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quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23853: Historiografia da presença portuguesa em África (346): Aquele que terá sido o primeiro exercício etnográfico para toda a Guiné (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Março de 2022:

Queridos amigos,
Há que reconhecer o interesse deste questionário etnográfico proposto pelo capitão Velez Caroço ao governador da Guiné. Desconhecem-se as consequências, mas convém não esquecer que havia antecedentes quanto à obrigatoriedade de relatórios anuais emanados pela administração até Bolama, era um imperativo legal informar o governador sobre determinadas questões elementares de todas as regiões; Ricardo Sá Monteiro, o governador que antecedeu Sarmento Rodrigues procedeu em 1941 a uma reunião de administração em que formulou a exigência de se saber mais sobre os usos e costumes do indigenato. Mas não restam dúvidas que o capitão Velez Caroço se esmerou na procura de uma malha de inquérito que assegurasse um melhor conhecimento, de acordo com os conhecimentos etnográficos do seu tempo, muitos deles rapidamente ultrapassados, caso do conceito de raça.

Um abraço do
Mário



Aquele que terá sido o primeiro exercício etnográfico para toda a Guiné

Mário Beja Santos

Encontram-se pelos Reservados da Sociedade de Geografia de Lisboa diferentes relatórios enviados pelos chefes de posto e administradores de circunscrição para o governador da Guiné, logo nas primeiras décadas do século XX, tratava-se, aliás, de uma exigência legal, informar Bolama de tudo quanto se passava em qualquer dos lugares da colónia, havia mesmo preceitos para as informações ordem socioeconómica e cultural. Foi dentre deste vasto acervo que encontrei uma proposta de questionário etnográfico que saiu do punho do Diretor dos Serviços e Negócios Indígenas, Capitão Jorge Frederico Torres Velez Caroço, familiar do antigo governador. A data do documento dirigido ao Governador Carvalho Viegas corresponde à sua publicação no Boletim Oficial da Colónia, 14 de maio de 1934. Atenda-se à importância que tem a carta que o Capitão Velez Caroço envia ao governador:
“Os factos e as características observadas na vida do indígena e na sua maneira de ser, e na necessidade absoluta e urgente de procurar metódica e progressivamente aproximá-lo da nossa civilização, com a garantia indispensável dos seus direitos, é verdade, mas tendendo sempre para um melhor e mais completo aperfeiçoamento, determinaram a conveniência de criar para ele uma ordem jurídica adaptada à sua mentalidade primitiva, às suas faculdades psíquicas, aos seus sentimentos e que se harmonize, tanto quanto possível, com o respeito pelos seus usos e costumes, cuja transformação se deve efetuar lenta e gradualmente, evitando assim possíveis perturbações que têm tanto de inúteis como de prejudiciais”.

Começa-se a perceber o móbil desta incursão etnográfica que o oficial do exército apresenta: conhecer as gentes para as encaminhar para um quadro civilizacional superior, para tanto é indispensável conhecer a fundo as mentalidades e garantir direitos a quem ainda não está no patamar de “civilizado” ou “assimilado”. Velez Caroço faz notar a singularidade do mosaico étnico, havia que conhecer a fundo os usos e costumes de todos para que essa codificação melhorasse a ação administrativa, daí o imperativo de conhecer com minúcia a vida material do indígena, a sua constituição moral, as práticas religiosas, etc. E adianta uma informação:
“Já em 1928 uma ordem emanada do governo da colónia mandava elaborar o questionário etnográfico cuja finalidade se fixava, naturalmente na absoluta necessidade da existência de uma codificação de usos e costumes, sobre a qual deveria assentar a legislação especial reguladora dos estatutos sociais dos indígenas”. Foram poucas as respostas que chegaram, vieram dos administradores de Canchungo e Mansoa e sobre as etnias Manjaca, Brame e Balanta. Tudo insuficiente, daí ele poder dizer que a ordem jurídica existente é falha e a ordem jurídica inadequada, como observa: “No cível e comercial, a ação da justiça é, vagamente, encerrada no respeito pelos usos e costumes das raças jurisdicionadas, com a resultante de confusões e atropelos produzidos por critérios diferentes na forma de provocar a evolução, se por transformação lenta, se por imposição abrupta de sistemas que se aproximem da definição do estado social perfeito. Um e outro estatuto, o civil e o criminal, carecem da unificação de diretrizes sobre que assente a ação da justiça. Obtido, como é de esperar, o interesse e a dedicação das autoridades administrativas, e de outras individualidades que podem e devem trazer à resolução do problema o concurso dos seus conhecimentos, disporemos dos elementos precisos à confeção dos Códigos Indígenas especiais de administração e justiça, tão necessários a uma perfeita ação civilizadora”.

A proposta de questionário abarca três temas: raças, dos direitos, comércio e indústria. Nas raças, visa-se conhecer a sua origem e história, a que raças pertencem os indígenas que habitam a região, hipóteses prováveis sobre a sua origem, conhecer a raça mais antiga; atender aos sinais e características de cada raça ou tribo, saber se praticam tatuagens ou cicatrizações, a que regras obedece a tatuagem, se há tatuagens próprias para as crianças púberes; na dimensão antropológica pretendia-se apurar qual o tipo físico e a cor, a forma geral dos crânios, se o cabelo quando cresce forma mechas separadas ou ganham uniformidade; pretendia-se apurar a índole da população: se é ativa, industriosa, pacifica ou de caráter guerreiro, se têm aversão ao trabalho e como a manifestam; passando para o campo da justiça pretende-se saber mais sobre o exercício e principio de autoridade dos indígenas: quais são as autoridades indígenas estabelecidas pelos seus usos e costumes, se existe régulo, qual a sua autoridade e poder, que homenagens prestam aos régulos e chefes, como os saúdam, como saúdam os velhos; havendo emigrações constantes na colónia, impunha-se saber se a população se considerava definitivamente fixada à terra, se aspira à mobilização e havia que perguntar se quando abandonavam determinada região o que transportavam consigo; o questionário inflete agora para a família, a sua constituição: se são polígamos ou se casam apenas com uma mulher; quais as formalidades e cerimónias do nascimento, quem assiste as parturientes, direitos dos irmãos e parentes, direitos dos filhos de segunda mãe, se o divórcio é aceite entre os indígenas, em que condições; como se fazem os enterros, que tipo de cerimoniais; procurar conhecer se os indígenas costumam fazer disposições dos seus bens e direitos ainda em vida ou se as heranças e sucessões produzem o seu efeito apenas após o seu falecimento; na questão da habitação, o inquérito propõe apurar em que idade constrói o indígena a sua casa e passa a ter domicílio próprio, e como é apreciada a ausência de um indígena na sua terra e na sua casa; pretende-se igualmente apurar a prática do poder paternal e a legitimidade dos filhos, como é que esse poder é exercido, como se reconhece a legitimidade dos filhos, se os pais são inteiramente responsáveis pela alimentação dos filhos, e até se pretende saber até que idade são os indígenas considerados menores ou se há diferenças segundo os sexos.

Todas estas matérias acima assinaladas pertencem ao tronco que o Capitão Velez Caroço designa por raças, segue-se agora o que ele designa “dos direitos”, e aqui formulam-se múltiplas questões que abordamos sinteticamente: como encaram os indígenas o direito de existência e qual o sentido da propriedade, se se dedicam ou não à caça e à pesca, se gostam de ter animais domésticos e quais os animais selvagens que abundam na região, como também se pretende saber quais as principais plantas que ali existem.

Vejamos agora o último acervo de matérias, designados por “comércio e indústria”: qual a característica do comércio indígena, pretende-se saber quais as indústrias privativas da raça na região, se os indígenas se dedicam e preferem a vida do mar, se aprendem artes e ofícios; quanto à saúde e higiene, intenta-se saber quais as medicinas indígenas, se existem curandeiros entre os indígenas; passa-se depois para a religião e superstição, pretende-se apurar quais os cultos, os ritos e se existem mitologias; falando das diversões, pretende-se saber a que distrações se entregam os indígenas; quanto à habitação, quais as formas das velhotas e os materiais empregados na sua construção; e temos aqui o último pacote de questões sobre “literatura e moral”: que dialetos se falam na região, quais as principais regras gramaticais, se existem provérbios, canções ou contos.

