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quarta-feira, 7 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24375: Historiografia da presença portuguesa em África (371): As campanhas de pacificação na Guiné no livro "História do Exército Português", pelo General Ferreira Martins; Editorial Inquérito, 1945 (Mário Beja Santos)

Com a devida vénia a Cabral Moncada Leilões. Foto editada


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Setembro de 2022:

Queridos amigos,
Não se pode dizer que a narrativa do general Ferreira Martins traga algo de novo àquilo que se tem vindo aqui ilustrar sobre as campanhas de pacificação, chamemos a este texto um exercício de divulgação. Há aqui algumas falhas de peso, não se fala na bravura de Graça Falcão no Oio, pelo que de novo se recomenda a quem queira estudar este período o importante levantamento documental efetuado por Armando Tavares da Silva que tem o título "A presença portuguesa na Guiné: história política e militar, 1878-1926", Caminhos Romanos, 2016.

Um abraço do
Mário



As campanhas de pacificação na Guiné no livro História do Exército Português, pelo General Ferreira Martins

Mário Beja Santos

Trata-se de uma obra de divulgação que fez a sua época, publicada em 1945 pela Editorial Inquérito. Veremos adiante que há de facto uma poderosa intervenção do Exército no caso vertente da Guiné, mas antes do Capitão Teixeira Pinto destacaram-se briosos oficiais da Marinha. Para quem se interessa pela matéria, a partir da página 470 deste tomo ir-se-á falar da pacificação da colónia da Guiné. Vamos ao que escreve o general Ferreira Martins.

Logo no começo do século XX, sendo governador o Primeiro-Tenente da Marinha Júdice Biker, houve que reprimir revoltas em Jafunco (1901) e no Oio (1902) utilizando as poucas tropas disponíveis, mas contando com a cooperação de canhoneiras e a intervenção de auxiliares indígenas. Houve sublevação do gentio do Churo (Cacheu), reprimida pelo novo governador, Soveral Martins, também oficial da Marinha, em 1904. O autor enfatiza que estas operações não foram completadas por uma ocupação efetiva e cita o marechal Bugeaud: “Em África uma expedição não seguida de ocupação não deixa mais vestígios do que o sulco de um navio no oceano”. Governava a Guiné em 1907 o Primeiro-Tenente Oliveira Muzanty, outro oficial da Marinha, a quem se deve a ocupação da ilha Formosa (Bijagós), quando se deu a sublevação de régulo do Cuor, Infali Soncó. Embora à espera de uma expedição metropolitana, Muzanty lançou-se numa coluna de operações sobre a região revoltada do Cuor. Infali aliciara os régulos de Badora e do Xime. Muzanty foi temporariamente bem-sucedido, assaltou com sucesso a tabanca de Campampe, que estava solidamente fortificada. Por curto tempo, a margem esquerda do Geba, entre Xime e Bafatá, ficou pacificada.

No princípio de 1908, um outro destacamento constituído por praças da Marinha e outros militares europeus foi encarregado de, sob o comando do Capitão Ilídio Nazaré, efetuar a reparação das linhas telegráficas danificadas por rebeldes no Quinara, efetuou-se a reparação e castigaram-se os rebeldes. Em março, o Capitão Botelho Moniz bateu os Felupes de Varela, que se negavam ao pagamento do imposto. E a 19 desse mesmo mês chegou a tão desejada expedição metropolitana que trazia uma companhia de Infantaria 13, alguma artilharia deficiente e uma força de engenharia. Muzanty viu-se obrigado a reforçar o grupo expedicionário com uma companhia da Marinha e uma companhia mista de Infantaria (deportados europeus e atiradores indígenas). Irão bater a margem direita do Geba. O primeiro combate deu-se em Canturé, em 6 de abril, os Biafadas bateram-se bravamente, a povoação foi incendiada, a expedição seguiu para Sambel Nhantá, esta era a sede do regulado, régulo e sua comitiva fugiram, a coluna avançou para Madina que após hora e meia de combate foi tomada incendiada. Em 1 de abril, hasteava-se a bandeira portuguesa no Cuor, neste regulado, em Caranquecunda ficou uma companhia de Infantaria macua, dispondo de armamento velho.

Muzanty foi depois defrontar-se com os papéis que em 1894 o Governador Vasconcelos e Sá não conseguiu dominar. Depois de bombardeadas pela artilharia da fortaleza de Bissau, as povoações de Intim, Bandim e Antula, marchou uma desfalcada coluna sobre Intim, onde foi violentamente atacada mas a povoação foi ocupada e destruída. Prosseguiu a operação para Contume, celeiro natural da ilha, deu-se aqui um violento combate que custou a vida ao alferes Jaime Duque. Os Papéis não desarmaram e atacaram a coluna, a resposta foi enérgica, dentro de um quadrado que Papéis e Balantas não conseguiam desarticular, e os rebeldes acabaram por fugir. Com este violente combate de Intim terminou na Guiné a campanha de 1908.

O autor fala agora das operações de 1909, cita um livro do antigo governador Carvalho Viegas, donde extrai a seguinte observação: “Foi o Balanta, talvez o indígena que maior resistência opôs à expansão do propósito colonizador, enfrentado com decisão e valentia as colunas enviadas a recontros em que as armas de fogo não puderam contê-lo à distância.”

Foi este o inimigo com que se defrontaram os portugueses em 1909 quando na região de Gole (Porto Gole) gente sublevada atacou na manhã de 21 de fevereiro o posto militar, a guarnição conseguiu repelir o atacante. Havendo indícios de que em breve voltariam os Balantas a atacar o fortim com mais numerosos elementos, mandou o governador Muzanty reforçar a guarnição com tropas de infantaria e artilharia. E pela primeira vez é referida a presença de Abdul Indjai, ele é o régulo do Cuor. Sucediam-se os ataques dos sublevados, sem êxitos.

Estamos agora em 1912, não se pode ainda falar na ocupação definitiva da Guiné, as rebeliões sucedem-se. Em 1912, o Governador Carlos Pereira, também ele oficial de Marinha, organizou uma coluna de operações para castigar revoltosos, dirigiram-se primeiramente a Binar, foram depois a Cacheu, foram sucessivamente punindo rebeldes. É neste contexto que aparece na Guiné o Capitão João Teixeira Pinto. Começa por castigar rebeldes do Oio, leva consigo Abdul Indjai, conta com a colaboração de duas lanchas e de um grupo armado pela administração de Geba. Em 1913, Teixeira Pinto, quase só com irregulares de Abdul Indjai e de outro oficial de segunda linha, Mamadu Sissé, foi a Cacheu e bateu o gentio de Churo. As sublevações acalmaram mas não desapareceram. Em fevereiro de 1914, os balantas de Braia trucidaram o Alferes Manuel Pedro e o seu pelotão de cavalaria, houve chacina, coube ao Capitão Teixeira Pinto vingar os desditosos camaradas trucidados. Coube a Teixeira Pinto responder, obteve a pacificação de toda a região Balanta entre Mansoa e Geba.

