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terça-feira, 17 de maio de 2011

Guiné 63/74 - P8286: Notas de leitura (239): O Meu Testemunho, uma luta, um partido, dois países, por Aristides Pereira (4) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Abril de 2011:

Queridos amigos,

Prossegue a saga de procurar sintetizar o que de mais relevante se pode encontrar nas centenas de páginas de entrevistas incorporadas no livro “O Meu Testemunho”, de Aristides Pereira.

É uma rara oportunidade de ouvir dirigentes e combatentes da primeira linha, habitualmente silenciosos ou remetidos discretamente na sombra.  Discorde-se, ou não, de Ana Maria Cabral, o seu olhar sobre aqueles tempos de Conacri e o complô em marcha não pode ser iludido. Como mais tarde iremos ouvir Rafael Barbosa, aquele que eu considero a personagem mais fascinante depois de Amílcar Cabral, nada conheço de tão intrigante, com tal aura de mistério, muito provavelmente não teremos possibilidade de esclarecer os envolvimentos em que andou metido, as conspirações que patrocinou.


Um abraço do
Mário


O testemunho de Aristides Pereira* (4):
Ana Maria Cabral na primeira pessoa

Beja Santos

O aspecto mais extravagante de “O Meu Testemunho”, de Aristides Pereira, é que o elenco de entrevistas possui mais relevância que as lembranças do autor até ao fim da luta armada e a chegada da independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde. Honra lhe seja feita, o seu documento esclarece de uma vez por todas a luminosidade e o papel fulcral desempenhado por Cabral: não há um só documento, não há uma só entrevista, não há um só discurso, não há uma só tomada de posição política onde Amílcar Cabral não esteja presente, desde a concepção à acção. O PAIGC é a sua emanação, nenhum dos outros dirigentes revelou dotes de inteligência, finura de espírito, concepção estratégica que se aproximasse minimamente da teoria e da prática de Cabral. E Aristides Pereira, do cimo da sua modéstia, nunca ilude essa realidade.

Muitos são os entrevistados que acompanham o seu testemunho, mulheres e homens por vezes altamente motivados e, por esta ou aquela razão, pesaram na história do PAIGC: É caso de Adriano Brito, o comandante Agnelo Dantas (que combateu na Frente Leste, assistiu à retirada de Madina do Boé), Alpha Abdoulay e Djallo, que foi Ministro dos Negócios Estrangeiros de Sékou Touré, Amélia Araújo (animadora e locutora da Rádio Libertação), Ana Maria Cabral (segunda mulher de Amílcar Cabral e que presenciou o seu assassínio) e Aristides Pereira. Neste apontamento, não se pode ir mais longe.

Ana Maria Cabral nasceu Canchungo, em 1941. Começa por referir o espírito unitário de Cabral em torno da luta dos movimentos de libertação de Angola, Guiné e Moçambique. Em 1966, Ana Maria chega a Conacri e vai trabalhar na Escola Piloto. Questionada sobre o ritmo frenético em que vivia Cabral, ela responde: “Acho que ele sabia que era um elemento estranho ou insuportável para o equilíbrio de África. As grandes potências que mandam no mundo não podiam suportar que alguém, um preto, tentasse sair desses esquemas e ser verdadeiramente independente. Não podiam aceitar que Cabral fosse sério, inteligente e muito honesto”. E elogia igualmente a sua capacidade metódica de corredor de fundo: “Ele quis que primeiramente se fizesse a mobilização durante três anos par que a população soubesse e percebesse bem o que era a colonização. Recordo-me do primeiro jornalista ou cineasta francês que esteve nas áreas libertadas. Em Conacri ele contou-me que ao chegar a uma tabanca as pessoas, e principalmente as crianças fugiam porque nunca tinham visto um branco. Isto nos anos 60!”.