Esta é a essência de proposta de questionário etnográfico que seria enviado para os administradores de circunscrição, porventura outras autoridades, talvez missionários, personalidades de reconhecido mérito, etc. Se aqui destacamos a essência do que se pretendia apurar, importa reter o conceito de missão civilizadora, a incontestável preocupação em saber o quadro das mentalidades das diferentes etnias para não tratar uniformemente aquilo que não é uniforme. Estamos na década de 1930, pensava-se que existiam raças, recordo que em 1947 andou pela Guiné o professor Mendes Corrêa a medir crânios, alturas, desvio dos olhos, tamanho das orelhas, à procura de prognatismos e dolicocefalias, são hoje questões absurdas. E recordo igualmente que se dá um salto com os reconhecimentos etnográficos na década seguinte, Teixeira da Mota irá elaborar com base noutras pautas de rigor científico um questionário sobre a habitação na Guiné, ainda hoje um documento de leitura obrigatória, visava-se uma dimensão etnográfica, mas também havia subentendido o cuidado de melhorar as infraestruturas nessas tabancas. Mas isso é outra história, já não cabe nos comentários a este documento de referência que foi o questionário etnográfico de Velez Caroço.

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Nota do editor

Último poste da série de 30 DE NOVEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23831: Historiografia da presença portuguesa em África (345): L’Affaire Gaté: o mirabolante desaparecimento de um avião, com guerra em chão Felupe (3) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23838: Antropologia (44): Armazenamento tradicional de produtos agrícolas: o "flu", o celeiro balanta (excertos de: Oliveira, Havik e Schiefer, 1996, com a devida vénia)


 Guiné > Região do Oio > Mansoa > BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71) > Destacamento de Bissá > c. 1970 > Celeiros para a bianda... O capelão, alferes graduado José Neves é o primeiro, de perfil, à direita... Encostado a um dos potes de barro (onde se guardava o arroz), está o alferes mil, comandante do destacamento, cujo nome ignoramos (deveria pertener à CCAÇ 2587 ou à CART 2411, dependendo da data em que a foto foi tirada, antes ou depois de 5/3/1970, altura em que a CCAÇ 2587 rendeu a CART 2411).


Guiné > Região do Oio > Mansoa > BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71) > Destacamento de Bissá > c. 1970 > Celeiro para a bianda... Em balanta, chama-se "flu"...


Fotos (e legendas): © José Torres Neves (2022). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]





Tipos de celeiros balantas. Cortesia de Oliveira, Havik e Schiefer (1996). Com a devida vénia


1. Excertos de  Oliveira, Olavo Borges de; Havik, Philip J.;  e Schiefer, Ulrich (1996) - Armazenamento tradicional na Guiné-Bissau. Produtos, sementes e celeiros utilizados pelas etnias na Guiné-Bissau: Fascículo 1, Beafada; Fascículo 2, Mandinga; Fascículo 3, Nalú; Fascículo 4, Balante; Fascículo 5, Fula deQuebo; Bissau, Lisboa, Münster, IFS 506p. ISSN 0939284X, pp. 415/417. (Disponível em http://hdl.handle.net/10071/1525 )


"Ful", o celeiro balanta

Nome Nativo

Ful

Nome crioulo

Bemba

Formato

Cilíndrico

Serventia

Reservatário de cereais

Capacidade

Variável

Tempo de construção

Uma semana

Época de construção

Véspera das colheitas


O TIPO DE CELEIRO

O “ful” ou "bemba" é um celeiro de formato cilíndrico, assemelhandose a um pote, cujo tamanho pode variar, conforme as necessidades de armazenamento. Os de maior tamanho podem atingir até dois metros de altura.

Este tipo de celeiro pode ter funções distintas, entre elas, armazenamento de produtos de consumo familiar (arroz, fundo, milho-preto,milho-cavalo, milho bacil e feijão, etc.), conservação de sementes, destinadas ao ano agrícola seguinte e, finalmente, armazenamento de cereais, arroz em particular, para fins rituais.

Os "ful" destinados ao armazenamento exclusivo de produtos de consumo, são normalmente os de tamanho maior, sendo os outros dois tipos de tamanho relativamente inferior.

Quanto ão lugar de instalação do "ful" na morança ("pang"), este pode variar. Às vezes, são instalados dentro da casa, ou na varanda, e muitas vezes no quintal. Por uma questão de segurança, podem mesmo ser instalados dentro do quarto de dormir do dono da morança. Isto passa-se, em especial, com os celeiros destinados ão armazenamento de produtos de consumo familiar.

AS TÉCNICAS DE CONSTRUÇÃO

Para a construção deste tipo de celeiro utilizam-se materiais locais e técnicas de construção simples.

A matéria-prima básica para a construção do "ful" é a lama e palhas secas de cereais. São utilizadas, com mais frequência, as palhas de arroz e fundo. Estas palhas são misturadas com a lama e apodrecendo, fazem com que a lama se torne ainda mais resistente.

Só depois desta lama preparada, é que iniciam a construção do celeiro "ful" A sua construção é feita, normalmente, junto do lugar onde vai ser instalado. Primeiramente, é construída a base do celeiro, com uma camada de palhas de.arroz coberta com lama. 

Depois de construída a base, inicia-se o levantamento das paredes por fases. Constroem-se camadas que se deixam secar, antes de se acrescentar nova camada, de modo a evitar a queda da estrutura, durante o período em que são trabalhadas. 

Depois de completa a construção das paredes, deixam-nas secar bem. No mato, colhem as cascas de uma árvore, chamada na língua de origem “rutch”. Estas são piladas e misturadas com água.

Com a. massa quase líquida que daí se obtêm, são polidas as paredes externas do "ful", tornando-o mais resistentes, e protegendo-o contra a entrada de insectos. No fim deste processo, deixam o "ful" secar novamente

Para que a base do mesmo possa ter uma protecção sólida, nunca o fincam em contacto direto com o solo. No local onde vai ficar instalado o celeiro, colocam uma camada de pedras que cobrem com palhas de arroz ou fundo e sobre a qual colocam o "ful"


A ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO


A iniciativa de construção do celeiro é da responsabilidade do dono da morança. A sua construção pode ser organizada individualmente, ou então de uma forma colectiva

Em geral, o chefe da morança procura a ajuda de familiares ou vizinhos. Embora seja uma actividade dos indivíduos de sexo masculino, a participação feminina não é excluída nesse processo. As mulheres podem dar o seu apoio, ajudando, por exemplo, a trazer água, lama e outrosmateriais.

O PROCESSO DE ARMAZENAMENTO

A entrada dos produtos nos celeiros "ful", efectua-se logo a seguir às colheitas.

Os cereais depois de preparados, são em seguida transportados pelas mulheres, directamente para a moranças, e armazenados dentro dos celeiros.

Para se evitarem gastos arbitrários dos produtos, é ao dono da morança quem cabe a responsabilidade de controlo da entrada e saída dos cereais nos celeiros. É o chefe da morança que mede a quantidade de produtos a ser entregue à sua esposa, para os gastos diários. 

Se tiver mais que uma esposa, o seu dever é entregar os produtos à sua primeira mulher e esta se encarregará da sua distribuição pelas outras. Normalmente, cada uma das mulheres tem, dentro da sua palhota, um celeiro de tamanho inferior, a que chamam "ftchelé" (pote), onde guarda os produtos destinados ao consumo exclusivo do seu fogão. 

Quando as várias esposas do chefe da morança se dão bem, podem ter um só "ftchelé"para toda a morança,mas isto acontece raras vezes.

AS PRINCIPAIS AMEAÇAS

Os factores que poderiam constituir perigo para os celeiros do tipo "ful"são: as águas da chuva, o fogo e os ratos

Dado que, as casas dos balantas são cobertas todos os anos, os efeitos nocivos da chuva são quase neutralizados.

OS RITOS TRADICIONAIS

Não é costume a realização de rituais específicos na altura da construção dos celeiros.

Os "ful"  destinados exclusivamente à conservação de produtos com fins rituais, são construídos aquando do nascimento de uma criança e esta atingir a idade de desmame (normalmente aos três anos de idade). Nessa altura, os pais são obrigados a instalar um "ful"  de pequenas dimensões dentro da casa, onde vão reservando uma quantidade determinada de arroz, destinado só para as cerimónias a realizar para a criança. Sempre que ela adoece, ou lhe acontecer qualquer coisa, que os pais não possam explicar, tiram deste "ful" um pouco de arroz. Com ele preparam comida, a que misturam óleo de palma e leite de vaca, e procedem a um ritual junto do "ful" da criança, onde pedem a sua salvação.