Graças ao seu crescente prestígio, o governo aproveitou para em 1915 submeter definitivamente os Papéis e Grumetes de Bissau, a sua rebeldia era permanente. Teixeira Pinto pôs-se à frente de uma numerosa coluna, contava com os irregulares de Abdul Indjai, travou com os rebeldes renhidos combates de Intim e Bandim, cujas posições foram tomadas depois de um bombardeamento. Teixeira Pinto atacou ainda outras povoações, lutando sempre com a inaudita resistência dos rebeldes. Teixeira Pinto é preferido em Safim, recolhe-se a Bissau, mas a coluna, sob o comando do Tenente Sousa Guerra, continua o avanço e tomou de assalto outras posições. Depois de dois meses de operações em que as forças de Teixeira Pinto tinham sofrido 47 mortos e 202 feridos, tomaram-se de assalto outras posições rebeldes e a ilha de Bissau foi considerada como submetida. O autor fala da ilha de Canhabaque, houve operações em 1917, comandadas pelo Major Ivo Ferreira (Governador da Guiné entre 1917 e 1919), tais operações demoraram oito meses, mas os atos de rebeldia continuaram. Em 1925, o novo Governador, Vellez Caroço, viu-se forçado a realizar novas operações na ilha, apreendeu armas e munições, parecia que o castigo tinha sido duro, pura ilusão, as operações foram retomadas em 1935-1936, são consideradas como o termo das operações de pacificação, daí o monumento em Canhabaque, evocativo que era tido como o fim das rebeliões. O General Ferreira Martins concluiu assim as suas referências às campanhas de pacificação.


General Luís Augusto Ferreira Martins (1875-1967)
Joaquim Pedro Vieira Júdice Biker (1867-1926)
Alfredo Cardoso de Soveral Martins (1869-1938)
Imagem da guerra do Cuor, fotografia de José Henriques de Mello, 1908
No Xime, no decurso da guerra do Cuor, fotografia de José Henriques de Mello, 1908
Estátua do Capitão João de Teixeira Pinto
Monumento aos heróis da pacificação de Canhabaque, imagem retirada do livro “Bijagós Património Arquitetónico”, fotografia de Francisco Nogueira, Edições Tinta-de-China, 2016, com a devida vénia
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Nota do editor

Último poste da série de 31 DE MAIO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24357: Historiografia da presença portuguesa em África (370): Da CUF à Casa Gouveia, da Casa Gouveia à CUF: Uma viagem interminável (3) (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24071: In Memoriam (468): Historiador Armando Tavares da Silva (5/5/1939 - 1/2/2023), Professor Catedrático Aposentado da Universidade de Coimbra (Mário Beja Santos)

IN MEMORIAM

Armando Tavares da Silva (5/5/1939 - 1/2/2023)

Mário Beja Santos

Conheci Armando Tavares da Silva quando um dia, inopinadamente (sem prévio aviso) me abriu a porta do meu gabinete de trabalho, onde eu fazia voluntariado, na Praça Duque de Saldanha, estávamos em 2016, vinha ajoujado de um cartapácio, apresentou-se, fiquei a saber que era professor catedrático reformado, presidente da secção Luís de Camões da Sociedade de Geografia de Lisboa, que andara aturadamente no Arquivo Histórico Ultramarino, fora desperto pelos assuntos guineenses graças a um avô marinheiro que andara na guerra do Churo, em 1904, trouxera muitas memórias, decidiu-se por aprofundar, documento puxa documento e escreveu uma obra de referência “A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar, 1878-1926”, obra recheada de imagens e cartografia, viria este tão prodigioso esforço a ser premiado pela Gulbenkian.

São centenas e centenas de páginas que começam na transformação da Guiné em província independente de Cabo Verde, meticulosamente vão sendo reveladas as atividades dos primeiros governadores, é o caso da guerra do Forreá, os incidentes do Casamansa, a delimitação de fronteiras (depois da convenção luso-francesa de maio de 1886), as intermináveis rebeliões, a indisciplina dos Papéis de Bissau, as tentativas de pacificação, com destaque para a governação de Oliveira Muzanty, as campanhas de Teixeira Pinto e o processo de Abdul Indjai, a governação de Vellez Caroço, o drama de heróis insurretos como Graça Falcão, a monopolização do comércio pela Casa Gouveia.

Não me cansei de louvar este levantamento monumental, uma singularidade na historiografia da Guiné colonial, tivemos a nossa querela a propósito das suas considerações finais quanto a legadas divisões em permanência entre militares e comerciantes, e mantive como mantenho sérias dúvidas quanto a todas as benevolências que ele atribui à campanha de Teixeira Pinto em Bissau, conducente à chamada pacificação definitiva de 1915. São arrufos entre estudiosos, mal ficaríamos se não houvesse divergências quanto ao olhar da sociedade e da política num certo período em análise.

A Guiné perde um investigador histórico de gabarito, foi colaborador do nosso blogue, deixou obra em várias instituições como a Sociedade de Geografia de Lisboa, o Instituto Português de Heráldica e a Sociedade Histórica da Independência de Portugal.

Curvo-me respeitosamente pela sua memória, pela companhia que nos trouxe e pelo acervo admirável que deixou sobre um importante período da nossa presença na Guiné.


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- Os editores e a tertúlia do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, lamentam a morte do insigne Historiador, Professor Armando Tavares da Silva, nosso confrade, endereçando aos seus familiares as mais sentidas condolências.

O Prof Armando Tavares da Silva deixa uma prestimosa colaboração neste Blogue, onde tem 52 referências, dando-nos a conhecer, no seu último livro publicado, a história política e militar da presença portuguesa na Guiné no período compreendido entre 1878-1926.

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Nota do editor

Último poste da série de 30 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24022: In Memoriam (467): Francisco Justino Silva (1948-2023), médico, ortopedista, ex-alf mil, CART 3492 / BART 3873, Xitole, e Pel Caç Nat 51, Jumbembem (1971/73) cerimónias fúnebres, hoje, em Porto Salvo, na igreja local, com velório a partir das 16h00; missa de corpo presente às 14h00 de 3.ª feira, seguindo o funeral para o cemitério de Carnaxide

segunda-feira, 1 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23480: Nota de leitura (1470): Como nasceram as fronteiras da Guiné-Bissau (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Janeiro de 2020:

Queridos amigos,
É bem interessante o contexto histórico em que ocorreu a definição das fronteiras da Guiné. A presença portuguesa era praticamente inexpressiva, a diplomacia portuguesa queria o apoio de Paris para reconhecer a legitimidade dos nossos interesses nos territórios entre Angola e Moçambique. Foi dolorosa a perda do Casamansa, nem os comerciantes nem os autóctones desejaram o domínio francês, e ninguém na época ia supor que todo o Casamansa seria um pomo de discórdia quando se fundou o Senegal. Já aqui se divulgaram as notas de um brioso oficial da Marinha que foi até à região de Cacine e Kandiafará, nesta região havia mercado e não havia autoridades portuguesas. O artigo de Armando Tavares da Silva, que anda muito próximo do conteúdo do seu livro "A presença portuguesa na Guiné", descreve todas as peripécias que levarão à fixação das fronteiras, fazendo ver a todos esses apóstolos de hoje que batem a mão no peito sobre a nossa presença de cinco séculos a grande ilusão que se montou para se falar numa Guiné onde mal existiu o sopro de um verdadeiro colonialismo.

Um abraço do
Mário



Como nasceram as fronteiras da Guiné-Bissau

Mário Beja Santos

Armando Tavares da Silva, autor do livro "A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar, 1878-1926", Caminhos Romanos, 2016, assina no Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa aqui referido, o artigo A fixação das fronteiras da Guiné pela Convenção Luso-Francesa, texto que acompanha com grande proximidade o que ele publica no seu livro entre as páginas 127 e 148. Tratando-se de matéria de elevado interesse histórico, intenta-se um resumo das várias questões tratadas, visto que a partir de maio de 1886 houve em definitivo a definição de um território que até então conhecera inúmeras designações e de que se desconheciam todos os contornos.

