satisfação porque, penso que logo no dia seguinte, numa das colunas que fazíamos frequentemente na estrada para Bissau e a partir da antiga escola de Jugudul, fomos vítimas de violenta emboscada, que apanhando a retaguarda da coluna, cravou de tiros uma viatura com a nítida intenção de alvejar o condutor, o que não aconteceu devido ao extraordinário sangue frio deste, que ao ouvir o primeiro tiro, travou a fundo e se atirou para o chão, ficando a viatura inoperacional, sendo que inclusive o motor foi atingido; menos sorte teve o 527, 1.º Cabo Domingos Pereira, que sentado num dos bancos em cima da carroçaria foi atingido com seis tiros que o puseram à beira da morte. Reagimos de imediato e em poucos segundos depois de silenciada por parte do Rui, a metralhadora pesada que tinha provocado aquele grave acidente de guerra, este encarregou-me de fazer uma batida pela zona tendo a minha Secção reforçada com alguns milícias vasculhado por toda a tabanca e numa mata adjacente sem qualquer efeito. Do inimigo nem sombra nem qualquer informação por parte da pouca população que se manteve no local, pelo que regressado à estrada fui encarregado, depois de o Rui e o Monteiro terem rapidamente arrancado com o Pereira já extremamente debilitado pela perca de sangue para o quartel, viradas que tinham sido entretanto as viaturas naquele sentido, de preparar e rebocar a viatura atingida, no que o meu pessoal foi impressionantemente lesto e lá conseguimos regressar. Depois de um conjunto de incompreensões e observações perante um caso de extrema gravidade. nada abonatórios para alguns elementos combatentes de secretária do Comando do Batahão e que me eximo de pormenorizar, porquanto se tinha feito noite e os helicópteros não podiam aterrar, lá conseguiram ser demovidos e aceitar as opiniões apresentadas pelos mais jovens, sendo que de maneira pouco ortodoxa, a pista foi iluminada pelos faróis de todas as viaturas disponíveis, aquele meio foi posto em movimento, e o Pereira pôde ser evacuado para o Hospital de Bissau já a soro e em estado critico pela perca de sangue. Operado de urgência debateu-se entre a vida e a morte, vindo a ser evacuado para a Metrópole e conseguindo safar-se pois não tinha sido atingido nenhum órgão vital. Foi com um sentimento de profunda emoção e alegria que o pude abraçar num dos almoços de confraternização que fizemos, e onde conversámos e vim a saber que tinha já terminado a sua actividade profissional, fora emigrante em França, sendo que ainda tem alojada atrás do joelho esquerdo uma das balas.

Um heli faz uma evacuação. Ao fundo, mas bem perto, vê-se o fumo dos rebentamentos que persistem. O heli tem que sair rápido (“goss, goss”).

Durante o decorrer deste tempo e em altura que não tenho de memória, o Comandante de Companhia que tinha vindo substituir o inefável Manuel Caria, terminava a sua comissão. Não tenho do mesmo praticamente qualquer recordação excepto que se fazia acompanhar pela esposa, ficando o casal alojado numa vivenda fora do Quartel. Não era o nome da senhora mas o pessoal resolveu baptizá-la de “Delfina” e foi autora da nova frase carismática a par de “Rumo a Fulacunda”.

Numa das saídas fomos buscar o Capitão a casa e a Srª. D. “Delfina”, disse: - Cuidado Herberto – chamava-se o Comandante Herberto Nascimento; pronto, aquela Companhia era terrível, e a partir daí o simpático Cap. Nascimento, passou a ser o “tem cuidado Herberto”.

Em sua substituição apresentou-se o Cap. M. dos S. Recebido como de costume com todos os “novatos”, com o desinteresse e desconfiança daquele grupo de desmiolados. Este militar fazia questão de salientar já ter feito uma comissão na guerra de Angola como alferes miliciano. E perorava actos e acções de destemor e valentia durante aquele período. Pouco tempo passou e deu-se a primeira saída do novel Comandante da Companhia. Numa noite debaixo de forte temporal, sob chuva intensa e constante, com uma escuridão como só mesmo em África, no comando de um grupo constituído pelo nosso pelotão e o do Malaca dos Santos, avançámos através da floresta cada vez mais densa o que nos punha os sentidos em alerta permanente, que felizmente veio a sublimar-se com o amanhecer quando nos aproximámos de uma pequena bolanha onde, mais uma vez renasce o leit motiv da nossa presença nesta terra, no atravessamento da qual fomos vítimas de intenso tiroteio, o que levou a que a coluna se partisse, ficando ainda na retaguarda do outro lado da bolanha um conjunto do Malaca dos Santos. Na cabeça da coluna, como de costume corri de imediato acompanhado pelo incomparável Fajões e a sua bazooka e o Amorim (era o enfermeiro do Pelotão mas um inigualável combatente) e respondendo com a valentia e eficácia do Fajões que galvanizou o restante grupo que avançando a metralhar o sitio de onde vinha o tiroteio e desbaratou a emboscada, vindo o ouvir-se apenas esporadicamente alguns acordes da costureirinha “PPSH”. Tivemos de atravessar duas vezes a bolanha para trazer a reboque os elementos atrasados e reunificar as tropas.

