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terça-feira, 24 de maio de 2022

Guiné 61/74- P23287: Documentos (40): A conferência do cor inf Hélio Felgas, proferida na Academia Militar, sem papas na língua, em 10/4/1970 (e depois publicada como artigo na Revista Militar, nº 4, abril de 1970, pp. 219-236), que o Amílcar Cabral leu e achou lisonjeiro para si e o seu Partido, citando-o no Conselho de Guerra de 11/5/1970


Revista Militar, nº 4, abril de 1970, pp. 219-237 (com a devida vénia...)


A LUTA NA GUINÉ (1)

Coronel HÉLIO FELGAS


(') Conferência incluída no Ciclo «A Luta  no  Ultramar», pronunciada pelo Autor na Academia Militar em 10 de Abril de 1970 [,  dez dias antes do "massacre do chão manjaco", e de cujo teor o Amílcar Cabral já tinha conhecimento, em 11/5/1970, quando presidiu ao Conselho de Guerra onde a "liquidação" dos 3 majores e seus acompanhantes foi abordada com algum detalhe  (*)]

Por motivos vários a nossa Guiné continua a ser mal conhecida na Metrópole. O objectivo do presente trabalho é por isso focar determinados aspectos da situação naquela Província.

1-0 Terreno

Assim como não se faz a guerrilha com qualquer população, também não se faz a guerrilha em qualquer terreno. A população necessita ser previamente trabalhada, endoutrinada, convencida, aliciada. O terreno precisa apresentar características especiais. Pode mesmo dizer-se que uma população bem trabalhada pode não ser capaz de levar a cabo uma guerrilha duradoura e frutífera se o terreno não a ajudar. 

Em nossa opinião esta afirmação é válida mesmo no momento actual em que parece nítida a tendência para duplicar ou substituir a guerrilha rural pela guerrilha urbana.

Afinal, esta tendência não é mais do que a confirmação de que a guerrilha tem absoluta necessidade de terreno apropriado. E este terreno tanto pode ser a selva e o mato, como as cidades superpovoadas. O que a guerrilha precisa, quanto a terreno, é de bons esconderijos, boas possibilidades de deslocamento, bons terrenos de culturas alimentares, boas condições para defesa própria e para reacção aos ataques das forças da ordem.

É evidente que estas características não se encontram nem nos desertos, nem nas selvas impenetráveis, nem nas áreas desabitadas ou improdutivas. Mas tanto se podem encontrar em regiões rurais como nas grandes cidades.

Na Guiné as condições ideais para a guerra de guerrilha encontram-se no mato da quase totalidade da Província. 

Terra plana e baixa, que na maré cheia o mar invade em um oitavo da sua superfície, a Guiné portuguesa é um território «sui generis» mas com certas semelhanças com o Vietname. As áreas alagadiças e pantanosas onde os nativos cultivam o arroz − as traiçoeiras «bolanhas» já hoje tão conhecidas dos nossos soldados − alternam com as matas fechadas onde o inimigo tem os seus refúgios e cujos escassos trilhos ele armadilha ou disfarça ardilosamente.

É nas «bolanhas» que os mil rios da Guiné se espraiam em fantasiosos meandros, tornando fatigante e extremamente longo o mais pequeno percurso. Para se avançar um escasso quilómetro é preciso por vezes andar dez ou mais. Ou então há que prosseguir com água e lodo não raro até ao pescoço.

O rendilhado destas margens lodosas e cobertas de tarrafo é substituído na zona interior por um mato espesso que se despenha sobre as estradas e quase sufoca os trilhos, facilitando a emboscada.

Junte-se a este esboço panorâmico um calor tórrido e uma humidade quase limite, e ter-se-á uma ideia das condições da luta na Guiné 
− favoráveis para um inimigo habituado ao clima e conhecedor do terreno, e desfavoráveis para o soldado acabado de chegar da Metrópole.

2-0 Inimigo

A partir de 1955, as autoridades inglesas e francesas dos territórios africanos,  sob sua administração, começaram a permitir a formação de partidos políticos pelos nativos daqueles
territórios. Assim sucedeu na Guiné Francesa de então e no Senegal, territórios que confinam com a nossa Guiné, respectivamente a sul e leste e a norte.

Compreende-se fàcilmente que os nossos nativos residentes naqueles territórios se sentissem também inclinados a formar partidos políticos. Mas enquanto na República da Guiné só um vingou (o PAIGC), no Senegal constituíram-se vários que rivalizaram uns com os outros durante anos até que se fundiram num só (a FLING).

O PAIGC ou «Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde» é constituído por guineenses e cabo-verdianos, embora estes sejam em minoria numérica. No entanto, o seu chefe é o engenheiro agrónomo cabo-verdiano Amílcar Cabral que se fez rodear de diversos conterrâneos.

Há conhecimento de rivalidades no seio do partido entre cabo-verdianos e  guineenses 
  o que não admira pois tais rivalidades são seculares, Em regra os guineenses queixam-se de ser colocados em posições subalternas.

No entanto, o indiscutível tacto político de Amílcar Cabral tem evitado dissidências importantes 
−  o que, como se sabe, não tem acontecido nos partidos angolanos e moçambicanos cujos dirigentes andam sempre envolvidos em disputas mútuas. Inclusivamente o PAIGC ainda hoje não formou oficialmente qualquer governo provisório, porque Amílcar Cabral deseja evitar invejas e descontentamentos que poderiam enfraquecer o partido.

Quanto à FLING, é constituída apenas por guineenses. Uma das pedras da sua propaganda para desacreditar o PAIGC, é mesmo fazer acreditar que os guineenses do PAIGC são dominados pelos cabo-verdianos.

Ambos os partidos declaram desejar a independência da Guiné Portuguesa e a transferência do poder para os nativos, sem que isso signifique a abolição da língua portuguesa ou a expulsão dos brancos. Mas enquanto a FLING pretende alcançar este objectivo por negociações, o PAIGC pôs de lado os meios pacíficos e escolheu a luta armada.

Uma outra diferença é que a FLING apenas deseja a independência da nossa Guiné. Mas o PAIGC pretende também a de Cabo Verde, constituindo a independência da Guiné apenas uma primeira fase da sua luta que deve conduzir à constituição de um Estado (talvez federal) englobando as duas Províncias.

O PAIGC é um movimento revolucionário de tendências sociocomunistas. A sua estrutura, imitada da do regime guineense de Seku Turé, baseia-se no sistema soviético da preponderância do partido sobre o governo.

Pelo contrário, a FLING é de tendência moderada ocidental e por isso teve o apoio, ainda que muito limitado, do governo senegalês de Leopoldo Senghor.

Desde o princípio que o governo de Conakry deu total apoio ao PAIGC
 o que não deve admirar pois trata-se de ideologias políticas idênticas.  Aliás foi a mesma identidade que levou o governo de Dakar a admitir a FLING. 

Simplesmente a FLING não conseguiu projecção alguma, dentro ou fora da nossa Guiné. E o PAIGC, há que admiti-lo, conseguiu. Não só a partir de 1964 passou a ser o único movimento armado actuando naquela Província, como o seu prestígio se foi cimentando no âmbito internacional e a tal ponto que o seu chefe já tem em conferências internacionais representado não só o seu partido como todo o movimento emancipalista africano.

Claro que a projecção alcançada pelo PAIGC não podia deixar indiferente o presidente senegalês Senghor, por um lado, pensou que, se acaso um dia o PAIGC viesse a tomar conta da vizinha Guiné Portuguesa, as relações com o Senegal seriam péssimas caso este país não tivesse ajudado o PAIGC na sua luta pela independência. 

Por outro lado, o presidente senegalês, apesar de todo o seu evidente ocidentalismo, sentiu que a sua própria posição pessoal estaria ameaçada, caso não mostrasse interesse pela luta de emancipação levada a cabo pelo PAIGC e apoiada por quase toda a Africa negra e árabe.

Estes condicionalismos políticos levaram Senghor, talvez até contra sua vontade, a prestar auxílio ao PAIGC, partido em quem o presidente senegalês não tinha muita confiança, primeiro por ser apoiado pelo governo de Conakry (cujas relações com Dakar nunca foram boas), e depois porque Senghor receava possíveis ligações entre o PAIGC e os elementos da oposição política senegalesa.

Foi então estabelecido o acordo de 1966 que «legalizou» a permanência e o deslocamento dos grupos armados do PAIGC em todo o Sul do Senegal,  fronteiriço com a nossa Guiné. Embora sem dar inteira liberdade ao PAIGC, este acordo facilitou enormemente o reabastecimento dos grupos actuando em toda a fronteira Norte da nossa Guiné e permitiu- lhes um refúgio seguro sempre que se sentiam mais apertados pelas nossas tropas.

Compreende-se que o aumento do apoio senegalês ao PAIGC correspondeu a uma ainda maior diminuição do interesse pela FLING cuja actividade cessou quase por completo.

Desta forma o PAIGC encontrou-se em condições ideais para prosseguir na sua actividade pois passou a contar com o apoio de ambos os Estados vizinhos da nossa Guiné. Além disso foi reconhecido pela Organização da Unidade Africana como o único movimento representativo daquela Província, sendo-lhe atribuída boa parte dos fundos do respectivo Comité de Libertação. 

