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quinta-feira, 14 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25270: Memórias cruzadas: Referência ao António Lobato (1938-2024) em mensagem de 'Nino' Vieira para Aristides Pereira, em 1963 (voltariam a encontrar-se 36 anos depois, em Bissau)



António Lobato (1938-2024), maj pil av ref: no cativeiro (maio de 1963 / novembro de 1970) sempre recusou a liberdade em troca da denúncia, aos microfones da rádio, da guerra colonial. Mas em carta  à  mulher, datada de Kindia, 22/5/65, escreveu: (...) "Houve momentos de fraqueza em que quse me arrependi de ter recusado essa liberdade, hoje porém agradeço a  Deus o ter-me dado a força necessária para resistir" (pág. 125).


1. Releia-se a notável descrição do encontro do António Lobato com o já então  mítico  'Nino' Vieira, escassos dias a seguir à sua captura: vd. páginas de "Liberdade ou evasão:  o mais longo cativeiro de guerra", 1ª ed.  Amadora, Erasmos Editora, 1995, pp. 62/64).

(...) " Diz então, como quem se gaba dos poderes absolutos que detém, que poderia reenviar-me para Bissau ou que poderia até matar-me, mas que não irá fazê-lo pelo facto de há quinze dias atrás, ter recebido ordens de Amílcar Cabral, para fazer prisioneiros e dirigi-los a Conacri" (...) (pág. 63). (vd. no ponto 2 um excerto mais completo.)

'Nino' Vieira em mensagem posterior a Aristides Pereira, que a seguir se transcreve, faz referència a este encontro (no seu "quartel-general" em Darsalame):

(...) "Recebi a vossa carta com o  n/ camarada Seni, no qual tomei conhecimento de que o tal piloto  [António Lobato]  mudou da ideia que tinha quando  [se]  encontrava em n/ poder cá  dentro."... 

Segundo o tratamento arquivístico desta correspondència, pela Fundaçáo Mário Soares, isto queria dizer: "Recusa do piloto [António Lobato] de prestar uma declaração contra a guerra colonial"... 

É a única referència ao António Lobato que encontrámos até agora no Arquivo Amílcar Cabral. (*)

 Lemos no "Observador", num trabalho da jornalista Tânia Pereirinha,   que o Lobato e o 'Nino' voltariam a encontrar-se mais tarde, em Bissau, em 1999, trinta e seis depois:

(...) "Foi por isso mesmo que, em 1999, quando o então Presidente guineense Nino Vieira o convidou para almoçar, António Lobato não pensou duas vezes. Ao longo de um par de horas, conversaram e recordaram os tempos em que um tinha estado à guarda do outro. Dias depois, quando fez check-out do Hotel 24 de Setembro, a funcionar no local onde décadas antes tinha sido a messe dos oficiais portugueses em Bissau, o piloto descobriu que a sua estadia já tinha sido paga — nada menos do que pelo primeiro Presidente da República da Guiné Bissau.

“Depois, quando perdeu o mandato, fugiu da Guiné e veio para Portugal, os jornalistas perguntaram-lhe se tinha cá alguém conhecido e ele respondeu: ‘Tenho um amigo, o Lobato!’”, continua a recordar. “Isto não cabe na cabeça de ninguém, mas para ele eu era um amigo, um conhecido.” (...)



Camarada Aristides: 
Recebi a vossa carta com o  n/ cama-
rada Seni, no qual tomei conheci-
mento de que o tal piloto  [António Lobato] 
mudou da ideia que tinha
quando  [se]  encontrava em n/ poder cá 
dentro.

Junto segue com o Djaló
a camarada Ernestina [Titina]   Silá e
mais dois empregados, um da Casa
Gouveia e o outro da S.C. U.  [Sociedade Comercial Ultramarina].

Seguem mais três rapazes, que
devem apresentar os seus nomes,  [os] dos



seus pais, e mais 
 [h]abilitações que 
têm,  Todos eles têm [-se] dedicado muito 
bem no Partido. Um deles estva já
 [h] á 9 meses no mato juntamente 
connosco.

Como sabes,aqui encontra-
-se também nalús e sossos, mas
 [na sua maior] parte não têm instru-
ções necerssárias. 

Junto segue nomes de camaradas Jugaré Natchuta,
Quecife Nina, Sebastião Monteiro, 
Silvina Vaz da Costa, António
Araújo ou Insemba Juboté, Jaime
Nandia, filho da Jubana.



Agradeço fazer voltar Djaló ou o
seu companheiro [o]  mais depressa 
possível porque estamos com falta
de munições.

Tenho a participar do ataque 
feito a Calaque [na]  área de Cacine,
sob o comando do camarada 
Corona.  Um grupo dos nossos 
militantes teve um recontro 
com as forças portuguesas onde 
conseguiram  [a]bater 17 soldados e
um ferido. Esse recontro foi
no dia 13 às 19h30. Caíram





do nosso lado os camaradas Iembaná  [?] 
Fuam de Cassumba en Nhina;
Tunqué Nhaberama
e Tunga Naquedama que fica-
ram feridos.

Agradeço aumentarmos  [sic] mais materiais
para poder manter a nossa posição
defensiva em toda a área.

O que precisamos mais é de metra-
lhadoras ligeiras e pesadas. Mesmo
que mais 20, temos homens suficientes
para pegarem nelas. Do camarada
Marga  [nome de guerra de 'Nino' Vieira] .



 [Nomes propostos por 'Nino' Vieira, para;] 

Estado (sic) de segurança: Ingaré Natchuta,
Sebastião Monteiro,
Quecife Naina,

Bolsas de estudo:

Orlando Paulo Trindade,
António Tambó Nhanque,
Jaime Nandaim, filho de Iembaná  [?],
Ernestina [Titina]   Silá,
Gilda Silá,
Silvina Vaz da Costa,
Celestina Marques Vieira, minha irmã"] 

Cooperativas:

António Araújo ou Insemba Juboté,
Mamadu Camará,
Cristiano Vieira.




Agradeço mandar-nos oferecer 
capas e relógios e películas.

Marga

(Seleção, revisão / fixação de texto / negritos / parènteses retos: LG)

Fonte: Casa Comum | Instituição:Fundação Mário Soares | Pasta: 04613.065.057 | Assunto: Recusa do piloto [António Lobato] de prestar uma declaração contra a guerra colonial na Guiné. Participa que seguem com o camarada Djalo e Ernestina Silá, dois empregados da Casa Gouveia, um empregado da Sociedade Comercial Ultramarina e três rapazes. Nalús. Falta de munições. Comunica o ataque em Calaque (Cacine) sob o comando de Corona (Ansumane Sanha II). Segurança. Bolsas de estudo. | Remetente: Marga (Nino Vieira) | Destinatário: Aristides Pereira | Data: s.d. | Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Correspondência 1963-1964 (dos Responsáveis da Zona Sul e Leste) | .Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral | Tipo Documental: Correspondencia |

Citação (s.d.), Sem Título, Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_39139 (2024-3-14)



Guiné > s//l> s/d c. José Araújo e Nino Vieira, membros do Conselho Superior da Luta [José Araújo estava encarregue de acompanhar a delegação da UIE  c- dezembro de 1970 / janeiro de 1971].

Citação: Mikko Pyhälä (1970-1971), "José Araújo e Nino Vieira", Fundação Mário Soares / Mikko Pyhälä, Disponível HTTP: http://www.casacomum.org/cc/visualizador?pasta=11025.008.026 (2024-3-14) (com a devidfa vénia...)
   


2. Vale a pena reproduzir a descrição mais completa o Lobato faz deste encontro como 0 'Nino' (excertos das pp.  62/64, da 1ª edição,  com a devida vénia):

(...) Uma vez do  outro lado [do rio Cumbijã ?]  encetamos uma marcha de cerca de duas horas,  através de uma zona pantanosa, enterrados na lama até meia perna. Paramos numa área a que chamam Dar-es-Salam  [Darsalame] , onde se encontra o acampamento do comandante da guerrilha da zona Sul, Nino Vieira.