A questão ganha premência com a crescente presença francesa na região do Casamansa, a Norte, e na região de Compony, a Sul, os franceses queriam alargar os seus domínios, não estavam satisfeitos em ficar à entrada do rio Casamansa, e queriam fazer recuar a presença portuguesa para lá de Cacine. Quem representava os interesses portugueses agia lentamente, num vai-e-vem de exposições e respostas diplomáticas que só nos prejudicava. Honório Pereira Barreto assistia ao perigo crescente e informou o Governador de Cabo Verde em maio de 1837. Novo vai-e-vem diplomático, a França invocava razões históricas para ali estar. É então que o visconde da Carreira se dirige ao Ministro dos Negócios Estrangeiros da França com as nossas provas históricas, dando ênfase à Crónica da Conquista da Guiné, de Zurara.

Armando Tavares da Silva repertoria um conjunto de incidentes na região do Casamansa, ora tira ora põe bandeira portuguesa ou francesa, caso dos incidentes de Adiana e Sindão. Recorde-se que a região Sul também estava sob cobiça, os franceses pretendiam comprimir a presença portuguesa para cima do rio Cacine, resta dizer que a presença de autoridades portuguesas era nula na região.

Depois de várias pressões da diplomacia francesa, e tendo já terminado a Conferência de Berlim, o governo de Paris manifesta disposição para negociar fronteiras não só na Senegâmbia como também sobre o litoral do Congo. O governo de Lisboa tenta separar a questão do Casamansa e de Cacine com a pretensão francesa da posse do território de Massabi. Certo e seguro, as negociações entre Portugal e a França irão ter lugar em 1885, a França insiste então não nos seus direitos históricos e utiliza uma expressão subtil: “em nós penetra a ideia que a solução para ser prática deve ser procurada mais nos factos do que nos arquivos”, evitando-se complicar a obtenção do acordo “por discussões onde cada um se acharia a produzir títulos históricos sem que eles possam conduzir a comissão a qualquer conclusão, uma vez que nós não teríamos qualidade para concluir, o que é desde já uma razão para os pôr de parte”.

Seguem-se propostas e contrapropostas, a diplomacia portuguesa dá sinais de transigência quanto às fronteiras da Guiné desde que se retire qualquer reivindicação francesa sobre o Massabi. E chega-se a uma sessão em 11 de janeiro de 1886 em que a questão dos rios Cacine e Compony vem à baila, a França não esconde que pretende um recuo da fronteira da possessão portuguesa para lá de Cacine, está muito interessada em conservar a posse da ilha Tristão na embocadura do Compony.

O governo de Lisboa, e continuamos em janeiro de 1886, declara abertamente que não pode aceitar o abandono dos territórios na margem esquerda do Massabi (ou Loema). No mês seguinte, a França insiste na posse da margem esquerda do Loema. Depois de algumas vicissitudes, entre elas a queda do governo de Lisboa, Portugal sacrifica o seu direito histórico no Casamansa e no rio Nuno. O político Barros Gomes escreve: “Para nenhuma das regiões além-mar poderia Portugal ostentar melhores títulos de posse do que para as regiões banhadas pelo Casamansa. Descoberta, conquista, ocupação efetiva, tratados celebrados com os potentados indígenas, convénios diplomáticos com as nações da Europa, remontando alguns ao século XV, tudo quanto pode constituir um direito e justificar a soberania, tudo pode ser alegado em favor do domínio de Portugal naqueles territórios, tudo tende a acentuar o sacrifício consumado com o seu abandono".

Perdia-se o Casamansa, lutava-se por uma fronteira mais folgada no Sul. A França deixa de insistir na sua presença no Massabi. E assim se chega ao projeto de convenção apresentado pela França, onde esta faz o reconhecimento do direito de Portugal exercer a sua influência nos territórios que separavam as possessões portuguesas de Angola e Moçambique, era uma vaga e inconsequente declaração formal, não terá qualquer peso face ao Ultimato. Durante as negociações, Portugal pretendeu que se mencionassem os limites dos territórios entre Angola e Moçambique, a França opôs-se liminarmente, fez reconhecimento “sob reserva dos direitos anteriormente adquiridos por outras potências”. A Convenção Luso-Francesa foi aprovada na Câmara dos Deputados a 2 de julho de 1887 e aprovada na Câmara dos Pares a 18 seguinte.

Em 25 de agosto de 1887 a Convenção foi assinada pelo rei D. Luís. Armando Tavares da Silva regista a extensa apreciação que a comissão de negócios externos da Câmara fez do projeto de lei, dava-se como as cedências no Casamansa compensadas tanto pelo rio Cacine como pelo reconhecimento que a França fazia de quase todo o território do Massabi e o da zona de exploração entre a província de Angola e Moçambique: “O rio Cacine e os territórios de uma e outra margem foram com efeito uma cessão a troca de outra, porque, embora as nossas descobertas e as nossas pretensões a domínio se estendessem ainda mais para o Sul, é certo que a posse efetiva pertencia à França”.

Estavam consumadas as fronteiras. Segue-se um período de tentativas de ocupação que só serão coroadas de êxito com as campanhas de Teixeira Pinto, é a partir daí que a administração portuguesa, de forma mínima, se irá internando até ao Gabú, descendo à península de Cacine e ao arquipélago dos Bijagós, finalmente submetido em 1936, com a capitulação do régulo de Canhambaque.

Monumento alusivo às campanhas do Canhambaque, imagem de Francisco Nogueira, publicada na obra "Bijagós, Património Arquitetónico", Edições Tinta da China, 2016, com a devida vénia.
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de Julho de 2022 > Guiné 61/74 - P23470: Nota de leitura (1469): Sobre Graça Falcão, a melhor fonte será porventura "A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar, 1878-1926", de Armando Tavares da Silva; Caminhos Romanos, 2016 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 29 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23470: Nota de leitura (1469): Sobre Graça Falcão, a melhor fonte será porventura "A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar, 1878-1926", de Armando Tavares da Silva; Caminhos Romanos, 2016 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Janeiro de 2020:

Queridos amigos,
Há algo de assombroso no percurso curricular de Graça Falcão, um condecorado com a Torre e Espada que irá ver o seu nome bem maltratado, no campo dos negócios, das relações políticas e sociais, pouca gente merecerá tanta hostilidade na Guiné como ele. Está ligado a um grande desastre no Morés, de onde escapou por uma unha negra. Como responsável pelo presídio de Farim, elaborou duas cartas topográficas que, assegura António Carreira no estudo que aqui é referenciado, é um documento memorável e indispensável para estudar aprofundadamente as rotas da expansão da islamização na Guiné.

Um abraço do
Mário



Graça Falcão, uma das figuras mais espantosas que passaram pela Guiné

Beja Santos

Sobre Graça Falcão, a melhor fonte será porventura "A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar, 1878-1926", de Armando Tavares da Silva, Caminhos Romanos, 2016. Tivesse eu condições e metia-me a estudar algumas figuras de traços mirabolantes ou com elevada carga enigmática: Graça Falcão, Marques Geraldes, Rafael Barbosa ou Osvaldo Vieira. Graça Falcão, alferes, é transferido de Angola para a Guiné em abril de 1892, em cumprimento de uma medida disciplinar determinada pelo Governador-geral de Angola. Alferes da Bateria de Artilharia de Montanha, é graduado em tenente a 1 de maio de 1894 e em 23 de maio é nomeado Comandante do Presídio de Farim. Será nessas funções que elaborará duas cartas topográficas (1894-1897), com alto significado, pois dão alguma compreensão à expansão do islamismo no rio Farim, António Carreira publicará um estudo alusivo, aqui se fará referência. Em abril de 1895, a pedido dos Balantas de Barro, Graça Falcão vai a esta localidade, solo que nunca tinha sido pisado por autoridade alguma portuguesa, deixa a bandeira e lavra o competente auto de vassalagem. Em 22 de setembro de 1896 é Cavaleiro da Torre e Espada pelos serviços prestados ao reaver três embarcações em poder dos gentios do Biombo e da ilha de Jata. Será louvado por Portaria Régia pelo bom resultado de uma expedição ao Oio. Em 1897, dá-se uma desastrada incursão de Graça Falcão no Oio, ele andara por aqui no ano anterior. O Tenente Herculano da Cunha relatará as peripécias como Graça Falcão conseguiu escapar vivo, andou sozinho fugitivo, embora Herculano da Cunha, nos seus relatórios, o desse por morto. Irá ressuscitar, abandona a vida militar, entrega-se a negócios, suscita ódios, são histórias dignas do mais vibrante romance de aventuras. Encontrei correspondência do responsável do BNU na Guiné considerando-o homem de mau caráter e mau pagador. Postos estes episódios de uma carreira mirabolante, vamos ao documento de António Carreira.

