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domingo, 4 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23843: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte V - Chegada a Gadamael Porto

1. Parte V da publicação do excerto que diz respeito à sua vida militar do livro "Um Olhar Retrospectivo", da autoria de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796 - Gadamael e Quinhamel, 1970/72.


V - gadamael porto…

Avisados sobre a data de partida para Gadamael Porto, deram-nos uma ideia sobre o trajecto: descer o rio Geba, seguir pelo mar, passar entre a costa e o arquipélago dos Bijagós, até ao rio Cacine, com percurso até Gadamael Porto.

Dia 27 de Novembro, lá fomos, rio abaixo, com o equipamento de defesa adequado e acompanhados por uma corveta da marinha de guerra, com os transbordos planeados, sempre atentos às margens e a qualquer movimento suspeito, cumprindo as orientações recebidas, até Gadamael Porto, onde chegámos dia 29.

Início da tarde, chegada a Gadamael Porto.
Acostagem a um porto que mais parecia um pequeno cais de brincadeira, enorme decepção, com sensação estranhíssima de desânimo e vazio, imagem parecida com aquelas pequenas cidades perdidas ou abandonadas do tempo do faroeste, ainda sem ter noção de qualquer realidade.
Depois de desembarcarmos, uma olhada pelo cenário, identificação do verdadeiro solo que estávamos a pisar, pela primeira vez, sem sequer pensarmos no tempo que ali teríamos de viver.
Além do rio lamacento, mais lama do que outra coisa, com caudal quando a maré subia, claro, encontrámos terra castanha, circundada por capim e mata cerrada, parte dela, virgem, aguardando ser desbravada.

Pequenas tabancas de lama e colmo, a par das tabancas construídas pelos militares, à medida que iam chegando, dando vida diferente aquele cenário.
Estas tabancas construídas por nós também eram erguidas com tijolos de lama, feitos em formas de madeira dos nossos caixotes, que eram espalhados pelo chão e coziam ao sol.
A argamassa para a união era feita da mesma lama.
A cobertura era com pedaços de palmeira a servir de base e apoio das folhas de zinco que a Engenharia de Bissau enviava por batelões, chegando metade ao destino, pois os nativos iam desviando o que podiam, durante a viagem.

No meio do aquartelamento, um edifício térreo antigo, uma velha casa de comerciantes libaneses (designada Taufik Saad), dos tempos do comércio entre República da Guiné-Conacry, Guiné-Bissau e Senegal, que já tinha sido aproveitado para edifício do comando.
A um canto, uma pequena tabanca que fazia de enfermaria, onde o furriel enfermeiro, o Vítor Coelho, orientava a actividade possível.
Uma caixa de cartão com medicamentos tinha de ser bem gerida, pois era difícil recebermos medicamentos com a frequência adequada.

Por falar nisto, recordo-me de um indígena Fula que tinha o vício da injecção, pois dizia que tinha dores no corpo: ‘a mi miste agula, corpo di mi, manga di mal…’ (eu quero injecção porque tenho dores no corpo).
A primeira vez, perguntam-lhe o nome, para registo, ele diz: ‘afinal di contas’
E lá estava, todos os dias, a pedir injecção.
Claro que levava injecção, mas de água destilada, e dizia: ‘manga di sabe sabe’ (muito bom!).
Depois, perguntavam-lhe: ‘corpinho di bó?’ (está bom?), a que respondia: ‘jametum!’ (está bom!)
Havia um outro que também lá estava caído, a toda a hora, a pedir pastilhas, e chamava-se ‘dinheiro có’.
Mas ele é que escolhia as pastilhas, pela cor da caixa…

Aquilo que mais chamou a nossa atenção foi a expressão de alívio da companhia que íamos render, cansados, saturados e ansiosos por deixar aquele local.
Mas a saudação à companhia que íamos render foi algo atribulada, ao contrário do que era suposto.
Um ajuntamento de militares, em frente ao tal edifício do comando, como que cercando um militar, tronco nu, calções, sujo e suado, de G3 apontada a uma porta do edifício: ‘Saiam daí, seus covardes, que eu limpo-lhes o sebo!’
Ninguém se mexia, ninguém falava.

Perguntei a um deles de que se tratava, respondendo-me que aquele ‘gajo’ queria limpar o capitão e um alferes que estavam escondidos dentro do edifício.
Da minha companhia, ninguém deu um passo, incluindo o capitão Assunção e Silva.
Eu olhei bem para o ‘gajo’ e vi algo de familiar.
Sim, era ele mesmo: um dos filhos de uma família de marchantes, donos dos talhos de Vieira do Minho!
Aproximei-me, ele virou a G3 para mim, de imediato, ameaçando e que não desse nem mais um passo.
Olhei-o bem nos olhos e perguntei-lhe se Vieira do Minho lhe dizia alguma coisa.
Ficou estático, de repente, o que interpretei como que uma certa abertura para uma iniciativa da minha parte.
Avancei, novamente, desviei a G3 e pedi-lhe que fizesse um esforço para me identificar.

Vitória, pois consegui tocar-lhe num braço e levá-lo uns metros para fora daquele círculo de malta, ao mesmo tempo que lhe dizia as palavras que me iam surgindo.
Largou a G3 e deu-me um abraço sentido, deixando-me aliviado, para espanto de todos os outros.
Tudo acalmou e pudemos iniciar as saudações.

No entanto, o meu capitão Assunção e Silva logo se me dirigiu e, de certa forma, depreciou o meu acto, dizendo que, além do risco que corri, era problema da outra companhia que só eles deveriam resolver.
Isto não me caiu bem, mas interpretei como que um gesto de protecção, mais pelo risco que ele dizia eu ter corrido.

A passagem do espólio militar, nomeadamente, das armas, era uma rotina e envolvia alguma tensão, cujo motivo entendi, mais tarde, quando a companhia rendida foi embora e nós constatámos que os acessórios das armas que tínhamos assinado como recebidos não correspondia ao número real.
Esta operação era feita com intervalos, para dar tempo a que um conjunto de acessórios desse para mais do que uma arma.
Enquanto se sugeria um intervalo, depois de se mostrar uma arma, alguém combinado pegaria no conjunto e colocava-a no local a seguir, como se pertencesse à nova arma.
As numerações gravadas passavam despercebidas, com um pouco de conversa.
O mesmo teríamos de fazer, quando fossemos nós a passar à outra companhia que nos viesse render.

Esta operação tinha mais impacto nas metralhadoras pesadas, a Breda m/938 e a Browning m/952, montadas na periferia do aquartelamento, junto ao arame farpado, embora também pudesse abranger os morteiros 60 e 81 e outro material, nomeadamente, acessórios e munições.
E os velhos Racal TR28, equipamento de transmissões, de origem sul-africana, usados pelos operadores, às costas, sempre que solicitados para participarem em operações, lá estavam sob vigilância apertada, dificultando qualquer ‘marosca’ na passagem para a outra companhia.
E as célebres pistolas Walther de 9mm requeriam uma especial atenção…

Isto acontecia com todos e cada companhia tinha de fazer um esforço redobrado na gestão do material de guerra, no sentido de garantir a mesma defesa com menos equipamento.
Desonesto, estúpido, inaceitável, claro, mas as realidades são diferentes da nossa vontade e necessidade.

