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quinta-feira, 6 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24204: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXIII: Na 1ª CCmds Africanos em 1970: de Fá Mandinga a Bajocunda, Pirada e Senegal, respondendo ao terror do PAIGC


Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > CIM Fá Mandinga > 1ª CCmds Africanos > 1970 > Recrutas do curso de Comandos. Soldados Quintino Gomes (morto em combate, em 1973), o 1º da esquerda,  e Abdulai Djaló Cula, o último, à direita. Foto de Amadu Djaló, reproduzida na pág. na 158.


Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > CIM Fá Mandinga > 1ª CCmds Africanos > 1970 > Grupo de 26: d
a esquerda para a direita: 



(i) o 1º, Abdulai Djaló Cula (A); furriel José Mendonça (o nosso 1º morto, mina A/P, Ponta do Inglês, Xime) (B); José Vieira (morto em Cumbamori), Op Amestista Real, 19/5/1973) (C);  ao meio de boina o 2º sargento Carolino Barbosa (fuzilado pelo PAIGC) (D) e furriéis Júlio César Sá Nogueira (D) e Mário Teixeira (E) (ambos à direita, fuzilados em Conakry, grupo do Tenente Januário,  na sequência da Op Mar Verde, novembro de 1970). 

(ii) De joelhos, Laurindo Ribeiro (G), Mamo Djana (H) (morto em emboscada na estrada entre Pirada e Bajocunda), o 3º homem, soldado Nicolau Cabral (I) (morto em Bajocunda), entre outros que não consigo identificar. Foto do autor, reproduzida na pág. 159. 

[Edição e legenda complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, 2023]



Guiné >Zona leste > Região de Gabu > Vista aérea de Bajocunda. Foto cedida por 
Amílcar Ventura, ex-Furriel Mil. Mec., Bajocunda, 1973/74, e reproduzida na pág. 161.


1. C
ontinuação da publicação das memórias do Amadu Djaló (Bafatá, 1940-Lisboa, 2015), a partir do manuscrito, digital,  do seu livro 
"Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada) (*).

O seu editor literário, ou "copydesk", o seu camarada e amigo Virgínio Briote,  facultou-nos uma cópia digital; o Amadu, membro da Tabanca Grande, desde 2010, tem cerca de nove dezenas de referências no nosso blogue.


[Floto à direita > O autor, em Bafatá, sua terra natal, por volta de meados de 1966. (Foto reproduzida no livro, na pág. 149) ]

Síntese das partes anteriores:

(i) o autor, nascido em Bafatá, de pais oriundos da Guiné Conacri,  começou a recruta, como voluntário, em 4 de janeiro de 1962, no Centro de Instrução Militar (CIM) de Bolama;

(ii) esteve depois no CICA/BAC, em Bissau, onde tirou a especialidade de soldado condutor autorrodas;

(iii) passou por Bedanda, 4ª CCaç (futura CCAÇ 6), e depois Farim, 1ª CCAÇ (futura CCAÇ 3), como sold cond auto;

(iv) regressou entretanto à CCS/QG, e alistou-se no Gr Cmds "Os Fantasmas", comandado pelo alf mil 'cmd' Maurício Saraiva, de outubro de 1964 a maio de 1965;

(v) em junho de 1965, fez a escola de cabos em Bissau, foi promovido a 1º cabo condutor, em 2 de janeiro de 1966;

(vi) voltou aos Comandos do CTIG, integrando-se desta vez no Gr Cmds "Os Centuriões", do alf mil 'cmd' Luís Rainha e do 1º cabo 'cmd' Júlio Costa Abreu (que vive atualmente em Amesterdão);

(vii)  depois da última saída do Grupo, Op Virgínia, 24/25 de abril de 1966, na fronteira do Senegal, Amadu foi transferido, a seu pedido,  por razões familitares, para Bafatá, sua terra natal, para o BCAV 757; 

(viii) ficou em Bafatá até final de 1969, altura em que foi selecionado para integrar a 1ª CCmds Africanos, que será comandada pelo seu amigo João Bacar Djaló; 

(ix) depois da formação da companhia (que terminou em meados de 1970), o Amadu Djaló, com 30 anos, integra uma das unidades de elite do CTIG; a 1ª CCmds Africanos, em julho, vai para a região de Gabu, Bajocunda e Pirada, fazendo incursões no Senegal.

 

Capa do livro do Amadu Bailo Djaló, "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974", Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada.  


Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um    luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXIII:  
 
 
Na 1º CCmds Africanos em 1970: de Fá Mandinga a Bajocunda, Pirada e Senegal, respondendo ao terror do PAIGC (8pp. 158-165) 


Em fevereiro [1] de 1970 estávamos em Fá Mandinga. Depois de três dias a preparar o terreno, começámos o curso. Na primeira parte houve vários feridos, foram eliminados vários, a maior parte por falta de capacidade física.

 Finalmente arrancámos para a parte da formação dos grupos, a que se seguiu o treino operacional.

Aqui já tivemos dois mortos, o furriel José Mendonça e o soldado Nicolau Cabral. O furriel[2] pisou uma mina anti-pessoal e ficou cortado em dois. Os membros inferiores nunca apareceram.

Numa das primeiras saídas, entre 25 e 26 de Junho de 1970, numa emboscada em Sare Aliu, junto à linha da fronteira na área de Bajocunda, o soldado Nicolau[3] foi satisfazer as necessidades e não avisou ninguém. Era uma noite escura e quando regressava para junto do grupo perdeu a orientação e entrou pelo outro lado da emboscada. Ninguém o reconheceu, nem deu tempo para fazer perguntas.

Num desses dias, em Dinga Bantaguel, o nosso grupo, comandado pelo alferes Tomás Camará, viu um rapaz a caminhar na nossa direcção, debaixo de um sol ardente, acompanhado de vários cães. Nós estávamos dispersos, com alguns sentados à sombra de uma árvore grande, a manjanja, que dava boa sombra.

Costuma ser junto a estas árvores que, na Guiné, o pessoal da tabanca se junta na hora de mais calor. Todos os dias, os homens grandes da tabanca encontram-se ali[4] e, por vezes, mandam vir o almoço e comem todos juntos.

Mal o rapaz, de cerca de vinte anos, chegou, o comandante do grupo começou a interrogá-lo. Eu estava sentado, um pouco afastado, mas a ouvir a conversa. Quando o rapaz se estava despedir, o Tomás Camará disse-lhe para passar a noite connosco, que amanhã íamos para Bajocunda em viaturas[5], mas o rapaz respondeu que não podia. Então, o Tomás disse-lhe que podia ir à vida dele. Nessa altura, levantei-me e disse para trazerem uma corda. Chamei o rapaz.
 
− Olha, anda cá.

Mandei-o encostar-se a um pequeno mangueiro e amarrei-o com a corda.

− Ficas aqui, amarrado, durante a noite. Se formos atacados,  és morto. Ou então, dizes a verdade toda. Se ninguém nos atacar, desamarramos-te e ninguém te faz mal. E, de manhã, podes ir para o Senegal, ou então vais connosco para Bajocunda, se quiseres.

Ele disse que ia dizer a verdade. Que tinha vindo com a guerrilha até à fronteira e que eles o mandaram vir cá saber em que tabanca a tropa estava, para terem informações correctas. Mandei desamarrá-lo.

Ficámos à espera, mas já tínhamos a certeza que iríamos ter visitas essa noite, só não sabíamos qual seria o resultado, mas ataque não ia faltar.

Por volta da 01h00 da madrugada, o Tomás Camará estava a falar em voz alta e um grupo do PAIGC progrediu até de onde vinha a voz, com a intenção de nos atacar. Eu, que era o 2º comandante do grupo e que tinha a responsabilidade de montar a segurança, montei 4 postos: na saída para Bajocunda, na saída para Canquelifá, na saída para a fronteira e na saída para a fonte. A 5ª equipa ficou ao pé do comandante.

O pessoal do PAIGC que vinha da fronteira, entrou na tabanca e orientados pela voz alta do nosso comandante,começaram a progredir nessa direcção. Um soldado nosso viu um homem para aí a cinco metros e disparou uma rajada. Eu e o Tomás corremos para a frente, mas a guerra acabou depressa. Ficou o corpo no local, ao lado de um RPG 2.

De manhã enterrámo-lo e fomos a Panaghar, uma tabanca no Senegal, recolher dois homens do nosso território, que estavam lá refugiados. Tínhamos ouvido dizer que havia gente da Guiné refugiada naquela tabanca do Senegal. E fomos tentar saber por que é que a população estava toda a fugir para lá. Disseram-nos que o pessoal do PAIGC os tinham ameaçado de que deviam abandonar as tabancas. 