Ele começa por afirmar que a Guiné esteve sempre sujeita à influência dos movimentos desencadeados pelos dirigentes islâmicos, tanto do Futa-Toro como do Firdu e do Futa-Djaló. E faz uma resenha histórica:
“A luta travada em África pelos povos islamizados com vista à submissão dos animistas à doutrina do Alcorão data de há cerca de nove séculos. Nesse decurso de tempo, conheceu fases de progresso, de estagnação ou mesmo de retrocesso, e fases de grande e espetacular progresso.
Sabe-se com segurança que os povos de Sonin e de Mandé atingiram a área da nossa Guiné nos séculos XIII ou XIV. Admite-se como certo que estes dois grandes grupos, ao fixarem-se no Alto Geba (no Cabo, N’Gabu ou N’Gabu-El, como era então conhecido) e no Brasso (ou Berassu), eram, ainda, na sua totalidade, animistas.

No início do século XVIII, nesta área, só existia um culto: o animista. Os povos que o seguiam estavam distribuídos da seguinte forma:
1.º Nas duas margens do Casamansa: Felupes, Baiotes, Banhuns, Cassangas e Balantas (os atuais Diolás dos Franceses), Soninqués, Mandés e Fulacundas (os nossos Fulas-Forros);
2.º No Futa-Djaló: a) Os denominados Djaló-Nkas, os mestiços de Mandés, sobretudo Sossos; b) Os descendentes de camadas de origem peul ou pulô, que em data imprecisa, mas por volta de 1500-1511, invadiram o Futa. Os parentes mais próximos destes Pulis existiam em estado de relativa pureza étnica na primeira vintena deste século no Ferlo e no Futa-Toro, mas, tal como os de Futa-Djaló, muitos ainda inteiramente animistas”
.

A islamização acentuou-se no Futa-Toro, e encontrou sérias resistências no Futa-Djaló. Houve lutas terríveis que duraram até ao final do século XVIII ou mesmo no início do XIX. Foram dados como submetidos e dominados os animistas do Futa-Djaló e então os Fulas dividiram o território numa espécie de províncias religiosas. António Carreira disserta sobre esta organização religiosa e o seu controlo. E diz mais adiante que em cerca de 1900 se deu a penetração do Casamansa, na Guiné Portuguesa e no Futa-Djaló de Marabus procedentes da Mauritânia. A expansão islâmica espalhou-se por uma boa parte da colónia. “O Boé, designadamente a povoação de Dandum, passou a ser um dos principais refúgios dos familiares e partidários de Alfá Iaia. Muitos deles encaminharam-se, através da nossa Guiné, para o Casamansa e Gâmbia”. Estava consumada a islamização da região Leste e também de Farim.

Carreira, que publica este trabalho em 1963, recorda que percorrera as duas margens do rio Farim a pé há mais de quarenta anos, fizera ali vários recenseamentos fiscais. Nessa época, os Balantas só em mínima parte se tinham deixado mandinguizar, ou seja, islamizar. E é muito interessante o que escreve a seguir:
“Em outro trabalho já publicado tive a oportunidade de esclarecer que a designação Balanta-Mané deriva da junção do etnónimo Balanta do apelido, de origem mandinga, Mané. Parece que foram os cristãos que o difundiram com o intuito de individualizar os Balantas integrados na cultura Mandinga e para não se confundirem com os que se conservavam apegados às tradições próprias do grupo. Como o apelido Mané era o mais generalizado no setor Mandinga confinante com os Balantas, estes, quase em massa, mal se mandinguizavam, adotavam-no espontaneamente como segundo nome. Portanto, o sinal mais concludente da integração do Balanta na cultura Mandinga era o uso deste apelido”.

Depois de ter feito referência às confrarias islâmicas do Senegal e do Futa-Djaló e a sua influência no território da colónia, alude ao estudo da difusão do islamismo entre os povos da Guiné. Diz que falta documentação adequada. E é então que informa que Teixeira da Mota lhe facultara duas cartas topográficas da região de Farim elaboradas pelo oficial do Exército Jaime Augusto da Graça Falcão. Diz que o conheceu e o apreciou e que estes documentos revelam esboços topográficos que dão uma imagem bastante exata do que era, então, a distribuição da população pelas duas margens do rio Farim. Segue-se uma enumeração exaustiva e interpretativa dos dois mapas e conclui vaticinando que este modesto subsídio sirva para despertar a ideia da elaboração de um estudo sistemático do processo da islamização das gentes da Guiné.

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Nota do editor

Último poste da série de 25 DE JULHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23460: Nota de leitura (1468): “A desmobilização dos combatentes africanos das Forças Armadas Portuguesas da Guerra Colonial”, por Fátima da Cruz Rodrigues, na revista Ler História, n.º 65 de 2013 (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 15 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23352: Historiografia da presença portuguesa em África (321): Grande polémica (2): Luís Loff de Vasconcelos versus Teixeira Pinto e Abdul Indjai (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Junho de 2021:

Queridos amigos,
Permanecem muitos pontos de interrogação quanto às razões fundadas que poderão ter levado à extinção da Liga Guineense, instituição declaradamente republicana, outrora reconhecida como muitíssimo útil e que passa a ser tratada como uma entidade demoníaca por se ter oposto aos planos perpetrados pelo Capitão Teixeira Pinto para submeter os indígenas de Bissau. Como ficou demonstrado, Abdul Indjai saqueou e destruiu por anos a economia dos Papéis e dos Grumetes da ilha. Não se conhece melhor documento que rebata as teses triunfalistas pró-Teixeira Pinto que o opúsculo escrito por Luís Loff de Vasconcelos, conceituado escritor cabo-verdiano que seguramente teve acesso a depoimentos que a versão oficial silenciou.
É inaceitável que a História da Guiné Portuguesa deixe na penumbra uma investigação determinante para se perceber não só o caráter da campanha de pacificação mas pelo facto de se dever atribuir o sucesso da mesma a um saqueador que foi régulo e déspota tão turbulento que pela segunda vez foi levado ao exílio.
Respeitando o contraditório, vamos ver agora as teses que se opõem.