Sem demora, escolhemos a tabanca que nos pareceu mais simpática, pela localização e possibilidade de melhoramento.
Dava para os três, o Artur Neves, o Carlos Amaral e eu.
Como ficava mesmo em frente ao que era designado como edifício do comando, acabou por gerar polémica e alvo de ataque cerrado por uma personagem que apareceu depois.

E, para animar a malta, cerca das seis da tarde, primeira flagelação, logo no primeiro dia - um aviso do inimigo!
Eu e o Neves, um dos furriéis do 3.º grupo, estávamos a tomar uma espécie de duche, dentro de uma casinha de madeira, junto a zona dos obuses da artilharia, em que a água possível jorrava de um bidão colocado em cima de umas estacas, que era enchido com uma lata de chouriço.
Típico do ‘periquito’, inocente, ingénuo, inconsciente, reage como se se tratasse de brincadeira, mas logo percebe que a coisa é a sério… Gadamael Porto era um aquartelamento que ainda resistia, mas tinha de cobrir uma zona onde tinham existido outros aquartelamentos e destacamentos que, pela força do avanço e pressão do inimigo, acabaram por ser desactivados, pois era difícil a sobrevivência.

O efectivo do aquartelamento completava-se com quatro pelotões distintos:
- um pelotão de cavalaria, comandado pelo alferes Gomes e furriéis Oliveira Soares, Martins Soares, Manso, Barreiros, Rio e Vitoriano, com duas viaturas blindadas Fox, velhinhas;
- um pelotão de artilharia, comandado pelo alferes Vasco Pires e furriéis Krus, Carvalheda e Oliveira, com três obuses;
- dois pelotões de milícia, muito importantes na progressão dentro da mata cerrada e picagem, utilizando a designada pica, uma espécie de pingalim em ferro, cabo de madeira, para ir picando o solo, no sentido da detecção de minas. Ainda me recordo de alguns nomes dos milícias: camisa conté, mamadú biai, abdulai baldé, samba camará, amadú bari, mamadu embaló,…

Falei em Carvalheda que suponho deve conhecer ou, pelo menos, de ouvir falar, ligado à rádio, o Armando Carvalheda.
"O Carvalheda, sim, o Carvalheda da rádio, não me recordo do nome da Rádio."
Da Antena 1, o Armando Carvalheda, que começou na Emissora Nacional, em 1972 ou 1973, já tínhamos regressado da Guiné, hoje, ainda na Antena 1.
Foi mobilizado, mais ou menos na mesma altura que eu, tendo ido parar a Gadamael Porto, para fazer parte do pelotão de artilharia.
Pouco tempo depois, pelo ‘trabalho’ desenvolvido pela mulher, em Lisboa, e por influência do João Paulo Dinis, também da Rádio, foi transferido para Bissau, para a Rádio, passando a fazer parte do PFA, programa das forças armadas, onde cumpriu a comissão, até finais de Outubro de 1972.
É assim, mais um exemplo de sorte, mas com o trabalho e forte empenho de alguém…

Por falar em Rádio, recordo uma curiosidade que ficou célebre, protagonizada por um operador dessa Rádio, um guineense formado pelos profissionais do continente que, quando iniciava o seu turno, nos discos pedidos, dizia:
‘E o PIFAS muda di ritimo! Pr’a Mamadu Jaló, qui firma no Catió, cançon Giani Morandi, non son dinho di bó!’

Os reconhecimentos e operações diárias tinham de manter-se, rigorosamente, e não podíamos deixar-nos cair na tentação de receios ou sentimentalismos, porque sabíamos da existência de comunidades indígenas, com mulheres e crianças, dentro dos espaços militares do PAIGC, aliás, como o nosso caso…
Isso não significava falta de responsabilidade ou de bom senso da nossa parte, mas estávamos ‘metidos’ naquilo, logo, sentido natural de defesa do nosso espaço e da nossa pele, o sentido humano espontâneo, mesmo que… desumano…
Também as armadilhas e minas tinham de ser montadas e instaladas, a par do levantamento das AP, minas antipessoal e AC, minas anticarro do inimigo, para posterior colocação nas supostas zonas de passagem do inimigo, junto à fronteira.
Foi montado um fornilho, pelo nosso pessoal de minas e armadilhas, com a supervisão do Carlos Amaral, um dos furriéis do terceiro grupo, na zona oriental do aquartelamento, no topo do arame farpado.
Era composto por um bidão de duzentos litros - dos que nos enviavam para abastecer as coitadas GMC - cheio de todo o tipo de desperdícios de metal e vidro, tnt e combustível, com uma ligação de fios eléctricos, do interior para o exterior, depois conectada a um detonador.

E os episódios foram surgindo, naturalmente, à medida das circunstâncias de cada momento de guerra, com mais ou menos consequências.
As flagelações, o meio mais utilizado pelo PAIGC, com o uso de diversos tipos de armas pesadas, obus, canhão sem recuo SPG82, os lança granadas RGP2 e RPG7, morteiro 120 perfurante, mísseis, algumas vezes, utilizando very-lights, para iluminação e melhor localização do aquartelamento, um designado ‘ataque aos arames’, chefiado pelo célebre Nino Vieira, mais flagelações, emboscadas, enfim, todo o conjunto de variantes cénicas daquele tipo de guerra, sabida subversiva e de informação.
O tal fornilho, infelizmente, não funcionou, quando foi accionado para fazer face ao designado ‘ataque aos arames’, a tal operação liderada pelo Nino Vieira.
Se tivesse funcionado, o resultado negativo para os guerrilheiros do PAIGC teria sido muitíssimo maior.

A Força Aérea representava uma boa ajuda, com os heli-canhão e os Fiat, em operações RVIS, voos de reconhecimento, mas tinha muita dificuldade de progressão, pois as antiaéreas do PAIGC, sem esquecermos os célebres mísseis terra-ar Strela (SAM7), fabrico soviético, estavam bem posicionadas, ao longo da fronteira, na nossa frente, e já tinham feito estragos, noutras ocasiões.

