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terça-feira, 26 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P25005: Excertos dos melhores escritos de António Eduardo Ferreira (1950-2023), ex-1º cabo cond auto, CART 3493 / BART 3873 (Mansambo, Cobumba e Bissau, 1972/74) - IX (e última) Parte: De Cobumba para o COMBIS; em Bissau, em novembro de 1971, e fim da comnissão em abfril de 1974


Guiné > Bissau > Café Bento > c. setembro de 1972 >  
Foto tirada na esplanada do café Bento, local de encontro não só para quem prestava serviço na cidade, mas também para muitos que pelas mais variadas razões passavam por Bissau

Era cerca de meia noite quando a foto foi tirada, estávamos todos muito animados… Os três que estão trajados à civil não eram da minha aldeia, Moleanos, com o posto de primeiro sargento enfermeiro prestavam serviço no hospital militar de Bissau. O que está com o copo na mão era nosso vizinho, de Alcobaça, o primeiro sargento Canha.

Dos que estávamos com farda militar, o do centro era eu, Jerónimo, a primeira vez que vim de férias, o  outro, a seguir ao Canha,  era o Inácio (António Ferreira da Silva Inácio, pertencia à polícia militar, o único da nossa aldeia que passou todo o tempo de comissão em Bissau); e o último da direita era o Faustino (José Fernando Pimenta Faustino, de seu nome completo, assentou praça em em agosto, era soldado condutor auto, embarcou, em rendição individual, para a Guiné em 12 de março de 1971, no navio Uíge; esteve seis meses em Teixeira Pinto, CAOP 1, o resto da comissão foi passado em Bissau; veio uma vez de férias à metrópole; regressou por via aérea a de fevereiro de 1973).



Guiné > Bissau > Combis > Aqui estava encostado a uma papaeira, no local onde passei os últimos meses de comissão, COMBIS, faltavam poucos dias para regressar à metrópole, mas a incerteza quanto ao regresso era total, o tempo “normal” de comissão há já muito que terminara. Só no dia, e com o avião no ar, nos convencemos que era mesmo verdade, estávamos a deixar a guerra e a regressar a casa, eram cerca de dez horas locais quando embarcamos no aeroporto de Bissalanca.

Antes, tinha aproveitado para gastar o resto dos pesos que tinham sobrado, eram poucos, depois foi o tão desejado embarque. Durante cerca de vinte minutos o avião esteve sujeito a uma turbulência nada agradável, mas pensar que aquela era a viagem que muitos de nós chegamos a pensar que poderíamos não chegar a fazer…

Depois desses minutos agitados, a que fomos sujeitos, o resto da viagem decorreu normalmente. Na tarde desse dia 2 de abril de 1974, o avião aterrava no aeroporto da Portela com saída pelo Figo Maduro e, dali para o RAL1 (creio que se chamava assim) onde fizemos o resto do espólio, depois foi o regresso à vida civil.


Guiné > Região de Tombali > Cobumba > CART 3493  > 1973 >  Eu com a minha companheira de vinte seis meses e mais uns dias junto ao local onde todas as noites que estivemos em Cobumba fiz reforço. Durante a noite disparavávamos muitos tiros mesmo sem inimigo à vista. Certa noite um desses tiros cortou um fio condutor de energia que suportava a fraca iluminação junto ao arame. O  eletricista Vieira é que ficou muito aborrecido teve de interromper o sono para reparar a avaria, eu não fiquei menos… Chego a pensar se ainda lá estivesse hoje a disparar tiros provavelmente não voltava a conseguir cortar o fio.

Fotos (e legendas): © António Eduardo Ferreira (2013). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Série com pequenos excertos dos melhores postes do António Eduardo Jerónimo Ferreira,  (Évora de Alcobaça, Alcobaça, 15 de maio de 1950- Moleanos, Alcobaça,  19 de outubro de 2023) (ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493 / BART 3873, Mansambo, Cobumba e Bissau, 1972/74) (*).

O nosso camarada na tropa e na guerra era mais conhecido por Jerónimo. Lutou quase 20 anos, desde 2004, contra um cancro. Criou em 2012 o blogue Molianos, viajando no tempo que manteve até 2017.



IX ( e última)  parte - Novembro de 1973: de Cobumba para o COMBIS, em Bissau; abril de 1974: fim da comissão


Chegou o dia do regresso a Bissau. Nessa manhã a única viatura que tínhamos operacional avariou, todas as coisas que tínhamos connosco para levar para a LDG que nos foi buscar, tiveram de ser transportadas às costas. 

Mas por essa altura eu estava fisicamente bastante fragilizado, tive que pagar a um homem da população para me levar o caixote com os meus pertences, tendo eu levado apenas a G3, as cartucheiras, e um pequeno malote onde transportava dois ou três quilos de peso, mesmo assim, ao fim de escassas centenas de metros até chegar ao barco, já não conseguia caminhar mais. 

Há pouco tempo tinha passado por lá o médico, que creio estava sediado em Bedanda (CCAÇ 6),  a quem eu me queixei, tive como resposta:

- De facto, estás doente, mas não te posso mandar para Bissau.

Deixámos Cobumba descendo o rio Cumbijã, alguns quilómetros mais abaixo estava outra companhia à espera para seguir connosco para a cidade, vindo de Cafal Balanta. Dessa companhia fazia parte um vizinho meu, o Victor Santos, da Lagoa do Cão. Se um vizinho deixava aquela zona, um outro que o tinha ido render ficava bastante triste e só:  era o José Balbino... Sabendo que eu vinha a caminho de Bissau,  quis vir ver-me, não foi fácil para ele, como não seria para qualquer um, despedir-se de um vizinho com a comissão quase terminada… e ele ainda no inicio e numa zona tão má como era aquela.

Normalmente as companhias quando vinham do mato para a cidade era para regressar à Metrópole, ou para fazerem trabalhos de menor risco. Sabíamos ir estar mais alguns meses na cidade, o que não sabíamos era que a nossa companhia ia passar a ser cem por cento operacional, só os criptos exerciam a sua especialidade, todos os outros faziam os mesmos serviços. 

Para além do serviço de segurança à cidade (missão atribuída ao COMBIS),  que constava de percursos a pé durante a noite na periferia, em grupos de três ou quatro homens, serviços ao paiol, ao Palácio do Governador, no cais quando chegava algum barco da Metrópole, e também serviço junto ao arame farpado, que em alguns sítios circundava a cidade.

Como se tal não chegasse com vinte e seis meses de tropa, fizemos uma coluna a Farim, viagem de alto risco. Por essa altura a minha saúde não era a melhor, pela primeira vez tinha tido paludismo, e dois dias antes de se realizar a coluna fui ao médico tentando que ele me dispensasse de serviços pesados.Tive sorte, fui dispensado de ir a Farim, apenas eu e outro camarada que estava também de baixa não fomos.

No tempo em que estivemos em Bissau, o quartel ficava a poucos quilómetros do centro da cidade, na COMBIS,  em Brá, nós de vez em quando íamos até lá. Na cidade havia muito movimento apesar de mesmo por lá as coisas começarem a não ser totalmente seguras. 

Por essa altura, rebentou um engenho explosivo no café Ronda, sempre muito frequentado por militares. Também dentro do QG houve uma explosão, e no Pilão certa noite houve tiroteio durante bastante tempo, estando a nossa companhia pronta para sair. A tropa esteve mais de uma hora em cima das viaturas à espera de ordem para avançar, era cerca da meia noite os tiros pararam pelo que o estado de prontidão foi suspenso. Nesse dia eu estava de cabo dia, razão pela qual se a companhia tivesse saído eu teria ficado no quartel.

Um dos locais com paragem obrigatória para quase todos que vagueavam pela cidade, era o café Bento, ou a 5ª Rep,  como toda a gente lhe chamava. Assim que nos sentávamos, ainda antes do empregado de mesa, chegavam os engraxadores que se preparavam e insistiam para nos engraxar as botas a troco de dois pesos e meio, ou três. 

Naquela tarde sentei-me na esplanada e logo apareceu um dos muitos engraxadores, o Marreco. Disse-lhe que só lhe dava dois pesos e meio, ele começou a engraxar as botas, quando acabou a primeira disse-me:

- Olha que são três pesos!

E eu disse-lhe que não, e ele levantou-se e foi embora, deixando-me com uma bota engraxada e outra não, mas o mais caricato é que as minhas botas uma era mais velha que a outra e eu coloquei primeiro a nova a jeito de ser engraxada, e assim a mais velha mais mal ficou a parecer ao pé da engraxada. Anda prometi os dois pesos e meio aos outros engraxadores que estavam por ali, para me engraxarem a outra, mas solidários com o Marreco nenhum quis. Não me restou outra alternativa a não ser sair pela porta oposta à esplanada e voltar a sujar a bota engraxada, com terra para não parecer tão mal.