Um abraço do
Mário



Grande polémica (2):
Luís Loff de Vasconcelos versus Teixeira Pinto e Abdul Indjai


Mário Beja Santos

Em "A presença portuguesa na Guiné, História Política e Militar, 1878-1926", por Armando Tavares da Silva, Caminhos Romanos, 2016, a versão das depredações praticadas pelo chefe de quadrilha Abdul Indjai e os seus irregulares e as responsabilidades do capitão Teixeira Pinto distinguem-se literalmente das acusações apresentadas por Luís Loff de Vasconcelos. Aliás, Tavares da Silva dá-nos um quadro curricular mais alargado do que o do publicista cabo-verdiano. Logo em 1906, o Governador Almeida Pessanha vê-se obrigado a refrear Abdul Indjai, este tinha servido de auxiliar na campanha do Churo. O mercenário senegalês tentara várias vezes atacar o Oio, fora sempre repelido, a sua gente de guerra fazia razias, servindo-se do nome do Governo. Em abril, Abdul é preso e o seu bando disperso, é enviado para S. Tomé. No ano seguinte, o príncipe real D. Luiz Filipe de visita a S. Tomé, concede permissão para Abdul regressar à Guiné, e este participará nas campanhas de Badora e Cuor, conta o revoltoso régulo Infali Soncó. Ao lado do Governador Oliveira Muzanty, Abdul e os seus irregulares participam nas operações, põe o régulo revoltoso em fuga e Abdul irá ser nomeado régulo do Cuor, suscitando inúmeras queixas. Em 1912, o Capitão João Teixeira Pinto chega à Guiné como Chefe de Estado-Maior, irá dedicar-se à ocupação e pacificação da província. Dá prioridade à ocupação das regiões de Mansoa e Oio, parte disfarçado em inspetor da Casa Soller, atravessa a região, sugere ao governador Carlos Pereira que se recorra a grumetes ou a irregulares. Pede-se a colaboração da Liga Guineense que mostra indisponibilidade e Teixeira Pinto aproveita-se de Abdul Indjai e dos seus irregulares, pretende atacar o Oio num flanco e o administrador de Geba, Calvet de Magalhães, atacará pelo outro.

Tavares da Silva descreve minuciosamente as operações no Oio e o pedido de paz das gentes da região de Mansabá, são presos vários revoltosos, dá-se como submetidos os Balantas do Oio. Calvet de Magalhães tem uma progressão mais acidentada, mas também chega a bom porto. O êxito das operações leva à concessão de medalhas e louvores. Pouco depois de Carlos Pereira ter deixado a Guiné começam a surgir notícias que atribuem atrocidades a Abdul e aos seus quadrilheiros no Oio. A Legação Britânica na Guiné enviara uma nota para o ministro em Lisboa informando-o do aventureiro Abdul e dos seus 400 indígenas senegaleses, que praticariam terríveis barbaridades, massacres, roubos e raptos. Troca-se inúmera correspondência entre as autoridades mas as queixas não cessam. Chega novo governador, Andrade Sequeira, que nomeia uma comissão para ir ao Oio apurar as atividades de Abdul e dos seus homens. É neste tempo que se dá o massacre do Pelotão de Polícia Rural do alferes Pedro e Teixeira Pinto segue para Bissorã e Mansoa, correm operações em Cacheu, no seu relatório ao Governador, Teixeira Pinto não deixa de observar que a revolta dos indígenas era proveniente não só do seu espírito de guerreiro mas ainda e principalmente da sua falta de educação. Temos novas queixas contra a gente de Abdul, vêm do tenente António José Teixeira de Miranda, comandante do posto de Mansabá. Mas Andrade Sequeira nomeia Abdul tenente de 2.ª Linha. Seguem-se as operações para submeter os Balantas, Abdul Indjai colabora e Teixeira Pinto pede ao governador a nomeação do chefe de quadrilha para régulo do Oio. Depois de uma pausa em Lisboa Teixeira Pinto regressa à Guiné e temos agora a Campanha de Bissau que irá levar Luís Loff Vasconcelos a escrever acusações demolidoras. É escusado procurar transparência nas argumentações utilizadas se era ou não evitável a guerra na ilha de Bissau. A Liga Guineense opunha-se tenazmente e tinha razões de sobra, o seu espírito republicano era definido por uma elite de mercadores profissionais liberais e contavam com a simpatia de gente cristianizável e em vias de alfabetização, os Papéis e os Grumetes, pedia-se tolerância e prudência, o imposto de palhota começara a ser pago e o armamento em posse dos régulos inquietos eram armas de pedreneira, argumentavam. E a operação é decidida, mesmo havendo vozes discordantes no Conselho Administrativo.

Desenrolam-se as operações em maio de 1915, Teixeira Pinto leva um fraquíssimo contingente regular, os irregulares de Abdul, é apoiado pelo régulo mandinga Mamadu Sissé e pelos Futa-Fulas de Alfa Mamadu Seilu. Não houve mistério na argumentação trocada sobre quem e porquê mandou prender os dirigentes da Liga Guineense, teria havido um prisioneiro que confessara às gentes de Abdul e quem dirigia a resistência e fornecia cartuchame eram figuras ligadas à Liga.

Tavares da Silva dá um amplo desenvolvimento às queixas de Andrade Sequeira sobre o comportamento dos auxiliares. Temos que admitir que mesmo na hipótese de haver excessos na argumentação de Luís Loff sobre as pilhagens e destruições dos quadrilheiros de Abdul, não havia relação sustentada quanto às responsabilidades da Liga Guineense, entretanto entredita e depois extinta. Houve inquestionavelmente movimentações de diferentes interesses para amnistiar ou incriminar os Grumetes, Andrade Sequeira é enérgico, manda sair da ilha os quadrilheiros de Abdul. O comportamento do governador é dúbio, informa o ministro que no atual momento político seria inexequível aniquilar de vez Abdul, havia que o desarmar. Vasco Calvet de Magalhães envia um documento a Andrade Sequeira biografando Abdul, é arrasador, escravizava os prisioneiros e diz mesmo: “Abstenho-me de me ocupar também das barbaridades que lhe deixaram praticar em Bissau e que são do domínio público, não faltando testemunhas dos factos entre os quais o de ter enterrado gentes vivas, etc.”.

E começam as acusações a Teixeira Pinto. Quanto às atrocidades, permitira, tudo vem perfeitamente documentado na obra de Tavares da Silva, e inclusive as inquirições que foram ordenadas fazer a Brito Capello, em dado passo já se insinua práticas administrativas irregulares, tudo acabará arquivado quer porque o governador Andrade Sequeira deixa a Guiné quer porque Teixeira Pinto morre em combate em Moçambique.

E assim chegamos a 1919 e à campanha contra Abdul Indjai, régulo do Oio. O Secretário-geral Caetano Barbosa informa o novo Governador Oliveira Duque das prepotências praticadas pelo chefe de quadrilha. Abdul ainda entrega armas, por exigência do Governo, mas a situação na região, mormente em Mansabá, era de nítido mal-estar entre as populações. Abdul comete o erro de querer oferecer resistência, será preso e deportado para a cidade da Praia, onde irá falecer.

A despeito de inúmera documentação existente, permanecem mistérios que só uma investigação mais apurada permitirá desvendar: quanto à fundamentação da extinção da Liga Guineense, instituição criada por republicanos; se existiram conivências de alguns dos seus membros com os revoltosos Papéis e Grumetes da ilha de Bissau; se Teixeira Pinto se permitiu a fazer vista grossa das atrocidades e pilhagens praticadas pelo chefe de quadrilha e os seus irregulares; como foi possível encontrar justificação por manter este praticante de barbaridades como régulo que agia por conta própria, saqueando, escravizando, fazendo coleta de impostos, armado até aos dentes. É uma investigação muito incómoda para este período colonial: o heroico capitão Teixeira Pinto teve de se socorrer de um chefe de quadrilha e notório criminoso; não são evidentes as ligações entre a Liga Guineense e a rebelião dos régulos da ilha de Bissau; é politicamente insustentável na segunda década do século XX uma potência colonial se apoiasse num bandido sanguinário para fazer ocupação e pacificação. Há que sair deste mar de trevas e procurar apurar o rigor da verdade.