Para o Daniel ter uma ideia das múltiplas acções que entram nas probabilidades de ocorrência, apanhámos um infiltrado no lado da tabanca, onde tínhamos a pequena comunidade local sob nossa protecção, em cima de uma tabanca, ao anoitecer, a fazer sinais de luz com uma lanterna, bem na direcção da fronteira, uma das formas de facilitar a localização exacta do aquartelamento, no meio da mata.
Interrogado, concluiu-se ser um elemento guerrilheiro do PAIGC que se infiltrou na zona, vindo da fronteira em frente, cuja missão era aquela, apenas: marcar o ponto exacto do nosso aquartelamente, permitindo a regulação das armas já montadas ali perto de nós, para o ‘espectáculo’ que começaria, pouco depois.
Os guerrilheiros do PAIGC, supondo que o seu enviado tinha cumprido a missão e já estava retirado, em segurança, já tinham tudo preparado e estavam mais perto de nós do que poderíamos pensar, a prepararem mais uma operação que, caso conseguissem o resultado previsto, poderia ser o fim de Gadamael Porto, o fim de todos nós.
Ali ficou, deitado no chão, bem no centro do aquartelamento, como primeiro castigo, até tudo terminado…

Sim, porque o arraial começou pouco depois, durando umas horas, com as armas dos guerrilheiros do PAIGC bem reguladas, indicação da lanterna do infiltrado, prisioneiro…
Foi uma das noites horríveis de baixas e destruição, até termos ficado sem munições das armas pesadas, principalmente, ‘supositórios’ (munições dos obuses)!
Contra as expectativas dos guerrilheiros do PAIGC, que nem notaram que estávamos sem munições, a nossa sorte, os resultados não foram o suficiente para acabarem com Gadamael Porto.

No dia seguinte, a nosso pedido, chegaram dois hélis, um destinado ao prisioneiro, outro para os feridos, todos com destino a Bissau.
As ‘salgadeiras’ (urnas funerárias) vinham de batelão, a nosso pedido via rádio, depois de cada baixa declarada.
Depois de tudo tratado, as ‘salgadeiras’ eram enviadas, em batelão, para um outro aquartelamento perto, Cacine, como entreposto, antes de partirem para Bissau.

Depois, dois dias sem dormir e quase sem comer, para levantarmos o que era possível do aquartelamento.
Aqui, a vertente psicológica manda e vence!

Uma outra tarefa, bem desagradável, eram as colunas a Guilege, que fazíamos algumas vezes, para abastecimento de mantimentos, géneros alimentícios e material de guerra.
Os géneros que nos enviavam, acondicionados em redes, deixados cair dos hélis, ou trazidos de batelão, quando possível, eram repartidos com Guilege.
Era a única forma de Guilege os receber, o que justificava o sacrifício e riscos e nos motivava para tal operação.
Porquê? Porque Guilege não podia ser abastecido de outra forma, nomeadamente, de heli, pois estava um pouco mais a leste, ainda mais junto à fronteira, perto de Kandiafara, um posto militar do PAIGC, dentro da Guiné-Conacry, onde as antiaéreas estavam alerta, permanentemente.

Era um percurso de alguns quilómetros, por picada, com alguns homens a montar segurança, ao longo do percurso, mas de difícil progressão, pois os guerrilheiros do PAIGC andavam por ali, como rotina, e algumas vezes nos dificultaram a vida e nos causaram mossa…
Este percurso fazia parte do célebre ‘corredor da morte’, com início em Kandiafara, atravessando a fronteira, passando por Guilege e seguindo para Gadamael Porto.
Deste designado ‘corredor da morte’, também faziam parte Ganturé, Gadembel e Aldeia Formosa, compondo toda a zona de acesso às Matas Morés e Cantanhês, onde o PAIGC tinha estruturas fortes de protecção e tratamento dos feridos, uma espécie de hospital de campanha subterrâneo, e onde o acesso era quase impossível.

O PAIGC andava sempre em cima desta zona, pois tinham o objectivo de ir ganhando terreno, desde a fronteira, o que já tinham conseguido, de certa forma, e a prova estava nos nossos aquartelamentos e destacamentos desactivados ou abandonados, porque as nossas tropas já tinham atingido o limite da resistência, como Sangonhá, Gadamael Fronteira, Cacoca, Tombombofa, Ganturé, Gadembel.

Gadamael Porto tinha a missão de controlar e defender toda a zona, uma ZA (zona de acção) alargada, que requeria um esforço acrescido, originando um grande desgaste…
Um dos problemas da nossa posição e fragilidade, comum às outras zonas da Guiné, residia no facto de que tudo era perto, tudo se concentrava em área reduzida, os passos que se davam não permitiam a mais pequena distracção ou facilidade, uns metros de progressão poderiam terminar em tragédia, pela surpresa, claro.
Ouvi isto, ainda na metrópole, mas só o confirmei ali, quando comecei a viver essa realidade, sem poder voltar para trás.
Mesmo que pensasse na possibilidade desta alternativa, o pensamento nos homens que tínhamos preparado e ‘treinado’ sobrepunha-se a qualquer alternativa.

Não posso esquecer a criatividade e habilidade do Ferreira, o nosso furriel mecânico e sua equipa, na concepção de peças improvisadas para fazer funcionar as velhas GMC.
Uma das GMC tinha o equipamento mais ou menos completo, mais coisa, menos coisa, e servia de carrinho de choque para fazer andar as outras duas, que não tinham qualquer equipamento, acelerador, travão, embraiagem, limitando-se a uma velocidade engrenada.
Estas GMC eram usadas no transporte dos bens para abastecimento a Guilege, sem as quais não seria possível.
Depois de uns sacos de terra colocados em cima de algumas partes das viaturas, a única forma de reduzir o impacto provocado pelas minas anticarro, lá ia a coluna, na expectativa de missão cumprida, sem grandes estragos… A par dos episódios de guerra, as condições atmosféricas, bem agressivas, eram mais uma dificuldade a vencer e deixavam rasto de destruição, como nos aconteceu.
Trovoadas e chuvas monumentais, aumentavam as dificuldades dos terrenos que, já por si, eram bem ingratos.
Quando a coisa dava para o tornado, então, era esperar que alguma coisa ficasse de pé!

As duas pequenas viaturas blindadas do pelotão Fox ficaram reduzidas a uma só, pois a outra foi destruída por um disparo do canhão sem recuo dos guerrilheiros do PAIGC, aquando do ‘ataque aos arames’ de que lhe falei, de que resultaram baixas para as nossas tropas, mas muitas mais para os guerrilheiros do PAIGC.

Como tudo estava organizado/montado pelos guerrilheiros do PAIGC, mesmo ao cimo do aquartelamento, à saída do arame farpado, sem termos noção do que se tratava, muito menos, do efectivo e arsenal lá montado, foi decidido sair uma Fox, comandada pelo Oliveira Soares, e um pequeno efectivo da nossa companhia, escalado no momento, eu de um lado com dois ou três homens, e o Ponte, comandante do primeiro grupo, com mais dois ou três homens do outro lado, mas logo ‘levámos nos queixos’, uma morteirada de canhão sem recuo, sendo obrigados a parar e a optar por morteirada 60, o mais fácil de manusear, naquelas circunstâncias, já com o condutor morto e o Oliveira Soares ferido.

De noite, as coisas tornam-se ainda mais difíceis…
O resto, foi morteirada 60 e 81, acompanhados de batidas de obus, pois sabíamos que os ‘gajos’ tinham de recuar e retirar para a fronteira.
Na madrugada, constatámos o rasto de sangue bem marcado das baixas dos guerrilheiros do PAIGC, estendendo-se até à fronteira, e capturámos o material que deixaram, como vários carregadores de AK47, vários invólucros de canhão sem recuo, uma Tokarev 7,62 mm (origem soviética).
Ainda guardo fotos deste material, além de um invólucro de canhão sem recuo, fabrico chinês, que resolvi trazer, para fabricar um cinzeiro de pé.