Existe. também,  um "ful" único para os rituais de toda a morança. Os produtos alí conservados são destinados às cerimónias, que têm a ver com a vida dos membros de toda a morança. Os cereais armazenados provêm de cada um dos agregados familiares, que fazem parte da morança. 

As cerimónias que fazem, na altura do início da época das chuvas e no inicio do ano agrícola, dizem respeito a todos os membros da morança e são organizadas pelo chefe máximo da morança. É na altura destas referidas cerimónias, que se pede ao Irã da morança bem-estar para todos os seus elementos, durante a época das chuvas, e boas colheitas.

(pp. 415/417)


[Seleção / Revisão e fixação de texto / Negritos: LG]

segunda-feira, 24 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23734: Notas de leitura (1510): "O Negro Sem Alma", romance de Fausto Duarte, 1935 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Março de 2020:

Queridos amigos,
Este romance de Fausto Duarte não é uma grande lança em África, mas tem atributos e méritos que importa reconhecer, no âmbito da literatura colonial guineense. Nos alvores da década de 1930 emerge na administração colonial guineense um funcionalismo preocupado com a missão civilizadora, aposta no desenvolvimento agrícola, é dado como certo e seguro que as potencialidades agrícolas da Guiné são inesgotáveis, é preciso introduzir maquinaria moderna e novas técnicas agrícolas. Fausto Duarte escolhe o Tombali para nos falar dos usos e costumes de Mandingas, Nalus e Balantas, o fanado, o contrato de casamento, a submissão ao Irã, o espírito a que se sujeitam a vida dos indígenas. Fausto Duarte caprichava por escrever de modo a que o leitor fosse frequentemente ao dicionário, um tanto como outro mestre das letras portugueses que muito o apreciava, Aquilino Ribeiro. Este romance tem algumas águas-fortes inesquecíveis e que um dia farão parte de uma antologia que recolha parágrafos indeléveis, irrefragáveis. Veja-se no texto que se segue como ele descreve o portentoso fenómeno do bagabaga.

Um abraço do
Mário


O Negro sem Alma, romance de Fausto Duarte (1)

Mário Beja Santos

Fausto Duarte (1903-1953), é uma das figuras mais representativas da literatura colonial guineense. Fausto Castilho Duarte era natural da Praia, Ilha de Santiago. Estudou em Lisboa, onde fez exame final do curso de Topografia, em 1928, foi logo trabalhar para a Guiné e nos dois anos seguintes participou na delimitação das fronteiras da Guiné. Em 1934, publicou "Auá", primeiro prémio da literatura colonial desse ano, reconheceram-lhe os seus dotes literários escritores como Aquilino Ribeiro e Vitorino Nemésio. Foi depois Secretário da Câmara Municipal de Bolama, de 1946 a 1953 participou ativamente na redação do Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, é desse período que se lhe deve a coordenação dos anuários da Guiné de 1946 e 1948, obras de leitura incontornável.

Indubitavelmente, este romance datado de 1935, não é a melhor obra literária de Fausto Duarte, a trama é débil e a arquitetura do romance revela tremendas insuficiências. Mas tem muitos trunfos a seu favor, Fausto Duarte tem aqui a sua grande oportunidade de revelar um inequívoco deslumbramento pela Guiné, a sua flora, os seus exotismos, expor a sua observação de forte pendor etnográfico, etnológico e antropológico. Algures, na região do Tombali, no Posto de Caianque (nome imaginário), Henrique de Castro, o seu chefe, é revelado na sua sensualidade latente, irá sentir forte atração por Amenienta, uma das filhas de Bubacar Djaló, um homem grande ficará felicíssimo por vender a sua bela filha por umas centenas de escudos e quatro vacas, mais uns panos e umas folhas de tabaco. Fausto Duarte tinha seguros conhecimentos da literatura naturalista, era literariamente rebuscado, mesmo quando respiga observações de contido erotismo, há algo de uma escrita à moda antiga, assim: “Uma outra mandinga atravessou o largo terreiro com o cesto à cabeça. O chefe de Posto observou detidamente os pormenores do seu talhe donairoso. As ancas ambravam sob o pano curto. Mas os olhos fixaram-se de preferência nos tornozelos. A grossura das pernas aumentando gradualmente espicaçou-lhe a curiosidade. Henrique de Castro tinha a paixão dos artelhos que, para ele, mais do que nenhuma outra parte do corpo falavam a linguagem eloquente de certos prazeres”. Henrique nunca mostrará a prumo a sua personalidade, a revelação de carateres é uma das pobrezas do romance. Mas as insinuações eróticas irrompem, mal contidas, a propósito deste homem sozinho de quem iremos saber muito pouco: “Estava quase nua. Ensartara nos quadris contas variegadas de vidro presas a uma faixa de pano que lhe cobria o sexo, protegendo a prega interglútea. Henrique afastou-se para observar mais à vontade. As pernas eram uma maravilha de perfeição. Todo o corpo, correto, de linhas esculturais, assentava sobre a graça dos pés onde nasciam tornozelos flexíveis, insinuantes na pureza da combinação de todos os músculos”. Fausto Duarte utiliza regularmente idiomas africanos, o Tombali ele descreve em predominantemente as etnias Mandinga, Balanta e Nalu. Aparece um menino de nome Salu que em breve irá fazer o fanado e nele morrerá, o autor fará discretamente uma crítica a estas tradições brutais. A religiosidade perpassa por toda a obra, mesmo a mescla do islamismo com o animismo, mas acima de tudo é o poder do espírito do Irã e a resignação ou submissão do africano que mais se destaca.

Vamos sendo informados do espírito administrativo da época, é o caso dos arrolamentos feitos pelo chefe de Posto, transmitidos à autoridade seguinte, o administrador de circunscrição. Somos igualmente informados da atividade dos comerciantes do mato. Jacinto, um cabo-verdiano, desabafa com o chefe do Posto:
“Já lá vão os bons tempos em que os indígenas tinham dinheiro porque o amendoim, o coconote, a goma e a borracha eram bem pagos. Chegavam às lojas com grandes cestas, entregavam o produto e escolhiam os panos, pediam tabaco e bons terçados. O comércio fazia-se por escambo. Balanças? Para quê? Dizíamos um peso qualquer e eles não discutiam. Depois os tempos mudaram. Mais tarde, quando traziam os produtos vinham acompanhados dos doutores.
- Doutores? Interrogou Henrique, surpreendido.
- Sim, afirmou Jacinto. Doutores são os rapazes que viveram na cidade, falam o crioulo de Cabo Verde, conhecem as balanças e os pesos, discutem connosco e acompanhavam os indígenas que traziam mercadorias. E, hoje, sr. Henrique, dispensaram os tais doutores pois aprenderam também a negociar sozinhos”
.

Esta observação de Fausto Duarte é da maior utilidade, revela a chegada de intermediários que estarão em ligação com os grandes exportadores, tipo Casa Gouveia.

Henrique procura desesperadamente saciar os seus apetites sexuais, tudo acaba em fracasso. E então Fausto Duarte esboça um quadro da vida africana ao alvorecer, fala-nos na neblina húmida, nas chuvas torrenciais, na água que invade as bolanhas, na trovoada que provoca espanto e pavor, nas onças, no bramido do vento, a vida quotidiana dos indígenas, nos seus cultivos. Henrique é apresentado como homem do seu tempo, tem uma certa missão civilizadora, cabe-lhe criar condições para que haja desenvolvimento agrícola, no final do romance vamos encontrá-lo a montar uma charrua que mandara vir de Lisboa. “Dedicara-se de corpo e alma à ideia de bem servir agenciando meios para melhorar as condições de vida dos indígenas. A teimosia dos Nalus e a indolência dos Mandingas não lhe embotavam o fio da imaginação sempre pronta a tornar o Posto de Caianque o modelo de organização administrativa. Orientava pessoalmente os trabalhos de campo, adestrava o gado, e com a palavra fácil e bons exemplos insinuava-se no ânimo dos negros que o adoravam”. Mas a selvajaria também campeia, Jacinto entregará a Henrique uma mão decepada, ele diz ser de um balanta que procurara assaltar a loja, e vai apostrofando a ladroagem dos Balantas.