A partir dessa altura deixámos de montar a segurança às tabancas que ficavam na linha de fronteira porque estavam completamente mobilizadas pelo PAIGC. E as tabancas que não tinham aderido ao PAIGC começaram a aparecer queimadas.

Encontrávamo-nos Bajocunda[6] quando chegou uma mensagem urgente para nos deslocarmos a Pirada[7]. Preparámos a coluna e partimos sem demora. Quando lá chegámos encontrámos o comandante Calvão[8] na entrada do aquartelamento, à nossa espera.

Deu ordens para virarmos as viaturas para a pista e para nos reunirmos com ele, que tinha uma missão para nós. O comandante chamou os quadros da companhia, afastámo-nos dos soldados e dispusemo-nos em círculo, com o comandante no meio. Disse que havia necessidade de queimar as tabancas de Sare Bocar, de Sinchã Sore e de Perim, todas dentro do Senegal. Sare Bocar ficava mais próxima de Paunca[9] e nós devíamos começar por aí, onde nas proximidades havia um acampamento do PAIGC e depois marchávamos para Sinchã Sore e Perim.

Na reunião com o comandante ficou assente que se algum dos nossos morresse lá, tirávamos-lhe a arma, o equipamento e farda e deixávamos o corpo. Se houvesse algum ferido grave, procedíamos da mesma forma, deixávamos o moribundo nu. Foi por este motivo que o comandante nos tinha mandado ir com ele para longe do resto do pessoal

Era uma decisão muito dura, mas para a tropa Comando nada podia ser duro e a nossa função era cumprirmos, fosse qual fosse o fardo.

Quando estávamos reunidos na pista com o comandante aproximou-se de nós uma carrinha com um homem branco, chamado Mário Soares[10], ainda com sabão da barba na cara. Este Mário Soares era um comerciante que nos dava informações e havia quem dissesse que também as dava ao PAIGC. Vinha acompanhado por um homem negro, senegalês, que trazia uma informação. Que nessa manhã uma companhia do PAIGC tinha entrado no nosso território e, que nesta altura, devia estar na ponte[11]. 

O capitão João Bacar Jaló pediu logo ao comandante Calvão que autorizasse que a 1ª CCmds patrulhasse a zona até à ponte. Mas o comandante não esteve de acordo, que quem ia tratar do assunto iam ser os homens do batalhão[12].

Enquanto estávamos em reunião com o comandante, ele chamou o capitão da companhia[13] aquartelada em Pirada e deu-lhe instruções para mandar patrulhar até à zona da ponte. Momentos depois, ouvimo-los a regressar, dizendo que tinham patrulhado a estrada até à ponte e que não tinham encontrado nada. Ficámos a olhar uns para os outros, admirados com tanta rapidez.

Quando nos estávamos a preparar para a saída, estava a chegar um grupo da nossa Companhia, comandada pelo tenente Januário, com uma coluna de viaturas civis, carregadas com géneros. Saudámo-nos, mas não houve tempo para muitos cumprimentos. Eles seguiram para Bajocunda e nós para a fronteira com o Senegal. Quando a coluna deles[14] chegou à zona da ponte, caíram numa emboscada no pontão do Maul-Jaubé, no itinerário de Pirada a Tabassi. Estávamos nós ainda junto ao arame farpado, quando ouvimos o tiroteio e os estrondos dos rebentamentos. Sigam aos vossos destinos, foi a ordem que recebemos do batalhão.


Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Carta de Pirada (1957) > Escala 1/50 mil  > Posição relativa de Pirada, Tabassi e Bajocunda, e já no Senegal as tabancas de Perim e Sinchã Sari. Pirada estava nas proximidades do marco fromnteiriço 69.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2023)

 
Pirada ficava a pouco mais de um quilómetro da fronteira com o Senegal. As tabancas de Perim, a nem um quilómetro, Sinchã Sore [gralha ?, na carta de Pirada está grafado o topónimo  Sinchã Sari] a pouco mais de dois da linha da fronteira e Sare Bocar a pouco mais de cinco.

Guinjé > Bissau > 10 de junho de 1967 > O Abdulai Jamanca, então 1º Cabo, a ser condecorado. Foto reproduzida na pág. 161.

Fomos a corta mato, sem qualquer problema e entrámos pela tabanca de Sare Bocar. Era mais ou menos meia-noite quando o Alferes Jamanca bateu à porta de uma casa. Saiu um homem.

   Onde é a casa do chefe da tabanca?  − perguntou o alferes.