O inaudito M. dos S. alapado atrás de um baga-baga, sem um som ou movimento olhos esbugalhados, olhava para tudo aquilo com um ar assarapantado e imbecilizado. O Fajões que passamos por ele diversas vezes disse que “o homem parece um Capador” daí lhe ficou o nome pelo qual entre a soldadagem ficou a ser conhecido por esse apodo.

Alguém o ouviu comentar junto de diversos elementos do Comando.
Foi uma actuação de loucos!
Nunca vi nada assim! Correram mais de duzentos metros de peito aberto para cima dos turras, desprotegidos no meio de um intenso tiroteio! São doidos! Perfeitamente doidos.

A investida suicida de peito aberto de frente para as posições inimigas, foi remédio santo, emudeceu para sempre as suas basófias. Mas, a verdade, é que era a nossa única chance, ou os desalojavamo-los, ou deixávamos um pequeno grupo isolado à sua mercê e já tínhamos na Companhia uma triste experiência dessa situação.

Alguns pequenos intervalos com que procurava-mos descomprimir, mais não eram que o reconhecimento da intensa e profunda entrega à missão que desenvolvíamos com desesperante angustia, profundo desgaste e sofrimento, eram gotas balsâmicas, numa permanente situação de tormento, ansiedade e cansaço físico e psicológico que era o nosso quotidiano em permanente estado de guerra, com fugidios e muitas vezes atrozmente interrompidos momentos de descanso.
A certeza adquirida nesta permanência em Mansoa era para além das dificuldades, sofrimento e revezes da Companhia, ainda uma constatação de violência e tragédia na área da nossa intervenção.

Algum tempo após estes graves incidentes, fui confrontado com o reactivar de uma realidade já sublimada pelo tempo e que me reactivou os sentidos de terror, pequenez e impotência ao enfrentar um inimigo invisível e tremendo: as minas.

Encontrando-me com alguns camaradas, de entre os quais estava o meu amigo J.M.Bastos, na esplanada do clube os Balantas, vestido eu à civil, (ainda me lembro da vestimenta - calções de caqui e uma camisa de seda multicolorida, ao bom estilo africano, e uns mocassins) - estava pinoca o saloio, quando ouvimos um grande rebentamento para os lados de Encheia. De imediato corremos ao quartel e tal e qual como estava pus o cinturão em que tinha sempre para além das cartucheiras, quatro granadas e pegando na G3, material que sempre mantinha pendurado à cabeceira da cama, pedindo ainda a entrega de um dilagrama, e montados os diversos pelotões em viaturas, dirigimo-nos para a estrada de Encheia.

O quadro com que nos deparámos foi aterrador. Sendo aquela picada, junto da qual haviam diversas tabancas considerada “controlada”, uma carrinha (mini-autocarro) vinha com alguma frequência de Bissau até junto da cambança para Encheia, transportando população e toda uma parafernalha de utensílios para a localidade e para as já referidas tabancas. Nesta viagem e a pouco menos de 500 metros do local onde habitualmente parava, pisou uma mina, que explodindo desfez literalmente a viatura, espalhando pelas redondezas mortos e feridos, um horror incomensurável, de tal maneira que o Zé Manuel Bastos e o seu grupo tiveram que recolher para cima de um Unimog, corpos e pedaços dos mesmos chegando em alguns casos a haver membros decepados e esquartejados de tal modo que não se sabia a quem pertenciam, uma vez feito este pungente e dramático trabalho, lá seguiu o calmo e sensível J.M Bastos e o seu grupo com a macabra carga, sanguinolenta a tal ponto que escorria para o chão, sozinhos no Unimog para Bissau, vindo ainda já dentro da cidade a ser mandado parar pela P.M. O desenlace foi um imberbe e sobranceiro alferes ficar tremelicando e sem voz na beira da Avenida, acabando o Bastos a sua missão.

Paradas as viaturas e tendo entretanto o meu grupo intervindo por ali nas tabancas e arredores, enquanto outro grupo procedia à picagem da estrada, a população fugiu em massa para uma pequena mata pegada com uma bolanha onde cultivavam arroz, sendo que ainda fomos fustigados de longe ao que reagimos de imediato saltando eu para dentro da bolanha e disparando o dilagrama para dentro da mata, o que provocou um absoluto silêncio mantendo-me no mesmo local donde só saí (lá ficaram os meus queridos mocassins) quando a população, creio que se terá julgado entre dois fogos, começou a caminhar no nosso sentido. Na frente um encorpado gentio vestia uma camisola onde no peito era bem visível o emblema da Mocidade Portuguesa. Entretanto o pessoal que procedia à picagem do resto do troço viria a encontrar poucos metros depois de onde tínhamos parado outra mina que desmontaram e levantaram.