Os serviços continuavam na cidade, o tempo normal de comissão já há meses que tinha passado, e nós sem saber quando seria o nosso regresso à Metrópole. Poucos dias antes de virmos embora tivemos uma baixa, o furriel Trindade, o homem que tantas minas tinha levantado, ao ser atropelado pela viatura que lhe ia levar o almoço, quando se encontrava em serviço com alguns homens num dos postos de guarda junto ao arame farpado que existia em alguns sítios em redor da cidade.

Faltavam três dias para o nosso regresso, fomos informados que teríamos de fazer mais uma coluna a Farim pelo que à tarde fomos levantar as viaturas que íamos levar na madrugada seguinte. Estávamos completamente arrasados, a dois dias de terminar o nosso tempo de Guiné, irmos fazer uma coluna a Farim, para essa também eu já tinha levantado viatura, mas a poucas horas do inicio da viagem alguém teve o bom senso, e decidiu que não seriamos nós a ir na coluna.

Faltavam dois dias mas não tínhamos a certeza que seria assim, só quando nos encontrámos dentro do Boeing e já no ar acreditamos que era desta que a nosso regresso ia acontecer. Embarcamos perto do meio dia em Bissau no dia  2 de abril de 1974 e chegámos ao fim da tarde a Lisboa.

Passados trinta e oito anos da minha chegada à Guiné,  dando uma volta pela memória encontrei os factos aqui relatados, certamente muitos não terei conseguido lembrar-me, mas fiquei satisfeito com aqueles que consegui lembrar em apenas três semanas.

Se alguém chegar a ler este relato de vida que foi a minha, durante o tempo de tropa que passei em África, e que foi também o de muitos jovens do meu tempo, em particular aos que passaram pela Guiné, verá que as coisas agora não são tão más como parece! 

(Seleção / revisão e fixação de texto / negritos: LG)

quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P24923: Excertos dos melhores escritos de António Eduardo Ferreira (1950-2023), ex-1º cabo cond auto, CART 3493 / BART 3873 (Mansambo, Cobumba e Bissau, 1972/74) - Parte VIII: do que a população sob controlo do PAIGC tinha mais medo era do "passarinho grande", o avião


Guiné > Região de Tombali > Sector S4 (Cadique) > Cobumba > CART 3493 (1972/74) > O António Eduardo Ferreira à porta do abrigo.

Foto (e legenda): © António Eduardo Ferreira (2013). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1.  Série com pequenos excertos dos melhores postes do António Eduardo Jerónimo Ferreira (1950-2023) (ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493 / BART 3873, Mansambo, Cobumba e Bissau, 1972/74) (*).

O nosso camarada era natural de Moleanos, Alcobaça. Na tropa e na guerra era mais conhecido por Jerónimo. Lutou quase 20 anos, desde 2004, contra um cancro. Criou o blogue Molianos, viajando no tempo, por volta de 2013 ou 2014.


Parte VIII -  Coitada da população de Cobumba que tinha de parecer estar bem com os dois lados, as NT e o PAIGC


(..) Foi difícil, a vida dos homens da CART 3493 em Cobumba, mas a daquela gente que por lá morava não foi melhor, deixaram de ser bombardeados pelos "tugas", passaram a ser por alguns dos seus que integravam as forças do PAIGC (uma mulher da população morreu,  vitima de uma flagelação).

Não deve de ter sido nada fácil de encaixar a mudança, o que eles de facto desejavam era a paz e não a continuação da guerra. (Muito tempo já passou e a esperança de muita daquela gente numa vida melhor parece continuar a ser uma miragem.)

Havia certos dias em que as poucas pessoas que por lá estavam a maior parte do dia passavam-no junto ao seu abrigo, que seria certamente mais seguro que os nossos, dado o sítio onde se localizavam (debaixo de um grande mangueiro) e a forma como eram construídos(apenas com cerca de um metro de largura). 

Era nossa convicção que eles estavam por ali porque tinham informações que nós não tínhamos… Algumas vezes o “arraial” acontecia mesmo e nesses momentos estar perto de um abrigo podia fazer toda a diferença (...).

Apesar das poucas conversas que tínhamos com a população, por vezes lá íamos fazendo algumas perguntas a que eles normalmente respondiam (aqueles que nos entendiam)... Certo dia perguntei ao filho do chefe de tabanca de que é que eles tinham medo quando ainda não estava lá a tropa branca, ele respondeu que era do "passarinho grande" (o avião)... 

Quando o "passarinho" aparecia, se estavam na bolanha e esta tinha água, velhos e novos deitavam-se, ficando apenas com parte da cabeça de fora. Ele dizia: " só com um olho fora da água". 

Era um menino de doze ou treze anos (o Zé) que certos dias saía com uma pequena saca onde dizia levar os livros e que ia para a escola em Pericuto que ficava do lado de lá da bolanha mas onde nós não íamos, porque apesar de ser perto era arriscado… A haver escola ou coisa parecida, teria que ser da responsabilidade do PAIGC…

Um outro com quem falei dizia que tinha sido carregador do PAIGC, transportava material de guerra à cabeça (chamava-se Miranda) o sítio mais longe onde tinha chegado foi ao Xitole:  era um homem já de certa idade,  normalmente não saía lá da tabanca. 

Já perto do fim da nossa estadia naquele sítio as minas continuavam a causar-nos grandes preocupações, pois eram colocadas mesmo do lado de dentro do arame que nessa altura já circundava todos os abrigos e parte da picada.

Devido a essa situação foi exigido ao chefe da tabanca que nomeasse alguém que teria de andar todo o dia no carro ao lado do condutor, era uma forma de pressionar possíveis familiares que estavam do lado do PAIGC para não colocarem as minas, se é que isso poderia ter alguma influência nas ordens dimanadas do Partido.

Recordo-me do primeiro (e não sei se o único) que andou comigo,  foi o filho do chefe, o Zé, entre eles era quem falava melhor português. Também para os condutores era uma situação estranha, andarmos todo o dia com alguém a nosso lado,  coisa a que não estávamos habituados. Não sei se psicologicamente isso nos terá ajudado.

Não me recordo se foi detectada mais alguma mina depois dessa exigência (nem faço ideia com que vontade foi cumprida pelo chefe de tabanca). 

Também nunca soube se essa ordem foi pensada no Comando da Companhia ou veio de outro sítio, o certo é que aconteceu e chegou ao conhecimento do PAIGC, pois na rádio que transmitia em seu nome,  através da voz daquela a quem chamávamos a “Maria Turra”,  esse assunto foi muito falado.

 A esta distância no tempo dá para entender melhor como era difícil a vida daquela gente, que tinha de parecer estar bem com os dois lados (PAIGC e a Tropa Portuguesa), mas na verdade isso não era possível. (...) 

Cobumba era um local onde os homens novos durante dias não se viam e, quando estavam, com o aproximar da noite abalavam…

As pessoas mais velhas estavam sempre por ali, algumas delas tinham estado ao serviço do PAIGC como carregadores de material de guerra (caso do  Miranda). 

Havia várias crianças (caso do filho do chefe da tabanca) que  andavam na escola do PAIGC em Pericuto, povoação próxima de nós, não sei qual seria a frequência de alunos.

Pessoal novo, por lá, só estavam crianças, algumas que diziam ser oriundas de Bedanda. (...) Chegava a acontecer, em alguns dias, aparecerem por ali vários homens mais novos, não sabíamos de onde vinham, que passavam o tempo que lá estavam, a beber numa espécie de taberna que tinha sido feita depois de nós lá termos chegado, cujo dono servia de tradutor quando era necessário falar com alguma população que não conhecia a nossa língua. 

Quando chegava o fim da tarde iam todos embora, na maioria bêbados. Às vezes acontecia cenas de pancadaria entre eles em que nós agíamos como se nada estivesse a acontecer… era problema deles. (....) (**)

(Seleção / revisão e fixação de texto / negritos: LG)
___________


quinta-feira, 23 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24876: Excertos dos melhores escritos de António Eduardo Ferreira (1950-2023), ex-1º cabo cond auto, CART 3493 / BART 3873 (Mansambo, Cobumba e Bissau, 1972/74) - Parte VII: Parte VII - Estar debaixo de fogo não é coisa que se deseja a ninguém, muito menos em Cobumba, na região de Tombali


Foto nº 1 > Levámos quatro viaturas para a Cobumba, no sul da Guiné, à beira do rio Cumbijã... Foram todas destruídas por minas. A primeira Berliet era conduzida pelo condutor José da Silva, apesar de tudo, uma vez mais a “sorte esteve com ele” foi a segunda mina que viaturas por si conduzidas acionaram... Desta vez seguia acompanhado por um cozinheiro de que já não me lembro o nome, foram os dois projetados nas alturas mas ficaram” apenas” com o susto que não terá sido nada pequeno: iam levar o café ao pessoal de dois pelotões que estavam instalados a cerca de quatrocentos metros do local onde ficava a improvisada cozinha.