Além disso, encontrámos um guerrilheiro morto, na mata, deixado pelos outros, talvez porque já não conseguiam levar mais mortos e feridos.
Era um chefe de grupo, pela forma como estava equipado, que calculámos ter cerca de dois metros, um pé de dimensões ‘anormais’ e uns roncos (anéis simbólicos) nas mãos.
Claro que ninguém deve mexer, pois fica armadilhado, uma prática corrente de qualquer dos lados.

Nós tínhamos conhecimento das baixas e destruições que causávamos ao PAIGC através da Rádio Libertação da República da Guiné-Conacry.
Era comum ouvirmos o Amílcar Cabral dirigir-se a nós, iniciando com as seguintes expressões:
‘Jovens colonialistas e assassinos de Gadamael Porto,…’

Uns dias menos ansiosos do que outros, uns dias menos atribulados do que outros, o que nos esperava durante os muitos meses que se seguiriam.
A população da Tabanca que tínhamos de proteger e que nos dava um certo apoio logístico, como era o caso das lavadeiras, envolvia algumas etnias como Fula, Tanda, Papel.
As nossas roupas eram lavadas um pouco à ‘porrada’ sobre as pedras carcomidas e agressivas da bolanha, naquela água salgada, resultando em botões partidos e alguns rasgões.
Mas isso nada nos importava, pois queríamos os camuflados lavados, sem aquela lama agarrada e a cheirar mal.

Só a população tinha direito a abrigos subterrâneos, que tínhamos de assegurar.

As entidades importantes da Tabanca eram o Padre, normalmente, muçulmano, o Régulo, ou chefe da Tabanca, e o Cipaio, o polícia da Tabanca.

Eu tive a sorte de ser bem recebido e acolhido na Tabanca, onde me refugiava, muitas vezes, ao anoitecer, participando em serões da família das minhas lavadeiras, a Cira e a prima Cadi, todos sentados no chão, à luz ténue e dissimulada de um pequeno bocado de madeira aceso, com grande esforço para entender o que diziam, pois os dialectos eram muitos, normalmente, cada etnia o seu dialecto - mas lá ia conseguindo, mais coisa, menos coisa.
O crioulo usado nesta zona era um idioma pobre, uma mistura de influências latina, francesa e inglesa, de outros tempos, mas os cabo-verdianos falam um crioulo mais rico, mais aperfeiçoado.
Mas, como tínhamos mais do que uma etnia, o próprio dialecto ou idioma não era igual em todas elas.

Na Guiné-Bissau, além do nosso português, fala-se o crioulo cabo-verdiano, o fulbe, o mandê e o mandinga, embora não usado em todas as etnias, dependendo das influências de vários povos, nas suas movimentações nómadas.
Cada homem grande, caso tivesse património, como galinhas, vacas, porcos, cabritos, pequenas parcelas de terra cultivadas, arroz (bianda), amendoim (mancarra), poderia ter mais do que uma mulher, regime poligâmico.
E não havia descriminação pela idade pois, apesar de velhos, tinham várias mulheres, algumas delas bajudas (raparigas).
Em determinadas zonas, embora eu nunca tenha sabido quais, também se praticava o regime poliândrico, pelo qual uma mulher pode ter vários homens, desde que reúna condições para tal.

Em Gadamael Porto, o património limitava-se a umas galinhas e umas pequenas parcelas de cultura de arroz e amendoim, quando as condições de segurança permitiam.
Cheguei a comer galinha cozinhada com frutos vermelhos da palmeira, tudo envolvido em bianda (arroz cozinhado).
E todos metíamos a mão dentro da meia abóbora seca, puxando e enrolando os bocados na mão, tipo almôndegas, que levávamos à boca.

Não esquecerei o rigor e disciplina impostos na Tabanca, controlados pelo Cipaio.
Por exemplo, uma cena que me deixou marcado, aconteceu com uma bajuda acabada de casar com um homem grande, mas os chamados casamentos forçados, negociados.
Na noite de núpcias, a consumação do casamento era feita na presença de uma mulher grande (mulher casada), com o objectivo de mostrar o pano sujo de sangue.
Depois da cerimónia, a bajuda, agora, mulher grande, resolve escapar-se para os lados da bolanha.
Apanhada pela população e pelo Cipaio, o castigo é brutal, começando com as chicotadas da praxe, continuando com outros castigos de que prefiro não falar…

Também não mais esquecerei a cultura da circuncisão, lá conhecida por fanado.
Tantos miúdos massacrados, cuja operação era feita com uma espécie de machadinha ou catana, em ferro, em cima de um improvisado pequeno cepo de madeira!
As infecções proliferavam e, alguns não resistiam!

"Ouvi falar e li alguns artigos sobre costumes e tradições de povos de diversos locais do planeta, alguns dos quais ainda parados no tempo, segundo a nossa cultura, claro.
Aquilo que o Adolfo acaba de me relatar, apesar do contexto, leva-me a pensar nas organizações humanitárias que angariam voluntários, com o objectivo de desenvolverem iniciativas, nomeadamente, na área da sensibilização e apoio alimentar, saúde, educação.
E nunca será demais, pelo contrário, sabemos que muitas e muitas acções continuarão na expectativa de resultados satisfatórios…"


Pois, mas algumas tradições estão presas a crenças religiosas, fora de tudo o que consideramos de bom senso ou racional, mas passaram séculos e sabe-se lá quantos mais passarão…

Não posso deixar de falar nas dúvidas, suspeições e reticências constantes com que tínhamos de conviver, uma vez que se tratava de uma guerra de informação, subversiva, em que tudo e todos os que nos rodeavam eram, supostamente, suspeitos.
Dizia-se, por exemplo, que o Padre era o maior ‘turra’ que tínhamos dentro daquela pequena comunidade, havendo alguns sinais disso, mesmo…
Por exemplo: sempre que tínhamos flagelações mais prolongadas e agressivas, o Padre nunca estava na Tabanca, tinha arranjado maneira de sair para Bissau, na véspera…

(Continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 1 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23833: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte IV - Guiné

sábado, 5 de dezembro de 2015

Guiné 63/74 - P15449: O PIFAS de saudosa memória (19): O Armando Carvalhêda no programa "Canções da Guerra", do Luís Marinho, na Antena Um: "O PIFAS, o Programa das Forças Armadas, era mais liberal do que a Emissora Nacional"...

  

A mascote do Programa [de Informação]  das Forças Armadas (PIFAS), da responsabilidade da Repartição de Assuntos Civis e Acção Psicológica. Autor desconhecido. 

Imagem, enviada pelo nosso camarada Miguel Pessoa, cor pilav ref (ten pilav, Bissalanca, BA 12, 1972/74). 