O contacto com esta atroz tragédia, demolidora do mais forte controlo de um ser humano, os diversos acontecimentos subsequentes incluindo a visão do elemento com a camisola referida fizeram despoletar em mim uma crise de nervos que me fez dizer e praticar todos os desmandos possíveis e que só no dia seguinte, já praticamente recuperado, a guerra continuava e eu era tido como preponderante no meu grupo, vim a saber.
Mandei com a arma fora… desatando em completa convulsão a gritar "podia ser o meu irmão", "maldita guerra", etc …etc..

Valeu-me o perspicaz e desembaraçado Rui, que pegando em mim ordenou a um condutor que me conduzisse de imediato ao Quartel o que ele acatou de bom grado mas clamando eu ainda que queria levar a mina.
E lá foi aquela boa alma sozinho ao volante de um camião Mercedes, com um maluquinho sentado ao seu lado com uma mina de cinco quilos de trotil ao colo. Chegados ao Quartel o meu bom amigo Carolino,(infelizmente já falecido, na sua terra - Marinha Grande), já de seringa em riste injectou-me uma mistela que só me deixou acordar no dia seguinte, tornando-se assim o motivo de conversas ditoches e conselhos assizados, que puseram tudo no lugar.

Nos dias seguintes verificou-se alguma acalmia, sendo-nos destinada, entre outras a função de apoio e segurança na escolta a uma coluna de reabastecimentos ao Olossato e durante a qual detectámos e fizemos accionar e destruir duas minas anti-carro e três anti-pessoal.

Ainda da estadia em Mansoa recordo com precisão uma deslocação a Mansabá que me mereceu o comentário no notável blogue do grande camarada e amigo Henrique Sacadura Cabral, com o titulo Rumo a Fulacunda que abaixo transcrevo.

Carlos Rios Fur.Milº CCaç1420 Diz:
15 Março 2011 às 13:48
Curiosa miscelânea de emoções e sentimentos se extrapolam do que os camaradas aqui escrevem. Não quero deixar passar a oportunidade sem comentar a nossa passagem por aqui, de uma das vezes que para aqui viemos foi para participarmos numa operação de grande envergadura em que saíram companhias de diversos acantonamentos, Olossato, Bissorâ, Mansabá etc.. para o Morés e onde uma das companhias apanhou imenso armamento, já não me lembro, creio que foi a do Olossato. A ansiedade era imensa, ainda recordo que estando alguns de nós no Bar, eu me entregava ao consumo desmesurado de aguardente antes de irmos para o Morés, o amigo José Manuel Bastos dizer “é pá logo tu (acho que aquela malta tinha a mania que eu era o Rambo) estás a agir assim? Curiosidade de Mansabá: não precisámos de mosquiteiro para dormir, praticamente não havia mosquitos. Um espanto.

Vindo de Cutia em trânsito por Mansoa com destino ao Hospital de Bissau para ser observado pelo facto de ter dado uma violenta queda que me provocava fortes dores no peito, e tive a alegria de encontrar já recuperado o meu amigo Rui que aguardava transporte para se juntar a nós, em quem notei imediatamente um sentimento de revolta e inconformismo. Então não é que, porque o Comandante do 4.º Pelotão que se encontrava ausente para Bissau, e estando aquele grupo para sair com a missão de avançar para o mato para o desalojamento e eliminação de alguns focos referenciados, o Comando de Batalhão, o tinha indigitado para comandar aquele grupo ao que ele reagiu acabando no fim praticamente por ser coagido a aceitar a missão; de imediato abandonei a ideia de ir para o hospital e lhe transmiti:
- Se vais eu também vou, assim já seremos dois a aguentar o barco! - Oh diabo, voaram mosquitos por cordas.
- Nnão penses nisso, nem em sonhos, se for preciso proíbo-te de ires porque sou teu superior.

Era um poço de humanidade e brincalhão este Rui, depois de acesa discussão com este teimoso lá verificou que não merecia a pena insistir, pelo que lá nos juntámos aos camaradas do 4.º Pelotão. Depois de diversas peripécias no atravessamento de imensas bolanhas aproximamo-nos de uma tabanca isolada na extremidade de uma pequena mata, indo como de costume na frente da coluna, avistei em fuga um elemento pelo que, impetuosa e impensadamente, me lancei em sua perseguição, vindo a ser gravemente ferido quando um grupo de elementos emboscados estrategicamente dispararam diversas rajadas de metralhadora, atingindo-me duas balas que me provocaram perfuração intestinal e o esmagamento de diversos ossos da bacia que me condenaram ao estropiado que hoje sou. Felizmente não houve mais feridos porquanto vinham ligeiramente mais atrasados e puderam abrigar-se e eliminar aquela frente de fogo. Fui em pouco tempo evacuado de helicóptero para Bissau, vindo ao fim de 15 dias para o HMP e posteriormente para a semi-clausura do Anexo vindo a terminar no DI no largo da Graça, locais de onde guardo a mais confrangedora das recordações. E assim termina a saga africana deste anónimo saloio.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 11 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9342: Fragmentos da minha passagem pela tropa (Carlos Rios) (9): Fragmentos Genuínos - 7