O homem apontou para uma casa e o Jamanca disse para vir connosco. Acordado o chefe da tabanca, cumprimentaram-se e o João Bacar Jaló, o comandante da nossa companhia, disse ao Jamanca para ele dizer ao chefe da tabanca que dissesse à população que retirasse todos os seus haveres, porque a tabanca ia ser incendiada.

Três ou quatro homens da tabanca acordaram e juntaram-se ao chefe da tabanca. Este, depois de ouvir o Jamanca, perguntou:

− Mas de onde vocês vieram?

− Guiné Portuguesa  − respondeu o João Bacar.

O chefe da tabanca, que só via africanos à sua volta, pensou que éramos do PAIGC.

− Mas vocês estão enganados. Isto aqui é Senegal!

− Nós somos obrigados a queimar as vossas tabancas porque o PAIGC sai daqui e vai ao nosso território queimar as nossas tabancas e depois volta para aqui respondeu o Jamanca.

Depressa os residentes da tabanca começaram a retirar as suas coisas, enquanto os soldados começavam a chegar fogo às casas.

Quando o primeiro soldado ateou o lume, um morador, surpreendido, gritou:

− Mas é verdade, isto não é brincadeira!

A certa altura, a situação parecia ter tomado conta dos soldados que, entusiasmados, pareciam não querer sair dali. O alferes Justo conseguiu pôr ordem, avisando-os que se algum deles ficasse ferido havia ordem para lhe tirar a arma, equipamento e farda e deixá-lo no local. 

Acalmaram rapidamente e seguimos para a Sinchã Sore, onde a acção se repetiu, praticamente da mesma forma. E quando o dia[15] já estava a nascer chegámos a Perim e a única diferença foi ser já de dia. Estas duas tabancas eram de menor dimensão e arderam quase na totalidade. Depois retirámos, sem incidentes na direcção de Pirada, utilizando o carreiro.

A partir desta data, confirmou-se mais tarde, as nossas tabancas na zona da fronteira deixaram de ser queimadas pelo PAIGC e nós passámos a proceder da mesma forma, também deixámos de importunar as tabancas do Senegal.

Quando entrámos em Pirada, o comandante Calvão estava à nossa espera. Depois de ouvir as nossas notícias, meteu-se numa avioneta e foi fazer um voo de reconhecimento para ver os resultados. Só a primeira tabanca, a de Sare Bocar não tinha ardido completamente, mas mais de metade tinha ficado em cinzas.

Nesta altura soubemos o resultado da emboscada ao nosso grupo que, no dia anterior, escoltava viaturas civis. Tinha tido dois mortos, um cabo miliciano[16] e um soldado[17]. O cabo miliciano tinha acabado a escola de rádio telegrafista e tinha sido colocado na 1ª CCmds Africanos. Nem se chegou a apresentar ao comandante da companhia, morreu no caminho. Na emboscada morreram ainda dois civis, um condutor chamado Fernandes[18], residente em Bafatá,  e um ajudante[19]. Depois destas notícias, regressámos a Bajocunda, onde a nossa companhia estava sedeada.

Corremos aquela área toda, todos os dias um grupo nosso saía para a mata das zona da fronteira.

(Continua)

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Notas do autor ou do editor:

[1] Nota do editor: em 11 Fevereiro 1970.

[2] Nota do editor: em 18 Junho de 1970

[3] Nota do editor: Soldado Nicolau Tomás Cabral.

[4] A este local, onde se concentra a população, os Mandingas chamam bantaba e os Fulas Banta.

[5] Nota do editor: da CArt 2438, comandada pelo Cap Art Veiga Vaz e a pouco mais de um mês do termo da respectiva comissão; em Bajocunda estava instalado, desde 27 Junho 1970, o COT1 (Comando Operacional Transitório 1), comandado pelo Major Inf Nuno Valdez dos Santos, então recém-criado “com a finalidade de fazer face a uma intensificação da actividade inimiga sobre a região de Pirada/Bajocunda (...) e ficando na dependência do Comandante do Agrupamento 2957”, sediado em Bafatá sob o comando do Coronel Art Neves Cardoso.

[6] Nota do editor: em 04 Julho de 1970

[7] Nota do editor: desde 17 Março 1970, sede da CCaç 2571.

[8] Comandante Alpoim Calvão.

[9] Nota do editor: desde 23 Junho 1970, guarnecida com 3 pelotões da CCaç 2658 e 3 pelotões “Fulas” da CArt 11/CTIG.