Sentado no tronco seco de uma árvore, o jovem chefe guerrilheiro, vestido de caqui verde escuro, pés nus e espartilhados por sandálias de plástico, braços ornamentados com grossos anéis de madeira e couro, um pedaço de couro pendurado ao pescoço com uma tira de cabedal, mais parece a estátua inerte de um deus negro expulso do Olimpo, do que o temível turra a quem todos obedecem, porque é “imune às balas do tuga”.

À minha chegada, o chefe levanta-se e olha-me de frente durante alguns instantes, sem pestanejar e  sente-se de novo. Só então a sua voz quase feminina se faz ouvir: “senta”, diz ele.

Embora esteja farto de saber o motivo por que ali me encontro, convidam a fazer o meu próprio relato dos acontecimentos. Quando termino pergunta-me o que pretendo ao que eu respondo, voltar para casa

Diz então, como quem se gaba dos poderes absolutos que detém, que poderia reenviar-me para Bissau ou que poderia até matar-me, mas que não irá fazê-lo pelo facto de há quinze dias atrás, ter recebido ordens de Amílcar Cabral, para fazer prisioneiros e dirigi-los a Conacri,

A seguir, questiona-me sobre a minha família e fica a saber que sou casado há seis meses e que a minha mulher está em Bissau. Tira, então, do bolso da camisa um pedaço de papel e uma esferográfica. Estende-mos e diz que se quiser posso escrever uma carta à minha mulher que ele garanta sua entrega.

Não acredito nas suas palavras, mas como não tenho nada a perder, escrevo meia dúzia de linhas e de devolvo lhe o papel que ele repõe cuidadosamente no bolso (sete  anos e meio mais tarde, venho a saber que a carta foi entregue à minha mulher em Bissau, por um guerrilheiro que aí se deslocou durante a noite).

Passo três dias no acampamento de Nino Vieira, sem que alguém se atreve a molestar-me ou mesmo dirigir-me palavras insultuosas, como aconteceu nos dias anteriores.

O próprio Chefe. apesar da sua frieza no trato, esforça-se por demonstrar uma certa amabilidade, embora a carapaça endurecida por um embrear diário com a morte,  frustre as suas intenções de cordialidade. Ambos reconhecemos que existe entre  uma espécie de comunicação primária que denuncia a existência de um respeito mútuo.

(…) Neste quartel-general (um acampamento idêntico ao da ilha do Como) há uma movimentação constante de grupos de guerrilheiros que vão e vêm. É impossível determinar os efetivos reais desta força, sempre em movimento.

Ao contrário das noites silenciosas dos outros acampamentos, por onde passei,  aqui, a atividade noturna parece ser mais intensa que a diurna. Dorme-se pouco, fala-se também a voz, não se veem fogueiras. O pouco que há para comer, aparece quente. (…)

(Seleção, revisão / fixação de texto / negritos e itálicos: LG)

segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25050: Notas de leitura (1656): Notas do diário de um franciscano no pós-Independência da Guiné-Bissau (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Julho de 2022:

Queridos amigos,
É um testemunho de um valor inquestionável, alguém que acompanha e anota acontecimentos entre 1973 e 1976, a chegada de um novo poder a Bissau, regista as mensagens de maior impacto, cedo se percebe que não houve uma negociação séria entre o novo poder e os portugueses, os hospitais ficam sem médicos e as escolas sem professores e livros. O Padre Macedo regista as primeiras tensões com os apologistas da laicidade e da completa intromissão na obra missionária, deu faísca, as missionárias de Bafatá são as primeiras a sair. O tempo encarregou-se de alisar as propostas fanáticas como as de Lilica Boal, os missionários, depois deste período turbulento regressaram e são altamente estimados, deve-se-lhes o crescimento do catolicismo na Guiné, que não passava de um dígito magro até à independência, hoje o clero é influente, dialogante com o islamismo, as suas escolas são altamente procuradas e o trabalho na área da saúde mantém-se sem rival. Espero que a Ordem Franciscana publique o essencial deste diário, dada a sua riqueza histórica.

Um abraço do
Mário



Notas do diário de um franciscano no pós-Independência da Guiné-Bissau (3)

Mário Beja Santos

Na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa chamaram-me à atenção para o número mais recente da revista Itinerarium, o n.º 227, referente ao semestre de janeiro a junho de 2020, a Itinerarium é a revista semestral de cultura publicada pelos franciscanos em Portugal. Ali aparece um artigo com páginas do diário de Frei Francisco de Macedo (1924-2006) que foi missionário na Guiné entre 1951 e 1997. O diário inclui os apontamentos do religioso sobre os primeiros anos da Independência, a matéria versada relaciona-se com a educação e as missões.

Estamos a 18 de outubro de 1974, escreve: “O ruído das pancadas é estranho! Depressa me ocorre a verdade do facto: estão a retirar as letras Honório Barreto do liceu. Pobre Honório… Até tu, que eras guinéu de têmpera e que nos dias de hoje terias sido outro Amílcar, foste considerado grande colonialista e por isso querem apagar o teu nome da memória dos homens!”

Cresce a tensão entre membros da direção do PAIGC e os missionários. Nessa mesma data, consta do seu diário: “O Sr. Prefeito Apostólico recebeu as Irmãos de Bafatá, que lhe falaram da visita da Dr. Lilica Boal à casa das Irmãs em Bafatá. É uma fanática do Partido. Disse às Irmãs que o internato teria de ser misto, o que pôs em sobressalto as pobres das Irmãs. À noite, o Sr. Prefeito recebeu notícia de que tinha sido convidado para ir ao aeroporto esperar os “Homens Grandes” do Partido, que deviam chegar ao aeroporto às 10h do dia 19. A notícia caiu bem e deu-nos ânimo.” E no dia seguinte relata a chegada de Luís Cabral, Aristides Pereira, Nino e Chico Té, houve saudação à chegada do presidente do município, Juvêncio Gomes. E regista a resposta de Aristides Pereira: “A luta continua. Cabo Verde não está livre e é preciso que connosco forme uma só nação.”

A 21, volta a anotar que a posição do novo Governo não é manifestamente favorável às missões. “Uma onda de tristeza e de derrota se apoderou de alguns de nós, ao termos conhecimento da orientação que o Partido está decidido a tomar em relação aos internatos das Irmãs. Não há chance alguma para as obras missionárias.” A 25, continua as suas considerações sobre a mesma matéria: “Pelos contactos havidos e observações feitas, se vai notando que a ação da Igreja vai ficar muito coartada pela nova orientação política. É um Governo declaradamente laico que quer tomar nas mãos toda a juventude para instruir segundo a doutrina do Partido.” Mas não deixa haver surpresas, pois nesse mesmo dia Mário Cabral preside a uma reunião com os responsáveis da Educação e professores onde anuncia que será o camarada Padre Macedo que vai ser o reitor do liceu.

Estamos agora a 28, já está decidido qual o nome para o liceu de Bissau: Liceu Nacional Kwame N’Krumah. A 1 de novembro, regista que o Internato de Bor vai ser dirigido por um elemento do Partido e escreve que o totalitarismo se está a implantar. “Frequentes vezes nos interrogamos sobre qual o melhor sistema de governo para os povos africanos. A democracia evidentemente só é possível em países onde haja respeito mútuo pelas ideias políticas e maneira de pensar de cada cidadão. Ora, isso não acontece em países africanos, onde predomina o regime patriarcal. Dizem que há muitos inimigos. Continuam em luta e tomam todas as precauções de defesa. Todas as residências dos dirigentes e responsáveis estão guardadas por militares.” Também nos dá a saber que partiram delegações da Guiné-Bissau para Lisboa, é o próprio Mário Cabral quem declara que a Guiné-Bissau necessita com urgência que os seus hospitais não fiquem sem médicos e que as escolas não parem por falta de professores e de livros escolares, apela-se à cooperação portuguesa.