1. O Armando Carvalhêda é outro dos grandes senhores da rádio (*) que passou pelo Programa das Forças Armadas, o popular PIFAS, entre abril de 1972 e  setembro de  1973, conforme ele recorda em conversa com o Luís Marinho, no programa da Antena Um, Canções da Guerra.  O seu depoimento pode ser aqui ouvido, em ficheiro áudio de 4' 55''.

Segundo o Armando Carvalhêda, o PIFAS,  transmitido pela Emissora Oficial da Guiné, era "mais liberal" do que a estação oficial, transmitindo  canções de "autores malditos",  como José Mário Branco, Sérgio Godinho ou Zeca Afonso, que não faziam parte da "playlist" (como se diz agora) da Emissora Nacional, em Lisboa.

Armando Carvalhêda.
 Foto: cortesia do blogue Expressões Lusitanas
Eram os próprios radialistas, os locutores de serviço, jovens a cumprir o serviço militar e coaptados para a Rep Apsico, para o Serviço de Radiodifusão e Imprensa, que faziam "a pior das censuras", que era a autocensura...

O Armando dá um exemplo,  com o LP do José Mário Branco, "Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades" (que tinha sido editado em Paris, em 1971)... Havia um consenso tácito sobre algumas músicas que não deviam passar no PIFAS. Neste LP, era,  por exemplo,  o "Casa comigo, Marta!"...



Estava-se na época do vinil, o LP tinha seis faixas, de cada lado,... Intencionalmente ou não, ele uma vez deixou "cair" a agulha da cabeça do gira-disco na faixa do "Casa comigo, Marta" (cuja letra, "subversiva",  para a época, de crítica social corrosiva, se repoduz abaixo; recorde-se que o portuense José Mário Branco, compositor e músico,  era um conhecido opositor ao regime e à guerra colonial, estando exilado em Paris)... 

Ainda de acordo com o Armando Carvalhêda, o PIFAS era o produzido pela  Repartição de Assuntos Civis e Acção Psicológica, a APSICO, a 2ª Rep do Com-Chefe, na Amura, por onde passaram nomes ligados ao 25 de Abril como Ramalho Eanes  e Otelo Saraiva de Carvalho. [Em 1969/71, o Serviço de  Radiodifusão e Imprensa foi chefiado por Ramalho Eanes.]

Mais diz  o conhecido autor e realizador de rádio, que não havia "confronto direto" com a Rádio Libertação do PAIGC  (e, portanto, com a "Maria Turra", a locutora do IN, a Amélia Araújo), "embora a gente os ouvisse e eles a nós"...

O Armando Carvalhêda lembra-se com emoção das gravações áudio  que fez, por toda a Guiné,  por ocasião das gravação das mensagens de Natal e Ano Novo. Recorda-se, em particular,  do Natal de 1972: havia soldados emocionados que recebiam o pessoal do PIFAS com grande entusiasmo e carinho. Num aquartelamento, o comandante já tinha selecionado quem iria falar para a rádio.  Um dos soldados que ficara de fora da lista,   quis "meter uma cunha" ao Armando Carvalhêda, oferecendo-lhe o fio de ouro que trazia ao pescoço...

Também se lembra do programa de discos pedidos, que era feito pelo  "senhor primeiro" [, o 1º sargento Silvério Dias] e a "senhora tenente [, a esposa, Maria Eugénia Valente dos Santos Dias]. Em geral o que passava então, nesse programa de discos pedidos, eram as "canções românticas", em voga na época, com letras de fazer chorar as pedras da calçada… O PIFAS recebia centenas, milhares de cartas/aerogramas com pedidos para passarem canções...

Já aqui temos falado do Armando Carvalheda, de resto conhecido do nosso grã-tabanqueiro Hélder Sousa,  dos tempos de juventude. Não sei se ele nos acompanha, ao nosso blogue, de qualquer modo ele tem a "porta aberta", na Tabanca Grande, para partilhar, connosco, mais memórias do tempo de Guiné, em geral,  e do PIFAS, em particular. Alguém aqui escreveu que ele estava colocado em Gadamael quando foi requisitado para o PIFAS. Já trabalhava na rádio, na vida civil, antes de ir para a tropa. (LG)




Um poema de Natal enviado de Farim, dezembro de 1967,  pelo  2º srgt art  Silvério Dias,  da CART 1802, mais tarde radialista no PIFAS (de 1969 a 1974)... O aerograma (edição especial de Natal do MNF) era endereçado à D. Maria Eugénia Valente dos Santos Dias, que morava em Carnide, Lisboa. Já na altura era um "poeta de todos os dias", o nosso camarada e grã-tabanqueiro Silvério Dias, um jovem de 80 anos... [Vd. aqui o seu blogue].

Foto: © Silvério Dias (2014). Todos os direitos reservados [Edição: LG]

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Casa Comigo, Marta
Música e ntérpretação: José Mário Branco
Álbum: Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades (1971)

Chamava-se ela Marta,
Ele Doutor Dom Gaspar,
Ela pobre e gaiata,
Ele rico e tutelar,
Gaspar tinha por Marta uma paixão sem par
Mas Marta estava farta, mais que farta de o aturar.
- Casa comigo, Marta,
Que estou morto por casar.
- Casar contigo, não, maganão,
Não te metas comigo, deixa-me da mão.

- Casa comigo, Marta,
Tenho roupa a passajar,
Tenho talheres de prata
Que estão todos por lavar,
Tenho um faisão no forno e não sei cozinhar,
Camisas, camisolas, lenços, fatos por passar
Casa comigo, Marta,
Tenho roupa a passajar.
- Casar contigo, não, maganão
Não te metas comigo, deixa-me da mão

- Casa comigo, Marta,
Tenho acções e rendimentos,
Tenho uma cama larga
Num dos meus apartamentos,
Tenho ouro na Suíça e padrinhos aos centos,
Empresto e hipoteco e transacciono investimentos.
Casa comigo, Marta,
Tenho acções e rendimentos.
- Casar contigo, não, maganão,
Não te metas comigo deixa-me da mão.

- Casa comigo, Marta,
Tenho rédeas p´ra mandar,
Tenho gente que trata
De me fazer respeitar,
Tenho meios de sobra p´ra te nomear
Rainha dos pacóvios de aquém e além mar.
Casas comigo, Marta,
Que eu obrigo-te a casar
- Casar contigo, não, maganão,
Só me levas contigo dentro de um caixão.

A música pode ser aqui ouvida.
A letra foi aqui recolhida. [Fixação de texto por LG.]

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Notas do editor:

(*) VIVA A MÚSICA! - Música ao vivo cantada na nossa língua. Um programa de Armando Carvalhêda.

Desde 1996, a ANTENA 1 tem no ar o programa VIVA A MÚSICA!, único espaço regular no panorama áudio-visual nacional que apresenta semanalmente, durante uma hora música cantada na nossa língua, ao vivo e em directo.