[10] Nota do editor: Mário Rodrigues Soares instalou-se na Guiné em 1948 e montou no posto fronteiriço de Pirada um estabelecimento comercial ligado à “Casa Gouveia”. Em Setembro de 1974, em risco de ser fuzilado pelo PAIGC, conseguiu escapar e chegar a Lisboa, onde ficou detido 45 dias em Caxias. Morreu em Abril de 1995.

[11] Nota do editor: sobre o rio Mael-Jaubé, quase paralelo à fronteira desde Pirada a Oribodé, para leste.

[12] Nota do editor: BArt 2857.

[13] Nota do editor: CCaç 2571.

[14] Nota do editor: da CArt 2438, instalada em Bajocunda

[15] Nota do editor: 5 Julho de 1970.

[16] Nota do editor: Cabo Mil Julião Albano Cabral.

[17] Nota do editor: Soldado José Augusto Maru Djaná.

[18] Nota do editor: Rufino Gomes Fernandes.

[19] Nota do editor: Mamadu Bobo Jaló, residente em Nova Lamego.

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Subtítulo / Negritos: LG]

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Nota do editor:

quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23883: Bom dia desde Bissau (Patrício Ribeiro) (32): Viagem a Bolama, 25-27 de novembro de 2022


Foto nº 1 > Guiné-Bissau > Bissau > 25 de novembro de 2022 > 09:52 > Canoa nhominca
que faz a viagem até Bolama


Foto nº 2 > Guiné-Bissau > Bissau > 25 de novembro de 2022 > 09:52 > 
Cais de Pindjiguiti


Foto nº 3 > Guiné-Bissau > Bolama > 26 de novembro de 2022 >07:17 > 
Nascer do sol


Foto nº 4 > Guiné-Bissau > Bolama > 26 de novembro de 2022 >07:17 > Prodepa, ONG (Projecto de Desenvolvimento da Pesca Artesanal)


Foto nº 5 > Guiné-Bissau > Bolama > 26 de novembro de 2022 >07:33> Casa de sobrado... Aqui viveu o comandante Alpoim Calvão, enquanto empresário.


Foto nº 6 > Guiné-Bissau > Bolama > 26 de novembro de 2022 >09:33> 
Igreja católica


Foto nº 7 > Guiné-Bissau > Bolama > 26 de novembro de 2022 >09:36> 
Largo e coreto


Foto nº 8 > Guiné-Bissau > Bolama > 27 de novembro de 2022 >18:17> 
Porto


Foto nº 9 > Guiné-Bissau > Bolama > 27 de novembro de 2022 >18:22 > 
Cais

Fotos (e legenda): © Patrício Ribeiro (2022). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem do Patrício Ribeiro (nosso correspondente em Bissau, colaborador permanente da Tabanca Grande para as questões do ambiente, economia e geografia da Guiné-Bissau, onde vive desde 1984, e onde é empresário, fundador e diretor técnico da Impar Lda; tem 130 referências no blogue: autor da série, entre outras, "Bom dia desde Bssau" (*):

Data - 1/12/2022, 12:30

Assunto - Bom dia desde Bissau: fotos de Bolama (**)

Luís,

Envio umas fotos tiradas em finais de dezembro nos meus passeios, desta vez passeio de uma semana em Bolama.

E como quando se visita Bolama, fica-nos a vontade tirar fotografias (ao museu de arquitetura Colonial Portuguesa).  Aqui vão mais umas fotos depois da época das chuvas.

Bolama é bonita. Estas fotos, foram tiradas desde o porto cais Pindijiguiti em Bissau, até ao cais de Bolama e ao transporte público marítimo existente, que são as canoas nhominca.

A viagem correu dentro do normal, os motores só avariaram uma vez meia hora, no meio do marão …

Como este ano, choveu até novembro, está tudo ainda muito verde e bonito, nesta época já devia estar frio (+- 18º de madrugada no litoral e interior pode chegar aos 12º=, não está a acontecer, as alterações climáticas não deixam, e os grilos não aparecem.

Junto fotos: porto de canoas em Bissau, porto de Bolama, nascer do sol em Bolama, igreja católica de Bolama, pelourinho no jardim, casa de sobrado (onde viveu os últimos anos o comandante Alpoim Calvão, ainda não caiu). Todas as fotos têm legenda.

Bolama, tem neste momento algumas centenas de alunos a estudar na Escola Superior de Educação de formação para professores. Como na sua maioria não são de Bolama, toda esta juventude dá muita vida à cidade.