Em 5 de novembro, é manifesto o seu desânimo, nunca escrevera a este nível de desfalecimento: “Desfazer, desmantelar, derrubar, demolir, arrasar, abater, destruir, destroçar, desconjuntar, desertificar, aluir todas as obras de valor cultural, assistencial ou socioeconómico, realizadas e mantidas pelos portugueses, parece ser a ideia principal de alguns responsáveis do Partido. O pensamento essencial é anular, desfigurar, dissipar, apagar da mente do povo todo o conceito de bem que possa haver a respeito do branco. O único remédio e médico para estas coisas é o tempo.” Estamos agora a 8 de novembro, iniciaram-se as aulas no liceu, sai-lhe um comentário muito pessimista: “Este estabelecimento de ensino está transformado numa fábrica de… futuros operários desempregados.” No dia 14 regista no diário que a Rádio Libertação tinha emitido naquele dia um ataque frontal aos padres: “Padres sobrealimentados… e o povo subalimentado. Queremos uma nação sem subalimentados e sem padres sobrealimentados.” É neste período que há uma troca de correspondência entre o Prefeito Apostólico e o Secretário-Geral do PAIGC, Aristides Pereira. Este procura ser habilidoso, escreve contidamente, apela a que os missionários se mantenham no seu posto, o seu trabalho é altamente meritório. Acontece que as Irmãs de Bafatá tinham recebido instruções para regressar a Portugal.

Estamos nas vésperas de Natal, a 22 de dezembro, Chico Té preside a um seminário para professores do ensino secundário, o seu apelo é provavelmente a produção, não deixa de afirmar que o Governo é laico, mas que respeita todas as crenças. A 27 de dezembro, há um seminário político em que o conferente foi o Dr. Vasco Cabral. Observou em determinada altura que a direção do Partido organizara a greve o Pidjiquiti, em 3 de agosto de 1959 (rotunda mentira, dirigentes máximos do PAIGC, como Luís Cabral, sempre tiveram cuidado a falar desta greve dos estivadores manjacos), o Partido tinha analisado o acontecimento e reconheceu que não podia adotar essa via dentro dos meios urbanos (o que efetivamente aconteceu foi que Amílcar Cabral foi o autor de tal observação, abrindo espaço para a organização da subversão e desvio para Conacri de militantes para sempre preparados para a luta armada, o que efetivamente aconteceu graças ao denodado trabalho de Rafael Barbosa).

O Padre Macedo ainda põe no seu diário a 30 de dezembro a referência uma conferência do Dr. Fidélis Cabral de Almada sobre a Justiça popular, e traça um quadro histórico:
“Os descobridores veem povos com leis, com costumes, com justiça, com tradições. Queriam eliminar tudo o que era costume, queriam suprimir todos os elementos de civilização. Era este o método de colonização. A regra do domínio de um povo sobre outro povo. Por isso, a noção de Justiça e de Direito foi também eliminada. O povo da Guiné foi considerado colónia de indigenato. De fazer justiça eram encarregados os chefes de posto e os administradores, gente com espírito mercenário que vieram apenas para enriquecer. Os comités de tabanca acatam os princípios em que o povo tem de mandar na sua cabeça. A eleição do comité de tabanca faz-se por eleição popular. Em 1969, o Partido chega à conclusão de que tudo está maduro para a criação da Justiça popular. Lançámos a ideia de juízes populares, eleitos pela maioria. Escrivães, professores primários, faziam parte dos tribunais populares. O nível de criminalidade diminuiu logo. Havia pena de morte por fuzilamento. A revitalização da nossa cultura nacional surge no campo jurídico.”

O diário do Padre Macedo termina em 12 de fevereiro de 1976. Espera-se que a Ordem Franciscana, perante a valia deste testemunho histórico, permita a sua publicação, contém matéria digna de reflexão para esse período em que tantas medidas foram tomadas e que o tempo se encarregou de esvaziar o conteúdo.
Missão das Irmãs Clarissas Franciscanas em Gabu, Guiné-Bissau
No sábado, dia 29 de dezembro de 2018, em Suzana, Dom Pedro Zilli teve a felicidade de viver a graça da ordenação sacerdotal do Pe. Jacinto Baliu Sibandió, o primeiro missionário da comunidade paroquial de Suzana para a Congregação dos Missionários do Santo Espírito

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Nota do editor

Post anterior de 1 DE JANEIRO DE 2024> Guiné 61/74 - P25027: Notas de leitura (1654): Notas do diário de um franciscano no pós-Independência da Guiné-Bissau (2) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 5 DE JANEIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25038: Notas de leitura (1655): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (6) (Mário Beja Santos)

terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24064: Notas de leitura (1555): Quem mandou matar Amílcar Cabral? (José Pedro Castanheira, jornalista, "Expresso", 22 de janeiro de 2023) - II ( e última) Parte - Uma acusação de peso, a de Aristides Pereira: "Para todos os efeitos, goste-se ou não, o Amílcar foi morto como cabo-verdiano" (que não era: nasceu em Bafatá, viveu 10 anos em Cabo Verde, numa vida curta de 49 anos...).


Capa da revista do Expresso, edição de 16 de Janeiro de 1993.

"A reportagem de José Pedro Castanheira publicada na Revista do Expresso em 16 de Janeiro de 1993 teve o mérito de reacender em bases de investigação proba e rigorosa a investigação histórica quanto às motivações e constituição do complô que levou ao assassínio de Amílcar Cabral" (*)

1. Segunda e última parte do artigo de José Pedro Castanheira (JPC), "Quem mandou mandar Amílcar Cabral?" (Semanário "Expresso", edição de 22 de janeiro de 2023, Revista, pp. E|32 - E|37), publicada trinta anos depois da reportagem de 1993 (vd. capa, acima, da Revista do Expresso, de 16 de janeiro desse ano). 


JPC, jornalista e escritor, de 70 anos de idade, dedicou perto de metade da sua vida a tentar  responder à pergunta sobre o "autor moral", o "mandante",  da morte de Amílcar Cabral (AC) e a respetiva teia de cumplicidades . Desde 1993, ele tem explorado quatro hipóteses de investigação, apontando para os presumíveis "mandantes" do crime: 

(i) uma ação do gen Spínola e dos seuseus íntimos colaboradores, na iminência de "perder a guerra":

(ii) uma operação especial da PIDE/DGS, além fronteiras (a semelhança do que acontecera, em 1965, com o gen Humberto Delgado, assassinado com a sua secretária depois de cair numa cilada, em Espanha; 

(iii) uma jogada maquiavélica e antecipada de Sékou Touré, um ditador que sonhava com a "Grande Guiné", e via no Amílcar Cabral um rival de estatura pan-africana;

(iv) o desfecho inevitável da crescente conflitualidade existente no interior do PAIGC, entre os combatentes (guineenses) e a "nomenclatura", dirigente (cabo-verdiana).

Na nota de leitura anterior (**) fizemos, resumidamente, o ponto da situação sobre  o que se sabia sobre uma  eventual participação da parte portuguesa: não há indícios, nem factuais nem documentais, que permitam incriminar quer o gen Spínola (na altura, governador-geral e comandante-chefe da Guiné) quer a polícia política do regime.

Na segunda parte do seu artigo, o JPC explora a informação que ele tem continuado a recolher  sobre o eventual envolvimento de Sékou Touré bem como dos grupos que, dentro do PAIGC, podiam ter razões para assassinar o  seu  líder. 

Sékou Touré tem, contra si, o facto de ter "[recebido] no palácio os assassinos de Cabral ainda o cadáver estava quente, após o que os enviou para a tenebrosa cadeia de Camp Boiro, onde foram interrogados e torturados por forma a alterarem o sentido do seu depoimento — como o testemunhou o cabo-verdiano Alcides Évora (Batcha), convocado para servir de intérprete da polícia de Conacri" (JPC, Revista, E|36).