Foto nº 2 > A segunda Berliet era conduzida pelo furriel mecânico, tinha acabado de chegar de férias naquela tarde vindo da Metrópole: também “apenas” sofreu o susto. Talvez aí, tenha percebido porque em Mansambo queríamos tanto colocar sacos de terra, ou de areia, debaixo do assento e ele não nunca deixou.


Foto nº 3 > A terceira viatura era um Unimog 404, não me recordo quem era o condutor, sei que saiu ileso do meio dos destroços, mas as consequências aqui foram terríveis, houve feridos um dos quais muito grave o popular "periquito". Ao fundo, podem ver-se algumas das casas que a nossa companhia andava a construir para a população (reordenamento).

A quarta viatura que acionou uma mina.   não aparece aqui: era também um Unimog 404, mas ainda foi possível ser recuperada e voltar ao serviço.

Guiné > Região de Tombali > Sector S4 (Cadique) > Cobumba > CART 3493 (1972/74)

Fotos (e legendas): © António Eduardo Ferreira (2013). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
 

1. A história da unidade (BART 3873, Bambadinca, 1972/74), a que pertencia a CART 3493,  dá-nos uma pálida ideia dos que foram os oito meses desta subunidade em Cobumba, sector S4 (Cadique)... Daí a importància de testemunhos pessoais como estes, do António Eduardo Ferreira(*).

A ocupação de Chugué e Cobumba foi defimida pelo Directva nº  13/73 de 30 de março.A situação nas NT, em 1 de julho de 1973, no subsector de Cobumba / sector S4 (BCAÇ 451472, Cadique: abrangia os subsectores de  Bedanda, Caboxanque, Cadique, Cafal, Cabedú, Chugué, Cobumba. Jemberém) era a seguinte:

  • CART 3493
  • 2 Pel/2ª /BAC 4610/72
  • 1 Sec Pel Can S/R 3079


A CART 3493  será rendida em Cobumba em 25nov73 pela CCaç 4945/73 (mobilizada pelo BII 19, Funchal)


2. Série com pequenos excertos dos melhores postes do António Eduardo Jerónimo Ferreira (1950-2023) (ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493 / BART 3873, Mansambo, Cobumba e Bissau, 1972/74) (*).

O nosso camarada era natural de Moleanos, Alcobaça. Na tropa e na guerra era mais conhecido por Jerónimo. Lutou quase 20 anos, desde 2004, contra um cancro. Criou o blogue Molianos, viajando no tempo, em data difícil de precisar (c. 2013/2014).


Parte VII - Estar debaixo de fogo não é coisa que se deseja a ninguém, muito menos em Cobumba


(...) Ao chegar (a Cobumba, vindo de férias), ainda no ar, tive oportunidade de ver que muito havia mudado durante o tempo que eu estivera fora, as muitas árvores que ali existiam tinham sido quase todas derrubadas, muita terra mexida, abrigos subterrâneos que começavam a ser feitos, tudo estava diferente. (**)

Ao chegar a terra era grande a curiosidade que tinha em saber o que teria por ali acontecido durante a minha ausência, e não era menor a vontade que os meus camaradas tinham de me pôr ao corrente de tudo que tinha mudado, e que não tinha sido pouco.

E o que tinha acontecido durante a minha ausência, é que a acalmia dos primeiros dias tinha sido quebrada com enorme violência, quando certo dia pela madrugada o inimigo se infiltrou dentro do triângulo que era formado pela disposição das nossas forças no terreno, onde existiam muitas árvores que lhe serviram de abrigo, e estando eles no meio das nossas tropas e muito perto, a poucos metros, foi necessário ter muito cuidado em particular das nossas armas pesadas para não sermos nós a bombardear as nossas próprias forças. 

Terá durado esse ataque cerca de duas horas junto ao “arame” que nessa altura ainda não havia. 

Mas como em tudo na vida,  também na guerra havia momentos de sorte, e apesar da violência do ataque, dos nossos apenas um militar que estava na nossa Companhia, acidentalmente ficou ligeiramente ferido (pertencia à Engenharia, sediada em Bissau e tinha ido acompanhar material); do lado do inimigo segundo informações posteriores, terão tido várias baixas. 

Isto de estar tanto tempo debaixo de fogo não é coisa que se deseje a ninguém, só quem por lá passou pode fazer ideia do que isso era.

Durante as primeiras semanas foram levantadas várias minas próximo do sitio onde passámos a primeira noite, para sorte nossa estavam uns metros mais ao lado, talvez o sitio onde o inimigo pensasse que íamos acampar. O furriel que levantou essas minas assim como outras que entretanto vieram a ser colocadas, viria a ser uma das baixas da nossa Companhia, vitima dum acidente estúpido como são quase todos os acidentes.

Nessa altura ainda as valas eram de certo modo improvisadas, e abrigos só os destinados às comunicações, era pouca a luz eléctrica que havia, fornecida por um pequeno gerador que quase não iluminava a zona circundante de um dos três sítios em que estávamos sediados. 

Foi a partir desse ataque quase corpo a corpo que tudo se alterou, as árvores que tinham servido de abrigo ao inimigo foram quase todas deitadas abaixo, valas mais organizadas foram feitas, todos passámos a dormir em abrigos que tivemos de ser nós a fazer.

Para que o buraco a abrir tivesse mais segurança tinha de ser pequeno, assim juntaram-se dois ou três e cavavam até que coubessem de pé, depois era coberto com troncos de palmeiras e com cerca de um metro de terra por cima. 

Eu e outro condutor, o meu amigo Cruz, abrimos o nosso abrigo, se não tem sido o incidente do primeiro dia certamente também o Cabral faria parte do nosso grupo de abrigo. 

Durante a abertura sofri um ataque, não de fogo inimigo mas sim de abelhas, presumo que estivessem na terra entretanto remexida, pois apenas as vi quando começaram a espalhar sobre mim ferrões sem dó nem piedade. A minha primeira reacção foi meter-me debaixo de um chuveiro improvisado que nós tínhamos, três barris em cima de um cajueiro, mas elas não me deixavam, foi então que comecei a correr pelo meio do capim e só assim me vi livre delas.

Mas a tormenta não terminou ai, é que a tenda que servia de enfermaria ficou cheia de abelhas, e o enfermeiro que estava por perto enquanto viu por ali uma abelha, não me quis ir tratar, com muita sorte minha não sou alérgico às ferroadas

Quando as abelhas abalaram, lá veio o enfermeiro que me retirou cerca de trinta ferrões do rosto, dos quais sete estavam numa orelha, para além das dores que senti que foram muitas, não provocaram qualquer inflamação, mesmo a esta distância no tempo, ainda não esqueci a actuação menos própria do enfermeiro, coisa rara entre camaradas, mas mesmo em situações de guerra há sempre alguém que...

Depois de feito o abrigo era tempo de nos organizarmos: aproveitando alguma madeira que por lá havia,  fizemos cada um a sua cama onde colocamos o colchão de campanha que tinha sido distribuído a todos os elementos da Companhia, só que o meu durante o tempo em que dormi no chão rompeu dois dos cinco canos de ar que o compunham. A almofada era independente, como não podia dormir assim, foi necessário vazar os três que ainda tinham ar e ficar só com a almofada. 

No sitio do colchão estava uma manta dobrada, e assim tive de dormir durante os quase nove meses que lá estivemos, dentro do abrigo tínhamos como companhia a G3,  os cinco carregadores, e mais um cunhete com mil munições.

O trabalho dos condutores era quase nada, tínhamos pouco mais de um quilómetro de picada para percorrer desde as nossas instalações até ao rio, à medida que o tempo ia passando também as viaturas que tínhamos eram cada vez menos, a primeira a ficar inutilizada definitivamente foi uma Berliet. 