Segue-se uma descrição da natureza do Tombali, é uma linguagem pictórica, ardente, admirativa: a vegetação arbórea espontânea, as matas impenetráveis, ao alto as aves, na mata os animais lutam, a onça devora a gazela, os símios acrobáticos saltam de arvoredo em arvoredo, as cobras devoram as aves incautas. Fausto Duarte dá-nos um belo retrato da bagabaga:
“Espalhadas aqui e ali erguem-se pequenas pirâmides de terra avermelhada: são as termiteiras, construções indestrutíveis de insetos que só trabalham na sombra. Levantam muralhas consolidadas pela saliva, que tudo aglutina, para se defenderem dos ardis que povoam o mato. Os obreiros fogem da luz que entra com suavidade pelos alvéolos, mas lá dentro, no mistério tumular, envolto por uma escuridão duradoura, há labirintos engenhosamente fabricados, dédalos que vão ter à câmara inviolável da rainha.
A termiteira lembra uma pirâmide egípcia em miniatura. Uma é habitação de vivos, outra jazigo de mortos, mas ambas são fantasias da arquitetura ciclópica; ambas objetivam encarcerar a sombra e fazer dela o manto de um rei cujo corpo mumificado zomba dos séculos, ou de uma rainha – inseto extravagante – que governa com despotismo, porque perpetua a espécie, porque o seu abdómen é um constante viveiro; ambas são orgias de pedra trabalhadas por gerações inteiras, tumuli prodigiosos que aguçam a curiosidade”
.

(continua)

Catió, capital do Tombali, em data recente
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Nota do editor

Último poste da série de 21 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23726: Notas de leitura (1509): "Para Além do Amor", por Nelson Cerveira, edição do autor com apoios de autarquias e instituições da Anadia; 2022 (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23654: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (97): os geradores militares: contributos para a história da eletricidade no território (Manfred Stoppok / José Nunes / Eduardo Estrela / Fernando Gouveia / António J. Pereira da Costa / Carlos Silva / Cherno Baldé / José Colaço / Magalhães Ribeiro / Valdemar Queiroz / Manuel Gonçalves / Luís Graça)


Guiné > Região do Oio > Porto Gole > Março / Abril de 1968 > CART 1661 > Trabalhos de electrificação do aquartelamento a cargo de uma equipa do BENG 447, onde se integra o José Nunes, autor desta imagem... (José Silvério Correia Nunes, ex-1º Cabo Mecânico de Eletricidade,  BENG 447m Brá, 1968/70: esteve na Central Elétrica do Quartel General, em Bissau).

Foto (e legenda): José Nunes (2009).  Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. Comentários ao poste P23647 (*): 

(i) Manfred Stoppok, antropólogo social,  Universidade de Bayreuth, Alemanha

Muito obrigado pelos vossos valiosos comentários! Posso partilhar aqui algumas informações sobre a evolução do sistema de eletricidade na Guiné:

Distribuição e iluminação publica em Bolama e Bissau a partir de 1930; em Bafatá a partir de 1933. Nos anos 1920 já tinha iluminação de alguns prédios em Bubaque, e provavelmente também em Bolama, mas não foi uma distribuição publica.

Em outros lugares somente depois da segunda guerra mundial, respetivamente a partir de 1947 foram instalados geradores em vários sítios (cerca 20 lugares).

O fornecimento de energia elétrica 24/7 somente realizou se em Bissau. Existiam planos para criar uma rede de distribuição em alta tensão mesmo para o interior – mas não foram realizados. A administração optou pelo sistema de pequenos geradores em todos lugares, porque no curto prazo foi o mais viável, o mais barato, o mais rápido. Mesmo que, já naquele tempo, se subesse que um sistema assim iria criar muitas problemas na manutenção e  ser muito fraco ao longo prazo.

Deve ser por isso que os militares instalaram a maior número de geradores no país na sequência da guerra.

A fonte sobre os geradores no país é um relatório do engenheiro José Correia da Cunha Barros,  de 1969. Em anexo ao relatório há uma tabela que lista 73 lugares, dos quais 59 têm gerador. E daqueles, a maioria eram propriedade do exército. Naquele tabela constam de mesmo os nomes e números dos geradores – tudo bem detalhada.

Barros, José Correia da Cunha (16.07.1969): Problemas eléctricos na Província de Guiné - Visita efectuada de 18 a 30 de Junho de 1969. Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), PT/IPAD/MU/DGOPC/DSE/1579/00782.

Bem, foi este fonte que me avisou, que os militares têm um certo papel na história da eletricidade na Guiné. E parece que este papel foi maior de que somente iluminar os próprios aquartelamentos.

Sie alguém está interessado nos detalhes dos geradores,  posso partilhar o relatório com a tabela numa versão digital. Parece que esta lista não é completa. Como eu li nos comentários havia mais aquartelamentos, e todos tinham um gerador.

Em geral, o engenheiro Cunha Barros descreve o sistema dos geradores como um sistema muito degradado já no final dos anos 1960. Falta de peças, faltas de manutenção, diferentes marcas, mal instalados, sistemas avariados há muito tempo e ele não entende porquê. Ele deu algumas ideias para melhorar o sistema (entre outras, unificar os geradores, ter somente uma marca, e somente três, quatro diferentes potências), mas aparentemente não se realizou antes da independência.

Depois, aquele sistema de geradores caiu totalmente. Por outro lado, o sistema é persistente. Ate hoje, a distribuição elétrica na Guiné funciona a partir de pequenos grupos de geradores, são frequentemente adquiridos novo grupos, instalados, abandonados, degradados, um circulo vicioso. Mas é desta maneira que o sistema de eletricidade funciona principalmente até hoje. O fundo do poço foi em 2008, quando mesmo a cidade de Bissau raramente tinha luz – isso melhorou bastante desde 2014/15.

Por isso o meu projeto fala de um período de eletrificação (até os anos 1980): eletrificação (anos 1980 – até 2008) e re-eletrificação (a partir de 2008),  na Guiné-Bissau.

Neste sentido, quero comprender melhor qual foi o impacto da electricidade fornecida pelas forças armadas.


(ii) Eduardo Estrela:

Os geradores que operavam no interior do quartel de Bolama, alimentavam os candeeiros de iluminação pública da cidade.

(iii) Fernando Gouveia: 

Tanto quanto me lembro, em Bafatá acontecia um caso curioso. Ali, em 1968/70, o quartel, pelo menos o do Comando de Agrupamento nº 2987 e o do Esquadrão de Cavalaria ao lado, recebiam a energia elétrica pública da Administração a troco do combustíbel para os geradores.

(iv) António J. Pereira da Costa:

Nos quartéis onde estive, quem trabalhava com o gerador era um soldado que tinha jeito e tinha aprendido a reabastecer, mudar o óleo e vigiar os manómetros... Era como se fosse uma viatura. Recordo-me que em Cameconde, os dois condutores "residentes" eram os responsáveis pelo motor.

(v) Carlos Silva:

No meu Sector O2 - Farim que compreendia, além de Farim, o subsector de Jumbembem onde estive 18 meses, o aquartelamento era dotado de um gerador que apenas funcionava durante a noite e a população que até meados de Setembro também beneficiava da iluminação porque estava enquadrada dentro do aquartelamento. Com o reordenamento a partir de meados de 1970 a população ficou fora do arame farpado e, como tal, deixou de beneficiar de iluminação, excepto as tabancas que estavam próximas do arame farpado.

Creio que esta situação também se verificava nos aquartelamentos de Canjambari e Cuntima. Estive no mês de Novembro de 1969 no K3/Saliquinhedim, e o abastecimento/funcionamento eléctrico era igual.
Os frigoríficos eram alimentados a petróleo.

Quanto à vila da Farim onde estive 4 meses até Dezembro 1969, os edifícios militares dispersos, e os arruamentos tinham iluminação pública abastecida por uma central eléctrica que lá existia / existe junto às piscinas. Actualmente creio que não funciona, mas existe iluminação com a implantação de postes solares.

Os comerciantes, alguns, tinham geradores.

Mas para mim, presumo que a electrificação ou fornecimento de energia nos aquartelamentos em toda a Guiné, era semelhante com recurso aos geradores excepto nos grandes aglomerados, como Farim, Mansoa, Teixeira Pinto, Bafatá, Nova Lamego, Cacheu etc, etc

Portanto para mim, esta era a característica geral da Guiné no que se refere à energia.