Abraço,
Patricio Ribeiro 
____________

Notas do editor;

(*) Vd. poste de 12 de outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5099: História de vida (24): Patrício Ribeiro, 62 anos, "filho da escola", ex-grumete fuzileiro, empresário, a trabalhar e a viver na Guiné-Bissau desde 1984. apanhado do clima...

(...) (i) Nasci nas margens do Rio Vouga, centro do mundo, sou vizinho do D. Duarte Lemos, frequentei a Escola Industrial de Águeda;

(ii) fui Fuzileiro (Gr FZ) [, portanto "filho da escola"];

(iii) passei por Bissalanca em 1969, estava muito calor... omo não tinha roupa apropriada (tinha deixado o camuflado em Vale do Zebro, na escola de Fuzileiros), mandaram-me seguir para Luanda…

(iv) ao fim de uns anos, deixaram-me ir para casa, em Luanda, em 1972...

(v) por lá fiquei até ao último avião, da ponte aérea para Lisboa… enfim, outras guerras.

(v) a minha família viveu dezenas de anos no Huambo (antiga Nova Lisboa): pai, mãe e irmãos, etc.

(vi) minha mulher é natural do Huambo;

(vi) por questões profissionais, em 1984 fui para Bissau, gostei, fiquei…+agam-me para fazer coisas que gosto, em locais de difícil acesso, e porque é uma aventura permanente… já não sei viver sem ela! (...)

terça-feira, 6 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23850: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte VI - Gadamael Porto... Continuando

1. Parte VI da publicação do excerto que diz respeito à sua vida militar do livro "Um Olhar Retrospectivo", da autoria de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796 - Gadamael e Quinhamel, 1970/72.


VI - Continuando…

Parte da primeira companhia de comandos africanos, comandada pelo célebre e temido João Bacar Jaló e pelo segundo comandante Zacarias Saeigh, logo a seguir, apareceu em Gadamael Porto, com indicação de que ficariam uns dias, participando em operações com a nossa companhia.
Aqui estava parte da razão da nossa espera em Bissau, até ao dia 27 de Novembro pois, parte deles, tinha participado na operação de que lhe falarei, a seguir.

Recordo alguns dos elementos: o Jalibá, o Bari, o Tomaz Camara, o Justo, o João Lomba, um felupe com dois metros, sempre de catana à tiracolo, que fazia colecção de crânios do inimigo, segundo diziam os outros, com convicção.
Tenho fotos de recordação com alguns deles.
Tinham feito parte da operação Mar Verde, invasão à República da Guiné-Conacry, em 22 de Novembro, ainda bem marcados e feridos pelos resultados.

Só por curiosidade, uma das nossas operações, em que alguns deles participaram, durante uma emboscada, o Tomaz Camara foi baleado na cabeça, mas de tal forma que a bala entrou pela fronte, não penetrou na parte óssea e deu a volta, ao longo do couro cabeludo, ficando retida na parte posterior da cabeça.
Concluiu-se que aquela bala foi sendo amortecida pelos ramos e folhagem das árvores, chegando à cabeça do Tomaz Camara já com pouca capacidade, a grande sorte dele.
Foi evacuado para o hospital de Bissau e lá se safou, após cirurgia adequada.

Voltando aquela operação Mar Verde, só para o Daniel ter uma ideia, foi uma operação liderada pelo capitão-tenente fuzileiro Alpoim Calvão, com o máximo sigilo e de forma a evitar que algum sinal pudesse indicar como obra de forças armadas portuguesas.
A equipa foi formada por fuzileiros do continente, fuzileiros guineenses formados no local e alguns comandos africanos.
Parte da equipa foi treinada pelo temido Marcelino da Mata, que também participou, de que lhe falarei, se me lembrar.

Como acontecia em outras operações, as armas e os uniformes teriam de ser iguais ou idênticas às usadas pelos militares do PAIGC, além das pinturas a negro, na cara.
Os próprios veículos usados nas operações teriam de ser o mais discretos possível, sem inscrições que os pudessem denunciar, assim como as próprias equipas que deviam ser caracterizadas de forma a confundirem-se com o inimigo, neste caso, africanos.

O objectivo seria destruir bases militares e equipamento, assim como pontos estratégicos que convinha neutralizar, libertar prisioneiros de guerra portugueses e prisioneiros políticos contra o regime de Sékou Touré, tendo em vista um golpe de estado que pudesse aniquilar Sékou Touré e Amílcar Cabral.
Mas o objectivo não foi conseguido, na sua totalidade, claro.