A comida era feita para toda a Companhia no mesmo local e depois transportada para o sitio onde estavam os outros elementos. Certo dia seguiam na viatura o condutor e um cozinheiro levar o café, era madrugada, porque estava previsto uma saída das nossas tropas, o que não viria a acontecer, porque uma mina rebentou fazendo ir pelos ares a viatura e os dois ocupantes, e claro o pequeno almoço que eles iam levar.

Mas uma vez mais a sorte esteve connosco, perdeu-se a viatura mas os ocupantes sofreram apenas o susto e já não foi pouco, o condutor foi o mesmo que em Mansambo conduzia a viatura que accionou a primeira mina das várias com que fomos contemplados, onde o furriel Ferreira perdeu um pé, - de seu nome José de Sousa

A viatura que tinha accionado a primeira mina em Cobumba, se da primeira vez foi possível ser recuperada, à segunda já não; ficou completamente destruída, ao accionar mais uma mina dentro do arame junto a casas que andávamos a construir para a população. Por essa altura já o PAIGC possuía os mísseis Strela com que tinha abatido várias aeronaves, era a terceira mina a ser accionada em Cobumba e também a que fez mais estragos, para além da perda da viatura houve três feridos graves. 

Como de costume foi pedida uma evacuação urgente via rádio, ficando nós à espera que não demorasse muito tempo, como normalmente acontecia, mas com a introdução dos Strela na guerra tudo se alterou; os nossos camaradas feridos estiveram no local onde supostamente o helicóptero os ia buscar, cerca de três horas

A mina rebentou por volta das duas horas da tarde, já passava das cinco quando de Bissau informaram que a evacuação tinha que ser feita em Cufar, depois de toda aquela espera foi necessário organizar uma coluna via rio Cumbijã com os nossos três barcos, e com o apoio dos fuzileiros que estavam próximo de nós, no Chugué

Era já noite quando a evacuação se efectuou, não de helicóptero como era costume, mas sim de outra aeronave que suponho ter sido um Nordatlas.

Era já tarde quando o pessoal e barcos utilizados na evacuação regressaram, se o nosso moral era já muito baixo, a partir dai ficou de rastos, todos pensávamos que um de nós poderia ser a próxima vitima do novo rumo que a guerra tinha tomado, necessitar de ser evacuado e não ser possível em tempo útil.

Das quatro viaturas que tínhamos, duas já estavam inutilizadas, mais ou menos de oito em oito dias estávamos de serviço de condução, o resto dos dias era esperar que o tempo passasse, quase sempre por perto dos abrigos. 

Todas as noites tínhamos de fazer reforço, o primeiro turno era apenas feito por um militar, os outros eram feitos a dois, a zona era tão má que não podíamos facilitar em nada, como éramos poucos, até os furriéis tinham de fazer reforços, e, contrariamente ao que estavam habituados, ir como nós à cozinha buscar a comida, pois ali tudo era diferente.

A razão que nos levava a estar sempre perto dos abrigos é que as flagelações à distância de quando em vez aconteciam, e a qualquer hora, mas mais grave ainda é que eram muitos os aquartelamentos ou acampamentos na zona, e no inicio dos bombardeamentos não sabíamos a quem se destinavam, só depois de começarem os rebentamentos, e de informações via rádio ficávamos a saber quem eram os destinatários.

Em Cobumba quase todos usávamos chinelos de plástico, quando começava um ataque e tínhamos de fugir para os abrigos, perdíamos logo os chinelos. A correr sem ser a medo nunca os perdíamos. Era mais um passatempo que tínhamos, depois da “festa” acabar havia que procurar onde estariam os chinelos.

Os ataques do IN por vezes tinham também como objectivo desmoralizar as nossas tropas, pois chegavam a disparar duas ou três vezes o RPG, uma ou duas morteiradas e depois paravam. De realçar que a zona onde nos encontrávamos era terra do PAIGC. Algumas vezes nem sequer respondíamos às provocações ou respondíamos na mesma medida.

Certo dia apareceu uma mulher com uma galinha para vender, coisa rara naquelas paragens, pois por ali o povo não estava connosco. Passado este tempo chego a pensar se a galinha não terá sido um pretexto para fazer algum reconhecimento atendendo ao que a seguir se passou.

Alguns de nós condutores compramos a galinha, e claro, fomos logo tratar de a pôr a jeito de ir para a frigideira. Ainda que funcionasse poucas vezes, tínhamos uma máquina a petróleo que o condutor Cruz logo se prontificou para pôr a trabalhar para fritar a galinha. 

Estava a começar a aquecer o azeite, começam a cair algumas morteiradas, há que deixar a galinha e fugir para o abrigo, mas o fogo foi pouco e sem consequências. O Cruz volta ao trabalho, estava a pôr os primeiros pedaços na frigideira volta a haver mais fogo, uma vez mais tudo para os abrigos. O Cruz começava a ficar impaciente, o fogo inimigo voltou a ser pouco, as nossas armas pesadas respondiam de igual forma, esperamos mais algum tempo tudo se calou e nós pensamos que para aquele dia já chegava,mas bem nos enganamos. 

O cozinheiro voltou ao serviço convencido que desta é que era, mal começa a pôr a máquina a trabalhar nova flagelação, desta vez com um míssil à mistura e mais umas poucas morteiradas, e como sempre todos a fugir para os abrigos, daquela vez as nossa artilharia creio que nem respondeu ao fogo do IN. 

O Cruz bastante aborrecido com a situação decidiu, agora ataquem mais ou não, eu é que não saio daqui enquanto não fritar a galinha! E desta vez pararam mesmo, mas só naquele dia, que a festa haveria de continuar quando eles entendessem.

Por essa altura ainda tínhamos duas viaturas operacionais. Certo dia à tardinha o furriel mecânico, acabado de chegar de férias da Metrópole, foi dar uma voltinha com uma Berliet. Andou cerca de quinhentos metros, estava uma mina na picada que o fez ir pelos ares, mas também desta vez com sorte, a viatura ficou destruída mas ele apanhou apenas um grande susto, o que não foi nada que ele não merecesse. 

Em Mansambo, quando tínhamos muitas viaturas e percorríamos muitos quilómetros, víamos condutores de outras Companhias que debaixo e em volta dos bancos traziam vários sacos com areia, tendo em vista proteger um pouco o possível impacto do rebentamento das minas a que estávamos sempre sujeitos, mais que não fosse do ponto de vista psicológico protegia-nos. Pois o nosso furriel mecânico não autorizava que puséssemos esses sacos!...

A partir dessa altura ficamos apenas com uma viatura operacional, o serviço dos condutores era cada vez menos, em boa verdade também não podíamos ser sujeitos a grandes esforços físicos, pois a alimentação a que estávamos sujeitos não permitia que tal acontecesse. 

À medida que o tempo passava mais difícil se tornava o abastecimento de géneros alimentares. Até parece mentira mas não é, houve um dia em que o almoço foi arroz cozido acompanhado com marmelada, e no local que servia de cantina, não havia nada que pudéssemos comprar.

Não havia bicho que chegasse ao arame que escapasse. Certo dia, um que os nativos diziam ser gato foi atraído à luz durante a noite tendo sido abatido, mais parecia ser um cão na fisionomia, mas pouco importou se era cão ou gato, o destino foi ser assado com batatas no forno dos padeiros. 

De outra vez foram os nativos que mataram uma cobra muito grande para lhe tirarem a pele, mas logo houve alguém que achou por bem não desperdiçar tal manjar, e também a cobra foi parar ao forno. Eu não consegui comer mas lá que o petisco parecia estar bom isso parecia. 

Outro dia foi a vez de esquilo guisado com batatas, dessa vez também eu quis provar, ainda pus um bocado na boca mas não o consegui comer.

A pouco mais de um mês de abandonarmos Cobumba, num dia em que eu estava de condutor de serviço com a única viatura que tínhamos operacional, os picadores como era costume fizeram a picagem do trajecto que eu depois teria de percorrer onde detectaram uma potente mina anti-carro, que foi levantada pelo Furriel Trindade o homem encarregado de fazer esse trabalho.

 Ao contrário de outras que foram accionadas no local, essa foi levada para a nossa arrecadação onde estava muito material relacionado com a construção, enxadas, picaretas, pregos e outro material, parte dessa arrecadação servia também de depósito de géneros alimentares, onde se encontravam umas dezenas de sacos de farinha para cozer pão. No que à alimentação diz respeito o pão foi a única coisa sempre boa.

Uma tarde, passados três dias após o levantamento da mina, estavam três militares junto do local onde ela se encontrava. Nunca ninguém soube o que se terá passado, o certo é que ouvimos um estrondo enorme, nos primeiros instantes chegámos a pensar que teria caído por ali algum foguetão, mas não, depressa encontramos a causa, a mina que tinha sido levantada dias antes, tinha explodido e feito desaparecer as instalações, ferindo gravemente os três homens que lá se encontravam, que viriam a ser evacuados para o Hospital Militar em Bissau.