Continuou a receber auxílio financeiro  em armamento e munições, não só da Rússia e seus satélites, como da China Popular. Aceitou médicos e quadros militares de Cuba e enviou centenas de guineenses para estágios e cursos em diversos países comunistas e socialistas. 

Recebeu auxílio financeiro de certos Estados nórdicos com destaque para a Suécia. Finalmente, estabeleceu intercâmbio com a própria Frente de Libertação do Vietname, sabendo-se que vários vietcongs já têm estado na nossa Guiné exercitando os grupos armados do PAIGC.

Em face de todos estes auxílios e apoios, a única coisa que nos parece que deve admirar é a relativa ineficácia da actividade militar do PAIGC. De facto na Guiné encontram-se trocadas determinadas características da guerra de guerrilhas. Quer em número quer em armamento, o inimigo apresenta-se muito mais forte e desenvolvido do que é vulgar atribuir-se a simples guerrilheiros.

Em especial o armamento, dos mais recentes modelos russos, checos e chineses, chega mesmo a levar vantagem sobre alguns tipos nossos, com destaque para os canhões sem recuo, morteiros e bazucas. Qualquer pequeno grupo inimigo dispõe destas armas em abundância e não faz a menor economia em munições.

Felizmente, porém, a eficiência pessoal dos combatentes é que é muito pequena. Falta-lhes treino, decisão, quadros. Armas esplêndidas como eles têm, são mal apontadas tornando o seu rendimento nulo ou quase. Não é raro o inimigo atacar um aquartelamento com canhões e morteiros disparando centenas de projécteis dos quais só dois ou três acertam no alvo. E já se têm apreendido aparelhos de pontaria isolados, simplesmente porque o inimigo desconhece a sua utilização e prefere apontar os canhões e os morteiros à vista.

Convém, no entanto, esclarecer dois pontos. O primeiro  que não podemos confiar em uma eterna inaptidão do inimigo para o combate. E o segundo é que, apesar do que dissemos, o PAIGC sabe perfeitamente o que está fazendo. Embora dentro das linhas gerais características da guerra revolucionária, o PAIGC actua de acordo com as condições peculiares da África e dos africanos.

Aliás, consideramos erro grave julgar que todas as guerras revolucionárias são idênticas quer na sua essência quer na sua concretização prática. Os dirigentes do PAIGC, embora ligados ao castrismo, ao sovietismo e ao maoismo, têm demonstrado uma originalidade própria que nos parece do maior interesse conhecer, para melhor lhe podermos fazer frente.

Dentro desta originalidade, o inimigo não deixa de dedicar a maior atenção à acção psicológica que é levada a cabo com notável sobreposição de meios. 

Esta acção exerce-se entre a população nativa por meio de agentes especializados. Exerce-se por meio de uma estação emissora que, em algumas áreas da Guiné, se ouve melhor do que a nossa Emissora de Bissau. Exerce-se por via diplomática nos diversos países africanos e não-africanos, chegando fàcilmente à ONU onde, como se sabe, tem a maís favorável audição.


3 - A População

A variedade étnica da população guineense é bem conhecida. Num espaço restrito encontram-se doze ou quinze tribos tão diferentes umas das outras como os espanhois o podem ser dos franceses, dos italianos ou mesmo dos ingleses.

Estas tribos são idênticas apenas na sua aparência física e no seu atraso socioeconómico. Mas são diferentes nos seus usos e costumes, na sua língua, na sua religião, nos seus trajes e, até, na forma como reagiram à subversão e ao terrorismo.

De facto, enquanto Balantas, Sossos, Nalús e Biafadas se deixaram aliciar com certa facilidade, Felupes, Baíotes, Banhuns, Papéis e Fulas repeliram energicamente toda e qualquer ideia subversiva. E enquanto os Bijagós se mantêm alheios à luta, os Mandingas, os Mancanhas e os Manjacos dividiram-se, colaborando uns com o inimigo e outros connosco.

Aliás esta diferenciação não é taxativa. Há, por exemplo, inúmeros Balantas que nos continuam fiéis e com eles formámos até excelentes grupos de contra-guerrilha.

Cada uma das tribos citadas atrás ("raças» como lhes chamamos na Guiné) tem o seu «chão», isto é, a região onde habitam em maioria. O «chão» felupe, por exemplo, é a noroeste, na área fronteiriça com o Senegal, ao lado dos Baiotes e dos Banhuns. Os Papéis têm o seu «chão» na ilha de Bissau. Os Balantas 
− a raça mais numerosa da Guiné − estendem-se numa faixa central, desde a fronteira com o Senegal, ao norte, à fronteira com a República da Guiné, ao sul. 

A grande mancha continental do leste é essencialmente povoada por Fulas, embora aqui e além surjam núcleos de Mandingas que, no entanto, vivem em maior número na faixa ao norte do Rio Geba separando Balantas de Fulas.

A localização das «raças» corresponde aproximadamente à área de actividade do inimigo. Por isso a região ao sul do Rio Geba, «chão» de Balantas, Biafadas, Nalus e Sossos, está afectada pela guerrilha. O mesmo se pode dizer da faixa central, povoada por Balantas e Mandingas.

Mas as ilhas atlânticas, a orla marítima ao norte do Geba e todo o leste estão por completo sob o nosso controle, o mesmo podendo afirmar-se da totalidade das povoações e seus arredores.

A fidelidade dos Fulas, já tradicional, é bem conhecida. Injustos seríamos, porém, com outras «raças» se, neste, aspecto, não as colocássemos ao mesmo nível dos Fulas. Há dezenas de aldeias (tabancas) que se defendem sozinhas ontra os ataques dos grupos inimigos. E há milhares de nativos encorporados voluntariamente nas forças armadas e batendo-se com o mesmo ardor e a mesma valentia dos soldados metropolitanos.

É esta participação voluntária da maioria dos nativos guineenses na luta contra o PAIGC, que confirma a inexistência de qualquer sentimento nacionalista verdadeiramente partidário da independência do território.

Não é difícil compreender que, se não tivéssemos do nosso lado a maior parte da população guineense, a nossa situação na Guiné seria hoje insustentável. 

A única dificuldade com que deparamos na Guiné, no que se refere a recrutamento de militares e militarizados, é exactamente não podermos aceitar todos os que se oferecem. Os voluntários excedem de longe os contingentes necessários. Se são precisos 500 homens,  aparecem 4 ou 5 vezes mais e os excluídos deploram vivamente a sua exclusão.

Homens já idosos metem empenhos para ir para a tropa ou para a ela voltarem. Se o inimigo ataca uma tabanca desarmada, a população foge e apresenta-s sistematicamente na unidade militar mais próxima pedindo armas para se defender.

Poder-se-a perguntar: mas então como conseguiu o inimigo aliciar e levar ou ter consigo alguns milhares de nativos?

O PAIGC conseguiu isso inicialmente, empregando o terror, a promessa sedutora ou o rapto. Além disso, nós não tínhamos o dispositivo militar que hoje temos e os nativos, sentindo-se desprotegidos, não tinham outra solução que não fosse seguirem os grupos armados inimigos.

Mas hoje a situação está praticamente estabilizada. Os nativos preferem até acolher-se à nossa protecção. E aqueles que foram com o inimigo para as matas ou para os países vizinhos, não voltam porque o PAIGC não os deixa, chegando a matar os que tentam regressar.

4 - As Nossas Tropas

Contam-se por muitos milhares os nativos guineenses que participam na luta contra o terrorismo, constituindo Companhias e Pelotões de Caçadores, Pelotões de Milícias e grupos de combate especiais, além de guarnecerem as tabancas em autodefesa e de servirem de guias.

As Companhias e os Pelotões nativos de Caçadores têm enquadramento metropolitano e são utilizados como quaisquer outras subunidades do mesmo tipo.

Os Pelotões de Milícias são constituídos por nativos a quem se dá uma instrução reduzida e que depois vão guarnecer determinadas posições e tabancas.

Os grupos de combate especiais actuam ou como os elementos dos Comandos ou como o próprio inimigo.

Os homens válidos das tabancas,  mais ameaçadas pelas infiltrações ou ataques inimigos, são por nós armados mas não têm uniforme nem recebem vencimento algum. São volutários que defendem o que é seu e que não são em geral empregues fora das suas tabancas.

Com esta variedade de elementos obtém-se uma apertada malha ofensiva-defensiva cuja eficiência parece aumentar cada vez mais. Talvez para isso contribua o facto de os melhores elementos irem sempre percorrendo uma escala hierárquica que cada vez lhes concede maiores privilégios e  garantias. Um nativo de uma tabanca que se distinga pode passar a milícia, daqui a soldado e por fim ingressar nos Comandos onde até mesmo os oficiais são guineenses sem necessidade de habilitações literárias especiais.

Compreende-se fàcilmente que desta forma os elementos africanos dos Comandos sejam nativos realmente bons no combate.

Claro que a envergadura do PAIGC não permite, pelo menos por agora, entregar a defesa da nossa Guiné apenas aos nativos guineenses. Daí que a Guiné disponha hoje de um certo número de unidades metropolitanas em reforço à sua guarnição normal.