Dos arquivos de Conacri, o silêncio é total.  O que não admira,  quando se sabe que Sékou Touré, heroi da luta anticolonialista, governou com mão de ferro o seu país, de 1958 até ao ano da sua morte, em 1984.

 JPC também não conseguiu entrevistar Leopoldo Senghor (que suspeitava do envolvimento de Sékou Touré na morte do AC), mesmo munido de uma carta pessoal do então presidente da República Portuguesa, Mário Soares,

Dos franceses (que tudo fizeram, ao que parece, para derrubar Sékou Touré, inimigo fidalgal da França, antiga potência  colonizadora) também não houve luz verde para consultar, como era previsível,   os arquivos  secretos das "secretas", o "Service de documentation extérieure et de contre-espionnage" (SDECE). Idem, por parte da Itália, do Vaticano, etc., com os seus arquivos fechados a sete chaves.

Dois diplomatas da antiga Jugoslávia estiveram nas exéquias do AC, em Conacri, tendo constatado (e relatado) "um largo descontentamento dos ativistas e combatentes do PAIGC" em relação ao seu secretário-geral e líder histórico. 

Agostinho Neto, membro da Comissão Internacional de Inquérito, revelou, por sua vez,  que foram ouvidos cerca de 500 membros do PAIGC, presentes em Conacri, e desses "só 20 se exprimiram abertamente por Cabral".  De resto, parece que toda a gente sabia da "morte anunciada" do AC, em Conacri, exceto os cabo-verdianos... 

Deve-se realçar que tanto as informações dos diplomatas jugoslavos como de Agostinho Neto são de fontes secundárias. JPC cita-os em segunda mão. 

Infelizmente, por outro lado, diz JPC, "dos interrogatórios efetuados pelas  três comissões de inquérito nada se sabe. Muitas das confissões foram  arrancadas sob tortura. As cassetes áudio e/ou as respetivas transcrições desapareceram". Estamos a falar de um total de 465 pessoas!...

E o que é que resultou do apuramento da verdade dos factos e dos implicados na conspiração que levou à morte de AC ?... Houve "43 acusões de participação no golpe, 9 de cumplicidade e 42 de suspeitos. Todos guineenses"...

Como Pilatos, Sékou Touré lavou as mãos  e entregou-os ao PAIGC para fazer um simulacro de julgamento revolucionário e passá-los a seguir pelas armas, "nas regiões libertadas", para lá da fronteira.   

Não se sabe ao certo quantos fuzilamentos é que houve. JPC aponta para um número que parece ser mais consensual entre as diversas fontes: uma centena, não havendo na lista nenhum cabo-verdiano

"Na minha investigação, investiguei 23 nomes, entre os quais o matador, Inocêncio Cani, e os alegados cabecilhas, Momu Touré e Aristides Barbosa", anteriormente libertados por Spínola do Tarrafal.

'Nino' Vieira, entrevistado por JPC em Bissau,  falou da "matança de muita gente". Mas ele sempre desmentiu as insinuações ou suspeitas do seu envolvimento, de que se começou a falar mais abertamente depois do seu golpe militar de 14 de novembro de 1980.  De qualquer modo, na Guiné-Bissau, ainda hoje, há um silêncio sepulcral sobre o caso da morte do AC, enquanto em Cabo Verde o assunto continua a suscitar viva discussão.

JPC tentou, também em vão, recolher depoimentos de membros da Comissão Internacional de Inquérito. Abordou o embaixador de Cuba, em Conacri, Óscar Oramas,  um dos primeiros a chegar ao local do crime: não só confirmou  as más, mesmo péssimas, relações entre Osvaldo Vieira e Amílcar Cabral, como apontou a sua presença na cena do crime, "escondido atrás daquelas árvores" (sic)... 

Mesmo munido de uma carta de Manuel Alegre, amigo do embaixador da Argélia, dos tempos da rádio de ARoel,   Messaudi Zitouni, JPC nunca conseguiu o depoimento deste... 

Também esteve duas vezes com Joaquim Chissano..."Disse-me que reservava o relato para as suas próprias memórias. Até agora só saiu o primeiro volume (...) que termina em 1963". 

Da extensa bibliografia que já se publicou sobre AC (muito mais do que sobre qualquer outro dos líderes nacionalistas  de países como Angola ou Moçambique), o JPC destaca o livro de Julião Soares Sousa ("Amílcar Cabral. Vida e Morte de um Revolucionário Africano", Veja, 2012). Na sua opinião ( e na opinião de outros especialistas), é "a melhor e mais completa biografia" do AC. (Resultou de um trabalho académico do autor, o seu doutoramento em história pela Universidade de Coimbra.)

No capítulo sobre o assassínio do AC, Julião Soares Sousa, que é guineense, diz  não haver "margem para dúvidas": (...) "foi obra de dissidentes do PAIGC, com uma grande probabilidade de ter sido também um grande complô em grande escala, que ultrapassa as fronteiras da Guiné-Conacri" (citado por JPC, Revista, E|37).

JPC cita ainda duas fontes, a seu ver, importantes: o livro-testamento de Aristides Pereira e a série da RTP, "A Guerra", realizada por Joaquim Furtado: o episódio nº 25. emitido em 2012, é inteiramente consagrado à morte de AC. Pedro Pires é um dos muitos entrevistados, e o seu depoimento deve ser tido em conta (mesmo que ele continue, ainda hoje, a manter a sua tese  do complô português). 

Aristides Pereira, sucessor de AC à frente do PAIGC,  entrevistado por José Vicente Lopes ("Minha Vida, Nossa História", Spleen, 2012), "fala sem filtros, com uma clareza e limpidez totais, acentuando de forma porventura definitiva a responsabilidade de um importantíssimo sector da ala guineense na elimição de Cabral" (JPC). Cite-se as suas palavras: 

"Para todos os efeitos, goste-se ou não, o Amílcar foi morto como cabo-verdiano" (e de facto, o não o era: nasceu em Bafatá,  viveu apenas 10 anos em Cabo Verde onde fez o liceu, o que é pouco mesmo numa vida curta de 49 anos...).

Chegados ao fim da leitura do artigo, alguns leitores dirão que a montanha pariu um rato... No meu caso (não li o livro de JPC, publicado em 1995), fico com as ideias mais arrumadas. O autor fez um trabalho de investigação jornalística, sério, intelectualmente honesto, com rigor e método. Não é um trabalho académico. Mas tem 4 hipóteses de investigação, todas elas verosímeis.  

As duas primeiras, envolvendo a parte portuguesa, perdem hoje força, por falta de provas. Não se trata de "limpar a honra" dos portugueses (os militares e a polícia política), mesmo que entre os cabecilhas do matador, Inocêncio Cani, estejam dois ex-tarrafalistas, Momu Touré e Aristides Brabosa. As hipóteses iii) e iv) ganham força, nesta e noutras investigações mais recentes como a do cabo-verdiano Daniel dos Santos ("Amílcar Cabral: um outro olhar", Lisboa, Chiado Editora, 2014).  

[ Condensação / negritos: LG]
_________

Notas do editor:

 (*) Vd. postes de 


29 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19146: Notas de leitura (1115): Quem mandou matar Amílcar Cabral, reportagem publicada no Expresso em 16 de Janeiro de 1993 (2) (Mário Beja Santos)

(**) Vd. poste de 7 de fevereiro de 2023 > Guiné 61/74 - P24044: Notas de leitura (1551): Quem mandou matar Amílcar Cabral? (José Pedro Castanheira, jornalista, "Expresso", 22 de janeiro de 2023) - Parte I - Talvez "o maior mistério da absurda e inútil guerra colonial"... (Luís Graça)

Último poste da série "Notas de leitura": 13 de fevereiro de 2023 > Guiné 61/74 - P24062: Notas de leitura (1554): Uma safra de leituras, sábado na Feira da Ladra, em tempos de pandemia (3) (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24031: Memórias de Luís Cabral (Bissau, 1931 - Torres Vedras, 2009): Factos & mitos - Parte I: Ainda não foi desta que o autor nos contou toda a verdade...