O programa desenrola-se no Teatro da Luz, em frente ao Colégio Militar, em Lisboa, todas as Quinta-feiras, entre as 15h00 e as 16h00, e é produzido por Ana Sofia Carvalhêda e realizado e apresentado por Armando Carvalhêda.
Por aqui desfilaram já quase todas as grandes figuras da música cantada em português como são os exemplos de: Carlos do Carmo, Pedro Abrunhosa, Ala dos Namorados,..

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Guiné 63/74 - P13949: Manuscrito(s) (Luís Graça) (53): O Mundo é Pequeno e o Alentejo... é Grande: pois que viva o Cante, que já cá canta... e agora para todo o mundo!


1. "O cante do Alentejo já é património mundial: Portugal passa agora a ter três bens que fazem parte da herança imaterial da humanidade." (Público, 27 nov 214, 10h17)

A UNESCO, Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura, acaba de integrar o cante alentejano na lista do património imaterial da humanidade. Eram 10 e picos   em Lisboa!

Depois do fado e da dieta mediterrânica, classificados em 2011 e 2013, respectivamente. Portugal passa a ter o cante alentejano na Lista do Património Cultural Imaterial da Humanidade... Uma candidatura absolutamente irrepreensível, exemplar, que tinha dado entrada  formalmente  a 28 de março de 2013 no comité internacional da UNESCO. As expetativas eram muito altas, mas o nervoso também era miudinho...

2. A adoção provocou emoção em todos os que seguiram os trabalhos, em direto (em áudio, como eu), mas também no representante do Governo brasileiro que fazia parte do comité internacional (aliás, o único país lusófono presente)... Imagino a alegria dos membros do Grupo Coral e Etnográfico da Casa do Povo de Serpa que viajaram até Paris, bem como nos demais elementos ligados à candidatura.

"A partir deste momento, esta forma tão singular de cantar ligada às jornadas de trabalho e de convívio do Alentejo, não é apenas uma tradição do sul do país – é do mundo. O mesmo mundo que fica agora a saber que, em Portugal, há uma região que canta como os homens do Grupo Coral e Etnográfico da Casa do Povo de Serpa, que fizeram 1800 quilómetros para brindar os delegados da UNESCO em Paris com a moda Alentejo, Alentejo." (Fonte: Público)

O cante alentejano tem um sítio oficial, Casa do Cante, em Serpa, de que é diretor o antropólogo Paulo Lima, e coordenador da candidatura. Mas a festa faz-se, no Alentejo, em Portugal e em toda a diáspora lusitana onde haja portugueses, alentejanos ou não,  que cantam (e emocionam-se a cantar ou simplesmente a ouvir) o cante alentejano.

“É de salientar a importância destas duas candidaturas, a do fado e esta”, disse ao Público o cantor Vitorino, presente na sede da UNESCO, em Paris. “O fado é muito solitário e individual. O cante é uma expressão colectiva – ele implica entre 18 e 30 vozes. É inclusiva. É muito atenta ao movimento social.” O cantor, que tem inscrito o cante no seu trabalho musical, acredita que o reconhecimento do mesmo como património da humanidade “vai eternizá-lo”.

Parabéns à Antena 1 que acompanhou esta candidatura e ao nosso camarada da Guiné, antigo locutor do PFA, em Bissau, Armando Carvalhêda, um grande profissional da rádio, que realiza e apresenta esse excecional programa da Antena 1 que é "Viva a Música"  (no ar desde 1996), e que nos foi dando notícias desde Paris sobre o andamento dos trabalhos da UNESCO...

Que o Cante seja um crescente fator de coesão social, de solidariedade intergeracional e de identidade cultural para todos os que, dentro e fora do Alentejo, o praticam, são os meus votos. Um qucbra-costelas para os camaradas e amigos da Guiné que se reveem nesta manifestação cultural da nossa terra.  O Mundo é Pequeno e o Alentejo... é Grande!... Que viva o Cante! (LG)
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Nota do editor:

Último poste da série > 27 de novembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13948: Manuscrito(s) (Luís Graça) (52): O Mundo é Pequeno e o Alentejo... é Grande: pois que viva o Cante, Património Cultural Imaterial da Humanidade

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12467: Memórias da minha comissão em Fulacunda (Jorge Pinto, ex-alf mil, 3.ª CART/BART 6520/72, 1972/74) (Parte VII): Como é que a malta pssava os 'tempos livres'...


Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3ª CART / BART 6520/72 (1972/74) >  Capa do jornal de caserna, mensal,  "O Serrote", edição nº 1, 1973, editado pela 3ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74). Diretor: alf ml [Jorge] Pinto. 









Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3ª CART / BART 6520/72 (1972/74) > Jornal de caserna "O Serrote", mensal, edição nº 1, 1973, editado pela 3ª CART / BART 6520 (Fulacunda, 1972/74). Diretor: alf ml [Jorge] Pinto. Páginas do meio: 12/13. Total de páginas: 24.



Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3ª C/BART 6520/72 (1972/74) > Um jogo de bridge entre oficiais. Em 2º plano, do lado esquerdo, o alf mil Jorge Pinto.


Fotos (e legendas): © Jorge Pinto (2013). Todos os direitos reservados. [Edição; L.G.]



1. Mensagem do Jorge Pinto [ex-alf mil, 3.ª CART/BART 6520/72, Fulacunda, 1972/74) , com data de 14 do corrente,  em resposta a um comentário anterior do nosso editor [ " Toda a Guiné era concentracionária e claustrofóbica... Mas quem estava em Bambadinca, como eu, tinha - nas horas vagas, fora da intensa atividade operacional - a doce ilusão da liberdade de pôr viajar 30 km em estrada alcatroada, e ter em Bafatá um 'cheirinho' da civilização... O mesmo se pode dizer da malta que estava em Bafatá e em Lamego...E talvez em Mansoa e Teixeira Pinto... Ou não ? Bissau não conta, para nós não era mato"]...


Vejo que voltaste a caprichar, obrigado.  Enviei estas fotos (*) com o objectivo de revelar um aspecto do modo como se passava algum do tempo, naquele "ambiente concentracionário", como tu bem dizes. Contudo, por incrível que pareça, grande parte do nosso tempo era passado fora do arame farpado: patrulhamentos, emboscadas, operações, reabastecimentos, idas à lenha... Devo salientar que fora do arame farpado as deslocações eram sempre feitas, no mínimo, ao nível de bigrupo, mais uma ou duas secções de milícias.

Dentro do aquartelamento havia sempre assuntos que nos envolviam.  Muita leitura, lembro-me, por exemplo, da chegada do primeiro exemplar do jornal Expresso. Sebentas de Direito e de História também eram companheiras inseparáveis de alguns oficiais.

Ouvíamos a BBC,  de Jorge Letria. Da Argélia vinha a voz do Manuel Alegre e o pensamento de Piteira Santos [Rádio Voz da Liberdade]. O próprio PIFAS, e o amigo [Armando] Carvalheda nas rubricas radiofónicas também muito ajudaram tal como a "Maria Turra" [Rádio Libertação, emitindo de Conacri].. 