A eficiência de combate destas unidades tem confirmado as tradicionais virtudes do nosso soldado, em especial no que respeita a coragem, poder de adaptação e espírito de sacrifício.

É evidente que nem todas as unidades apresentam a mesma rentabilidade. Posso porém afirmar que esta rentabilidade é melhor naquelas onde o espírito ofensivo está mais desenvolvido.

Uma norma que adoptei e com a qual não me dei mal,  foi exactamente ir ao encontro do inimigo em vez de o esperar enterrado nos abrigos. Ficamos com certeza fisicamente mais cansados mas mais vale viver cansado que morrer repousado.

E é curioso que o espírito atávico do nosso soldado leva-o em tempo de guerra a preferir a actividade ofensiva a um repouso enganador e perigoso. Vi muitas vezes a satisfação no rosto dos soldados que conduzi ao encontro do inimigo, que obriguei a montar fatigantes emboscadas nocturnas quase consecutivas, que levei a regiões consideradas na posse do inimigo desde o princípio da guerra.

A verdade é que, neste ou em qualquer outro tipo de guerra, só a ofensiva recompensa. E mal de quem pense o contrário. Inclusive as baixas são sempre menos numerosas nas unidades que procuram o inimigo do que naquelas que se limitam a aguardá-lo.

Evidentemente que este espírito ofensivo não pode ser conduzido com imprudência. Há que calcular o risco que se corre. Há que ter imaginação no desenvolvimento das operações. Não se trata de ir pura e simplesmente para a frente pois não só o inimigo é numeroso e está bem armado, como o próprio meio é hostil.

De facto, em muitas operações, são mais as baixas causadas pela insolação, pela sede, pelas abelhas e pelos rios, que as causadas pelo fogo inimigo. Há que preparar bem as acções, dando aos nossos soldados o maior número possível de condições e sem esquecer que eles são por vezes desleixados e imprevidentes.

Inúmeros pormenores têm que ser pensados antes de se lançar uma acção, seja pequena ou grande. A fase da Lua, a altura das marés, a verificação do armamento e do equipamento, o cálculo das rações de combate, tudo isto é apenas uma parte do que um comandante, seja qual for a hierarquia, tem de tomar directamente a seu cargo.

Não poucas vezes deparei com soldados que, por inconsciência ou por comodismo, não levavam o cantil cheio, se esqueciam das redes contra as abelhas, ou tentavam aligeirar-se transportando poucas munições ou pouca comida.

Em outras ocasiões notei a tendência para abrandar a atenção e a vigilância só porque já se estava próximo do quartel, no regresso de uma acção; ou para seguir pelas picadas e trilhos (que em regra estão armadilhados) em vez de progredir a corta-mato (que é mais cansativo mas mais seguro); ou para não sintonizar os postos-rádio antes da partida; enfim, para uma série de pequenos cuidados de que dependem muitas vezes o êxito ou o insucesso.

De uma forma geral, porém, o nosso soldado torna-se motivo da nossa maior admiração e da nossa maior estima. Quem tem a honra de o comandar em combate, é insensívelmente levado a reconhecer que Napoleão tinha razão ao classificar o soldado português como o melhor do mundo.

Convém salientar que as unidades metropolitanas de reforço não se limitam a combater. Elas contribuiram para a melhoria que, em todos os campos, se nota hoje na Guiné.

Após quatro anos de permanência na Guiné, sempre no mato que é onde se conhecem melhor os nativos, sou levado a chegar à conclusão que a Guiné progrediu mais nestes últimos 8 ou 9 anos que nos anteriores 5 séculos.

E empenho nesta afirmação um pouco do meu orgulho de militar pois é exactamente à presença dos militares que a nossa Guiné deve o seu actual impulso.

No campo sanitário, por exemplo, a cobertura hoje existente deve ser das mais completas de toda a África. Diariamente, os médicos e enfermeiros militares observam e tratam milhares de nativos civis. Os casos mais graves são transportados de avião ou helicóptero para Bissau, sistema que talvez em nenhum dos novos Estados africanos seja ainda usado.

A eficiência da assistência sanitária na nossa Guiné tornou-se rapidamente conhecida nos países limítrofes, sendo normal a afluência aos nossos Postos Sanitários fronteiriços de muitos nativos senegaleses e até da República da Guiné.

Sob o aspecto educacional, também a tropa tem desenvolvido muito favorável actividade não só devido às muitas escolas que tem montado e mantido no interior da Província, como também porque oficiais e até seus familiares preenchem hoje lugares de professor no Liceu e nas Escolas Técnicas de Bissau.

As unidades de Engenharia estão dando também o seu contributo à Província, construindo pontes, estradas e edifícios.

E os serviços próprios do Comando-Chefe, secundando o esforço do Comando Militar e em colaboração com o Governo da Guiné, estão reordenando as populações, criando-lhes novas e mais adequadas condições de vida.

5 - O desenrolar da luta

O terrorismo na Guiné começou em meados de 1961, no noroeste, junto à fronteira do Senegal. Foi porém uma actuação esporádica, a cargo do Movimento de Libertação da Guiné (MLG). Renovada em 1963, esta actuação acabou no princípio do ano seguinte devido não só à eficiente actuação das forças armadas, corno também à falta de receptividade da população nativa composta por F'elupes, Batotes e Banhuns.

Em Janeiro de 1963, o PAIGC iniciou a sua actuação armada no sul da Província, conseguindo infiltrar os seus grupos até ao Rio Geba. Em Julho desse ano passou o rio e levou a insurreição à região florestal do Oio. No princípio de 1964 chegou a Farim e atingiu a fronteira norte.

No final de 1964 grupos inimigos lançaram o pânico entre as populações do nordeste e começaram a actuar no Boé. No princípio de 1965 tentaram passar do Oio para o ector dos Manjacos, a oeste, mas foram mal sucedidos.

É curioso que as características da actuação militar inimiga na Guiné foram distintas das observadas em Angola. Nesta última província o inimigo levou a cabo actos terroristas de extrema crueldade mas os seus grupos quase não dispunham de armas aperfeiçoadas. Só anos depois do início é que apareceram as metralhadoras e os morteiros; ainda hoje as bazucas e em especial os canhões sem recuo são raros.

Na Guiné não houve a crueldade de Angola. Ninguém cortou pessoas aos pedaços. Quando muito, algumas orelhas decepadas a um ou outro nativo que se recusou a deixar-se aliciar.
 

Em compensação os grupos inimigos nunca utilizaram catanas ou canhangulos ("longas» como se chamam na Guiné) mas, logo desde o início, pistolas-metralhadoras, granadas e espingardas de guerra. Sucessivamente e em ritmo acelerado foram aparecendo metralhadoras, morteiros, bazucas, espingardas automáticas, canhões sem recuo, etc., tudo em número excepcionalmente elevado.

E tão elevado que em algumas apreensões de armamento feitas na Guiné como consequência de operações militares, chega-se a apanhar mais material do que em Angola se apanha num ano.

Convém esclarecer que o alastramento da actividade inimiga atrás citado não correspondeu ao movimento ofensivo característico da guerra clássica. Traduziu-se sim por simples infiltrações de grupos armados que depois de realizadas umas tantas acções, recuavam novamente para as bases de partida em território estrangeiro para se reabastecerem e descansarem. 

Deixavam porém o vírus da subversão encontrando facilitada a sua actuação dada a falta de efectivos com que lutávamos. As populações nativas eram levadas a acreditar no PAlGC e, quando resistiam, eram compelidas a acompanhá-lo já que nós ainda não lhes podíamos prestar a devida protecção.

A partir de 1966, porém, a nossa malha militar apertou-se e a situação tendeu a estabilizar-se apesar do constante reforço do inimigo em homens e em armamento, e apesar do PAIGC ter passado a utilizar também o Senegal como base para os seus ataques.

Esta utilização facilitou, aliás, o alastramento da actividade inimiga para oeste, isto é, na direcção do importante sector dos Manjacos, e em toda a faixa fronteiriça do norte, desde Suzana até Cuntima. 

É, no entanto, curioso que a faixa fronteiriça da metade leste da Guiné tem vivido em completa calma - o que se deve ao facto das populações senegalesas fronteiriças serem também da raça Fula, não consentindo na presença dos grupos armados do PAIGC. Já as da faixa central são compostas por Balantas e Mandingas, favoráveis ou pelo menos permeáveis à propaganda inimiga.

em 1968 os grupos do PAIGC vindos do Sul e Sudeste procuraram infiltrar-se até à estrada Bambadinca-Bafatá-Nova Lamego-Piche mas foram repelidos. Mantiveram, porém, a pressão sobre a cintura de tabancas organizadas em auto-defesa, flagelando-as periodicamente mas nunca se atrevendo a ultrapassá-las com receio de lhes ser cortada a retirada.

6 - A situação actual

Por motivos vários entre os quais avulta a deficiência de informação pública, a situação na Guiné é em geral mal avaliada na Metrópole, havendo a tendência para se considerar muito pior do que na realidade está.