Luís Loff de Vasconcelos
Abdul Indjai
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Nota do editor

Último poste da série de 8 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23337: Historiografia da presença portuguesa em África (320): Grande polémica (1): Luís Loff de Vasconcelos versus Teixeira Pinto e Abdul Indjai (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 8 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23337: Historiografia da presença portuguesa em África (320): Grande polémica (1): Luís Loff de Vasconcelos versus Teixeira Pinto e Abdul Indjai (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Junho de 2021:

Queridos amigos,
Permanecem muitos pontos de interrogação quanto às razões fundadas que poderão ter levado à extinção da Liga Guineense, instituição declaradamente republicana, outrora reconhecida como muitíssimo útil e que passa a ser tratada como uma entidade demoníaca por se ter oposto aos planos perpetrados pelo Capitão Teixeira Pinto para submeter os indígenas de Bissau. Como ficou demonstrado, Abdul Indjai saqueou e destruiu por anos a economia dos Papéis e dos Grumetes da ilha. Não se conhece melhor documento que rebata as teses triunfalistas pró-Teixeira Pinto que o opúsculo escrito por Luís Loff de Vasconcelos, conceituado escritor cabo-verdiano que seguramente teve acesso a depoimentos que a versão oficial silenciou.

 É inaceitável que a História da Guiné Portuguesa deixe na penumbra uma investigação determinante para se perceber não só o caráter da campanha de pacificação mas pelo facto de se dever atribuir o sucesso da mesma a um saqueador que foi régulo e déspota tão turbulento que pela segunda vez foi levado ao exílio. 

Respeitando o contraditório, vamos ver agora as teses que se opõem.

Um abraço do
Mário



Grande polémica (1):
Luís Loff de Vasconcelos versus Teixeira Pinto e Abdul Indjai


Mário Beja Santos

O papel da Liga Guineense e a sua extinção continua envolto em mistério. Tendo denunciado as atrocidades e roubos perpetrados por Abdul Indjai e os seus auxiliares ao serviço da chamada Campanha de Pacificação da ilha de Bissau, em 1915, sabe-se que alguns dos seus dirigentes foram presos, que um governador da Guiné entendeu haver motivos para o desaparecimento da Liga e entretanto um conhecido escritor e publicista nascido em Cabo Verde, Luís Loff de Vasconcelos, escreveu no ano seguinte uma demolidora catilinária que intitulou A defesa das vítimas da guerra de Bissau, o extermínio da Guiné, editado pela Imprensa Libânio da Silva, Lisboa, 1916. 

O  documento pode ser consultado na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa. Como é óbvio, dar-se-á depois direito ao contraditório, e para tal usar-se-á a obra de Armando Tavares da Silva.

O escritor cabo-verdiano dirige-se ao Ministro das Colónias, ao Governador da Guiné, Andrade Sequeira, à justiça portuguesa e ao povo português, e logo desembainha a espada:

“É triste dizê-lo, mas a Guiné Portuguesa esteve durante longos meses no domínio de uma ditadura feroz e de um temor indiscritível. Desde 1914, até à chegada do atual governador, Andrade Sequeira, não se respirava livremente nesta colónia. A Guiné era um teatro de guerra, mas não uma colónia habitável. Deu-se a invasão das hostes guerreiras de Abdul Indjai, arvorado em chefe dos irregulares e poderoso auxiliar das nossas reduzidíssimas forças militares regulares, comandadas pelo Chefe de Estado Maior, sob a razão ostensiva de se focar rebeliões que não existiam senão na fantasia e no cérebro doentio e ardente de alguns megalómanos, e ainda sob o fundamento da resistência dos indígenas em pagar o imposto de palhota.

Abdul Indjai aproveitou-se dessas incursões militares; as importantes presas de guerra eram para ele e seus guerreiros, recrutados aqui e acolá, compostos da pior gente de todas as raças da Guiné. Era uma quadrilha de bandidos, assolando e saqueando o território ocupado por outras tribos, mascarados e disfarçados em auxiliares das nossas forças!

 Quadrilha aguerrida, composta também de muitos Torancas (indígenas da colónia francesa) profissionais da guerra e do saque. Abdul Indjai recorreu a um ardil: declarou-se que os Papéis não acudiam ao apelo da civilização, à subordinação ao governo, à entrega de armas e ao pagamento do imposto de palhota e que, portanto, estavam em estado de rebelião, a que era indispensável pôr termo”.

Loff de Vasconcelos (na foto à direita) elabora a minuta de agravo, apresenta a relação dos acusados como autores e chefes do incitamento à chamada rebelião dos Papéis de Bissau, e prossegue a sua perlengada:

“A história das operações militares dirigidas contra os indígenas da ilha de Bissau, em maio de 1915, é fácil fazer-se e mais fácil ainda de compreender-se. Pela portaria de 13 de maio de 1915, do governador Oliveira Duque, foi imposto aos indígenas da ilha de Bissau a entrega de armas e o pagamento do imposto de palhota. Atribuiu-se que fizeram desacatos e não permitiram no arrolamento, desrespeitando a nossa soberania, pelo que foi determinado a criação de uma coluna de operações para submeter os indígenas rebeldes de Bissau".

Ora, diz Loff de Vasconcelos, as coisas passaram-se de modo muito diferente. Os Papéis pegaram em armas, não por espírito de rebelião, mas porque suspeitavam que Abdul Indjai conspirava contra eles, intrigando-os com as autoridades da colónia, interessava-lhes provocar a guerra para saquear. Abdul foi o chefe de guerra, à frente de 1500 irregulares, incluindo 200 cavaleiros. 

Não se enganaram na suspeita; enganaram-se, porém, na vitória que esperavam alcançar contra esse temível e temido inimigo da sua raça e a derrota sofrida custou-lhe tudo o que tinham em gado e mantimentos, foi parar às mãos da gente de Abdul. Deu-se este absurdo: uma das razões da guerra foi a recusa do pagamento de imposto de palhota. Ora, tendo-lhes sido confiscados os bens perderam os recursos – os meios prejudicaram os fins.

Esta guerra fez-se não para servir os interesses da colónia mas pura e simplesmente e com a anuência inqualificável do Governador Oliveira Duque para vingar a morte do seu filho. 

E Loff Vasconcelos traça-nos o retrato de Abdul Indjai: é um emigrado de Ziguinchor, foi para Cacheu e Costa de Baixo, fez comércio e conseguiu ser um pequeno cliente da Casa Alemã Soller, ia pagando os calotes com as cabeças de gado que foi apresando na guerra aos Balantas e no Oio. Descreve episódios de negócios frustrados, vivia em Geba quando ocorreu que os Oincas não quiseram satisfazer o pagamento do imposto de palhota, ele então ofereceu-se para recolher o imposto, levou homens armados, nem tudo correu bem, conseguiu escapar milagrosamente. Na região de Geba roubava, pilhava e atacava caravanas. O comandante de Geba deu-lhe voz de prisão, Abdul foi levado para Bissau e deportado para São Tomé pelo governador Oliveira Muzanty. Em São Tomé foi perdoado pelo príncipe real Luís Filipe.

Loff de Vasconcelos acrescenta ainda outros dados biográficos que ele considera eloquentes. Em 11 de maio de 1915, dois dias antes da declaração de guerra de Bissau, Abdul era investido no cargo de régulo do Oio – falamos de um homem que tinha sido deportado para São Tomé em 1906 como inconveniente à tranquilidade da província e cujas tropelias chegaram a ameaçar as nossas boas relações com as autoridades estrangeiras vizinhas.

 Em 3 de junho de 1915, Teixeira Pinto e a força maioritariamente constituída pelos auxiliares e regulares invadiu as populações de Antim, Bandim e Antula. Seguiu-se carnificina e fuga; todo o rico e extenso território habitado pelos Papéis está hoje na maior desolação e miséria. Calcula-se que cerca de cinco mil cabeças de gado vacum foram apresados pelos irregulares. E Loff de Vasconcelos assegura que a maioria da população civilizada da Guiné foi contrária a esta guerra. E segue-se a parte jurídica.