Muita conversa, sobretudo após ouvirmos a BBC. Claro que também havia conversas filosóficas, sobretudo com o régulo Malã, que após ter estado em Meca, S. Francisco da Califórnia, Macau, Lisboa, Londres e outras urbes europeias,  afirmava com grande veemência que Fulacunda é que era BOM. 

Muitos jogos, não só de futebol e voleibol mas também jogos de sala: longas noites de bridge (foto acima)), King, sueca, ramin, poker de dados, ping-pong...


Atividades culturais, como por exemplo a feitura de um jornal mensal, O Serrote (capa reproduzida acima ) aberto à colaboração de todos. Ali se escreveram:  (i)  piadas de caserna relacionadas com episódios rocambolescos da comunidade residente; (ii)  resumos de livros lidos por alguns; (iii)  poemas que fazem lembrar as medievais cantigas de amigo e amor; (iv) assuntos de atualidade interna (anexo) e externa; além de (v) anedotas, concursos de cultura geral, contos.

Como vês,  Luís, o tempo lá se ia passando. Cada dia era religiosamente riscado um a um nos calendários pendurados nas grossas paredes dos abrigos.

Bom fim de semana para toda família. Forte abraço.

Jorge Pinto [, foto da época, à esquerda]

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sexta-feira, 23 de março de 2012

Guiné 63/74 - P9645: O PIFAS, de saudosa memória (10): A mascote, um caso sério de popularidade (José Romão)... E até o 'Nino' Vieira ouvia o programa! (João Paulo Diniz)






A mascote do PIFAS... Afinal sempre tem pai(s): Segundo informação do João Paulo Dinis, o pai da "ideia" foi o Fur Mil Jorge Pinto, que trabalhava no Com-Chefe, ideia a que depois deu corpo um outro camarada, o José Avelino Almeida, cuja companhia estava em Mampatá e Aldeia Formosa...

Fotos: © José Romão (2012) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados



1. Mensagem enviada, a 21 do corrente, pelo nosso camarada José Romão (ex-Fur Mil At Inf, CCAÇ 3461/BCAÇ 3863, Teixeira Pinto, e CCAÇ 16, Bachile, 1971/73) [, foto atual, à direita]

Camarada Luís Graça:


Ai vão 3 fotografias da mascote do PIFAS (Programa das Forças Armadas, na Guiné).

Esta mascote veio comigo da Guiné no ano de 1972.

Um abraço

Travassos Romão

2. Comentário de L.G.:


Não há dúvida que a mascote do PIFAS (e o PIFAS, o programa de rádio das Forças Armadas, transmitido através do emissor de Nhacra, da Emissora Nacional de Radiodifusão) foi um caso sério de popularidade...

A rádio, e este programa em particular, no início dos anos 70, terá ajudado muitos camaradas nossos a lidar com a solidão e a saudade... Verdade ? Pelo menos, cerca de 2/3 dos respondentes à nossa última sondagem (n=116) conheciam e ouviam o PFA ou PIFAS: cerca de 39% ouviam-no "todos os quase todos os dias"; os restantes 27% só mais esporadicamente... Também a população civil ouvia o programa, de acordo com o testemunho do João Paulo Diniz...

Ao fim destes anos todos, há malta que guarda religiosamente o boneco, que trouxe da Guiné, como é o caso do José Romão ou do Augusto S. Santos... Até o nosso Carlos Vinhal tem um, lá em casa, embora sem os adereços (o microfone e o gravador), que desapareceram de tanto os sobrinhos terem brincado com ele...

Por outro lado, o nosso Hélder Sousa, que vive em Setúbal, já entrou em contacto com o Armando Carvalhêda, outro conhecido locutor do PIFAS no seu tempo de Bissau, em 1972, e que continua a estar ativo, aos microfones da Antena 1 [, tendo também fortes ligações a Setúbal e a Alcácer do Sal, or via das rádios locais...Espero que o Hélder consiga ter tempo para nos falar desse(s) encontro(s)]...

Do João Paulo Diniz já aqui temos falado bastante... Eu não o conheço pessoalmente mas já falámos várias vezes ao telefone. A última foi agora mesmo... Falámos também na 3ª feira passada, dia 20. Como é sabido, ele tem um programa de música, ao sábados, de madrugada, entre as 5h e as 7h, que se chama "Emoções". O programa é pregravado. No dia 20, como conforme combinado, falámos um bocadinho (cerca de 3 minutos) sobre o nosso blogue e o nosso encontro, que se vai realizar no dia 21 de abril, em Monte Real.

Se algum dos nossos leitores, estiver desperto ou com insónias, amanhã de manhã, por volta das 6h30, mais ou menos, poderá sintonizar o programa "Emoções"... A pequena entrevista comigo foi antecedida de uma das músicas que passava no PIFAS, "A namorada que eu sonhei", do Nilton César, uma das canções da época que que eram transmitidas ad nauseam nos programas de discos pedidos...

O João Paulo Dinis, que está inscrito no nosso VII Encontro Nacional, e que eu vou convidar para integrar a nossa Tabanca Grande (só preciso de uma foto dele do tempo de Bissau), tem-me dado uma série de esclarecimentos preciosos sobre o PFA/PIFAS:

(i) Ele era militar de engenharia, foi requisitado para o Com-chefe para trabalhar na rádio, por ser já "locutor profissional!"...

(ii) O PFA ou PIFAS já vinha dos anos sessenta, ele não sabe precisar o ano;

(iii) Na realidade, ele era o único locutor profissional do PFA, no seu tempo (meados de 1970/ meados de 1972);

(iv) Mas antes dele já lá tinham passado outros, como o falecido Raul Durão;

(v) Mas havia muito mais malta a trabalhar no programa... Lembra, com saudade, outra malta que fez o PFA, como o Sargento Silvério Dias e a sua esposa, Maria Eugénia, que era a tal "senhora tenente", de que muita malta se lembra...

(vi) O João Paulo gostava deste simpático casal de locutores e gostava de os ver se possível no nosso próximo encontro, em Monte Real; (ele tem o contacto telefónico do então sargento Silvério Dias, que deve ser hoje pessoa para setenta e tal anos);

(vii) O PIFAS tinham estúdios próprios em Bissau; o emissor era em Nhacra; os estúdios estavam localizados na avenida (?) dos bombeiros, enquanto a sede da emissora oficial era no (ou em frente ao) edifício dos CTT, na avenida da sé catedral (hoje Av Amílcar Cabral ?);

(viii) Havia uma vasta equipa, o sargento Silvério Dias, o furriel Garcez Costa, o furriel Jorge Pinto... O Carvalhêda virá mais tarde...

(ix) O programa, de 3 horas diárias, tinha o seguinte horário: 1º tempo: 12h-13h; 2º tempo: 18h30-19h30; 3º (e último) tempo: 23h-24h...