(vi) Cherrno Baldé:

No quartel de Fajonquito (sede da companhia) situado ao lado da aldeia, havia um pequeno e barulhento gerador a diesel que servia para iluminar dentro e à volta do aquartelamento que, se a memória não me falha, chegou em meados de 1968/69, antes utilizavam-se candeeiros vácuos em alguns sítios (para iluminar a zona do refeitório e a messe de oficiais e sargentos, entre outros). Havia um militar encarregue especialmente dos seus cuidados de manutenção.

Após a independância, ainda funcionou durante alguns meses (penso que enquanto durou a reserva de combustível deixado pela tropa portuguesa), mas com a decisão de acabar com o aquartelamento e centralizar tudo na sede do Sector (Contuboel), destruiram as instalações que eram antigas casas comerciais e levaram consigo o gerador. Ninguém deu satisfação à populaçao local, também não fazia muita falta, porque nunca tinham beneficiado dos seus serviços, salvo a criançada que procurava as zonas iluminadas para brincadeiras nocturnas.

De qualquer modo a nossa aldeia ficou mais escura e triste com a partida da tropa e, mais tarde, da confiscação do gerador. Sou de opinião que a tropa metropolitana concentrada mais nas manobras da sua retirada e regresso a casa, nao teria qualquer interesse em retirar os geradores nos aquartelamentos que já tinha entregue, de forma pacifica e amistosa, aos guerrilheiros.

(vii) Tabanca Grande Luís Graça:

Obrigado, Cherno, mais uma vez, pela partilha das tuas memórias de menino e moço em Fajonquito. Também me parece que, com a retirada das NT, ao longo de julho/agosto/setembro de 1974, o essencial do equipamento (geradores, incluidos...), tirando o armamento, ficou lá nos quartéis do mato, e naturalmente em Bissau... Era um gesto de paz e amizade, depois dos acordos de Argel...

De resto, o custo de transporte para a metrópole era elevado, para não dizer proibitivo...nem havia meios de transporte suficientes... Para os guinenenes, o grande desafio era depois a manutenção... E aí foi um desastre, o PAIGC foi um "bluff", não tinha quadros para desempenhar tarefas, aparentemente tão simples como a manutenção e reparação da "rede elétrica" deixada no mato... Confiaram nos amigos russos, suecos, cubanos e outros... Em Bissau, não sei como foi, mas pelo que vi, "in loco", em 2008, era uma dor de alma aquela cidade... Não consegui sequer entrar nos meus antigos aposentos, em Bambadinca, tive vontade de chorar...

(viii) José Botelho Colaço

Luís,  nem dá para comentar,  é do conhecimento geral o PAIGC só foi rico em propaganda antes da independência, porque após independência não preservou nada, foi a  degradação total tanto de móveis como de imóveis. Enquanto durou e funcionou OLm  a seguir sucata ou ruinas. Veja-se a linda cidade colonial de Bolama como eu a conheci, hoje um abandano total de ruínas, mas é que não foi só Bolama foi a totalidade de quase tudo para não dizer tudo, o que os tugas lá deixaram. É desolador.

(ix) Eduardo Magalhães Ribeiro:

Em Mansoa, em 9 de Setembro de 1974, naquela que era a central eléctrica, localizada entre o quartel e a cidade, ficaram perfeitamente funcionáveis 2 geradores movidos a diesel, não me lembro se eram de 0.8 ou 1,1 MW. Dias antes e uns dias após, foi explicado e estiveram em estágio conjunto de formação aos futuros donos da central vários elementos da tropa portuguesa e do P.A.I.G.C.

A CCS do BCAÇ 4612/74 e toda a tropa ainda estacionada em Mansoa abandonaram o quartel no dia acima indicado. A CCS a que eu pertencia,  foi deslocada para o Batalhão de Engenharia 447 em Brá.
Três dias depois estava eu de sargento de dia, junto à porta de armas, quando surgiu um jipe com 4 PAIGC a pedirem para falar com o nosso comandante. Perguntei qual o assunto que pretendiam os trazia ali. Resposta de um deles: "Os geradores deixaram de trabalhar."

Liguei então, via telefone, ao coronel Américo Varino a narrar a informação recebida. Passado um tempo vem o nosso furriel mecânico com 2 soldados num jipe dos nossos que seguiu atrás dos PAIGC.

Horas mais tarde surge o nosso jipe. Perguntei ao furriel: "Então, pá, o que se passou?"... Resposta: "Aqueles nabos trocaram tudo. Meteram diesel no depósito do óleo, água no sítio do óleo e óleo no depósito do diesel. Está todo partido por dentro e sem reparação possível."

PS - Ainda me segredou que os PAIGC  murmuraram que foram os nossos homens que sabotaram os ditos geradores. Coisa que eu nem vou comentar aqui, para não meter nojo, claro.

(x) Valdemar Queiroz:

Julgo que em Nova Lamego o gerador produzia electricidade para os civis e para a tropa, e penso que a manutenção e a segurança eram feitas por gente da administração e sipaios. Digo isto por, nunca a minha CART 11 ter feito segurança ao gerador, mas montava emboscados e rondas nocturnas como o pessoal do Batalhão.

Quando Nova Lamego foi atacada por foguetões122 mm,  os nosso soldados foram fazer a segurança ao gerador, o meu pelotão não foi e não me lembro se estava assim pré-definido ou se foi alguma ordem ocasional. Mas os frigoríficos da companhia trabalhavam a petróleo.

Não vem a propósito mas pode interessar, o sistema de iluminação que estava montado na fiada interior do arame farpado em volta de Giro Iero Bocari era o cúmulo do desenrasca das invenções. Guiro Iro Bari era um destacamento de Paúnca com dois pelotões junto da população, apenas com umas tendas, valas e duas fiadas de arame farpado em todo o perímetro.

Uma lata vazia, das grandes, de doce/feijão aberta ficando a tampa presa por forma a ser dobrada para se aproveitar ao máximo, como uma pala virada para o céu. Dentro da lata uma garrafa de cerveja com petróleo tapada com uma carica furada e uma torcida. Á noite acendia-se a torcida e a luz refletida na tampa da lata dava um bom candeeiro que só dava luz para a frente.

(xi) Manuel Gonçalves:

O nosso amigo e camarada, transmontano de Bragança, Manuel Gonçalves, ex-Alf Mil Manutenção da CCS/BCAÇ 3852 (Aldeia Formosa, 1971/73) (e que estudou nos Pupilos do Exército), disse-me ao telemóvel o seguinte sobre os geradores:

(i) havia dois em Aldeia Formosa, no seu tempo;

(ii) a responsabilidade pela sua gestão era do pelotão de manutenção da CCS/BCAÇ 3852, de que ele era o responsável, enquanto alferes miliciano;

(iii) em caso de avaria, é que se chamava o BENG 447 (que estava em Brá, Bissau);

(iv) funcionavam os dois, alternadamente, até à 1h00 da noite, depois eram desligados;

(iv) forneciam luz para o quartel e parte da tabanca;

(v) não tinham potência para iluminar a tabanca toda;

(vi) ele chegou a sugerir a eletrificação da pista de aviação (onde aterravam todas as aeronaves, exceto o FIAT G-91); mas nunca se concretizaou: em caso de emergência, à noite, usavam-se garrafas a petróleo para balizar a pista (!)...

(vii) ficou de nos dar mais informação técnica sobre os geradores de Aldeia Formosa (hoje Quebo).

terça-feira, 27 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23647: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (96): Os geradores nos quartéis também forneciam eletricidade para a população civil? (Manfred Stoppok, investigador alemão, a fazer um estudo sobre a história da energia elétrica na Guiné-Bissau, 1890-2020)


Diorama de Guileje > 2008 > A casota do gerador Lister: miniatura, da autoria de Nuno Rubim, destinada ao Núcleo Museológico de Guileje, Guileje, região de Tombali, Guiné-Bissau


Fotos (e legenda): © Nuno Rubim (2008). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Um gerador de marca Lister, parecido com o que deveria existir em Guileje. 