Logo a declaração do prisioneiro de guerra, António Gomes, que dissera que a rebeldia do gentio Papel e dos Grumetes em não prestar obediência ao Governo se devia aos Grumetes Grandes que pertenciam à Liga Guineense – é este o único depoimento concreto em todo o monstruoso processo, em que foram inquiridas 45 testemunhas. 

Ora um prisioneiro de guerra que se presume estar em estado de coação, o seu testemunho não tem valor jurídico. Foram proferidas acusações gravíssimas à Liga Guineense. Loff mostra carta de Teixeira Pinto com data de 9 de março de 1913 em que se exalta a página brilhante escrita pelos Grumetes de Bissau para a consolidação da soberania portuguesa, aludindo ao castigo infligido a Balantas e Felupes em 1912. E Loff diz que o governo se aproveitou dos serviços da Liga Guineense para seus fins, sempre que deles carecia chamando-lhes prestimosa Liga, segue-se a petição de queixa e participação contra o capitão Teixeira Pinto e Abdul Indjai, vem o rol dos queixosos acusados de instigadores da revolta dos Papéis de Bissau, e Loff argumenta:

“Como poderiam os agravantes estar implicados num crime de rebelião se eles sempre se esforçaram para evitar essa desastrosa guerra de Bissau como provam alguns documentos? Não cabe na mente de nenhum cérebro regularmente organizado e regulamentado a suposição de que os agravantes poderiam ter tido a vaidade de instigar essa guerra? 

Era ao agravante António Teixeira, um velho respeitável, caráter pacífico e concentrado, exemplaríssimo chefe de família, amigo dos portugueses e comerciante abastado, a quem poderia convir a guerra de Bissau?

 Era Augusto Domingos da Costa, antigo empregado e tesoureiro de alfândega, louvado pela coragem e sangue-frio com que resistiu às ameaças dos gentios que em grande número assaltaram o Posto de Arame, que teria interesse na revolta dos Papéis? 

Era Gomes Barbosa, Alvarenga, Robalo, Gomes e Lopes, prestimosos cidadãos, que têm prestado relevantes serviços a esta colónia, que desejariam a rebelião dos Papéis e a guerra de Bissau? 

Certamente que não. Todos eles tinham interesse no contrário, como sempre manifestaram. O culpado é quase sempre aquele a quem o delito aproveita. Procurem-se os verdadeiros culpados, hão de encontrá-los – que não os agravantes. Os hoje acusados poderão converter-se amanhã em acusadores”.

Para Loff de Vasconcelos, a declaração do estado de sítio e organização da coluna para submeter os chamados rebeldes de Bissau não era mais do que a continuação do plano de guerra de 1913. Mas os tempos tinham mudado. Em maio de 1915, uma grande parte das povoações de Bissau já tinha começado a pagar o imposto de palhota e os régulos pediam insistentemente ao governo para não lhes fazer a guerra e se não pagavam mais foi porque lhes diziam que quem não pagasse teria a visita de Abdul Indjai. 

Era público e notório que a Liga Guineense se opunha tenazmente à guerra. Depois de descrever a calamidade em que ficara a ilha de Bissau, Loff junta à lista dos testemunhos dos atos de barbaridade praticados e vai acusar diretamente Teixeira Pinto. Ele era comandante das operações militares, organizou um inquérito na povoação de Bissau e na vila de Bolama, levantando de motu proprio autos de investigação, procedendo a buscas e apreensões, requisitando e ordenando capturas de pessoas não militares, usurpando as funções de agentes da polícia judiciária militar. Mandou prender os queixosos, deixando de cumprir, mesmo que tivesse competência legal para o fazer, os preceitos correlativos do Código do Processo Criminal Militar.

É este o escopo essencial do documento elaborado por Loff Vasconcelos. Convém agora ouvir argumentação que se opõe e na sua sequência damos a palavra à argumentação utilizada por Armando Tavares da Silva na sua obra Presença Portuguesa na Guiné: história política e militar, 1878-1926.

(continua)

João Teixeira Pinto
Abdul Indjai
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Nota do editor

Último poste da série de 1 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23318: Historiografia da presença portuguesa em África (319): “História das Colónias Portuguesas, Obra Patriótica sob o Patrocínio do Diário de Notícias", da autoria de Rocha Martins, da Academia das Ciências de Lisboa; Tipografia da Imprensa Nacional de Publicidade, 1933 (Mário Beja Santos)

terça-feira, 28 de setembro de 2021

Guiné 61/74 - P22577: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte VII: A lenda de Alfa Moló






A lenda de Alfa Moló - belíssimas ilustrações do mestre português José Ruy (Amadora, 1930), um dos maiores ilustradores e autores de banda desenhada (pp. 49, 50, 52 e 53)


1. Transcrição das págs. 50 a 54 do livro "Lendas e contos da Guiné-Bissau", com a devida autorização do autor (*)


J. Carlos M. Fortunato >
Lendas e contos da Guiné-Bissau



O autor, Carlos Fortunato, ex-fur mil arm pes inf, MA,
CCAÇ 13, Bissorã, 1969/71, é o presidente da direcção da ONGD Ajuda Amiga



Capa do livro "Lendas e contos da Guiné-Bissau / J. Carlos M. Fortunato ; il. Augusto Trigo... [et al.]. - 1ª ed. - [S.l.] : Ajuda Amiga : MIL Movimento Internacional Lusófono : DG Edições, 2017. - 102 p. : il. ; 24 cm. - ISBN 978-989-8661-68-5.



A lenda de Alfa Moló (pp. 50-54)


Um dia, um pobre mendigo chegou à tabanca (21)  de Amedalai (22) e,  pretendendo descansar, pediu hospitalidade em várias casas, mas todas elas a recusaram.

Até que chegou a uma pobre casa, onde uma mulher, apesar de o maridon não estar presente, o recebeu e lhe matou a fome.

Quando o marido, Moló Eigué, chegou, ficou contente pela hospitalidade dada pela sua mulher, pois fazia gosto e tinha orgulho em receber bem quem o visitasse.

Moló Eigué ao conversar com o mendigo, ficou admirado com a sua sabedoria, pois nunca tinha conhecido um mendigo tão sábio. Na verdade, o mendigo era um grande marabu (23) de nome Seiku Umarú (24), que viajava disfarçado de mendigo.

Depois de descansar, o mendigo decidiu seguir viagem, e Moló Eigué fez questão de o acompanhar.

Moló Eigué acompanhou o marabu de Amedalai até Coli (25) , e aí chegados, o marabu despediu-se, dizendo-lhe:

 Todas as terras que comigo percorreste, serão tuas, este será o teu Reino, pois é essa a vontade de Alá.

Moló Eigué ficou confuso e sem compreender as palavras do marabu. Como seria possível ele tornar-se Rei, sendo ele apenas um servo (26) de um rico fula, Samba Eigué, de quem já os seus pais também tinham sido servos…

Moló Eigué tinha em sua casa um carneiro do qual gostava muito, pois estava ensinado de tal maneira, que era como uma pessoa. Andava sempre atrás dele e até quando comia, o carneiro estava ao seu lado.

Um dia, ao voltar da caça, sentou-se à mesa para comer, e o carneiro não apareceu. Então ele perguntou à mulher:

 Onde está o meu carneiro?

A mulher respondeu-lhe:

– Eu queria que você comesse primeiro, para depois lhe contar. Os guerreiros mandingas vieram e levaram o seu carneiro para Cansalá. O Mansa Djanqui
Uali mandou levar o gado de todas as pessoas.