(x) O João Paulo Diniz é um grande contador de histórias, ou não fosse um homem da rádio... Entre outras, contou-me a seguinte: uma das vezes que foi à Guiné-Bissau, acompanhando, em serviço da Antena 1, uma visita governamental (creio que foi no tempo do Prof Cavaco Silva como 1º ministro...), encontrou-se com o 'Nino' Vieira... Quando ele soube que tinha feito serviço na rádio das FA, o ‘Nino’ entrou em confidências, muito ao seu jeito, de resto… Contou ao João Paulo Diniz que a malta do PAIGC costuma ouvir o PIFAS e que foi, com a contagem decrescente do locutor do PFA, numa passagem de novo ano, que eles um dia atacaram ou flagelaram um aquartelamento nosso… (Talvez Tite ou outro quartel mais a sul, ele já não pode precisar)…

(xi) A mascote do PIFAS, da autoria do Jorge Pinto (também conhecido por "Jorginho" e "Pifinhas", hoje com paradeiro desconhecido) e do José Avelino Almeida (, que também quer ir a Monte Reaal e que nos vai contactar), terá sido feita em Espanha... Era distribuída (gratuitamente) pela população e pelos militares... Ele, João Paulo, diz que infelizmente perdeu o "bonequinho" que trouxe de Bissau...

(xii) Mais histórias do PIFAS... ficam para Monte Real!!! ... Ou para o próximo poste: por exemplo, o emociante relato em direto - através da emissora oficial francesa - da vitória do Joaquim Agostinho numa das etapas da Volta à França (com a malta no estúdio a traduzir o francês para português)!... E outras "maluqueiras" que a equipa fazia: para o João Paulo Diniz foi uma experiência única e inesquecível, a sua passagem pelo PIFAS, aliás percebe-se pelo entusiasmo e vivacidade com que fala dessas memórias!

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Nota do editor:

Último poste da série > 15 de março de 2012 > Guiné 63/74 - P9607: O PIFAS, de saudosa memória (9): Dois terços dos respondentes da nossa sondagem conheciam o programa e ouviam-no, com maior ou menor regularidade...

quarta-feira, 7 de março de 2012

Guiné 63/74 - P9574: O PIFAS, de saudosa memória (7): Quando a malta do SPM dava música... e o Armando Carvalheda e o Carlos Fernandes eram locutores... (Hélder Sousa, Armando Pires, António Carvalho)

1. Comentários ao poste P9558


(i) Hélder Valério  


 Caros camaradas:


Sim, também me lembro do PFA  que, na gíria, era mais conhecido pelo PIFAS, conforme comentário anterior do Henrique Cerqueira. Mas, neste momento, a 'sintonia' está fraca, tenho que me esforçar mais para conseguir obter 'imagens radiofónicas' mais nítidas.


O Rodero refere o Vítor Raposeiro como fazendo parte de um grupo que andou tocando pelos aquartelamentos. Disso não tenho ideia, mas já enviei mail ao Raposeiro para me falar disso ou, então, enviar directamente ao Blogue.


Do que sei, e disso com toda a certeza (porque eu estava lá), é que o Vítor não chegou a integrar a Escuta. Esteve em vários locais nas suas funções relacionadas com o STM:  Bissau, Bambadinca, Aldeia Formosa, Bula (ou Buba?), etc. mas na Escuta, não.


Dum modo geral, nessa época, era vulgar encontrar nos elementos das Transmissões camaradas que tinham relação estreita com a música. Faz sentido: a musicalidade do morse podia ser mais facilmente apreendida por essas pessoas.


Assim, naquela época, na Guiné, estiveram o Vítor Barros, o Eduardo Pinto e o Dutra Figueiredo,  elementos integrantes de um conjunto de Viseu, Os Tubarões, que foi um dos que foi à final do Concurso Yé-Yé no Cinema Monumental, em Lisboa. 


O Vítor Raposeiro era também (e é porque ainda está no activo) um excelente guitarrista e tocava num conjunto com alguma projecção aqui em Setúbal, o mesmo sucedendo com o meu amigo e camarada Nelson Batalha. Também o J. Manuel Fanha, que tocava órgão, era dum grupo de Tomar, foi do meu curso e esteve comigo na Escuta mas que me lembre só animava as noites no Chez Toi...


Vou aguardar por eventuais notícias dos meus amigos para poder avançar. Até lá, um abraço.
Hélder S.
  
(ii) Armando Pires

Se os documentalistas da nossa Tabanca Grande procuram que possa escrever a história do PIFAS, também podem contactar o Armando Carvalhêda (*), locutor da RDP-Antena 1,  e o Carlos Fernandes,  também locutor da RDP,  mas já reformado mas que o Carvalheda pode contactar. 


Curiosamente, quando fui para a Guiné, em fevereiro de 69, levava comigo uma carta para entregar à direcção do PIFAS, visto que também era locutor de rádio. Por razões que não interessam para esta história, não entreguei a carta.


(iii) António Carvalho:


Caros Tabanqueiros: Já por estes lados falei do Fernando Eurico Sales Lopes, primeiro Fur Mil Trms da minha companhia. Ele trabalhou no PIFAS  entre julho de 72 e meados de 1974. Nunca mais o vi. Foi por aqui referido que está em Macau. Tentei contactá-lo mas sem sucesso.


Era e espero que ainda seja e esteja bem disposto. Se ele aceder a este blogue  aproveito para lhe mandar um grande abraço. (**)


Carvalho de Mampatá

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Notas do editor:

(*) Armando Carvalhêda [, foto à esquerda, cortesia do blogue Expressões Lusitanas]:

(...) "Música ao vivo cantada na nossa língua. Um programa de Armando Carvalhêda.Desde 1996, a ANTENA 1 tem no ar o programa VIVA A MÚSICA!, único espaço regular no panorama áudio-visual nacional que apresenta semanalmente, durante uma hora música cantada na nossa língua, ao vivo e em directo. O programa desenrola-se no Teatro da Luz, em frente ao Colégio Militar, em Lisboa, todas as Quinta-feiras, entre as 15h00 e as 16h00 [, com repetição aos Domingos às 14:07], e é produzido por Ana Sofia Carvalhêda e realizado e apresentado por Armando Carvalhêda. Por aqui desfilaram já quase todas as grandes figuras da música cantada em português como são os exemplos de: Carlos do Carmo, Pedro Abrunhosa, Ala dos Namorados, António Chainho, Vitorino, Jorge Palma, Mariza, Gal Costa, Tito Paris, Sérgio Godinho, Paulo Gonzo, Pedro Barroso, Camané, GNR, Rui Veloso, Paulo de Carvalho, Rio Grande e Delfins, entre muitas dezenas de outros. Endereço de email: viva.musica@rtp.pt  (...) (Fonte: RTP)




(**) Vd. último poste da série > 6 de março de 2012 > Guiné 63/74 - P9568: O PIFAS, de saudosa memória (6): Recebia, via Marconi, a chave do Totobola e transmitia-a depois ao camarada João Paulo Diniz, do PFA (Álvaro Vasconcelos, Centro Recetor do Agrupamento de Transmissões de Bissau, jun 71/jul 72)