Imagem retirada da Net:  Nuno Rubim (2007)



1. Mensagem de Manfred Stoppok (foto à esquerda), antropólogo social, investigador de pós-doutoramento, da Universidade de Bayreuth, Alemanha

 
Data - 26 de setembro de 2022, 16:44
Assunto - A electrificação e os militares na Guiné-Bissau nos anos 1960

Exmos Senhores,

O meu nome é Manfred Stoppok, sou investigador pós-doc na Universidade de Bayreuth,  Alemanha. 

Já fui várias vezes à Guiné-Bissau, e neste momento faço um estudo sobre a história da eletricidade no país.

Eu descobri nos arquivos históricos ultramarinos em Lisboa que, durante a guerra de 1961/74,  uma grande parte da capacidade de produção de eletricidade estava nas mãos das forças armadas portuguesas: dos 59 lugares com geradores fora de Bissau, 47 tinham somente um gerador nas mãos das forças armadas, e somente 19 tinham uma distribuição civil.

Em termos da capacidade de produção, ambas, a administração civil e as forças armadas,  tinham cerca de 1 MW cada um no total.

Este aspeto é provavelmente uma coisa muito especial no desenvolvimento do sector de energia. Neste sentido, tenho algumas perguntas, na resposta às  quais os senhores talvez me possam ajudar.

(i) Os geradores dos militares forneciam eletricidade em geral somente para os quartéis – para uso próprio – ou também forneciam eletricidade para as unidades administrativas, escolas, hospitais,  etc.? Ou até mesmo para alguns particulares ou comerciantes?

(ii) Ou havia uma iluminação pública das ruas naqueles lugares? 
Em pelo menos alguns casos isso acontecia, havia eletricidade para a administração, mas eu não sei se isso  era a regra ou a exceção.

(iii) E, bem interessante para mim, o que é aconteceu com os geradores militares na hora da independência da Guiné-Bissau? O mais provável é que os geradores tenham sido levados para Portugal, o que significou a perda de quase 50% da capacidade de produção fora do capital Bissau. Ou será que estes equipamentos ficaram na Guiné?

Eu agradecia muito se os senhores puderem e quiserem partilhar as suas experiências comigo ou então indicar-me  onde posso encontrar documentação sobre estas coisas.

Eu também estarei em Lisboa por duas ocasiões nos próximos meses – no final do outubro de 2022 e no início de fevereiro de 2023 – e teria muito gosto em ter um encontro pessoal com quem quiser partilhar as suas informações e memórias relativamente a este assunto,

Com os melhores cumprimentos
Dr. Manfred Stoppok

[Revisão e fixação de texto, negritos: L.G.]

Manfred Stoppok | Post-Doc Researcher

f: funded by Fritz Thyssen Foundation
a: University of Bayreuth – Social Anthropology
e: manfred.stoppok@uni-bayreuth.de
w: www.history-electrification.com



Capa do livro "A Engenharia Militar na Guiné: o Batalhão de Engenharia". Coordenação do Gabinete de Estudos Arqueológicos da Engenharia Militar. Lisboa: Direção de Infra-estruturas do Exército, 2014, 166 pp.


Guiné > Região de Bafatá > Sector L1 > Bambadinca > CCS / BART 2917 (1970/72 > Vista (parcial) da tabanca de Bambadinca, com o Rio Geba ao fundo, e a saída para leste (no sentido de Bafatá)... Em primeiro plano, lado nordese do quartel e um dos abrigos, sobranceiros à tabanca, e a morança do comerciante português Rodrigo Rendeiro, do outro lado do arame farpado... Ficava do lado direito, quando se subia, vindo de Bafaté e do rio Geba, a famosa rampa de acesso ao quartel e posto administrativo de Bambadinca. São visíveis, na foto (se for ampliada), os postos de iluminação pública, ao longo da rua principal (que ia do quartel até ao porto fluvial).

Foto: © Benjamim Durães (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Região do Oio > Porto Gole > Março / Abril de 1968 > CART 1661 > Trabalhos de electrificação do aquartelamento a cargo de uma equipa do BENG 447, onde se integra o José Nunes, autor desta imagem...

Foto (e legenda): José Nunes (2009).  Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


2. Comentário do editor LG:

Meu caro Manfred: vamos tentar  ajudá-lo (*). Obrigado pelo seu contacto. Procurei  melhorar a sua mensagem em português. Mas não temos, à partida, grande informação (e muito menos conhecimento)  sobre a eletrificação da Guiné-Bissau no nosso tempo (1961/74). E falta-nos, enquanto antigos combatentes, uma visão geral sobre a situação da eletrificação do território... 

Nos quartéis, havia pelo menos um gerador (nalguns casos, haveria um sobresselente para suprir avarias) que funcionava preferencialmente à noite. Nunca ou raramente estavam a operar 24 horas por dia. Fez-se um esforço por eletrificar todos os aquartelamentos localizados em povoações importantes. E isso competia à engenharia militar (BENG 447).

Havia quartéis maiores do que outros, e alguns estavam implantados nas próprias povoações, sendo natural que contribuissem para a ilumição pública fora do perímetro do arame farpado, nas proximidaxes da porta de armas e na rua principal da localidade (caso de Bambadinca, Teixeira Pinto, Nova Lamego, Farim, Catió...). 

Em localidades como Bambadinca (onde eu estive, de julho de 1969 a março de 1971, e que teria, na altura 2 mil habitantes, e cerca de 400 militares), e que era um posto administrativo fazendo parte do município  de Bafatá (a segunda maior cidade do território, a 30 quilómetros, a nordeste),  o perímetro militar integrava as instalações e a casa do chefe de posto, a escola (com a casa da professora, cabo-verdiana), bem como uma capela cristã... O edifício dos correios, se bem recordo, já ficava fora... As casas comerciais estendiam-se ao longo de uma rua de trezentos metros que era ilumianada, tanto quanto me lembro... O resto (duas tabancas) ficava às escuras... O gerador militar também fornecia luz ao posto de intendência no porto fluvial, na margem esquerda do rio Geba Estreito, a escssas centenas do aquartelamento, sede de um batalhão (BCAÇ 2852 e depois BART 2917)...

Os frigoríficos (tanto dos comerciantes civis como os da tropa, e de um ou outro particular) eram alimentados a petróleo. E alguns de nós, graduados,  tinham também pequenos frigoríficos, nos quartos para manter frescas as bebidas  como a cerveja... (Um luxo, a cerveja gelada, o gelo para o uísque, a água de Vichy e de Perrier...).

Por outro lado, temos ainda a memória do cinema ambulante, que passava, mesmo no tempo da guerra, por algumas povoações mais importantes do leste da Guiné. E havia localidades que tinham sala de cinema (Bafatá, Teixeira Pinto, Nova Lamego...).

É importante que fale com os nossos camaradas do BENG 447, o Batalhão de Engenharia nº 447, que estava sediado em Brá, Bissau, e era responsável também pela construção e eletrificação das instalações militares no mato.

Fica aqui o seu apelo. Vamos ver se aparece informação relevante para si e o seu projeto sobre a história da electricificação da Guiné, terra a que nos ligam fortes laços afetivos e muitas memórias (boas e más). Vejo que fala e/ou escreve português. Isso facilita os contactos. Boa sorte, boa saúde, bom trabalho. LG

PS1 - Temos ideia que houve, no tempo do governador  Sarmento Rodrigues (1945/49) e depois do general António Spínola (1968/73), uma melhoria da eletrificação do território. Mas não temos informação detalhada. Por outro lado, Bissau estava muito melhor iluminada, à noite,  antes da independência do que depois. Em 2008, quando lá voltei, a cidade vivia às escuras. Fale também com o nosso camarada Mário Beja Santos, que é um enciclopédico estudioso da história da presença portuguesa no território, bem como  o nosso camarada Patrício Ribeiro, fundador e diretor da empresa, com sede em Bissau, Impar Lda, do sector de energia.  Dar-lhe-ei depois os contactos,

PS2 - O nosso José Nunes (José Silvério Correia Nunes), ex-1º Cabo Mecânico de Eletricidade no BENG 447 (Brá, 15Jan68 - 15Jan70) esteve na Central Elétrica do Quartel General, em Bissau. Tem, por certo, conhecimento da matéria. (Vd. o precioso poste P2470, de 22 de janeiro de 2008 " (**)
___________


(**) Vd. 22 de janeiro de  2008 > Guiné 63/74 - P2470: Diorama de Guileje (5): Geradores na Guiné (José Nunes)

(...) Estive na Guiné de 15 de Janeiro de 1968 a 15 Janeiro de 1970. Fiz assistências e electrificações em aquartelamentos, Porto Gole, Enxalé, Ponta do Inglés, Bolama, Bissum-Naga.