Foram libertados 26 prisioneiros portugueses, cerca de 400 prisioneiros políticos guineenses, além de destruído bastante equipamento militar e causadas centenas de baixas aos guerrilheiros do PAIGC e população, inevitável…

Como era de esperar, as organizações internacionais receberam as queixas por parte do governo da Guiné-Conakry, nada de extraordinário, considerando a gravidade…
Segundo o relatório desta operação, parte do insucesso da operação deveu-se ao mau trabalho da PIDE, nomeadamente, deficientes passos no campo das informações.

Lembro-me da insatisfação do João Bacar Jaló, pelo facto de não termos comida suficiente, além da rotura do stock de ração de combate.
Já tínhamos enviado rádios para Bissau, solicitando alguns mantimentos, mas nada aparecia.
Foi preciso um rádio, com código do João Bacar Jaló, para enviarem frescos, de imediato.
Os frescos eram constituídos, normalmente, por peixe congelado, frango congelado, ovos, lançados em rede por um hélio, com o impacto no solo que se prevê…

Era assim, o reino do Sr Spínola, em Bissau!... O João Bacar Jaló veio a falecer, em combate, uns meses depois, penso que em Abril, na designada operação ‘nilo’.

"O Adolfo fala dessa sua passagem por África com alguma frieza, mas acredito que deixou muitas marcas, como todos sabemos e o Adolfo melhor saberá…"
Sim, mas já tive tempos mais difíceis do que agora.
Quando andava nos quarenta, quarenta e tal, recordo-me de dias e noites bem difíceis, com um grande esforço para evitar transparecer aos que me rodeavam, na empresa e na família.

Uma sensação de distúrbio mental, principalmente, durante a noite, com perturbações de sono, uma certa ansiedade sem razão aparente, uma mistura de revolta com instabilidade, desânimo, saltos repentinos da cama, o gesto tantas vezes lá repetido, tudo isso relatei aos médicos, neurologista e psiquiatra, que definiram como parte das consequências resultantes de momentos vividos neste tipo de cenários.

Não me imaginava a desabafar e, até, a chorar, mas foi uma realidade, logo justificada pelos médicos.
Falaram em stress traumático de guerra, o que atingiu alguns elementos da companhia, com graves consequências para o resto da vida, como constatado, aquando dos nossos encontros/convívio/almoços anuais.
Alguns medicamentos, por pouco tempo, também ajudaram.

Sabe, Daniel, nós só acreditamos nestas coisas quando, realmente, nos tocam pela porta, directamente.
Mas há gente que não compreende, nem os nossos sentimentos, nem a nossa linguagem, mas nós estamos preparados para compreender essa gente que não nos compreende…
A par dos acontecimentos próprios daquela guerra, como já lhe disse, o clima deixava-nos de rastos.
Humidade do ar, na ordem dos noventa por cento, temperatura, na ordem dos quarenta graus, um factor determinante de um certo desespero diário, sem nada se poder fazer para o evitar.

As operações de rotina, tantas vezes, dentro de matas virgens desbravadas à custa de catana, quase de rastos, incluíam entrar em regatos de águas geladas, que nunca viam o Sol, ou lamas negras que se agarravam ao camuflado.
Quando saíamos da mata e entrávamos nas designadas lalas, com aquelas temperaturas, as lamas coziam e eram como lâminas a rasgar a pele, provocando irritações e queimaduras, um tormento, só possível aliviar à custa de fórmula cinco, de que resultava um ardor tal, que só aos saltos!…
Dentro do camuflado, nem pensar em cuecas...

Outras agressividades nos surpreendiam, quando em progressão pelos trilhos ou dentro das matas, como os carreiros de formigas vermelhas, os enxames de vespas e as cobras cuspideiras.
As formigas começavam a entrar, não sabíamos por onde, e alojavam-se pelo corpo, principalmente, nas partes íntimas, cravando as tenazes nos testículos, o que deixava qualquer um desnorteado, pelas dores.
E nós tínhamos o camuflado bem apertado sobre as botas!...
Quando tentávamos tirá-las, a cabeça ficava cravada e apenas saía o corpo.