Capa do livro de memórias de Luís Cabral (Bissau, 1931 - Torres Vedras, 2009), "Crónica da  Libertação", Lisboa, "O Jornal", 1984, 464 pp. (Capa: de João Segurado segundo foto de Bruna Polimeni)


1. O nosso crítico literário, Mário Beja Santos, já aqui fez uma exaustiva e brilhante  recensão do livro do Luís Cabral (*), livro de memórias, talvez um pouco  esquecido,  do meio-irmão de Amílcar Cabral, escrito no seu exílio.

Recorde-se que Luís Cabral esteve  detido mais de um ano no Forte da Amura, em Bissau, logo a seguir ao golpe militar de 'Nino' Vieira, seu primeiro ministro, em 14 de novembro de 1980,  até ser liberto por pressões internacionais, acabando por seguir para Cuba e Cabo Verde e por fim para Portugal, em 1984, país onde viveu até à sua morte, em 2009, vítima de doença prolongada. (Ironicamente, um mês depois de 'Nino' Vieira.) (**). 

No prefácio do livro de 461 pp., com data de outubro de 1983, e escrito na Praia,  Cabo Verde, ele diz que nunca lhe tinha passado pela cabeça escrever um livro sobre a sua vida e a sua luta. Foi na solidão da Amura, que foi tentado a escrever. E fê-lo sobretudo em homenagem ao Amílcar e demais companheiros: 

(...) "Mais tarde, já em liberdade, alguns dos meus antigos companheiros dão o seu apoio e uma apreciação amiga a este primeiro trabalho sobre a vida e a luta com o Amílcar, e, fornecendo-me importantes precisões sobre factos descritos sem qualquer documentacão e encorajando-me a continuar a escrever as minhas lembranças sobre a heroica luta que conduziu os nossos povos à liberdade e independênci nacional" (pág. 9).

E no fim acressenta:

(...) Se é que tenho a uma pretensão, é a de considera que fiz o melhor do meu esforço para que tudo o que foi dito neste trabalho corresponda à verdade dos factos registados, embora com a consciência de, em muitos casos, não ter ainda chegado o momento de dizer toda a verdade" (pág. 11).

Não sei se o Luís Cabral chegou a ter a oportunidade, nomeadamente em entrevistas que foi dando, de "dizer toda a verdade" até ao momento da sua morte, em 2009, no antigo Hospital do Barro, nos arredores de Torres Vedras.  Ao que parece, estava nos seus planos escrever um segundo livro de memórias sobre a sua experiência como presidente da República da Guiné-Bissau. Teve 25 anos para o fazer, antes de morrer. Não chegou, infelizmente,  a escrevê-lo ou a publicá-lo. O que é pena.

Temos, todavia, que concordar que este seu primeiro (e único) livro é um documento importante para a historiografia da guerra colonial na Guiné, tanto mais que Luís Cabral era o nº 2 ou 3 do PAIGC, membro do "Bureau Político" e do "Conselho de Guerra", além de ter sido o primeiro presidente do conselho da República da Guiné-Bissau. Foi, além disso, íntimo confidente, grande admirador e fiel executante do pensamento e da estratégia  do irmão. Por outro lado, sabemos que os seus antigos companheiros, da cúpula do PAIGC,  já morreram todos ou quase todos, tendo levado para a cova os seus segredos, as suas melhores e piores memórias. Tirando Luís Cabral e Aristides Pereira, quem escreveu mais ? Ou dá a cara, falando em público, como é o caso do 'comandante' Pedro Pires ?!

Alguns antigos combatentes, membros da Tabanca Grande e/ou leitores do nosso blogue, nem sempre se sentem confortáveis quando falamos aqui do PAIGC, dos seus dirigentes, do seu pensamento e da sua história...como se o IN que combatemos, no TO da Guiné, não tivesse  um nome e protagonistas com um rosto... Como se tivéssemos combatida contra extra-terrestres!... Amílcar Cabral e Luis Cabral, por exemplo, estão na "lista negra"... Fazem parte dos ódios de estimação de alguns de nós... 

Mas se voltamos hoje a uma (re)leitura da "Crónica da Libertação" não é para santificar ou diabolizar ninguém, é apenas para melhorarmos e enriquecermos o conhecimento que temos daquele conflito em que estivemos envolvidos. E que não foi um conflito qualquer, Foi uma guerra prolongada e, em muitos casos, sangrenta e cruel. E, ainda mais do que isso, completamente estúpida e inútil.

Neste caso há "factos & mitos" que devemos pôr em evidência, numa linha que nos é cara, aqui, no blogue, que é a exploração das "memórias cruzadas", na continuação dos escritos de camaradas nossos como o Jorge Araújo, o Mário Dias, o António Rosinha ou o Patrício Ribeiro (estes dois últimos já como "paisanas", na República da Guiné-Bissau)...

Não vou cotejar o que diz (e muito menos o que omite, esquece, branqueia ou falsifica) Luís Cabral com o que os biógrafos de Amílcar Cabral  investigaram e escreveram. E são já  várias  as biografias do líder histórico do PAIGC.  Confesso que ainda não as li, conheço-as apenas das recensões que têm sido feitas, e nomeadamente pela mão do nosso camarada e colaborador permanente Mário Beja Santos. É preciso tempo e vagar para se ler, e a lista de prioridades de cada de um de nós é diferente. 

Da "Crónica da Libertação" vou, ao longo de vários postes, reter alguns pontos que me chamaram a atenção e que julgo ser também do interesse dos nossos leitores conhecer ou apurar melhor...  Por exemplo, a relação do PAIGC com os fotojornalistas e os cineastas, nomeadamente europeus, que ajudaram a alimentar o mito das "áreas libertadas", do "poder popular", dos "armazéns do povo",  das escolas e dos hospitais de campanha... 

Noutros casos, há perguntas que ficam no ar: teve ou não Luís Cabral um "copydesk" (editor literário) que o ajudou na feitura do seu livro ? Recordo-me de o saudoso Leopoldo Amado (vítima da pandemia de Covid-19, em 2021) me ter confidenciado, há uns largos anos atrás, na Feira do Livro de Lisboa, que a obra "O Meu Testemunho: Uma Luta, Um Partido, Dois Países", de Aristides Pereira  (Lisboa, Editorial Notícias, 2003, 974 pp.)  tinha sido em grande parte escrita por ele...

Não há nenhum mal nisso: muitos políticos e outras celebridades (nomeadamente do mundo do espetáculo) recorrem a jornalistas e escritores profissionais, como "copydesks", ajudando-os a publicar as suas memórias ou autobiografias...

Na ficha técnica do livro de Luís Cabral, editado em 1984 sob a chancela de "O Jornal", não há menção sequer de um revisor técnico e/ou de texto. Mas admitimos que tenha tido a ajuda de alguém na parte da escrita. No prefácio, o autor agradece, sem os citar, a "alguns dos seus antigos companheiros" que, além do apoio e estímulo, lhe forneceram "importantes precisões sobre factos descritos sem qualquer documentação".

O livro foi publicado em julho de 1984. O prefácio escrito em outubro de 1983. E a detenção na Amura decorreu, presumivelmentre,  entre novembro de 1980 e o  final do ano de 1981 (13 meses). Esteve depois exilado  em Cuba e a seguir em Cabo Verde, nos anos de 1982 e 1983. 

O "making of" do livro deve ser deste período, mas curiosamente as referências a Cuba e à participação dos "internacionalistas cubanos" na luta ao lado do PAIGC são escassas ou discretas... Fala de um ou outro médico, mas nem sequer nos dá um número (mesmo que aproximado) dos cubanos que participaram na "luta de libertação", desde 1966. Como se isso se tratasse de um "segredo de Estado"...