Sobre o ambiente de mal-estar que se vivia em Conacri antes do assassinato de Cabral, Ana Maria observa: “O ambiente já estava minado, todos nós sentíamos isso. Cabral teve muito pouca ajuda de todos nós. Cabral mandou construir uma cantina para todos, onde todos pudessem tomar as suas refeições, exactamente porque se apercebeu de que ali, em Conacri, o grosso eram camponeses e lumpens de Bissau e uma minoria pequeno-burguesa. Havia a tendência de se formarem grupos consoante as classes existentes. Os da pequena burguesia não se sentiam bem na mesma cantina com os outros e por isso cada vez se afastavam mais… Fomos nós da pequena burguesia que contribuímos para que os agentes de Spínola encontrassem terreno apropriado para a conspiração. Por isso mesmo é que após o assassínio de Cabral muita dessa gente foi afastada para outros sítios. Para limpar Conacri de tantas intriguinhas e desmobilização”. Leopoldo Amado pergunta-lhe sobre a existência de uma clivagem entre guineenses e cabo-verdianos, ao que a entrevistada responde afirmativamente, responsabilizando certos cabo-verdianos ou guineenses por estarem dominados pela consciência de classe: “Foi esta classe de guineenses e de cabo-verdianos que não soube compreender as ideias de Cabral e que ajudou a preparar o caminho para os agentes de Spínola”.

Depois descreve minuciosamente os acontecimentos da noite de 20 de Janeiro de 1973, ela estava ao lado do marido quando se deu o assassinato. Interrogada sobre o número de conspiradores, ela observa: “Ouvi todas as cassetes, porque a comissão de inquérito do PAIGC gravou tudo e o camarada Aristides deu ordem para que eu ficasse com elas. Fiz a transcrição de todas elas e, realmente, o único grupo que tentou apurar a verdade foi o do Fidélis Almada… Depois da independência é que eu devolvi essas cassetes todas ao Buscardini. Hoje, alguns de nós dizem que se desfizeram rapidamente e de propósito dos conspiradores! Pode ser que em relação a alguns, sim. A verdade é que, com os combatentes e a população a pressionar a comissão de inquérito não havia condições para se fazer bons julgamentos”.

A entrevista que Leopoldo Amado faz a Aristides Pereira é também bastante importante, não dá para entender como certas observações são escamoteadas do testemunho e aparecem aqui isoladas. As reminiscências da infância e da juventude são úteis para entender aquele espaço e aquele tempo. As malhas da rede que se formou, por vezes inconscientemente, em torno dos grupos independentistas que foram emergindo em Bissau, ainda nos anos 50. O mesmo Aristides que protesta contra os caluniadores e maldizentes em torno da unidade Guiné-Cabo Verde é o mesmo que após a morte de Amílcar Cabral e quando se punha a questão sensível da liderança diz textualmente a propósito de uma pergunta em que se refere que Fidélis Almada fizera a proposta para que Nino Viera viesse a ser o secretário-geral do PAIGC: “Quando discutimos a sucessão de Cabral, muitos guineenses não foram apenas movidos pelo anti-caboverdianismo. O Fidélis foi o porta-voz de toda uma corrente de dirigentes guineenses que estavam com receio que com a continuação de um fulano, ao mais alto nível, de origem cabo-verdiana ou cabo-verdiano, na direcção, significasse a destruição do partido ou desse num outro assassinato”.

É uma entrevista incontornável, pelos elementos aduzidos, para se entender o desempenho da direcção do PAIGC em Conacri, para se perceber as inúmeras dificuldades que impediram a organização da luta armada nas ilhas de Cabo Verde. A interpretação que Aristides dá sobre o assassinato de Cabral tem a ver com o anúncio e os preparativos da independência unilateral. Aristides deplora que em 1972 não se tivesse feito a reunião do Conselho Superior de Luta que era a oportunidade para denunciar os conspiradores. Descreve a ira de Sékou Touré quando soube das negociações entre o PAIGC e o I Governo Provisório.

Retomaremos este conjunto de entrevistas começando por Gérard Challiand (entrevista conduzida por Iva Cabral), Indrissa Sow, que foi embaixador da Guiné-Bissau em Conacri, Manuel dos Santos (Manecas, que depois de 1973 dirigiu o grupo de artilharia de mísseis, segue-se uma carta de Oscar Oramas a Aristides Pereira e, por último, ouve-se o depoimento de Osvaldo Lopes da Silva que foi comandante da artilharia na frente Leste e Sul da Guiné, tendo participado no assalto a Guileje.

(Continua)
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 3 de Maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8209: Notas de leitura (235): O Meu Testemunho, uma luta, um partido, dois países, por Aristides Pereira (3) (Mário Beja Santos)

Vd. último poste da série de 13 de Maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8266: Notas de leitura (238): Estudos, Ensaios e Documentos - Contribuição para o Estudo do Problema Florestal da Guiné Portuguesa (Mário Beja Santos)