Acerca dos manuais que o Camarada Coronel NUno Rubim precisa, deve ser difícil pois nunca os vi em 2 anos e um dia de Comissão, nem na escola Militar tivemos acesso a eles.

Os grupos geradores mais utilizados eram: 500/250 KVA, 150, 50/47,5 KVA.

No Quartel General (QG), na Central nova, havia dois Dorman de 250 KVA, com 6 cilindros, refrigeração a água por radiador e, um grupo gerador de emergência Lister de 75 KVA.

Na Central velha, existia operacional um Deutz de 12 cilindros em V, refrigerado a ar e um Lister de 50 KVA.

Na Engenharia 
 [ BENG 447] e no Hospital Militar estavam os grupos geradores maiores.

No mato, normalmente, encontravam-se geradores com potências de 50, 20 e 7,5 KVA.

As marcas Stanford e Frapil para pequenas potências até 20 KVA. As motorizações eram diversas: Dorman, Deutez, Lister e EFI produção nacional.

Em Porto Gole havia um Lister de 47,5/50 KVA, na Ponta do Inglês havia um Gerador de 20 KVA que lá fui levar com um operador de Motores Fixos 
[ e que se avariou, obrigando o pessoal a recorrer à iluminação a petróleo com garrafas de cerevja] .

Ajudei a transferir o grupo gerador, na lama, da LDP (Lancha de Desmbarque Pequena)  para cima do Unimog, a descarregar no local e a fazer ligações de potência.

Por azar, o meu camarada inverteu a polarização na excitação e o gerador ficou inoperacional.

Tive de me pirar porque fui lá desenfiado só para ajudar e para ver se o Operador vinha no mesmo dia para Bissau, mas ficaram sem iluminação e o Engenheiro ficou lá até ao próximo transporte, regressando eu a Porto Gole onde levei uma valente piçada.

Ponta do Inglês 
[destacamento do Xime, na foz do rio Corubal], iluminação? A bazucas [garrafas de cerveja, de 0,6 l] cheias de petróleo penduradas no arame farpado.

A iluminação nos aquartelamentos era feito com cibes 
[ rachas de troncos de palmeira] a fazer de postes, linhas de cobre nú de 2,5 mm2, circuito fechado em anel, lâmpadas Philips 150 Watts spot.

Os quadros eléctricos eram em baquelite, equipados com fusíveis ou disjuntores quando os havia.

Não havia uniformização nos geradores, tal como muita coisa era comprada ao sabor de quem dava melhor percentagem, mas a maioria dos aquartelamentos tinha geradores de 7,5 ou 20 KVA. (...)

 

Vd. também postes de:

26 de agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4867: Memória dos lugares (35): Porto Gole, Março/Abril de 1968, CART 1661 (José Nunes, ex-1º Cabo, BENG 447, Brá, 1968/70)

terça-feira, 10 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23251: Antropologia (43): Os futa-fulas fazem cortes distintivos nos temporais, mas não são os únicos a fazé-lo na Guiné e na região (Cherno Baldé)

Crianças da Guiné-Bissau. Com a devida vénia a CNBB


1. Mensagem do nosso camarada Constantino Neves (mais conhecido por "Tino Neves", ex-1.º Cabo Escriturário da CCS/BCAÇ 2893 (Nova Lamego, 1969/71), com data de 2 de Maio de 2022, pondo uma questão que enviei para o nosso amigo e colaborador permanente para os assuntos Étnico-Linguísticos, se pronunciar:

Camarada Carlos Vinhal.
Vou contar não uma história mas sim um acontecimento que me aconteceu com um jovem Fula ou Futa-Fula.
Já se passaram mais ou menos 2 anos, no Fórum Almada (Centro Comercial de Almada).
Estava eu numa fila para almoçar, quando chegou perto de mim um jovem guineense, afirmo desde já que seria um guineense, pelo facto de ter nos temporais um corte, que é um sinal para distinguir os Fulas dos Futa-Fulas, mas como eu já não me recordo a diferença de um corte dos que têm dois cortes, tive a ousadia de lhe perguntar se era Fula, apontando para os meus temporais? Ele teve uma reação que eu não esperava, olhou-me dum modo que eu interpretei por ódio ou algo parecido, e desapareceu.
Não é meu hábito interrogar todos os negros que encontro, mas quando por algum facto acabo por entabular conversa com algum, acabo por perguntar sempre qual a sua origem.
Pensei agora contar esta história e pedir ao Cherno Baldé, que é a pessoa indicada para nos esclarecer, pois nem todos os ex-combatentes da Guiné têm conhecimento disso.

Abraços
Tino Neves
Almada

********************

2. Mensagem/resposta do Cherno Baldé em 4 de Maio:


Caro amigo Carlos,
Em resposta a questão colocada por Constantino Neves, tenho a dizer que a questão nao é assim tão simples de responder porque, para isso precisava de mais elementos (físicos sobretudo). O tempo que o Constantino fez em Gabu podia permitir-lhe reter algumas caracteristicas peculiares e distintivos dos fulas e/ou futa-fulas, todavia o que é obvio para um guineense pode ser complicado para um portugués (europeu). Os futa-fulas fazem cortes distintivos nos temporais, mas não são os únicos a fazé-lo na Guiné e na região. Também os balantas fazem cortes nos temporais e, às vezes, na testa, mas, geralmente, são mais pequenos e finos e também mais difíceis de enxergar.

Os futa-fulas, de cor de bronze, mais claros de pele, antigamente (agora sáo mais raros) traziam dois cortes ligeiros e pouco profundos mas bem visíveis nos temporais, enquanto que os fulas boencas (das colinas do Boé), por serem fulas assimilados, faziam dois cortes maiores, mais fundos e mais compridos (muito feios) para além de terem uma cor mais escura. Porque razão se faziam estes sinais nos corpos das pessoas em África?

Ainda não se fizeram estudos de investigação sobre estas marcas de distinção rácica em Africa e na nossa sub-região em particular, mas as razões podem ser várias, e entre as mais importantes, posso citar as guerras, as razias e as constantes movimentaçoes de uma zona para outra (nomadismo económico) a que estas populações estavam sujeitas em virtude das suas actividades económicas (criação de animais) e pela necessidade das frequentes mudanças de uma região para outra acompanhado do seu gado, atravessando regiões onde nem sempre eram bem vistos e recebidos.
O fenómeno de roubo de mulheres e crianças também era normal e bem conhecido em diferentes regiões de África, durante muito tempo e o aparecimento do comércio de escravos veio piorar esta situação em que famílias inteiras desapareciam na natureza sem deixar rastos.

Na Guiné, os fulas ainda acreditam que os seus vizinhos balantas, para além de bons "ladrões de gado", também eram bons "ladrões" de mulheres e crianças e não é em vão que temos (fulas e balantas) quase as mesmas características fisionómicas, exceptuando aquelas que fazem deles os mais exímios lutadores assim como os melhores trabalhadores da região.

Acho que o tal jovem não era fula, provavelmente o Tino confundiu um jovem balanta, com dois cortes ligeiros nos temporais, com um fula e daí a irritação do mesmo que não gostou daquela confusão que, na sua cabeça de balanta orgulhoso, não tolera ser tomado por um fulazinho (pequeno fula, como dizem) e pior ainda de um futa-fula da Guiné-Conacry (Nania - termo depreciativo). Na Guiné-Bissau, as etnias em geral são muito orgulhosas e bem ciosas da sua pertença étnica e da sua cultura, situação que começa a mudar ligeiramente nas cidades e sobretudo no meio das novas gerações, mas que a classe política e o aproveitamento político de cariz tribal, tende a perpetuar por mal da nossa Guiné.

Resumindo:
Se o corte fosse um só nos temporais e/ou no fronte (testa), de certeza que não era fula. Podia ser balanta, da mesma forma que poderia se tratar de uma outra etnia menos conhecida. Os futa-fulas faziam dois cortes nos temporais, podendo ser pequenos ou grandes.