O autor é também avaro ou omisso quanto a outros números: população sob controlo do PAIGC, tabancas, escolas, hospitais, armazéns do povo, "barracas" ou "bases", homens armados (incluindo milícias), mortos e feridos, ajuda externa, etc. (Quanto a desertors portugueses, acolhidos pelo PAIGC, fala em 20, se não erro.)

Luís Cabral nunca foi um "operacional", ou um "combatente", de armas na mão... Nem devia ter qualquer formação militar específica... De resto, nunca foi tratado como um comandante, como 'Nino' Vieira, Domingos Ramos, Osvaldo Vieira ou Pedro Pires.  Pertencia ao aparelho político, ao "bureau"...  Mas tinha como pelouro, no interior do território da Guiné, a "reconstrução nacional das áreas libertadas" (sic). E, como Amílcar Cabral não tinha tempo para andar no mato, a caminhar, a pé, dias e dias, até à fronteira, o "mano" fazia as funções de "inspetor-geral"... dos combatentes e da população que os suportava... Em contrapartida, tinha boa memória para nomes, o Luís... 

De qualquer modo, é o homem de confiança do irmão para missões difíceis, nomeadamente na Região Norte e no Senegal (cujas autoridades só tardiamente abrem, ao PAIGC, o "semáf0ro verde" para o trânsito de homens armados, e de carregamentos  de armas e munições; e por essa razão o Luís passava mais tempo em Dacar, enquanto o Amílcar percorria as capelinhas a "ajuda internacional" e fazia o "marketing político" da sua "revolução africana").

A narrativa conserva um estilo de alguma oralidade, mas o autor raramente é traído pelo  crioulo guineense com que, supomos, se exprimia no dia-a-dia, para mais sendo casado com uma senegalesa, de origem cabo-verdiana, Lucette Andrade (ou uma filha de pais cabo-verdianos, da ilha de Santiago, a viver em Dacar), e lidando com muita gente de PAIGC de diferentes etnias. 

No final há um glossário, com 27 termos, para uso do leitor português (sem novidades para nós). O livro é ainda ilustrado com 3 dezenas de fotografias.

Numa primeira impressão, o livro tem algo de hagiográfico: o Luís Cabral viveu muito em função do irmão, que admirava acriticamente, pondo-o  no altar dos deuses ou semi-deuses (que para os gregos eram os heróis). E não é por acaso que as suas memórias acabam com as derradeiras recordações do Amílcar, no dia a seguir à sua morte em Conacri... 

Um dia depois, a 21 de janeiro de 1973, Luís chega a Dacar, e só então sabe da trágica notícia... É o último a saber, cruel ironia!... Senghor põe então um avião à disposição da delegação do PAIGC que se desloca a Conacri para as cerimónias fúnebres"...

Trata-se, mais do que um trajeto pessoal (o do guineense Luís Cabral, filho de pai cabo-verdiano e mãe portuguesa, antigo contabilista da Casa Gouveia, para onde entrou com uma cunha do irmão, conceituado engenheiro agrónomo): é, de facto, uma crónica da "luta de libertação",  mas ao mesmo tempo é também a crónica de uma morte anunciada,  parafraseando o título de um dos romances do colombiano Gabriel Garcia Márquez.  

Ao longo destas quatrocentas e tal páginas, que seguem um fio cronológico, embora sejam avaras em datas precisas, o autor não esconde que o seu irmão foi sendo alvo de várias tentativas de assassinato por parte de homens do seu partido... (A lista parece ser bem maior do que as referidas por Luís Cabral.) (***). A última, em 20 de janeiro de 1973, em Conacri, foi fatal. 

Mas o Luís é incapaz de perceber as razões e as motivações que estão por detrás desta tragédia: como é que um homem como o irmão, Amílcar,  tão amado e até idolatrado por tantos, podia ser também tão odiado por alguns, para mais estando dele tão próximos ?

(Continua)
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Notas do editor:

(*) Vd. postes de:


(...) É uma crónica em que quase se endeusa o líder máximo do PAIGC, tal a admiração de Luís pelo irmão. Do princípio ao fim destas memórias, Amílcar Cabral é o autor do pensamento que guia o movimento revolucionário, é o teórico indiscutível, é ele quem elabora os documentos fundamentais, quem tece a estratégia da guerra, quem representa com fulgor o PAIGC nos areópagos internacionais, está no centro da gestão dos conflitos com os países limítrofes, é o militante infatigável, a fonte de coragem que animou um movimento de libertação desde que se constituiu a partir de um simples conjunto de pequenos burgueses de Bissau até ao Exército que se confrontou e fez respeitar pelas Forças Armadas portuguesas. (...) 

(**) Vd. poste de 1 de junho de  2009 > Guiné 63/74 - P4447: PAIGC - Quem foi quem (7): Luís Cabral (1931/2009) (Virgínio Briote)

(***) Vd. poste de 22 de dezembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23905: Antologia (87): Apresentação do livro de Daniel dos Santos, "Amílcar Cabral: um outro olhar", pelo eng.º Armindo Ferreira, na Praia, em 5/9/2014

segunda-feira, 6 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23331: Notas de leitura (1453): “La fin de l’empire colonial portugais, Témoignages sur un dénouement tardif et tourmenté”, por Éric e Jeanne Makédonsky; L’Harmattan, 2018 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Setembro de 2019:

Queridos amigos,
Os autores são um casal de jornalistas franceses com um longo e afinal currículo. Recolheram entre 1980 e 1982 um acervo de depoimentos de figuras proeminentes na chamada luta de libertação, ouvindo portugueses, guineenses e cabo-verdianos. 

Atenda-se aos aspetos sensíveis do período em que se recolheram os depoimentos, dera-se a rutura irreversível na unidade Guiné/Cabo Verde, e por vezes alguns dos entrevistados não se escusaram a comentários de lamento e crítica. 

A obra, que podemos classificar como historiografia tardia, e onde as informações não trazem praticamente nada de novo no estado atual da arte, tem o mérito da estrutura, tem princípio, meio e fim, começa no quadro da descolonização, ouvindo sempre em sucessivas fases os diferentes protagonistas, até se chegar à independência. No final, menciona, já na atualidade, por onde param todos estes intervenientes, como se sabe, muitos deles falecidos.

Um abraço do
Mário



Assistiram à independência da Guiné, décadas depois publicam livro (1)

Beja Santos

“La fin de l’empire colonial portugais, Témoignages sur un dénouement tardif et tourmenté”, por Éric e Jeanne Makédonsky, L’Harmattan, 2018, é uma obra que forçosamente nos surpreende. Marido e mulher eram jornalistas que permaneceram longamente no continente africano. E abrem o seu livro explicando porquê, só agora, dão à estampa os testemunhos que recolheram décadas atrás. 

Entenderam os autores que a guerrilha guineense em poucos anos perdeu o furor e o entusiasmo com que eram vistos pelo movimento revolucionário à escala mundial. No entanto, não quiseram deixar de contribuir para que a investigação sobre os acontecimentos relacionados com a independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde perdesse a possibilidade de conhecer os testemunhos de inúmeras personalidades intervenientes, do lado guineense, cabo-verdiano e português.

Tratemos esta obra, pois, como um documento de estudo, se bem que, no essencial, possuímos já bibliografia esclarecedora sobre a maior parte dos pontos versados pelos autores. Logo o contexto internacional da descolonização. Reconheça-se, no entanto, que a obra oferece uma estrutura sequencial em que todos estes intervenientes fazem os seus comentários em todas as etapas da luta pela independência até às meditações que deixam sobre a rutura Guiné-Bissau/Cabo Verde. Na verdade, eles recolheram oralmente em Lisboa e em África, entre 1981 e 1982, todos estes testemunhos, daí eles estarem profundamente marcados pelo divórcio recente, alguns depoimentos não escondem amargura ou acinte.