De facto, na maior parte da Guiné as populações fazem a sua vida normal não havendo sinais visíveis da guerra. É o que acontece em todas as ilhas atlânticas (incluindo a de Bissau), em grande parte do «chão» dos Manjacos e na quase totalidade da massa continental do Leste.

No resto do território o inimigo faz as suas incursões de surpresa mas regressa logo ou às bases que tem no Senegal e na República da Guiné, ou aos refúgios das matas mais espessas. 

Dentro da política que resolvemos seguir, as bases exteriores do PAIGC são verdadeiros santuários pois nós não as atacamos visto estarem em país estrangeiro. Mas os refúgios inimigos no interior da Província andam sempre a mudar pois as nossas tropas procuram-nos constantemente , quando os detectam, atacam-nos e destroiem-nos sistemàticamente.

Desta forma, é totalmente falso que o PAIGC ocupe realmente e em permanência qualquer parcela da Guiné. Nós vamos a qualquer ponto da província e só em pequenas áreas precisamos, para lá ir, de mais de uma Companhia.

Sem dúvida que o inimigo dispõe de numerosos grupos todos excelentemente armados. Sem dúvida também que a sua actividade é grande, especialmente em flagelações nocturnas a aquartelamentos e povoações, em colocação de minas anti-pessoal e anti-carro e em emboscadas contra as nossas forças, utilizando nestas acções um considerável potencial de fogo.

A verdade, porém, é que, como dissemos, a eficiência militar do inimigo é felizmente muito pequena - isto apesar de já ir possuindo um treino de sete ou oito anos. Regra geral o inimigo debanda após as suas acções, não conseguindo explorar qualquer sucesso inicial obtido pela surpresa. Casos há em que as nossas guarnições, depois de suportarem flagelações de duas e mais horas, ficam sem munições à espera de um assalto inimigo que, afinal, quase nunca se dá.

Por outro lado, os nossos soldados, pretos e brancos, adaptam-se fàcilmente à situação.

Não vamos aqui afirmar que a vida na Guiné de hoje, nas áreas contaminadas, seja boa. Tenho 4 anos dessa vida. Mas se uma unidade adoptar sistemàticamente um espírito ofensivo, as suas possibilidades de viver relativamente sossegada são grandes pois o inimigo passa a receá-la.

Se quisessem os resumir a actual situação militar na Guiné diríamos que o Inimigo:

a) Executa incursões de surpresa em quase todo o Sul, na faixa fronteiriça entre Suzana e Cuntima, e em parte da região entre os rios Cacheu e Geba;

b) Esforça-se por se infiltrar no enorme sector dos Fulas, exercendo pressão em especial a partir do Sul  Sudeste, mas sem que até agora tenha obtido qualquer êxito pois as populações, armadas em auto-defesa e reforçadas pelas nossas tropas, opõem-se abertamente aos seus desígnios;

c) Fazendo base em território estrangeiro, flagela as nossas povoações e aquartelamentos fronteiriços,embora quase sem nos causar baixas, dada a falta de eficácia dos seus fogos.

Quanto às nossas tropas:

a) Ocupam todas as povoações da Guiné e seus arredores;

b) Repelem com relativa facilidade todas as acções inimigas;

c) Impedem o alastramento da subversão e da actividade militar inimiga para fora das zonas inicialmente contaminadas;

d) Executam acções e operações ofensivas em toda a província.

7 - Perspectivas

Em face do que dissemos atrás, quais são então as perspectivas que antevemos para a luta na nossa Guiné?

Em nossa opinião, o PAIGC já deve ter compreendido que, a não ser que empregue meios, forças e tácticas diferentes, jamais poderá ganhar militarmente a guerra.

Por outro lado, nós também temos de compreender que, enquanto o Senegal e a República da Guiné constituirem santuários para o inimigo, nunca mais poderemos acabar com a guerrilha. Ainda que empurrássemos o PAIGC até às fronteiras, não poderíamos depois impedir que ele se infiltrassem novamente dada a característica especial dos grupos de guerrilheiros.

Portanto, no que nos respeita, o problema não é só militar, é também político: desde que consigamos levar os governos de Dakar e de Conakry a alterar a sua política de protecção ao PAIGC, este não terá quaisquer possibilidades militares de se manter.

 O difícil está porém em conseguir alterar a política do Senegal e da República da Guiné, países que estão solidamente integrados na engrenagem internacional de apoio aos movimentos subversivos.

Quanto ao PAIGC, ele sabe que conta com largo apoio internacional quer no campo político quer no auxílio financeiro, social e militar.

Sucede porém que, apesar de todo este auxílio, o PAIGC não pode, sem grave risco próprio, prolongar muito mais tempo a luta. As condições em que actuam os seus grupos armados são duríssimas, mesmo para nativos africanos habituados a poucas ou nenhumas comodidades. Falta-lhes comida, roupa, alojamento e remédios. Só o armamento e as munições são abundantes, embora sempre mal conservados.

Além disso quer os guerrilheiros quer a população que está sob seu controle, começam a dar sinais de saturação e de desilusão. Começam a não acreditar em Amílcar Cabral que todos os anos lhes promete ganhar a guerra, sem nunca o conseguir.

Com o cansaço físico e moral, surge mais nítida a secular rivalidade entre os guineenses e os cabo-verdianos que militam no PAIGC. Mais difícil se torna portanto a direcção do partido que tende a perder coesão.

Ora Amílcar Cabral sabe tudo isto. E sabe que ou acelera a luta ou a perde.

Admitimos por isso que o PAIGC esteja realizando ou vá realizar novos e mais profundos esforços no sentido de tornar insustentável a nossa posição na Província.

Estes novos esforços serão desenvolvidos em todos os campos desde o diplomátíco ao militar. O colapso repentino do Biafra não pode deixar de favorecer o PAIGC, em especial quanto a armamento. Outro tanto sucederá se a guerra do Vietname acabar pois os contactos entre o PAIGC e o Vietcong já se encontram estabelecidos, como dissemos,

No entanto, se por um lado temos obrigação de admitir o reforço da actividade geral do inimigo - tanto mais que sabemos ele estar sendo apoiado pela OUA e por grande
parte dos países membros da ONU -, por outro lado não podemos deixar de reconhecer as tremendas dificuldades com que o PAIGC vai continuar a deparar se insistir em cumprir o programa que se propôs.

De facto, em primeiro lugar, há que contar com a nossa determinação em defendermos o solo cinco vezes centenário da Guiné Portuguesa. Em segundo lugar, é natural que a um esforço maior do inimigo respondamos com outro esforço também maior. E em terceiro lugar, não vemos como, nos anos mais próximos, o PAIGC terá possibilidade de levar a Cabo Verde a guerra que nos move na Guiné, dadas as características para nós favoráveis que o arquipélago apresenta.

[Digitalização / revisão, fixação de texto e atualização ortográfica, e negritos, para efeitos de publicação neste blogue:  LG. ]



Major General Hélio Esteves Felgas (1920-2008): duas comissões na Guiné, um dos militares portugueses da sua geração mais condecorados, autor de dezenas de livros e artigos sobre a "luta contra o terrorismo", a guerra ultramarina... 

Foi comandante do Comando de Agrupamento n.º 1980 (Bafatá, 1967/68), como o posto de ten cor inf e do Comando de Agrupamento n.º 2957 (Bafatá, 1968/70), já com o posto de cor inf. A qui é de destacar o planeamento e  a execuação da Op Mabecos Bravios (evacução do aquartelamento de Madina do Boé, de trágicas consequências, sector do Gabu, 2-7 fev 1969) e a Op Lança Afiada (Sector l1, 8-19 de março de 1969). 

Mas antes tinha passado pelo comando do BCAÇ 239 (Bula, São Domingos e Farim, 1961/63), e ainda pelo BCAÇ 507 (Bula, 1963/65),  o que lhe permitiu conhecer bem o início da luta armada desenvolvida pelo PAIGC, sobretudo a partir de 23/1/1963. Passou ainda pelo comando do BART 1914 (Tite, 1967/69). Ao todo, esteve quatro anos no CTIG.

Comparou a Guiné ao Vietname. Também considerava que a solução para a Guiné não era militar mas política... Foi, todavia, um crítico de Spínola que lhe terá roubado, entretanto, a ideia dos reordenamentos (aldeias estratégicas). Um oficial intelectualmente brilhante, professor a Academia Militar,  mas controverso, dizem alguns dos seus pares, mais novos.

Condecorado com a Ordem Militar da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito, em 1970, foi passado compulsivamente à reserva, a seguir ao 25 de Abril de 1974. (Estava m Angola nessa altura; e sempre se considerou vítima de um saneamento político-militar.)

Tem meia centena de referências no nosso blogue.