 O quê? –  disse Moló Eigué,  afastando a tigela com a comida.

Sem mais palavras montou no seu cavalo e cavalgou para Cansalá. Quando chegou à fortificação de Cansalá, Moló Eigué pediu aos guardas para falar com o Mansa.

 Está louco! Não pode falar com Mansa  disseram os guardas.

 Roubaram o meu carneiro, e eu quero o meu carneiro de volta! – exclamou Moló Eigué furioso.

 Cuidado, não fales mais assim, senão morres! O carneiro foi o almoço do Mansa. Vai caçar um porco do mato - responderam os guardas rindo.

 O Mansa vai pagar muito caro este carneiro  disse Moló Eigué e abandonou Cansalá.

Moló Eigué foi de tabanca em tabanca, apelando à revolta:

 Os mandingas estão a abusar, não nos respeitam, não param de aumentar os impostos, roubam as nossas coisas, tratam-nos como escravos, temos que nos revoltar.

Alguns responderam:

– Os mandingas são muito poderosos, nós não conseguimos vencê-los.

Moló Eigué a isto respondeu:

 Eu vou lutar! Se não me ajudarem a lutar, terão que fugir, porque quando as balas começarem a voar, então todos terão que fugir.

Muitos homens vieram juntar-se a Moló Eigué, pedindo-lhe para os guiar na luta contra o domínio mandinga, pois por todo o lado se iniciavam focos de revolta contra os abusos mandingas e era grande a vontade de substituir os reinos mandingas por reinos fulas. Além disso os fulas do Reino do Futa Djalon (27) tinham desencadeado uma jihad contra os reinos animistas, e era obrigação de todos os muçulmanos juntarem-se a essa jihad.

Moló Eigué era um devoto muçulmano, que possuía estudos corânicos, era
respeitado, e era também um famoso caçador, o que fazia dele o homem certo
para os conduzir nessa guerra. Assim ele tornou-se o líder de um grupo de 400
homens, na luta contra os mandingas animistas (28) do Império de Cabú.
 
As palavras do marabu, começavam agora a fazer sentido para Moló Eigué.
Moló Eigue pagou o seu resgate ao seu senhor, o nobre Samba Eigué, tornando-se um homem livre, e partiu para a guerra. E embora o seu nome fosse Moló Eigué Baldé, ficou para sempre conhecido como Alfa Moló.

A floresta onde Alfa Moló e muitos dos seus companheiros costumavam caçar, tornou-se a base para lançar a revolta, contra o Império animista de Cabú.

Após a derrota dos mandingas e a destruição da sua capital, Cansalá, o Reino do Firdu é alargado até Coli, com Alfa Moló como Rei, tal como o marabu tinha predito.

O nobre fula Samba Eigué, antigo senhor de Alfa Moló, não aceitou que este pudesse ser agora o Rei de Firdu, e furioso pelo poder que este tinha conquistado,
gritou:

 Um escravo não vai governar aqui!

Desencadeou-se assim uma guerra entre os fulas, mas Alfa Moló (29), com a ajuda do seu filho Mussá Moló e dos seus aliados, venceu os seus inimigos fulas, e tornou-se senhor incontestado do Reino de Firdu.

O Reino de Firdu tornou-se assim um Reino de fulas-pretos (30), um Reino em que os antigos escravos e servos são agora os novos senhores. (**)

 Esta é  uma das lendas de Alfa Moló.

Alfa Moló conseguiu um Reino, mas o seu filho Musá Moló teve que continuar a sua luta para manter o Reino do Firdu, pois continuaram a existir lutas internas entre os fulas.

Mussá Moló, para assegurar o seu poder e combater os seus inimigos, fez novas alianças. Uma das mais importantes foi a aliança com os franceses, mas isso não alterou o fim do Reino do Firdu, pois o fim dos Impérios Africanos estava próximo, e os novos senhores seriam em breve os países europeus.

__________

Notas do autor:

(21) Tabanca - é a designação usada para aldeia, a qual tem origem no
termo crioulo tabanka.

(22) Amedalai - situa-se no Firdu.

(23) Marabu - designação dada aos religiosos muçulmanos considerados santos ou sábios, nalguns textos é usado o termo mouro, que tem o mesmo significado. Os marabus tinham grande influência na socie dade fula e mandinga, eram homens letrados, muitas vezes considerados homens santos. Estes homens entendiam que o seu poder era uma emanação de Deus graças ao profeta Maomé, e que era sua obrigação levar a verdade divina aos povos pagãos, que consideram bárbaros ignorantes.

(24) Seku Umaru – um grande marabu também conhecido pelo nome El Hadgi Omar

(25) Coli - o Rio Coli faz fronteira a leste da Guiné-Bissau com a Guiné Conacri, perto de Piche.

(26) Escravos e servos - era costume fulas e mandingas possuírem escravos e servos, Artur Augusto da Silva, na pag. 29 de “Usos e Costumes Jurídicos dos Mandingas”, faz a diferenciação entre estes estatutos sociais:

“Escravos - constituem esta classe os prisioneiros de guerra, aqueles que eram comprados e os que se entregavam voluntária ou compulsivamente para pagamento de uma dívida, e ainda os seus filhos.

Servos - que podiam ser da gleba, quando eram dados em recompensa a algum guerreiro juntamente com a terra a que ficavam adstritos por si e seus filhos, ou servos de ofícios, adquiridos pelos nobres para trabalharem em qualquer oficio. Além da casta a que pertenciam devido ao ofício exercido, eram servos porque trabalhavam por conta de outrem e eram sua propriedade.”

(27) Futa Djalon - O Reino Futa Djalon ou Futa Jalon, foi fundado em 1725, e estava localizado a sul do Império de Cabú, na Guiné-Conacri (República da Guiné).

(28) Mandingas animistas - são igualmente chamados de soninquês.

(29) Alfa Môlo - segundo René Pélissier na “História da Guiné I”, na pag. 212 refere que foi “Rei do Firdu, tendo rejeitado praticamente a tutela do Futa-Djalon, Alfa Molo foi, de 1869 até poucos anos antes da sua morte (1881), um dos coveiros do Gabu e, por todos os meios,
procurou manter a sua independência em relação aos Fulas-Forros.”
 
30 Fula-preto - é a designação dada aos fulas com origens noutras etnias que foram dominadas pelos fulas, e que seguiram o modo de vida fula, na sua maior parte são oriundos das etnias mandingas e beafadas, e de casamentos destes com fulas forros, e futa-fulas.

Fulas-forros - é a designação dada aos fulas originários do antigo Forreá.

Segundo o livro de José Mendes Moreira “Os fulas do Gabú”, o nome teria origem no nome dado à terra conquistada aos beafadas,

Forriá, que significa na língua fula “terra da liberdade”.

Futa-fulas - é a designação dada aos fulas originários do Futa Djalon (reino situado na Guiné-Conacri), normalmente têm as têmporas da face marcada por uma dupla incisão vertical ( || ).

2. Como ajudar a "Ajuda Amiga" ?


Caro/a leitor/a, podes ajudar a "Ajuda Amiga" (e mais concretamente o Projecto da Escola de Nhenque), fazendo uma transferência, em dinheiro, para a Conta da Ajuda Amiga:

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Para saber mais, vê aqui o sítio da ONGD Ajuda Amiga:

http://www.ajudaamiga.com

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10 de julho de  2019 > Guiné 61/74 - P19966: Historiografia da presença portuguesa em África (166): Alfa Moló Baldé e o mito fundador do reino de Fuladu, em 1867 (Cherno Baldé) - II (e última) Parte