Na manhã do dia seguinte recebemos a noticia que dois tinham falecido, o Furriel Galeano e um soldado do 2.º Pelotão cujo nome já não me recordo, o outro esteve cerca de um mês no hospital, vindo ainda a tempo de regressar à Companhia que passados poucos dias regressava a Bissau. 

Foi terrível o que aconteceu, mas podia ter sido ainda pior, do lado que servia de depósito de géneros, separados apenas por umas chapas, estavam mais quatro homens a jogar as cartas, tiveram a sorte de estar encostados a uma pilha de sacos cheios de farinha, que amorteceu o impacto e só por isso a tragédia não foi maior.

Faltavam poucos dias para sairmos de Cobumba sofremos mais um violento ataque que durou cerca de trinta minutos, que pareceram horas, em que o inimigo utilizou várias armas: o morteiro 82, o canhão sem-recuo, o RPG 7 entre outras, mas uma vez mais a sorte esteve connosco, apesar da precisão do bombardeamento pois caíram várias granadas dentro do aquartelamento, e junto há picada que só por sorte ainda não estávamos a percorrer. 

Apenas tivemos dois feridos ligeiros, vitimas do rebentamento de uma granada de RPG7, eram os apontadores do nosso canhão sem-recuo que ao introduzirem a primeira granada ficaram logo inoperacionais. Houve uma vitima mortal, uma mulher da população.

Nesse dia também eu estava de serviço de condução, já tinha tomado banho, tomava banho normalmente três vezes ao dia , havia pessoal nosso que tinha ido a Cufar, como de costume via rio Cumbijã, e nós tínhamos de os ir levar e buscar ao rio assim como aos barcos. Era fim da tarde, estávamos no cais à espera que eles chegassem, ao mesmo tempo que a aviação bombardeava não muito longe de nós, ainda os Fiat iam a caminho de Bissau, já estávamos a ser bombardeados, o que levou alguns a pensar que seria ainda a nossa aviação a bombardear, mas não, era mesmo Cobumba que estava a ser atacada, o rio naquela altura estava com a maré baixa cerca de três ou quatro metros, muitos de nós tentamos abrir buracos no lodo deixado pelo baixar da maré para nos protegermos, se é que isso ajudava alguma coisa, mas era o que nos restava fazer, mas as granadas mais próximas caíram a cerca de cem metros de nós.

Passados alguns dias chegou a Companhia que nos foi render a Cobumba. Durante o tempo em que estivemos com os “piras”, cerca de dez dias, fomos atacados uma vez, para eles era o baptismo de fogo, mas também desta vez apesar de nos mandarem alguns foguetões à mistura não nos causaram qualquer dano, a não ser algumas pisadelas pois os abrigos onde nos abrigávamos, durante este ataque ficaram com o dobro da lotação. 

(Seleção / revisão e fixação de texto / negritos: LG)
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 22 de novembro de  2023 > Guiné 61/74 - P24871: Excertos dos melhores escritos de António Eduardo Ferreira (1950-2023), ex-1º cabo cond auto, CART 3493 / BART 3873 (Mansambo, Cobumba e Bissau, 1972/74) - Parte VI: Cobumba... onde é que isso fica?

quarta-feira, 22 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24871: Excertos dos melhores escritos de António Eduardo Ferreira (1950-2023), ex-1º cabo cond auto, CART 3493 / BART 3873 (Mansambo, Cobumba e Bissau, 1972/74) - Parte VI: Cobumba... onde é que isso fica?


Guiné > Região de Tombali > Carta de Bedanda (1956)  > Escala 1/50 mil > Posição relativa de Bedanda,  Cobumba, Cufar e rio Cumbijã.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2023)


1. Série com pequenos excertos dos melhores postes do António Eduardo Jerónimo Ferreira (1950-2023) (ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493 / BART 3873, Mansambo, Cobumba e Bissau, 1972/74) (*).

O nosso camarada era natural de Moleanos, Alcobaça. Na tropa e na guerra era mais conhecido por Jerónimo. Lutou quase 20 anos, desde 2004, contra um cancro. Criou o blogue Molianos, viajando no tempo, em data difícil de precisar (c. 2013/2014).


Parte VI - Cobumba? Onde fica isso?

(...) O pior da nossa comissão estava para vir.  No fim de março de 1973, a nossa Companhia foi informada que íamos ser transferidos para Cobumba, nome para nós desconhecido, mas logo nos disseram que ficava na zona sul,  próximo do Cantanhez, e estava tudo dito, uma das piores zonas de guerra na Guiné. (*)

Deixámos Mansambo, e depois de cerca de uma semana em Fá Mandinga e mais três ou quatro dias em Bissau, era chegado o dia de rumarmos ao Sul na LDG que nos haveria de levar até Cobumba. 

Iniciámos a viagem ao começo da tarde do dia 7 de abril de 1973, sábado, acompanhados daquilo que era indispensável para início da nossa instalação no terreno. Ao anoitecer chegámos algures à foz do rio Cumbijã e ali tivemos de ficar o resto da noite. 

Ao mesmo tempo que a LDG parava, levantou-se uma trovoada violentíssima ao ponto de ficarmos todos assustados com a agitação do mar que até aí tinha sido de calma absoluta, depois dos marinheiros terem descido as âncoras e a trovoada acalmar, passámos uma noite com a normalidade possível.

No dia seguinte fizemos o resto da viagem rio acima acompanhados por um navio patrulha da Armada até Cobumba, sítio onde nunca tinha estado aquartelada tropa portuguesa. Chegámos ao início da tarde, estava na região muita tropa especial (paraquedistas, do BCP 12) mantendo segurança ao nosso desembarque. 

À medida que as quatro viaturas que levávamos (duas Berliet e dois Unimog 404) iam saindo da LDG, eram carregadas e seguiam fazendo uma pequena viagem de cerca de quatrocentos metros onde eram descarregadas.

As viaturas tinham sido dias antes levantadas em Bissau por quatro condutores que para esse efeito tinham saído mais cedo da Companhia. Durante a descarga foram esses condutores a manobrar as viaturas (eu, não indo a conduzir,  fui um dos que foram nas primeiras quatro carradas), à medida que descarregavam voltariam ao rio para novo carregamento.

Sendo eu o condutor que naquele momento estava mais próximo da primeira que descarregou, o capitão, comandante da Companhia, disse-me para eu seguir com ela para o cais, tendo eu perguntado ao condutor que fizera o primeiro trajecto se ele queria que eu fosse ao rio, respondendo-me que não, que ia ele. Com toda aquela confusão nem sequer pensávamos em minas, pois a estrada teria sido supostamente bem picada e já tinham passado as quatro viaturas uma vez.

O condutor Cabral, e o Varela.  das transmissões,  eram os únicos ocupantes que seguiam na viatura de regresso ao rio, percorreram cerca de trinta ou quarenta metros e a viatura acionou uma mina que,  pelo estrago feito,  talvez fosse antipessoal, mas mesmo assim ficou alguns dias inutilizada, tendo o Cabral e o Varela ficado feridos, e voltado logo para Bissau, rumo ao Hospital Militar num helicóptero que passados poucos momentos chegou ao local. 

O Varela,  não tendo nada de grave, no dia seguinte voltou para a Companhia; o Cabral não mais voltou, foi ferido com gravidade numa vista tendo sido enviado para o Hospital Militar Principal de Lisboa.
 
O desembarque do resto do pessoal e de carga continuou, mas com atenção redobrada dado as coisas começarem a correr mal logo de início; o resto da operação de desembarque decorreu sem sobressaltos de maior. 

Na primeira noite a Companhia ficou toda no mesmo sítio. Na manhã do dia seguinte quase toda a formação (criptos,  radiotelegrafistas, condutores, padeiros, mecânicos, enfermeiros, alguns elementos de transmissões, uma secção de artilharia tendo a seu cargo o morteiro de 107 milímetros, o comando da Companhia e mais dois pelotões de atiradores) foram instalar-se a cerca de quatrocentos metros. 

Os outros dois pelotões ficaram no mesmo sítio, assim como uma secção de especialistas de armas pesadas tendo como função ocupar-se de um canhão sem recuo, a precisar de reforma.