Foto gentilmente cedida pela filha, dra. Helena Felgas, advogada, colega e amiga do nosso saudoso camarada Jorge Cabral, e com quem estive no funeral do pai (LG).
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Nota do editor:

(*) Vd. Último poste da série > 22 de maio de 2022 > Guiné 61/74 - P23284: Documentos (39): Amílcar Cabral, a "honra militar" e o assassinato dos 3 majores e seus acompanhantes, no chão manjaco, em 20/4/1970: acta (informal) do Conselho de Guerra do PAIGC, Conacri, 11 de maio de 1970, um "documento para a história"

segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

Guiné 61/74 - P22849: Notas de leitura (1402): Memórias de um alferes, Leste da Guiné, 1967-1969: A CART 1690, uma das mais sinistradas, em toda a Guerra da Guiné (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Dezembro de 2021:

Queridos amigos,
Aqui fica o relato que António Martins Moreira dedicou à sua CART 1690, de vida tão atribulada, no setor de Geba, nunca pensei que os meus vizinhos para lá da ponte do rio Gambiel atingissem tal nível de sofrimento. No início da guerra houve uma separação radical da população no regulado de Mansomine, região onde o PAIGC passou a dispor de algumas bases como Sinchã Jobel, e mais para o interior Sara-Sarauol, confinando, um pouco mais abaixo, com Belel, aqui estacionavam, tal como em Madina, os meus atacantes. Ficamos a dever a António Martins Moreira um belo depoimento, ele não se cansa de afirmar que comandou gente de bravura e de enorme capacidade de sacrifício. Veio a tempo, felizmente, uma importante narrativa para que não se esqueça o que foi a vida dura no setor de Geba entre 1967 e 1969.

Um abraço do
Mário



Memórias de um alferes, Leste da Guiné, 1967-1969:
A CART 1690, uma das mais sinistradas, em toda a Guerra da Guiné

Mário Beja Santos

Trata-se de uma edição do Município de Idanha-a-Nova, com data de 2018, são as memórias do então alferes António Martins Moreira, que combateu na região de Geba, entre 1967 e 1969, não quis o destino que nos conhecêssemos, éramos vizinhos, ele estava para lá da ponte do Rio Gambiel, eu para cá, e quando ele diz que a paisagem era deslumbrante, estou à vontade para o confirmar. Este nativo de Penha Garcia foi para Mafra em janeiro de 1966, onde permaneceu até julho, promovido a aspirante foi transferido para o Regimento de Infantaria em Abrantes, e aqui mobilizado e colocado na CART 1690, do BART 1914, frequentou o curso de operações especiais, em Lamego, ainda andou por Lisboa, Torres Novas e Oeiras, desembarcou no Pidjiquiti em 15 de abril de 1967, quem comanda a companhia é o Capitão Manuel Carlos Guimarães. Faz-se a viagem sacramental até Bambadinca, seguem para Bafatá, é-lhes atribuído o setor de Geba. Nesta localidade substituem a CCAÇ 1426. A Companhia dissemina-se por quatro destacamentos. A 17, avança para Banjara, que ele classifica como pior destacamento a seguir a Madina do Boé. “Banjara era um destacamento de alto risco, situado na estrada de Bafatá-Mansabá, a cerca de 40 quilómetros de Geba, e outros tantos de Bafatá, na mata do Oio”

Descreve Banjara e o seu perímetro. O destacamento era um verdadeiro inferno se bem que só tenha havido uma flagelação, era o isolamento, não havia população civil, os abastecimentos e o correio chegavam uma vez por mês. Banjara tinha um grupo de combate, reforçado por uma seção de autometralhadoras, Granadeiros da Cavalaria de Bafatá, um Esquadrão de Reconhecimento, 15 milícias, uma seção de armas pesadas, num total de 70 a 80 homens. “Lá passámos os 8 mais longos meses da nossa juventude”. Descreve as atividades desenvolvidas em Banjara.

Em 21 de agosto morre o comandante da Companhia e o seu guarda-costas, caíram num campo de minas anticarro e antipessoal na estrada de Geba-Banjara, depois de terem ultrapassado o destacamento de Sare Banda. O Alferes Domingos Maçarico passou a comandar a Companhia, Martins Moreira e Maçarico trocam posições, Martins Moreira vai para Geba. O histórico desta unidade militar é marcado por várias infelicidades, para além da morte do Capitão Guimarães, os alferes Maçarico e Marques Lopes foram evacuados com ferimentos em combate. Recorda situações penosas como quinze dias de alimentação sem sal e depois dá-nos uma descrição do destacamento de Cantacunda, a cerca de 35 quilómetros para norte, refere os efetivos, não esquecem o nome do comandante do pelotão de milícias, Samba So, o destacamento tinha população civil e régulo. 

Parecia calmo e seguro, mas era profundamente vulnerável, como se comprovou em abril de 1968, um numeroso grupo do PAIGC apanhou a guarnição descontraída, tomou de assalto a caserna e os abrigos, aprisionou 12 elementos, assassinou um à facada. Muitos militares conseguiram escapar e chegaram a Geba depois deambularem pelo mato uma noite inteira. Dez destes prisioneiros virão a ser resgatados em 1970, no âmbito da Operação Mar Verde.

O novo comandante da CART 1690 passou a ser o Capitão Sarmento Ferreira, é chamado a Bafatá onde lhe entregam uma ordem de operações para uma batida de Sinchã Jobel, uma importante base do PAIGC, vão dois destacamentos, a CART 1690 com três grupos de combate, Martins Pereira está em Banjara, mas dá-nos a versão dos acontecimentos. Quando os efetivos chegaram as imediações do objetivo já estavam bem referenciados pelas sentinelas, as nossas tropas caíram numa emboscada brutal, procuraram reagir abatendo os atiradores que estavam na copa das palmeiras, mas o embate era fortíssimo, retiraram deixando para trás alguns mortos e feridos e cerca de 25 desaparecidos que só se conseguiram recuperar, completamente extenuados e famintos, no dia seguinte. 

O Alferes Fernandes foi assassinado a sangue frio, conforme testemunhou o seu guarda-costas, que nessa ocasião se fingiu de morto. O Alferes Fernandes tinha substituído o Alferes Marques Lopes, ferido em 21 de agosto. O resultado desta operação foram nove mortes e cerca de vinte feridos.

O autor refere que faltavam cerca de 25 elementos, no rescaldo desta ida a Sinchã Jobel foi recuperar os desaparecidos, na manhã seguinte. Ao amanhecer, estavam em frente ao objetivo, foram aparecendo soldados a correr em grupos, completamente exaustos, um deles vinha gravemente ferido. Teve apoio aéreo e um dos pilotos avisou que à frente, a cerca de 2 quilómetros, aguardava-os uma forte emboscada, inverteram a marcha, novo aviso que há emboscada à frente, então afastam-se da picada e embrenham-se na mata até à margem do rio Geba.

 Repetiu-se a operação de resgate no dia seguinte, ainda faltavam 9 ou 10 homens, recuperaram todos com exceção do assassinado Alferes Fernandes e de um capturado, gravemente ferido e levado para Ziguinchor. “Ficou ainda o Armindo Correia Paulino, o magarefe da Companhia, também assassinado, fria e cobardemente, à facada por vários elementos do PAIGC, depois de o terem cercado e aprisionado”.

Fazendo o balanço da situação, o autor estima que em maio de 1968 a sua unidade vivia numa situação muito difícil, o comandante Companhia morto em combate, dois alferes evacuados, o Alferes Fernandes assassinado, em abril passado o assalto a Cantacunda com resultados trágicos, a Companhia estava desmoralizada. 

Em junho, o destacamento de Sare Banda, na estrada Bafatá-Mansabá, com quarenta milícias, foi tomado de assalto pelo PAIGC, com a cumplicidade do chefe de tabanca. Os guerrilheiros incendiaram todas as moranças. “Sare Banda era um destacamento vital que nos garantia a progressão a poente na direção de Mansabá até ao nosso destacamento de Banjara, o mais isolado. Retornava-se, pois, imperioso reocupar, reconstruir e reforçar este destacamento. Foi esta a missão que recebemos”

E dá-nos conta dos trabalhos de reconstrução, ergueram-se seis abrigos subterrâneos, construiu-se uma autêntica fortaleza. Findas as obras, Martins Moreira regressa a Geba. Em 12 de junho, o PAIGC ataca Sare Gana, o pelotão de milícias reage com bravura, houve que recuar, PAIGC instalou-se, na manhã seguinte as nossas tropas puseram os atacantes em debandada. Ao fim de 19 meses no setor de Geba, a CART é transferida para Bissau, teve uma comovente despedida em Geba, os últimos 4 meses foram relativamente tranquilos, fazendo colunas, rusgas, preceitos da rotina, várias emboscadas sem confronto, em 2 de março de 1969 embarcam para Lisboa. Há ainda alguns textos soltos, a completar a missão.

Um relato bem sentido da história de uma unidade militar que conheceu o martírio e o pleno sofrimento, muitos mortos, sequestros, homens devastados e perdidos depois de uma tempestade de fogo. E enternecedor, atenda-se que António Martins Moreira já não é criança, mas exigiu-se ao dever da memória, fielmente cumprido.