Temos primeiro o despertar nacionalista. Aristides Pereira depõe sobre a sua infância em Cabo Verde e a sua vida na Guiné, a sua ligação à formação do PAIGC. Poderá ter sido lapso, ele não faz nenhuma referência a uma reunião que para alguns historiadores é bastante controversa, datada de 1956 e tratada como a data de fundação do PAIGC. 

O que ele realça é a reunião de 1959 e as decisões tomadas de haver uma direção do PAIGC no exílio e outra no interior da clandestinidade, a recrutar jovens para a luta armada e a criar um ambiente favorável à hostilidade colonialista. 

Depõem outros cabo-verdianos, como José Araújo, Silvino da Luz, Manuel dos Santos e Corsino Tolentino, contam como evoluiu a sua obsessão nacionalista e como chegaram até Conacri. Os guineenses Nino, Vasco Cabral, Fidelis Cabral d’Almada e Paulo Correia são os testemunhos guineenses, seguem-se os portugueses Carlos Fabião, Mário Tomé e outros. 

E estamos no início da guerra, Nino dá conta das suas atividades em 1962, ele e um punhado de combatentes tinham-se formado na China em 1961, Amílcar Cabral enviou-os para o Sul, para a subversão e para a desarticulação das vias de comunicação de toda a espécie. 

Carlos Fabião recorda os primeiros anos do conflito e não deixa de observar que o período de 1964-1966, em que o PAIGC dispunha de pouca artilharia, era considerado um dos piores períodos da guerra. Perdera-se o controlo do Morés, para lá chegar mobilizavam-se centenas de homens, podia-se chegar a uma das bases mas saía-se sempre debaixo de intenso tiroteio. Cedo se apercebeu que era totalmente inviável fechar o corredor de Guilege, a fronteira era muito porosa, as matas densas, as forças do PAIGC alteravam os percursos. O sistema de informações era, ao tempo, precário, demorou a identificação dos comandantes dos grupos e o conhecimento das principais bases. Ainda no testemunho do último governador da Guiné ele observa que Nino era já uma figura mitificada, vezes sem conta se tentou a sua detenção, era impossível.

Para Aristides Pereira, a “batalha de Conacri” foi duríssima, o regime de Sékou Touré vivia a psicose do complô, na capital proliferavam grupos que se diziam nacionalistas a favor da independência da Guiné Portuguesa e que atacavam constantemente Cabral. Havia pouquíssimas armas até que Hassan II, o rei de Marrocos, autorizou o envio de armamento, foi crucial para o período de 1963-1964, as populações, ao verem os guerrilheiros com bom armamento não hesitaram em tomar partido. Refere ainda que data de julho de 1963 um programa orientado para a intensificação da luta em Cabo Verde, mas os obstáculos foram inúmeros, a própria União Soviética considerava demencial a tentativa de introduzir a guerrilha em Cabo Verde.

Um pouco à maneira como se comporta a historiografia portuguesa, que não esconde o desconhecimento das fontes do período referente à governação de Schulz, Éric e Jeanne Makédonsky saltam para o período de Spínola e Carlos Fabião depõe sobre o novo estilo: as visitas diárias às instalações militares e mesmo ao teatro de operações, o oficial-general exigia melhores condições de vida para quem combatia no mato; a centralização na planificação das ações militares; a reformulação da informação e da contrainformação; a gradual africanização da guerra; a criação dos Congressos do Povo; o abandono de posições tidas por insustentáveis; um afinado sistema de escuta das comunicações do PAIGC; um modelo de desenvolvimento com a criação de infraestruturas, reordenamentos das populações, tudo sob a égide do slogan “uma Guiné melhor”. 

Era uma nova estratégia, o PAIGC iria ser desafiado de cima a baixo, acresce que a propaganda portuguesa iria acentuar uma questão sensível que Amílcar Cabral lateralizava com talento: a desconfiança e mesmo estados de ódio dos guineenses face aos cabo-verdianos, vistos durante séculos como os interlocutores mais duros da colonização. E foi usada uma pedra do xadrez que estarreceu o PAIGC: o presidente do Partido, Rafael Barbosa, foi liberto em 3 de agosto de 1969 e apelou ao povo guineense que apoiasse a política de Spínola.

Aristides Pereira também depõe sobre este período inicial de Spínola. O insucesso em travar os percursos de abastecimento no Sul; observa que o novo governador facilitava a vida aos comerciantes, os djilas, que circulavam por todo o território, entre amigos e inimigos, assim se instituía um sistema de informações que melhoraram a vida operacional dos portugueses.

 Põe em realce a libertação de Momo Touré e Aristides Barbosa, entre outros, que foram de novo juntar-se ao PAIGC, atribui-lhes faculdades que efetivamente estes dois homens não possuíam, o complô que levou ao assassinato de Cabral tinha seguramente cérebros efetivos. Mais adiante, será o próprio Aristides Pereira a dizer que preso pelos assassinos de Cabral ouviu na lancha que foi detida em Boké o nome de altas figuras guineenses que estariam com a responsabilidade na direção do complô, mas não invoca nomes. 

Noutros contextos, Aristides Pereira irá veladamente referir-se a Osvaldo Vieira e ao seu primo Nino Vieira. E refere detalhadamente a política externa do PAIGC, a sua indeclinável vontade de se manter neutral nos conflitos entre a URSS e a China, embora esta tenha mais tarde deixado de apoiar o PAIGC.

Pedro Pires, Silvino da Luz, Osvaldo Lopes da Silva e Corsino Tolentino irão depor sobre as suas atividades, nomeadamente a partir de 1969, as forças portuguesas tinham-se retirado de quartéis na fronteira no Sul, retirou-se de Gandembel, retirou-se de Béli e de Madina do Boé, como igualmente do Sul se saiu de Cachil, na ilha do Como. Na ótica destes combatentes cabo-verdianos, era cada vez maior o espaço que se usava como obsessivo clichê de “zonas libertadas”.

(continua)


Éric Makédonsky
Capa de outro livro de Éric Makédonsky, publicado em 1986
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Nota do editor

Último poste da série de 3 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23322: Notas de leitura (1452): Crónicas soviéticas , o segundo livro do antigo comandante do PAIGC Osvaldo Lopes da Silva (Rosa de Porcelana, 2021, 240 pp.)

segunda-feira, 1 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22679: Notas de leitura (1391): Cabo Verde, os bastidores da independência, por José Vicente Lopes; Spleen Edições, 3.ª edição, 2013 (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Novembro de 2018:

Queridos amigos,
Trata-se de uma investigação cuidadosíssima, logo na 1.ª edição foi acolhida pelos especialistas com rasgados encómios. David Brookshaw disse mesmo que se pode ler como um romance pós-moderno, é um cintilante percurso onde se fala da aurora dos nacionalismos, se perfilam protagonistas, se contextualizam no pós-II Guerra Mundial os pilares da autodeterminação que levam à organização da luta armada. 

Relato imparcial, como se poderá ver na descrição da participação dos cabo-verdianos nos teatros de guerra da Guiné, a forma como se apresentam as referidas identidades culturais e, compreensivelmente, a história do PAIGC em Cabo Verde até 1991, quando chega e se consagra a via pluripartidária. 

De leitura obrigatória para quem estuda a Guiné-Bissau e Cabo Verde.

Um abraço do
Mário



Cabo Verde, os bastidores da independência (3)

Beja Santos

Trata-se do primeiro livro do jornalista e investigador José Vicente Lopes, construído a partir de entrevistas com mais de cem personalidades cabo-verdianas, guineenses e portuguesas, cruzadas com fontes documentais e bibliográficas: “Cabo Verde, os bastidores da independência”, por José Vicente Lopes, Spleen Edições, 3.ª edição, 2013. 