A cerca de trezentos metros do pessoal da nossa companhia estavam mais dois pelotões que, estando connosco,  pertenciam a outra companhia, ou seja, estávamos distribuídos em três sítios,  formando um triângulo separados por poucas centenas de metros, um desses três era como que o equivalente à CCS do Batalhão,  já que aí se situava o comando da Companhia, e quase toda a formação.

Depois foi instalarmo-nos o melhor possível,  o que não foi fácil, estávamos habituados a ter luz, abrigos com alguma segurança e menos guerra, ali tudo era diferente, houve que fazer valas apressadamente, montar tendas, fazer um forno para cozer o pão, tendo sempre como companhia a inseparável G3. 

No primeiro mês o PAIGC não nos incomodou… durante esse tempo foram feitos outros trabalhos, mas aquela calma… deixava antever qualquer coisa que nós não sabíamos muito bem o que seria!

Entretanto,  conforme estava previsto, vim a segunda vez de férias à Metrópole; numa zona sem vias de comunicações viárias, isolada com guerra por todos os lados, restava-nos fazer o trajecto pelo rio ou via aérea("mas pelo ar só em casos especiais"), e lá fui numa coluna de pequenos barcos de fibra,  os “sintex”, até ao aquartelamento de Cufar, onde existia uma pista de aviação (creio ser a melhor do sul da Guiné). 

No mesmo dia embarquei num avião Nordatlas até Bissau, foi a aeronave mais barulhenta das sete em que viajei durante o meu tempo de guerra que foram: o DC 6, o Dakota, a avioneta DO 27, o Boeing 727, o Nordatlas, o Helicóptero, e o Boeing 707, que nos trouxe de regresso à metrópole no final da comissão.

Passados dois dias em Bissau, embarquei em Bissalanca rumo a Lisboa onde cheguei ao cair da noite: se da primeira vez que vim de férias,  o meu pensamento estava quase sempre no dia em que teria de regressar a África, agora a confusão era ainda maior; mesmo junto da minha esposa e do meu filho muitas vezes a minha ausência era quase total, foi um tempo de tal confusão que quase nada me lembro daquilo que por essa altura terá acontecido.

Se da primeira vez conhecia bem o sítio para onde iria voltar; da segunda apenas sabia ir para uma das zonas de maior actividade operacional do IN. Ainda bem que durante as férias não tive qualquer notícia daquilo que por lá se passava, pois se tal tivesse acontecido a partida teria sido ainda mais dolorosa.

Terminadas as férias lá fui uma vez mais rumo a Bissau onde cheguei ao fim da manhã, no mesmo dia tive transporte para Cufar e de novo no barulhento Nordatlas, como os homens por mais que fossem eram sempre poucos naquela zona, à tardinha arranjaram-me boleia para Cobumba, desta vez de helicóptero com uma breve passagem por Bedanda, onde o heli que me levava se manteve no ar enquanto o helicanhão foi a terra, cheguei a Cobumba ao fim do dia.  (...) (**)

(Seleção / revisão / fixação de texto /negritos: LG)
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Notas do editor:

(*) Excerto de 21 de março de 2012 > Guiné 63/74 - P9635: O tempo que ninguém queria (António Eduardo Ferreira) (3): De Mansambo para Cobumba

domingo, 5 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24824: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (18): a taberna em meio rural (António Eduardo Ferreira, 1950-2023, Moleanos, Alcobaça)



Fado (1910),  quadro a óleo sobre tela, de José Malhoa (1855–1933). Museu de Lisboa. Imagem do domínio público. Cortesia da Wikimedia Commons.


1. Das coisas do passado, do tempo da nossa infància, falta ainda falar de lugares de "socialização" como a igreja e a escola... mas também da "rua" (onde se brincava), sem esquecer a taberna, tanto em meio rural como urbano,  se bem que fosse um lugar "interdito" aos putos: só se lá ia para ir chamar o pai, ou comprar um quartilho de vinho, nomeadamente nos meios rurais ou nas pequenas vilas de província. Eram  em geral espaços públicos esconsos, acanhados, sujos e mal iluminados. 

 Etimologicamente, "taberna" vem do latim "taberna", do grego ταβέρνα (que significa "abrigo" ou "oficina"). Tanto nos meios rurais como citadinos, tinha uma função importante não só para efeitos de consumo (e venda) de bebidas alcoolócias (com destaque para o vinho, a copo) e ainda do  petisco,  bem como local de convívio, troca de informação, notícias, ideias, etc. 

A história do fado (vd. imagem acima), por exemplo,  é indissociável das tabernas que existiam nos bairros populares nas zonas ribeirinhas de Lisboa, ao longo do séc.XIX até aos anos 70 (e também das "hortas", " fora de portas", já na zona saloia, que começava em Benfica,  e onde os alfacinhas (operários, marçanos,  pequeno funcionalismo público, etc. )  iam aos "comes & bebes",  sábado à noite, em geral em família ou em grupo  com direito a "fados e guitarradas".

Ainda frequentei, como estudante e como investigador, no àmbito da licenciatura em sociologia, a "Pérola da Atalaia", uma modesta taberna, para não dfizer "tasca", sita na Rua da Atalaia, Bairro Alto, Lisboa, que hoje já não existe. Tinha meia dúzia de meses (se tanto),   com  tampos de mármore (fáceis de lavar com um pano molhado), e bancos, e um cheiro típico, a fritos, vinho tinto e lexívia...

Fiz parte, no final dos anos 70, de uma vasta equipa de alunos de sociologia, dirigida pelo antropólogo Joaquim Pais de Brito (ex-director do Museu Nacional de Etnologia), que fez a primeira abordagem séria, académica, com rigor científico, do fado enquanto "canção popular urbana de Lisboa"... Eu e a minha equipa interessámo-nos pelo chamado "fado vadio", amador, espontàneo,  que ainda se cantava e tocava, na época, no Bairro Alto.  Procurávamos sobretudo registar letras,  personagens, falas, ambientes, etc.

As "casas de fado" (desdeva II Guerra Mundial  para "turista"...) têm a sua origem na taberna lisboeta... Foi o laboratório da canção popular urbana que, ao longo da sua história de dois séculos, e em termos político-ideológicos, foi tudo, a avaliar pelo conteúdo das suas nas letras, a tal ponto que se pode dizer que há um fado liberal, miguelista, marialva, monárquico, republicano, anarcossindicalista, socialista, comunista, fascista, progressista...  O fado é a "ganga da história"... 

António Ferro e o Secretariado Nacional de Propaganda (SNP), depois SNI, no Estado Novo, quiseram fazer do fado "uma canção nacional"... O mesmo aconteceu ao flamenco (em Espanha), e ao tango (na Argentina). Enfim, houve uma apropriação digamos "societal" de uma forma de expressão musical popular, que na origem não era só "cantada", mas também "dançada" e "batida", e estava ligada, socioantropologicamente falando, a estratos sociais marginalizados.

Muito aprendi, nessa altura, com o meu mestre e amigo Joaquim Pais de Brito, pioneiro na abordagem socioantropológica do fado e hoje talvez injustamente esquecido... Quando fui a um entrevista de admissão como docente à Escola Nacional de Saúde Pública fui aconselhado a omitir, do meu currículo, os muitos fins de tarde passados na "Princesa da Atalaia"... (Ainda havia prostituição de rua nessa altura, e a saúde pública dava-se mal com estes lugares  social e culturalmente estigmatizados e marginalizados, na época).

2. Mas vamos ao que interessa: a taberna, em pequenas terras do interior do nosso querido Portugal, como Molianios (ou Moleanos), Alcobaça (hoje famosa pelo seu calcário, que é énico e se chama justamente Moleanos). 

Nas tabernas de Moleanos  provavelmente nunca se cantou o fado, a não ser muito esporadicamente. (No baixo Alentejo, a taberna, sim,  era o local por excelència do "cante".) 

A evoção da taberna em meio rural (que nada tem a ver com o fado, "canção popular urbana" nem com a iconica pintura do José Malhoa que reproduzimos acima ...) é feita aqui pelo nosso saudoso camarada António Eduardo Jerónimo Ferreira (1950-2023) (ex-1.º  cabo condutor auto, CART 3493 / BART 3873, Mansambo, Cobumba e Bissau, 1972/74).

Na tropa e na guerra era mais conhecido por Jerónimo. Lutou quase 20 anos, desde 2004, contra um cancro. Criou o blogue Molianos, viajando no tempo, em data difícil de precisar (c. 2013/2014). No nosso blogue é autor das séries O tempo que ninguém queria e Pedaços de um tempo,



A taberna na minha aldeia de Moleanos nos anos 50

por António Eduardo Ferreira


Recuando no tempo, a conversa, hoje, é sobre as tabernas que existiam na aldeia de Molianos ou Moleanos, segundo o topónimo oficialpor volta do ano de 1950 do século passado, e aquilo que elas representavam na vida das pessoas de então. (*)

Por essa altura, e ainda durante mais alguns ano, foram as tabernas os locais onde os homens se juntavam ao domingo, assim como nos dias santos, ou no inverno quando não era possível trabalhar nas terras.