António Martins Moreira, no lançamento do seu livro na Câmara Municipal de Idanha-a-Nova
Bafatá
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Nota do editor

Último poste da série de 21 DE DEZEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22828: Notas de leitura (1401): "Adeus... até ao meu regresso": livro de memórias fotográficas de 56 antigos combatentes, naturais de Vila Real, incluindo o Miguel Rocha, ex-alf mil inf, CCAÇ 2367/BCAÇ 2845, "Os Vampiros" (Olossato, Teixeira Pinto e Cacheu, 1968/70) - Parte I

sexta-feira, 6 de agosto de 2021

Guiné 61/74 - P22438: Alferes Miliciano Fernando da Costa Fernandes, da CART 1690/BART 1914, que morreu vítima de ferimentos em combate durante a Op. Invisível, em Sinchã Jobel, no dia 18 de Dezembro de 1967, cujo corpo não foi possível recuperar


Alferes Miliciano Fernando da Costa Fernandes

- Partiu para a Guiné em rendição individual em 1966.
- Foi colocado numa Unidade estacionada em Nhacra, ficando destacado em João Landim.
- Seguidamente foi colocado no BCAV 1905, sediado em Teixeira Pinto.
- Mais tarde foi para a CART 1690 a fim de substituir o Alf Mil António Marques Lopes, ferido e evacuado em consequência do rebentamento de uma mina anticarro.
- Faleceu em 18/12/67, vítima de ferimentos em combate durante a Op Invisível.

- O seu corpo não foi recuperado.


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2. Comentários do editor

- No nosso Blogue, o Cor DAF ref Marques Lopes, a propósito do seu livro "Cabra Cega" (, cópia da capa acima, edição brasileira), no Poste 15202 de 5 de Outubro de 2015[*], descreve as circunstâncias da morte do Alf Mil Fernando da Costa Fernandes durante a Op Invisível.

"Este alferes Fernando da Costa Fernandes, natural de Santo Tirso, tinha vindo para a CART 1690, para substittuir o A. Marques Lopes, entretanto evacuado para o HMP, na sequência da mina A/C acionada em 21/8/1967, na estrada Geba-Banjara, que vitimou mortalmente o Cap Art Manuel Guimarães. O Fernandes será "dado como desaparecido" em campanha, nesta Op Invisível, em 19 de Dezembro de 1967... Na realidade, foi morto e o seu corpo nunca foi recuperado".

- Ainda sobre a morte do Alferes Fernandes, na página do nosso camarada António Pires, UTW Terra Web - Dos Veteranos da Guerra do Ultramar, podemos ler o recorte de um artigo da autoria de António Martins Moreira, ex-Alf Mil Op Esp da CART 1690, com o título "Fernando da Costa Fernandes, Alferes Mil (o Aznavour) - Companhia de Artilharia 1690 - Batalhão de Artilharia 1914 - Tombado em Combate no Dia 18 de Dezembro de 1967", publicado em 3 de Fevereiro de 1995 no jornal Badaladas, de Torres Vedras.
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Nota do editor:

[*] - Vd. poste de 5 DE OUTUBRO DE 2015 > Guiné 63/74 - P15202: Os jogos de cabra-cega: Sinchã Jobel (A. Marques Lopes) (Parte V): a partir da Op Invisível, de 18-19/12/1967, passa a ser uma ZLIFA (Zona LIvre de Intervenção da Força Aérea)... O alf mil Fernando da Costa Fernandes, de Santo Tirso, é morto, não sendo possível resgatar o seu corpo, e o soldado Manuel Fragata Francisco, de Alpiarça, é gravemente ferido, aprisionado e levado para Ziguinchor onde é tratado pelo dr. Mário Pádua e mais tarde, em 15/3/1968, entregue à Cruz Vermelha Internacional

sábado, 10 de abril de 2021

Guiné 61/74 - P22092: Em busca de... (313): Pessoal da 2ª C/BART 6520/72 e notícias da entrega de Bissássema, ao PAIGC, em 1974 (Leandro Guedes / Ricardo Sousa)


Guiné > Região de Quínara > Mapa de Tite (1955) > Escala 1/50 mil > Posição relativa de Bissássema


Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2020)


1. Comentário de Leandro Guedes ao poste P21316 (*)

Meu caro Carlos Barros:

O meu nome é Leandro Guedes e fiz parte, como furriel, do BART 1914, que esteve em Tite de Abril de 67 a Março de 69.

Há meia dúzia de anos,  tive contacto com o Alf Fernando Teixeira que pertencia à sua 2ª. Companhia do BART 6520/72, a qual fez a entrega de Tite e Nova Sintra, à Guiné-Bissau. 

O relato dessa entrega faz parte do blog https://bart1914.blogspot.com e facebook do BART 1914

Posteriormente perdi o email ele. O motivo deste meu contacto é saber quando aconteceu, e de que maneira, a entrega de Bissássema. Não há registos, nem relatos, nada.

Se me poder dar uma ajuda agradeço. O nosso email é;

bart1914@gmail.com 
ou 
lg.tvedras@gmail.com

Muito obrigado. Um abraço com votos de boa saúde.
Leandro Guedes.



2. Comentário de Ricardo Sousa ao poste P21316 (*)

Boa tarde,

O meu pai, António Sousa,  foi 1º cabo no 2ª C/BART 6520/72, e muito tempo que procura notícias ou se existem encontros dos seus ex-combatentes da Guiné Bissau - Nova Sintra - Os Mais, desde que voltou nunca encontrou ou teve contacto com mais ninguém.

odem-me dizer de como ele se pode informar quando e onde ocorrem esses encontros ou algum contacto de para que ele possa ligar com alguém para se manter em contacto.

Agradeço desde já a vossa ajuda,
Cumprimentos,
Ricardo Sousa

quarta-feira, 4 de julho de 2018

Guiné 61/74 - P18811: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (22): A Mina

1. Em mensagem de 25 de Junho de 2018, o nosso camarada António José Pereira da Costa, Coronel de Art.ª Ref (ex-Alferes de Art.ª da CART 1692/BART 1914, Cacine, 1968/69; ex-Capitão de Art.ª e CMDT das CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, e CART 3567, Mansabá, 1972/74), enviou-nos mais um acontecimento da sua Guerra a Petróleo onde não faltam jornalistas estrangeiros de visita a Mansabá e o rebentamento de uma mina, que danificou uma Berliet, lá para os lados do Bironque.


Itinerário Mansabá-Farim, com o Bironque sensivelmente a meio caminho
© Infografia Luís Graça & Camaradas da Guiné


A Minha Guerra a Petróleo (22)

A Mina

Talvez por estar ligada a Bissau por estrada asfaltada, Mansabá tornou-se um destino para o turismo bélico-jornalístico, aí por volta de Dezembro de 1972, Janeiro de 1973. Um dia, recebi uma mensagem que me informava de que a CArt 3567 seria visitada por um jornalista e professor da Universidade de Harvard. Fiquei naturalmente surpreendido, mas não preparei recepção especial. Pensei que era mais positivo que o visitante visse um dia de actividade normal. Que viria um americano fazer à Guiné, quando as coisas já estavam a correr tão mal no Vietname, de tal sorte que nos Estados Unidos, a contestação à guerra subia diariamente de tom? Um dia, próximo da hora de almoço, uma coluna vinda de Mansoa trouxe o tal professor, acompanhado pelo Capitão Otelo Saraiva de Carvalho. Era um rapaz na casa dos trinta anos, jovial e ávido por saber. Fez-me perguntas, às quais fui respondendo, procurando dar-lhe uma ideia tão real quanto possível da situação. Pelo meu tempo de permanência no “TO daquela PU” não me apetecia, sequer, tentar apresentar-lhe uma situação que não correspondesse à realidade. Todavia, logo no início da conversa, impôs-me uma condição: ao almoço não queria que lhe dessem nem frango, nem bife. Acabara de me inutilizar as duas ementas festivas mais comuns nas “unidades do mato”.

Não me recordo do que era o almoço do dia, mas dispus-me a servi-lo “à la carte”, desde que o nosso depósito géneros pudesse satisfazer-lhe o capricho. Não enjeitou a sopa nem as fatias de casqueiro, mas optou por uma lata de sardinhas em azeite com batatas cozidas, que comeu com uma satisfação muito evidente. Tinha uma certa razão, já que, em todos os sítios onde tinha ido, o que lhe davam para comer era frango assado ou bife com batatas fritas e este último, muitas vezes, parecia extraído da cabeça da rês… Ainda lhe expliquei que aquela iguaria não fazia muito o nosso estilo, em virtude do número de vezes que já a tínhamos experimentado, mas ele respondeu-me no seu melhor português que “esta pessoa prefere sardinhas enlatadas em azeite”.

Após a refeição, passeámos no quartel, trocámos ideias e o visitante regressou a Bissau. Pareceu-me que ia bem impressionado.

Uma ou duas semanas depois – a 9 de Janeiro de 1973 – nova mensagem de teor idêntico, mas agora era uma jornalista norueguesa. A avaliar pela idade do jornalista anterior, começaram as conjecturas acerca da visitante seguinte. Para já era uma nórdica, o que, na nossa escala de conhecimento da Europa, significaria alguém alta, loura, de olhos azuis e com uma certa desenvoltura física… Mas, neste caso, não seria bem assim.