PS: Carlos, ainda tenho na memória a interessante história do "menino" do Manel Joaquim, o Kunte, que era de uma família Balanta-Mané do Norte e quando foi confrontada com o aparecimento de um menino que procurava os seus familiares, a mãe só teve a certeza de que era seu filho após examinar e reconhecer os sinais no corpo da criança que tinha acontecido por um acidente, quando era criança, mas que, para eles serviu como uma marca de identificação para todo o sempre. As marcas serviam para casos como esses em que um dos familiares pudesse ser raptado ou se ter perdido e fosse necessário identificar suas origens étnicas e/ou clânicas.

Com um abraço amigo,
Cherno Baldé

********************

3. Mensagem de Tino Neves, reagindo à explicação do nosso especialista antropólogo, Cherno Baldé:

Amigo Cherno.
Os meus agradecimentos pelos seus esclarecimentos.
De facto, desconhecia que havia outras etnias com essa prática.
Eu pensei, que o jovem fosse futa-fula, pelo facto de eu saber que o termo significava de algum modo "Fula de segunda", mas não tinha a certeza, dai o meu pedido, que agradeço mais uma vez. Para esclarecer mais um pormenor de que expõe: O jovem era bem negro e só tinha um corte, que julgo ser dos profundos.

Abraços
Tino Neves
Almada
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Nota do editor

Último poste da série de 7 DE ABRIL DE 2021 > Guiné 61/74 - P22076: Antropologia (42): "Grandeza Africana, Lendas da Guiné Portuguesa", por Manuel Belchior (2) (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P22960: No céu não há disto... Comes & bebes: sugestões dos 'vagomestres' da Tabanca Grande (31): "Iscas com elas..."


Lourinhã > Atalaia >  Restaurante Adega do Careca > 23 de janeiro de 2022 >  As icas com elas, da dona Fátima.

Fotos (e legendas): © Luís Graça (2022). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1.  Há dias deu-nos para a saudade, lá na Tabanca do Atira-te ao Mar, a ver o pôr do sol e a beber um Confraria Branco Leve Moscatel,  da Adega do Cadaval ((passe a publicidade)... 

"Há quanto anos é que vocês não comem iscas com elas ?", perguntou a Maria do Céu Pintéus aos habituais tabanqueiros. "O meu pai, no Cadaval, adorava o petisco!... E eu aprendi com ele a gostar das iscas com elas ou sem elas"... Ou sejas, as iscas de fígado (de bovino ou de porco), cortadas fininhas, marinhas e depois fritas, podiam ser servidas com "elas" (batatas no prato) ou  "sem elas" (no pão, como "sandocha").

Olhando para trás, descobrimos que não comíamos essas "miudezas" deste a crise das vacas loucas nos primeiros anos de 1990, no século passado. Muita tinta correu então sobre a doença de Creutzfeldt-Jakob, e milhares de vacas foram abatidas  em Portugal. Houve até um ministro da agricultura que comeu mioleiro para transmitir confiança aos consumidores e salvar a pecuária nacional...

A doença tinha um raio de nome de que já ninguém se lembra: encefalopatia espongiforme bovina   ou BSE (do acrônimo inglês,  bovine spongiform encephalopathy)

A verdade é que, na nossa casa, eu e a Alice deixámos de comer estes "petiscos", a começar pelas "iscas com elas" que, de resto, são apreciadas também no Norte e na nossa Tabanca de Candoz.  As criancinhas também deixaram de comer "mioleira", que era receita pelos pediatras... Mas continuamos a  apreciar as "tripas" (à moda do Porto) ou a "dobrada" (à moda "chef" Alice)...  Há, porém outras "miudezas", de que tenho saudades como, por exemplo, os "tomates" (túbaro) de carneiro com ovos mexidos; ou a "língua de vitela", estufada, com puré, que a minha mãe fazia, a par das "iscas com elas"...

A Maria do Céu pegou nas suas tamanquinhas e deu um pulo à vizinha, a dona Fátima, a "chef" do Restaurante Adega do Careca, fundado em 1977 por ela e seu marido, já falecido, que foi sargento da Força Aérea em Angola (, creio que passou pelo BCAÇ 21, em 1970/72, ao tempo do nosso amigo e camarada, também lourinhanense, o ex-alf mil paraquedista Jaime Bonifácio Marques da Silva. 

Somos clientes do restaurante (passe a publicidade), mas nunca tínhamos lá ido comer as "iscas com elas", que de resto não fazem parte do cardápio, mais especilaizado em peixe e marisco. Mas a dona Fátima preparou-as só para nós, os quatro, eu, a Alice e os "duques do Cadaval", régulos da Tabanca do Atira.te ao Mar (que não precisa de publicidade)... O Jaime, andarilho, em romagem pelo Norte,  não estava, não sabe o que perdeu...E foi um sucesso. Só vos digo: foi de comer e chorar por mais. na esplanada do Careca, com vista de mar...

Apenas um reparo: podiam ter uma corzinha de salsa, fica sempre bonito no prato. E tanto quanto me lembro, a minha mãe adicionava, à marinada, um pouco de baço raspado, para engrossar o molho. Vou pergntar ao "chef" Tony (Levezinho) qual é a sua receita secreta... Aposto que ele também adora iscas (ou, como dizia, o alfacinha do tempo do seu avô, os "bifes de cabeça chata")...

Na Guiné, não tenho ideia de as comer... Nem sei se as magricelas das vacas guineenses tinham fígado... As iscas de fígado deviam ser um petisco só para o vagomestre e o pessoal "menor" da cozinha, no tempo em que o cozinheiro da tropa ainda não era "chef"... Se fosse agora, outro galo cantaria, com os cozinheiros a atingirem o estrelato... No nosso tempo,  mandavam-se os soldados básicos para a cozinha...  Hoje cozinheiro da tropa tem que ser "general" de uma ou mais estrelas...


2. Este prato, muito popular, mas tascas de Lisboa, desde o séc. XIX, era comidinha das classes populares que não podiam chegar ao bife de vaca ou de novilho... E até já deu, em 2012,  origem a uma dissertação de mestrado em antropologia. Para um antropólogi não temas menores ou maiores...

O autor é  o Pedro Manuel Pereira da Silva. E o trabalho está aqui disponíbel, em formato pdf, no repositório deo ISCTE - IUL.

Silva, P. M. P. (2012). As iscas com elas ou Iscas à portuguesa: património, gastronomia e turismo em Lisboa [Dissertação de mestrado, Iscte - Instituto Universitário de Lisboa]. Repositório do Iscte. http://hdl.handle.net/10071/4983 .

Aqui o resumo do trabalho:

(...) "Nesta dissertação, apresentamos um estudo de caso sobre o prato tradicional Iscas de Fígado com/sem Elas. A partir de uma abordagem antropológica, analisamos o modo como este prato se tornou num símbolo e o seu papel como oferta gastronómica da cidade de Lisboa, num âmbito temporal que vem desde o século XIX até à actualidade, bem como a sua relação com o turismo. O ponto de vista dos anfitriões, em particular no que respeita aos restaurantes do centro da cidade, foi um dos aspectos analisados neste trabalho. 

Os resultados da pesquisa documental, dos levantamentos e das entrevistas efectuadas permitiu-nos identificar as características deste prato no âmbito da gastronomia portuguesa. Consequentemente, possibilitou-nos estabelecer uma perspectiva histórica e social da sua forma de consumo no espaço da cidade, reconhecer o seu papel no âmbito dos processos de patrimonialização que subsequentemente enformam as estratégicas de divulgação turística; e, finalmente, examinar a presença deste prato na oferta gastronómica da cidade de Lisboa. 

A legitimação antropológica da patrimonialização deste prato, em virtude da sua relevância gastronómica no contexto dos hábitos e vivências alimentares específicos da cidade de Lisboa, convive com a inexistência de divulgação institucional deste património no âmbito do turismo, o que tem fomentado o desconhecimento desta realidade gastronómica por parte de muitos anfitriões e profissionais de restauração. Simultaneamente, e de forma paradoxal, verifica-se a presença das Iscas de Fígado com/sem Elas numa vasta percentagem de restaurantes e casas de comida no centro histórico de Lisboa. (...)

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Nota do editor:

Último poste da série > 29 de agosto de 2021 >
Guiné 61/74 - P22495: No céu não há disto... Comes & bebes: sugestões dos 'vagomestres' da Tabanca Grande (30): Bacalhau com couves no forno, à moda da minha avó Maria, que era do Minho (Valdemar Queiroz)