Vai longa a pesquisa deste valioso documento onde a história oral tem um peso determinante. O autor percorreu as raízes da independência, apresentou protagonistas, deitou um olhar alargado às conjunturas internacionais, contextualizou os ideais do império português, iniciou-se a luta armada na Guiné, descreveu-se ao pormenor as tentativas de subversão nas ilhas e mesmo as tensões entre os cabo-verdianos e a liderança do PAIGC. 

Assim se chegou à independência da Guiné-Bissau e se preparou a independência de Cabo Verde. É neste ponto que o investigador pergunta, depois de saber que tudo foi facilitado ao PAIGC para dispor do monopólio do poder: poderia ter sido diferente?

O PAIGC arrogava-se ao papel de interlocutor privilegiado, a sua implantação nas ilhas era minoritária, cita mesmo um trabalho de Manuel Lucena em que este escreveu num relatório enviado a Melo Antunes que “a maior parte da população ficaria muito contente com uma autonomia menor do que a dos Açores…”

São opiniões que valem pelo que valem, vinte anos após a independência quadros cabo-verdianos do então PAIGC irão deplorar o facto de não se ter tratado bem uma real oposição ao PAIGC, que existia, designadamente a de Leitão da Graça e o seu grupo. O próprio Aristides Pereira admitiu excessos. Leitão da Graça, líder da UPICV, simpatizante da linha chinesa, reconhece que o contexto era favorável ao apoio soviético e dos países socialistas, Mao Tsé-tung estava em decadência e os chineses acabaram por se aliar ao imperialismo americano. 

O PAIGC tinha sido reconhecido tanto pela OUA como pela ONU como o único representante do povo de Cabo Verde, fazia a sua entrada triunfal nas ilhas. Carlos Reis, do PAIGC, tecerá o mesmo tipo de considerações, dizendo: 

“O partido único foi proclamado na rua, pela própria evolução dos acontecimentos. Vivia-se naquela altura um clima favorável ao partido único. A própria ONU escolhia representantes legítimos e únicos dos povos que lutavam pela sua independência”

José Vicente Lopes aborda seguidamente a questão do PAIGC e dos intelectuais. Havia uma figura consagrada, Baltazar Lopes, licenciado em Direito e Filologia Românica, passou a sua vida em Cabo Verde no ensino, foi reitor do Liceu Gil Eanes. Distinguiu-se por romances como o “Chiquinho” e pela criação da revista “Claridade”, fundada em 1936. Desconfiava do PAIGC, quadros importantes como Silvino da Luz e Osvaldo Lopes da Silva fizeram acusações bastante ásperas a determinados escritores, falava-se mesmo em atirar os intelectuais ao mar. Baltazar Lopes irá registar magoado o seu ressentimento com o tratamento que lhe deram. Muito se falará também de Onésimo Silveira e de Teixeira de Sousa, figuras que entrarão em rota de colisão com o PAIGC.

Segue-se a construção do Estado, Pedro Pires fica à frente do Governo onde constarão, entre outros, Abílio Duarte, Silvino da Luz, Carlos Reis, Osvaldo Lopes da Silva, Amaro da Luz, Sérgio Centeio, Manuel Faustino. E diz-nos o autor: 

“O Arquipélago ascendia à independência com uma população estimada em 280 mil habitantes, uma economia completamente arruinada, cabendo ao setor terciário – comércio, serviços públicos e privados – um predomínio absoluto, aparecendo o Estado como o principal empregador. A agricultura, essencialmente a de sequeiro, encontrava-se em profunda crise, face aos efeitos da seca que já se prolongavam há oito anos, mantendo 91% da população economicamente ativa sobre a sua dependência, na maioria dos casos através de brigadas de apoio social. A indústria resumia-se a três ou quatro padarias, uma fábrica de tabacos e duas unidades falidas de pesca”

Este primeiro Governo centrou as suas prioridades no combate ao desemprego, na procura de aquisição de meios de transportes marítimos, na construção de silos e armazéns; os investimentos foram para o desenvolvimento rural e a pesca, numa primeira linha e mais abaixo os transportes e as comunicações. Houve recursos externos que facilitaram muitas destas iniciativas. Mas havia divisões ideológicas, há que as ter em conta para perceber as linhas políticas do PAIGC até ao dia em que o multipartidarismo, depois da queda do Muro de Berlim, mudou o xadrez cabo-verdiano. 

José Vicente Lopes dá-nos um impressivo olhar sobre esta governação do PAIGC: a política de independência face às superpotências, como foi tratado o dossiê da África do Sul, como se tentou um modelo económico misto mas sob a supervisão do Estado, e passa em revista os múltiplos dossiês da governação. 

A oposição foi-se organizando, a UCID ganha expressão. E começam as contradições, a formação de grupos, a fragmentação ideológica, releva-se, pelo bom senso e prudência, a figura de Pedro Pires. O III Congresso do PAIGC realiza-se em Bissau, em novembro de 1977, avultam tensões entre maoístas, trotskistas e leninistas, Pedro Pires passa a ser muito questionado. Toda a problemática da identidade cultural cabo-verdiana é analisada nesta obra.

E assim chegamos à questão constitucional, que levantará muita celeuma nas ilhas e com forte ressonância em Bissau, dirão muitos analistas que será um dos motivos fundamentais para o golpe de Estado de 14 de novembro de 1980. O tema é abordado com profundidade, a páginas 600 do seu importantíssimo trabalho o autor analisa as diferenças entre Cabo Verde e a Guiné:

“Estudiosos das causas que conduziram à rutura entre os dois países situam-nas, geralmente, na discrepância das realidades que se foram construindo na Guiné e em Cabo Verde. Enquanto, no primeiro caso, havia uma hierarquia partidária e militar que era mais obedecida; no segundo, prevalecia, pelo menos inicialmente, uma massa crítica e uma liderança mais baseada na discussão dos problemas do que na obediência cega. 

A estrutura da sociedade cabo-verdiana – mais moderna, escolarizada e crítica, além de dependente do exterior –, contribuía para que o regime na Praia fosse menos pretoriano do que o seu congénere de Bissau. Em suma, para Pedro Pires, o 14 de novembro foi o desfecho de uma situação contraditória, ‘duas realidades que se foram desenvolvendo e que, em vez de se aproximarem, se afastaram. Teria de ser assim. Não havendo um 14 de novembro, talvez viesse a acontecer uma outra coisa. Sabíamos, entre nós, que havia qualquer coisa que não marchava bem’”

Tanto Aristides Pereira como Luís Cabral se referiam regularmente a desvios, práticas de corrupção, passividade e falta de rigor ideológico. E vão surgir acusações múltiplas: de Nino Vieira contra Luís Cabral, de Aristides Pereira contra Luís Cabral e Nino, de Vasco Cabral contra Luís Cabral, e muito mais. Os dois partidos separam-se, perdurarão as feridas, a reconciliação virá depois. E inicia-se um processo histórico que conduzirá ao multipartidarismo em Cabo Verde. 

A 13 de janeiro de 1991, realizar-se-ão no Arquipélago as primeiras eleições livres e pluralistas da sua história, ganhas pelo Movimento para a Democracia (MpD). No mês seguinte, António Mascarenhas Monteiro vencerá Aristides Pereira, tornando-se no primeiro Presidente da República eleito em eleições multipartidárias.

Obra singular, hoje de referência para entender o papel cabo-verdiano na formação, desenvolvimento, luta armada e independência de Guiné e Cabo Verde. A sigla da unidade foi o medicamento eficaz para a luta vitoriosa mas encerrava em si o peso de uma tormenta que se chama em História a longa duração dos acontecimentos que tanto os guineenses como os cabo-verdianos não ignoravam – dois países com identidades tão distintas jamais poderiam ficar associados.

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Nota do editor

Último poste da série de 25 DE OUTUBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22659: Notas de leitura (1390): Cabo Verde, os bastidores da independência, por José Vicente Lopes; Spleen Edições, 3.ª edição, 2013 (2) (Mário Beja Santos)