A coluna de Mansoa trouxe-a, num jeep civil, acompanhada pelo meu amigo Otelo e aí aconteceu a surpresa. Era uma velhota magrinha – Inga(?) de seu nome – vestida com uma túnica leve, de cor clara, umas calças escuras um pouco justas, e calçada com umas sabrinas de pano. Vinha visivelmente cansada. Desta vez, não me foram postas questões relativas à ementa do nosso restaurante-snack, mas quando me pediu que lhe mostrasse igrejas e hospitais fiquei bastante confuso. A igreja era improvisada, sempre que o delegado do Senhor visitava a unidade, num antigo refeitório do batalhão que anteriormente tinha guarnecido a localidade, e a enfermaria, se bem que boa e muito funcional, não era propriamente um hospital. Médico, só em Mansoa.

A minha mulher e as esposas de dois furriéis estavam connosco, clandestinamente, o que a jornalista achou muito interessante1. Porém, não conseguiu estabelecer contacto com nenhuma, pois nenhuma falava inglês.

Não sei qual era a posição do governo norueguês em relação à guerra. Hoje, pela experiência que a vida me deu, creio que o povo do país teria uma muito vaga ideia do que ali se passava e os dirigentes políticos mantinham uma posição de conhecimento, mas muito contido. Nunca ouvi falar de qualquer atitude oficial de apoio ou contestação à política portuguesa por parte da Noruega. A Suécia, sabíamos nós que participava na guerra, apoiando farisaicamente o PAIGC, fornecendo-lhe material escolar e sanitário. Mas, embora próximos os países são diferentes e não é lícito misturá-los. Nós, os portugueses também estamos perto dos espanhóis, mas somos povos bem diferentes, vivendo em países diferentes…

A coluna tinha chegado um pouco atrasada e convívio luso-norueguês esteve animado e prolongou-se. Estando previsto que a viagem continuaria para Farim, a partida da coluna para Norte atrasou-se, por consequência. Além disso, a CART não tinha no seu parque um jeep operacional onde se pudesse transportar a visitante até àquela localidade, onde apanharia o avião civil para Bissau. Procurando evitar transportá-la numa viatura militar de difícil acesso para um activo elemento da terceira idade, pedi emprestado ao administrador do posto, um jeep que tinha uma particularidade: estava mal de travões.

Enfim, partimos para Farim, indo a ilustre visitante no jipe, em segundo lugar na coluna. Subitamente, já perto do K3 (Saliquinhedim, de acordo com o mapa), surgiu um pequeno avião civil que, depois de uma volta à nossa vertical, aterrou na estrada no sentido da marcha da coluna. Não seria uma manobra fácil, mas o Comandante Pombo2 realizou-a, provavelmente porque entre o Bironque e o Rio Farim, a estrada asfaltada era recta e desenvolvia-se em terreno plano e praticamente sem vegetação numa área considerável.

Assim, “devido ao adiantado da hora” os dois viajantes VIP foram recolhidos e o avião partiu para Bissau. Que fazer agora? Mandei a coluna prosseguir até à margem do rio. O batalhão ali estacionado estava para ser rendido. Daí que tivesse aproveitado a jangada onde vinha o respectivo comandante para receber a jornalista e com uma viatura apenas cruzei o rio. Ali, os meus “ferrugentos”3 arranjaram, por simples oferta, peças avulsas para reparação das nossas viaturas. Um exemplo de camaradagem entre unidades. Não nos demorámos muito em Farim. Voltámos a cruzar o rio e iniciámos a marcha para Mansabá.

Tudo corria bem e seguíamos a uma velocidade regular. Passámos a tabanca velha do Bironque e um pouco depois… uma explosão. Eu, que seguia com o furriel mecânico (o Licínio), transportando na segunda viatura, o jeep sem travões, vi uma densa nuvem da terra e fumo negro junto da roda dianteira da Berliet que seguia à frente. Todo o pessoal que seguia nela foi projectado, excepto o condutor – o Valongueiro – que permaneceu agarrado ao volante.

Todos deverão ter passado pela estranha sensação de surpresa que o alferes Silva descreveu como “uma percepção imediata de que já se estava no Além, devido à formação de poeira, fumo e escuridão”. Depois diz que “não deixou de apalpar o corpo e ter uma sensação estranha e assim pensar que desta vida já fui”; e continua dizendo que “com o desanuviar da situação de escuridão, ouviu alguns a vociferar "dignas palavras" do nosso vocabulário vernáculo, começou a aperceber-se de que ainda não tinha sido desta que "estava no Além" e mais adiante ainda confessa que “à parte, apenas como desabafo, sei que praguejei contra a jornalista norueguesa um sem fim de palavras vernáculas minhotas, que dispenso de mencionar”. Uma descrição verdadeiramente rica do efeito de surpresa, quando nos sentimos envolvidos num conjunto de sensações dadas por todos os sentidos, mas mergulhados na escuridão, o que nos reduz muitíssimo a nossa capacidade de relação com o meio que nos cerca.

Não consegui imobilizar logo o jeep, mas acabei por aproveitar a berma para esse efeito e, por sorte não atropelei ninguém. O Sá Lopes, furriel “ranger” berrava para os lados do Morés contra os elementos In responsáveis pela situação. Chamava-lhes cobardes e convidava-os a virem até ao local onde estávamos parados. Graças a Deus foi ignorado nos seus apelos e apupos e pudemos tentar resolver o problema. Havia que mudar o pneu da Berliet, mas a poli devia estar deformada pelo que a roda não rolava. Para evitar que o segundo pneu também rebentasse colocou-se-lhe debaixo, uma das grelhas laterais do motor da Berliet e assim fomos rebocando a viatura. De vez que quando, molhava-se a chapa com água ou óleo para baixar e temperatura e facilitar o deslizar da roda.

Mas havia feridos. O que mais me preocupou foi o soldado Pessoa, que tinha um fiozinho de sangue que lhe saía do ouvido. Suspeitei de traumatismo craniano. Porém, o mais grave veio a ser o cabo Trindade4, que foi evacuado para Bissau, no dia seguinte. Empilhei os seis feridos no jeep e segui para o quartel, deixando o alferes Silva a conduzir a coluna, procurando chegar depressa e com a viatura atingida, o menos danificada que fosse possível. À chegada, a minha mulher recebeu-me e, segundo me disse depois, eu tinha terra até no intervalo dos dentes. Era natural, não podendo travar entrei na nuvem de poeira negra que se levantou e, o Licínio e eu ficámos um tanto enfarruscados. Ela nunca mais se esqueceu de que quando lhe peguei num braço, deixei nele uma marca de fuligem.

 Berliet que accionou a mina anticarro na zona do Bironque

No aquartelamento, o alvoroço foi grande. Embora a explosão da mina se tivesse ouvido no quartel, foi o Valdrez, o operador de rádio de serviço, quem recebeu comunicação do sucedido e deu o alarme. A minha mulher que estava a escrever, sentada à minha secretária, foi dos primeiros a saber, já que o gabinete era próximo do posto de rádio. O furriel enfermeiro Carvalho começou a preparar a enfermaria para receber os feridos, mesmo saber quantos eram e o seu grau de gravidade. Estando um grupo de combate da companhia empenhado na segurança à construção da estrada para Bambadinca, o alferes Serras procurou organizar uma coluna de socorro com base no único grupo de combate disponível, o seu, e com as duas viaturas quase incapazes de que dispúnhamos e que só usávamos nos serviços do quartel, que teria de ficar entregue ao desfalcado pelotão de milícia. O Carvalho observou os feridos e, especialmente para o Trindade, era aconselhável a evacuação para Mansoa, onde o médico diria de sua justiça. No dia seguinte, uma nova coluna partiu com os feridos. Todos voltaram, excepto o Trindade, mas alguns vinham muito em baixo de forma. O alferes Silva e o Bateira andaram de bengala durante, pelo menos uma semana, e ainda assim andavam, quando fomos visitados por um brigadeiro do CTIG que vinha estudar da possibilidade de ser instalado em Mansabá um centro de instrução para uma companhia de comandos. Assim veio suceder, tendo sido preparada uma companhia de recompletamentos para o Batalhão de Comandos Africanos da Guiné.

Nunca tive qualquer resultado destas visitas dos tais jornalistas de estrangeiros, nem me foi dito para que publicações trabalhavam. Era um esforço que era necessário fazer para tentar – como se tal fosse possível – para modificar a opinião pública mundial…

Notas:
[1] - Um dia, antes das mulheres dos furriéis Costa e Ramos chegarem, um dos dois médicos do batalhão confidenciou à minha mulher que, na unidade, só havia uma pessoa onde poderia exercer a sua especialidade. O Dr. Pedro Carneiro era ginecologista.
[2] - O Comandante Pombo – José Luís Pombo Rodrigues (1934 – 2017) – era um piloto dos TAGP. Fora piloto da Força Aérea e havia prestado serviço na Guiné, no início da guerra.
[3] - Designação comum a mecânicos e condutores das companhias.
[4] - Manuel de Almeida Cunha Trindade
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Nota do editor

Último poste da série de 2 de setembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17722: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (21): Passados que foram quase 44 anos sobre data do reconhecimento da independência da Guiné por parte de Portugal (10SET74), ocorre-me perguntar: E afinal para quê?

terça-feira, 12 de dezembro de 2017

Guiné 61/74 - P18078: (De) Caras (101): Geraldino Marques Contino, ex-1º cabo op cripto, da CART 1743, ex-prisioneiro de guerra, aqui à conversa com outro camarada do seu tempo, com quem chegou a trabalhar no centro cripto de Tite, o Raul Pica Sinos (CCS / BART 1914, Tite, 1967/69)


S/l > s/d > O Geraldino Marques Contino, à esquerda, com os seus dois filhos, e a esposa Luísa, presumivelmente em férias.