Durante o tempo que estavam nas tabernas, eles, para além de muita conversa, aproveitavam para beberem uns copos do tinto e também do branco, ainda, que, por aqui, fossem poucos o que trocavam o tinto pelo branco. O bagaço também fazia parte das bebidas que eles consumiam. Outras havia que não faziam parte dos seus hábitos: a cerveja, a gasosa, a laranjada e ainda o pirolito que, entretanto, acabou!... 

Para beberem vinho, algumas vezes, nem necessitavam de copo, bebiam todos pela mesma garrafa, "a olho",  como naquele tempo por aqui se dizia.

As tabernas, para além das bebidas… eram também o local onde se vendia quase tudo que as pessoas necessitavam para o dia a dia: o açúcar, o café (para fazer na cafeteira), a massa, o arroz, o colorau, o petróleo, o bacalhau, o sebo para as botas, entre muitas outras coisas. 
Noutras sítios também se chamava "venda" à taberna onde se ofereciam, para venda, além de vinho e comida,  artigos de mercearia; topónimos como Venda das Raparigas podem ter na sua origem um destes estabelecimentos à beira da estrada; e nas feiras a taberna era a "tenda". ]

Um pouco mais tarde, em algumas, até comprimidos para a constipação... vendiam, eram uma espécie de minimercado da época.

Naquele tempo, na aldeia de Molianos, as mulheres não frequentavam as tabernas, a não ser para irem fazer as compras e logo regressavam a casa. Diziam os homens que as tabernas não eram para as mulheres. Mas não se pense que algumas, mesmo sem estarem na taberna, de vez em quando, não apanhavam também a sua piela de tal tamanho... que as fazia ziguezaguear, não conseguindo passar despercebidas junto das pessoas com quem se cruzavam.

Por aquela altura não existiam na aldeia coletividades de desporto, cutura e recreio ou outros espaços públicos onde os homens se pudessem juntar, a não ser nas tabernas, ou no tempo da apanha da azeitona em que também os lagares eram sítios onde muitos se encontravam no fim do dia. Apesar de ser no inverno, os lagares eram locais onde existia um ambiente confortável a que eles não estavam habituados, um espaço aquecido… e com boa iluminação, coisa inexistente nas casas da aldeia.

Naquele tempo, as pessoas não saíam para fora da terra a não ser para trabalhar, algumas vezes para muito longe. Os transportes públicos apenas havia à segunda-feira, para Alcobaça, por ser o dia em que lá tinha lugar o mercado. Os transportes particulares também não haviam. 

Apesar de existirem muitos homens na aldeia, apenas, quatro ou cinco, possuíam uma bicicleta. O transporte mais utilizado pelas pessoas para se deslocarem, não só para o campo, mas também para ir às compras, à sede do concelho, eram os burros, animais esses que havia muitos na aldeia.

Só à segunda-feira, havia a camioneta da carreira como as pessoas lhe chamavam, mas mesmo assim nem todos a utilizavam, eram muitos os que faziam os dez quilómetros para cada lado a pé, para pouparem o valor do bilhete… que era pouco, mas necessário para ajudar nas compras que iam fazer, o pouco dinheiro de que dispunham a isso os obrigava.

Se as tabernas durante algum tempo era o sítio onde os homens se encontravam quando não era possível trabalhar, também havia algumas épocas em que os frequentadores eram poucos. Isso acontecia, quando quase todos os homens e rapazes, alguns com doze ou treze anos, saíam da aldeia para irem trabalhar para as vindimas para a região saloia, assim como para outros serviços, em particular, para a zona de Lisboa.

Quando regressavam à terra voltava a ser grande o ajuntamento nas tabernas aos domingos à tarde, onde a bebida e as conversas à mistura eram sempre muitas. 

Por vezes, apareciam por lá poetas populares com jeito para cantar ao desafio o que era sempre do agrado de todos. 

Quando o álcool já era quem mais ordenava, por dá cá aquela palha, algumas vezes, aconteciam cenas de pancadaria, nada que passado alguns dias os contendores, por iniciativa própria ou com a ajuda de alguém, não resolvessem fazendo as pazes. Chegava a acontecer a alguns ficarem mesmo amigos.

As tabernas, para além do já referido… desempenhavam também uma "função social": não davam nada a ninguém, mas tornavam possível, sem aumento de preço, a algumas pessoas,  adquirir bens essenciais para o dia a dia das famílias, quase sempre numerosas, permitindo-lhe comprar fiado com a promessa de vir pagar quando tivessem dinheiro. Se assim não fosse, as pessoas não podiam comprar e as dificuldades que eram sempre muitas, seriam ainda mais. (...) (*)

(Seleção / revisão e fixação de texto / negrit0s / parènteses retos: LG)
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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 3 de novembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24819: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (17): O Barroso que não era(é) só a 'carne barrosã' DOP: o comunitarismo agropastoril, segundo o Padre Fontes (1977) - II (e última) Parte: tudo era de todos quando a necessidade oprimia
 

quinta-feira, 2 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24815: Excertos dos melhores escritos de António Eduardo Ferreira (1950-2023), ex-1º cabo cond auto, CART 3493 / BART 3873 (Mansambo, Cobumba e Bissau, 1972/74) - Parte V: o sentinela, o 1º cabo mecânico Santos, que afinal confundiu gazelas com 'turras' junto ao arame farpado..


Foto nº 1 > Guiné > Zona leste > Região de Bafatá  > Setor L1 (Bambadinca) > Mansambo > CART 2339 (1968/69) > O alf mil Torcato Mendonça (1944-2021) junto a um obus 10,5 ou 105 mm. Em 1972/73, ao tempo da CART 3493,  já não havia artilharia (obus 10,5) em Mansambo, apenas uma esquadra de morteiro 81, do Pel Mort 2268. (No subsector de Mansambo, além da CART 3493, jan 72/mar 73, havia um Pel Mil, 0 308,  em Candamã.)

Foto (e legenda): © Torcato Mendonça  (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar:  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
 


Foto nº 2 > Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca) > Mansambo > 1970 > Vista aérea do aquartelamento de Mansambo, construído de raiz pela CART 2339 (Fá Mandinga e Mansambo, 1968/69).  Situava-se perto da estrada   Bambadinca -Xitole, à direita (assinalada a tracejado, a amarelo). 

Dentro do perímetro do aquartelamento, situava-se o heliporto, à esquerda, assinalado a vermelho (na foto). A zona envolvente estava  completamenmte desmatada.  Havia só uma grande árvore ao fundo,  à entrada do aquartelamento, numa saída  que dava acesso à bifurcação para a estrada Bambadinca-Xitole, com Bambadinca (a norte) (lado esquerdo) e o Xitole (a sul) (lado direito da foto).  

Em 1960, havia dois  obuses 10,5, um de cada lado,  à esquerda e à direita. Ao fundo vê-se uma mancha,  à esquerda do trilho de entrada,  que era a tabanca dos picadores. À direita no triângulo de trilhos, ficava a horta da CART 2339. A fonte ficava à direita da foto onde se veem 3 trilhos, na mancha mais negra em baixo.  

Em 1973, o PAIGC deslocou parte das suas forças, da chamada Frente Xitole, para o sul, aliviando a pressão sobre o sector L1, em geral, e Mansambo, em particular, incluindo a estrada Bambadinca-Xitole (que chegou a estar interdita entre finais de 1968 e setembro de 1969). Em 5 de abril de 1973, a CART 3493 será transferida para Cobumba, na região de Tombali, passando a integrar o COP 4  (com sede em Cufar).
 
Foto do arquivo de Humberto Reis (ex-furriel mil op esp, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).

Foto (e legenda): ©  Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
 

1. Série com pequenos excertos dos melhores postes do António Eduardo Jerónimo Ferreira (1950-2023) (ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493 / BART 3873, Mansambo, Cobumba e Bissau, 1972/74) (*).

O nosso camarada era natural de Moleanos, Alcobaça. Na tropa e na guerra era mais conhecido por Jerónimo. Lutou quase 20 anos, desde 2004, contra um cancro. Criou o blogue Molianos, viajando no tempo, em data difícil de precisar (c. 2013/2014).