S/l  [Ovar ?] > s/ d [2009 ?] > O Geraldino Marques Contino... Ja há dez anos atrás, o nosso grã-tabanqueiro Henrique Matos perguntava o que era feito destes homens, nossos camaradas, que foram  capa da revista do Expresso, nº 1309, de 29 de novembro de 1997

Fotos (e legendas: © Raul Pica Sinos (2013). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar:  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Ainda Bissássema, em conversa com o Contino  

por  Raul Pica Sinos [ex-1º cabo op cripto, CCS/BART 1914, Tite, abril de 1967 / março de 1969; vive em Almada] [foto à esquerda]

[texto redigido em abril de 2009 / revisto em novembro de 2013;
editado por Leandro Guedes > Blogue do BART 1914. Tite, Guiné-Bissau > 17 de novembro de 2013 > Ainda Bissássema, na conversa com o Contino

[Reproduzido aqui com a devida vénia: trata-se de um depoimento excecional, permitindo-nos completar o conhecimento dos factos relacionados com a captura e a condição de prisioneiro de guerra do nosso camarada Geraldino Marques Contino, ex-1º cabo op cripto, da CART 1743, adida ao BART 1914, Tite, 1967/69;  sobre o assunto publicámos recentemente um interessante trabalho do nosso colaborador permanente Jorge Araújo (*);.

Tanto o Geraldino Marques Contino como o Raul Pica Sinos, ficam desde já convidados para nos darem a honra de se sentarem à sombra do poilão da nossa Tabanca Grande; temos  ainda  poucas referências  tanto ao BART 1914 como à CART 1743.

Sobre a "batalha de Bissássema" o Raul Pica Sinos tem diversos postes publicados no blogue do BART 1914. Recorde-se que na noite de 3 de fevereiro de 1968:

(i) desapareceram em combate o fur mil Manuel Nunes Reis Cardoso, do Pel Mort 1208, e o soldado Milícia Manga Colubali, da CMIL 7;

(ii) foram capturados pelo IN três militares da CART 1743: alf mil António Júlio Rosa; 1º. cabo op cripto Geraldino Marques Contino; e sold Victor Manuel Jesus Capítulo.

O blogue do BART 1914, que existe desde 2008, é mantido por 3 antigos operadores cripto, se não erro, o Leandro Guedes, o Pica Sinos e o José Justo; aqui fica também o nosso reconhecimento público pelo extraordinário trabalho que estes camaradas do BART 1914 estão a fazer, recolhendo e partilhando memórias da sua unidade e subunidades adidas.

Estes camaradas estão também ativos no Facebook.]


... AS MÃES SÃO IGUAIS EM TODO O MUNDO... 

Na pequena, mas importante, vila do concelho de Almada que, dá pelo nome de Trafaria, localizada na margem esquerda do rio Tejo, a cerca de 3 quilómetros da foz, vila onde estava situado o antigo quartel do BRT (Batalhão de Reconhecimento das Transmissões) que incorporava o Centro de Informações e Segurança Militar com vistas à formação, entre outras, da especialidade em Operadores de Cripto, especialidade comum à época aos protagonistas deste apontamento, foi o local escolhido para o almoço/encontro de confraternização entre a minha pessoa (entre outros) e o ex-1.º Cabo Geraldino Marques Contino.

Há anos que procurava este acontecimento, não só para matar saudades, mas também para satisfazer curiosidades não só da minha pessoa, como de muitos que viveram o drama, aquando da captura do entrevistado em Bissássema, na região de Tite, em Guiné-Bissau,  e nas prisões em Conacry. (**)

Recordo-me, em Tite, no Centro de Cripto, nos dias que trabalhei com o nosso convidado, era comum vê-lo transportar um livro debaixo do braço. Nos pequenos momentos de descanso, não deixava escapar duas ou três linhas de leitura. 

Havia dias que também gostava, como os demais, de se vestir de forma despreocupada. Ainda hoje confessa que não sabe a razão porque foi “brindado”, pelo ex-capitão miliciano Paraíso Pinto, com 5 dias de detenção, justificados porque… o chapéu de palha e os sapatos de pala que trajava (naquele dia), não conjugavam com o trono nu e com os calções do fardamento...

O ponto “quente” da nossa longa conversa, foi a sua captura e a dos demais 2 companheiros (o Rosa e o Capitulo), em 2 de Fevereiro de 1968, na operação que, dava, creio, pelo nome de “Velha Guarda”.

A Companhia de Artilharia [CART] 1743 a que pertenciam, encetou a operação, em 31 de Janeiro de 1968, integrando num dos 3 destacamentos constituídos (um deles elementos da CCS), uma Companhia de Milícias. O objectivo, era, na região de Bissássema, banhada pelo rio Geba, (na sua frente a cidade de Bissau), aniquilar o IN, anulando o constante saque do arroz e, o recrutamento dos jovens e das mulheres. Os primeiros para ingresso nas suas fileiras e as segundas para servirem de carregadoras e cozinheiras dos produtos pilhados. Consequentemente fixar elementos das NT na zona, não só com vistas a proteger as populações, como conservá-las afectas.

Segundo conta o Contino, 2 dias após a chegada ao terreno, pouco minutos a faltarem para a meia-noite, mais precisamente no dia 2 de Fevereiro de 1968, (sexta-feira), um numeroso grupo IN, investiu em direcção ao extenso e mal programado perímetro das nossas tropas, pelo lado do pelotão das milícias. Estes não aguentando o ímpeto do ataque, acabaram por abandonar os seus postos, permitindo abrir brechas na defesa do terreno e possibilitar o cerco ao improvisado posto de comando.

A confusão surpreende as NT e, permite a captura dos europeus [o Geraldino Marques Contino, o António Rosa e o Vitor Capítulo]

Acrescenta o meu convidado:
…nem mesmo a sua tentativa de se esconder de entre a manada das vacas resultou…

Foram longos os dias e a distância efectuada a pé pelo mato.

Quando pelas tabancas passavam para descansarem ou pernoitarem, eram sempre bem recebidos, em especial pelas “mulheres grandes” e mães, que, ao vê-los feitos prisioneiros, não deixaram de lançar o seu olhar misericordioso e de grande lamento, imaginando como seria o sofrimento das mães brancas ao saberem que os seus filhos foram feitos prisioneiros.

…"As mães são iguais em todo o mundo!", remata o camarada.

Julgo, conhecendo-o como o conheci no seu pequeno período de permanência em Tite, a sua forma de estar, era de atitude ou algo diferente na resposta à recepção dos naturais guineenses. Homem habituado aos usos e costumes africanos, onde, desde os 3 anos de idade até aos 17 anos, viveu na cidade de Luanda, em Angola, razão pela qual não se fez rogado em aceitar, por uma ou outra vez, dançar e mesmo consentir o cumprimento dispensado por algumas bajudas (, mulheres em idade de casamento).

Conclui, dizendo que até à fronteira de Conacry  foi sempre, como os seus camaradas, muito bem tratado, em especial pelo seu captor.

Os inimigos nunca souberam das suas especialidades e patentes, inclusive teve o cuidado, durante a “viagem”, sem disso se aperceberem [os seus captores], de comer o pequeno livro de cifra que na ocasião transportava.

Já em Conacry, na prisão estatal, tomava as refeições, como os demais, no refeitório, na presença dos elementos da direcção do PAIGC. Diferente quando mudado para a prisão de prisioneiros de guerra e políticos. Aqui as refeições não primavam pela qualidade, mas comiam exactamente o mesmo que os seus carcereiros.

De tempos a tempos … lá vinha uma manga ou uma papaia… Ofertas de agradecimento dos guardas carcereiros que, sendo analfabetos, lhes pediam para escrever as cartas às famílias e ou suas namoradas.

De resto a maior parte do tempo era passado a jogar às cartas, com baralhos construídos por si, em aproveitamento do papel de que eram feitas as pequenas caixas de fósforos.

O Contino, depois de 30 anos de trabalho, como quadro superior na TAP, já está reformado.

[Revisão / fixação de texto / negritos e realce a amarelo:  o editor do Blogue Luís Graça & Caramadas da Guiné, com um alfabravo fraterno ao Contino e ao Pica Sinos]
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de  11 dezembro de 2017 >  Guiné 61/74 - P18076: (D)o outro lado do combate (15): A Igreja Católica na vida dos prisioneiros de guerra: o caso do Geraldino Marques Contino, 1º cabo op cripto, CART 1743, Tite, 1967/69 - II (e última) Parte (Jorge Araújo)

(**) Último poste da série > 30 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18030: (De)Caras (101): J. Casimiro Carvalho, ex-fur mil op esp, CCAV 8530 (Guileje, 1972/73) e a "patrulha fantasma", massacrada em Gadamael, em 4/6/1973