A pequena história aqui contada não é virgem... Uns  anos antes, c. 1969/70, em Bambadinca,  houve um soldado básico, que estava, certamente por castigo, num dos postos de vigia à noite, e que provocou um  enorme alarido, ao começar a gritar  que estava uma manada  de  "elefantes" junto  ao arame farpado... 

Este nosso camarada de Mansambo, o 1º cabo cabo mecânico Santos,  viu, não uma manada de elefantes mas de gazelas à cata da mancarrra, semeada pelo pessoal da tabanca dos guias e picadadores (não havia população) e despejou-lhe um carregador de G3 em cima, mas com tanto azar que não acertou em nenhum bicho... Se tivesse acertado, seria bem pior: comia bife, no dia seguinte, ao almo9ço, e uma porrada ao jantar...

Uma história pícara aqui contada pelo 1.º cabo condutor auto Jerómimo (**), e que vem enriquecer o anedotário da nossa guerra...


Parte V: O sentinela, o  1.º cabo mecânico Santos, que afinal confundiu gazelas com turras junto ao arame farpado...

(...) Certa noite em Mansambo, o cabo mecânico fazia reforço num posto de vigia que ficava próximo do heliporto (vd. foto nº 2, acima). 

Quem o conhecia, o Santos, sabia bem como era o seu comportamento, sempre pouco preocupado com o que pudesse acontecer.

Em Mansambo no nosso tempo não era permitido fazer fogo quer fosse de noite ou de dia. Naquela noite tudo decorria com normalidade como era costume, até que o Santos viu entrar na primeira vedação de arame que circundava o aquartelamento uma manada de gazelas e vai disto, sem pensar na confusão que iria arranjar, despejou o carregador na direção dos pobres bichos que naquela noite pensavam ir ter uma refeição especial ao mondar a mancarra que o pessoal da Tabanca tinha semeado entre as duas vedações, mas ficaram-se só pelo susto.

Com aquele despertar toda a rapaziada supôs ser ataque junto ao arame,  nós que até nem sabíamos o que isso era (nunca aconteceu enquanto tivemos em Mansambo), foram perguntar ao Santos o que é que ele tinha visto. Ele. com aparente convicção, disse que tinha visto homens junto ao arame e por isso tinha disparado nessa direção.

Mesmo sem resposta ao fogo do Santos por parte do inimigo, a ordem foi para bater toda a zona e, a reação ao suposto inimigo, foi de tal ordem que as nossas munições de armas pesadas ficaram quase esgotadas (vd. foto nº 1).

No dia seguinte foi feita uma coluna a Bambadinca para repor o material em falta e certamente para dar mais pormenores acerca do sucedido ao Comando do Batalhão (o BART 3873). 

Só passado algum tempo, é que o Santos disse o que na verdade tinha acontecido, viu as gazelas,  disparou e tinha que arranjar maneira de sair daquela situação, e assim se safou,  inventando essa pseudoaproximação do inimigo ao arame.(...)

(Seleção / revisão e fixação de texto / negritos: LG)
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Nota do editor:


(**) Vd. poste de 6 de junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10043: Pedaços de um tempo (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CART 3493) (2): Gazelas em Mansambo

domingo, 29 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24804: Excertos dos melhores escritos de António Eduardo Ferreira (1950-2023), ex-1º cabo cond auto, CART 3493 / BART 3873 (Mansambo, Cobumba e Bissau, 1972/74) - Parte IV - A lavadeira... lavada em lágrimas


Guiné > Região de Quínara >Fulacunda 1972/74 >  Lavadeiras na Fonte Velha

Foto (e legenda): © Jorge Pinto (2014). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné], com a devida vénia


1. Série com pequenos excertos dos melhores postes do António Eduardo Jerónimo Ferreira (1950-2023) (ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493 / BART 3873, Mansambo, Cobumba e Bissau, 1972/74) (*). 

O nosso camarada era natural de Moleanos, Alcobaça. Na tropa e na guerra era mais conhecido por Jerónimo. Lutou quase 20 anos, desde 2004, contra um cancro.  Criou o blogue Molianos, viajando no tempo, em data difícil de precisar (c. 2013/2014).


Parte IV - A lavadeira... lavada em lágrimas (**)

A primeira foi a Califa, uma menina ainda muito nova. A esta distância no tempo já não me lembro como foi que ela apareceu como minha lavadeira, talvez já desempenhasse esse serviço para os condutores que nós fomos substituir. Apesar da sua idade… era muito responsável. 

Passados alguns meses da nossa companhia estar naquele local, a Califa deixou Mansambo e foi casar com um homem bastante mais velho que ela. Foi mais um acontecimento que me causou algum espanto (...)  ver uma menina com tão pouca idade ir casar com um homem muito mais velho, que diziam… já ter mais algumas a quem ela se ia juntar!

Depois da partida da Califa… a minha lavadeira passou a ser outra de quem já não me recordo o nome, mas não esqueci que era alguém bela,  elegante e muito calma, sempre bem vestida mais parecia uma menina identificada com outro tempo!... 

Apesar de ainda nova já tinha um filho que trazia sempre consigo quando vinha buscar ou entregar a roupa. Pouco tempo antes da nossa saída de Mansambo para Cobumba, um dia estava eu sozinho no abrigo, como acontecia muitas vezes, quando ela lá apareceu levar-me a roupa com o seu menino ainda pequeno às costas, como era hábito das mães… andarem com os filhos. 

Sentou-se na minha cama com o semblante carregado próprio de quem estava a sentir-se perturbada e disse-me:

- António, estou grávida.

António Eduardo
Jerónimo Ferreira
(1950-2023)
Notava-se que tinha vontade de falar… não sei se seria com todas as pessoas… Estivemos 
algum tempo a conversar em que foi ela quem mais falou, entre outras coisas, disse-me que o pai do seu filho e daquele que vinha a caminho… também era tropa e naquela altura estava em Bambadinca. 

Depois de termos estado algum tempo a falar, quando abalou, as lágrimas bailavam-lhe nos olhos, o que me deixou por momentos algo perturbado. 

Das mulheres com quem tive oportunidade de falar e de ouvir durante o tempo que estive na Guiné (atendendo ao tempo que por lá andei não foram muitas… ), era aquela alguém diferente de todas as outras!...

Em Cobumba não tive lavadeira, nem ouvi falar que houvesse por lá alguém que tivesse. A roupa que eu lá trazia vestida também era pouca, apenas uns calções e nos pés uns chinelos de plástico sem peúgos. Só durante a noite quando estava de serviço, a fazer reforço, que fazia todas as noites, algumas vezes vestia o camuflado. 

A minha falta de jeito para lavar roupa, apesar de ser pouca a que tinha de lavar, ajudou a valorizar ainda mais o serviço das lavadeiras que tive em Mansambo. Espero que ainda por lá estejam… e que a vida lhe tenha corrido o melhor possível. (...)

(Seleção / Revisão e fixação de texto / Negritos / Parènetses retos: LG)



2. Na altura comentei: 

António, és um homem de grande sensibilidade e bem formado. O teu poste merece ser comentado. Dás-nos conta de dois dramas com que alguns de nós lidaram, sem meios para poder intervir ou ajudar: 

(i) o casamento precoce e forçado das jovens guineenses; 

(ii) a maternidade não desejada, a ausência de planeamento familiar, a poligamia, a separação do homem e da mulher devido à guerra...

É possível que o homem da tua segunda lavadeira, que chorou à tua beira, fosse da CCAÇ 12, aquartelada em Bambadinca e depois no Xime a partir de Março de 1973...

Lembro que Mansambo no meu tempo tinha escassa população. Fui lá diversas vezes. E, muito bem, recordas que em Cobumba, no Cantanhez, não havia lavadeiras...A guerra não foi igual para todos.

Saúde e um alfabravo. Luis | 31 de maio de 2021 às 12:51 

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Notas do editor:

(*) Vd. postes anteriortes da sér ie:


25 de outubro de 2023 > Guiné 61/74 - P24792: Excertos dos melhores escritos de António Eduardo Ferreira (1950-2023), ex-1º cabo cond auto, CART 3493 / BART 3873 (Mansambo, Cobumba e Bissau, 1972/74) - Parte II: partida de avião para Bissau, em 24 de janeiro de 1972, deixando a mulher e um filho na maternidade 

23 de outubro de 2023 > Guiné 61/74 - P24785: Excertos dos melhores escritos de António Eduardo Ferreira (1950-2023), ex-1º cabo cond auto, CART 3493 / BART 3873 (Mansambo, Cobumba e Bissau, 1972/74) - Parte I: A porta estreita da vida