Os enxames estavam pendurados em ramos das árvores e, logo que algum de nós lhes tocava, elas começavam a sair, endiabradas, ferrando tudo o que podiam, do que resultavam uma espécie de monstros!
Aliás, diziam-nos que os próprios guerrilheiros do PAIGC preparavam esses enxames e colocavam-nos em locais estratégicos, picadas e carreiros de progressão que usávamos, nas nossas operações.

As cuspideiras, pequenas e verdes como os ramos das árvores, cuspiam nas partes brilhantes, logo, nos olhos.
Como imaginará, a população de baratas e formigas com asas, cá conhecidas por agúdias, era uma enormidade, mas habituámo-nos a viver com elas, a dormir com elas.

Também as limitações de alimentos e água ‘bebível’ faziam parte da nossa festa diária…
Tivemos um período que nem ração de combate havia, diziam que estava esgotada!

Outro problema era o paludismo, quando forte, podia matar.
Felizmente, foi coisa que não me tocou!
Mas as diarreias eram um cenário quase comum, deixando muitos de nós de rastos.
No meu caso, felizmente, um só episódio, mas levou-me a ‘buracos do mato’ um monte de vezes, num só dia, que ficaram bem registados!

"Ouvi falar de doenças desse tipo, como o paludismo, e também dos problemas provocados pelas águas, problemas em cima de problemas que vocês tinham de contornar - ossos do ofício…
Se calhar, era o tipo de problemas para o qual não estavam preparados".


Daniel, depois desta experiência, concluo que estamos preparados para muito pouco…
Também me lembro de um quadro muito engraçado, algumas vezes fazendo parte do nosso cenário, quando em progressão pelos carreiros ou picadas: as famílias de sancus (macacos).

Imagine que tínhamos de parar, com os riscos inerentes, para que as famílias atravessassem os carreiros ou as picadas, o pai de um lado, a vigiar o espaço, garantindo a segurança da família, enquanto a mãe ia atravessando com os filhos, todos de mão dada, até chegarem todos ao outro lado, sempre olhando-nos nos olhos e como que a dizerem-nos alguma coisa, numa linguagem acompanhada de um rosnar tipo cão.
Aliás, o macaco-cão abundava e dizia-se muito apreciado pela etnia Fula, que não consumia carne de porco.
E sabia-se que, muitas vezes, os bifes não eram de vaca, porco ou gazela, mas de macaco-cão…
A etnia Balanta criava e consumia porco.

Quando chegava correio, tarde, mas chegava, uma enorme festa para alguns, mas uma tristeza para outros, pois não eram contemplados.
Lembro-me de aerogramas partilhados, um gesto de solidariedade e amizade.
Algumas vezes, quando se ouvia um ligeiro ruído característico do héli, associávamos a correio, logo, toca a pegar no aerograma e escrevinhar qualquer coisa, à pressa, como: ‘meus queridos pais e irmãos, espero que estejam bem, eu estou bem, o resto vão ler aos anteriores, beijinhos.’
Também chegou a acontecer aparecer um héli e, ao dar a entender que tencionava baixar, um dos soldados pegou na G3, apontava para o ar, enquanto outro avisava, pelo radio móvel, que não se aventurassem a baixar, caso não trouxessem correio!…

As revistas da altura, como a Plateia, quando lá chegavam, enviadas por familiares e amigos de alguns, constituíam um alimento para o espírito de todos.
E liam-se, e reliam-se, e reliam-se,…
De vez em quando, eu recebia aerogramas das minhas amigas, que não me esqueciam, cujo significado e efeito não têm tradução, por palavras.
Uma delas enviava-me, de vez em quando, algumas cassetes com gravações de músicas acabadas de sair, o que me permitia estar ao corrente do que se ia passando, na ‘civilização’.
Ainda bem que tinha comprado o tal leitor de cassetes e que podia ouvi-las, sempre que chegavam à minha mão - um verdadeiro milagre…

Algumas vezes, quando se ouvia um ligeiro ruído característico do héli, logo associávamos a correio…

"Ó Adolfo, por falar nisso, lembro-me do Movimento Nacional Feminino que, embora algo contestado, ainda conseguia fazer alguma coisa válida, no apoio aos militares que chegavam feridos e aos familiares dos que morriam. Pelo menos, era o que me constava…"

Sim, Daniel, era um movimento interessante, mas…


mais qualquer coisinha desagradável…

Mas nem tudo o que me chegava era agradável.

Recebo uma carta da minha mãe, não aerograma, com um texto normal de mãe, mas juntando uma foto dos meus pais com a criança Carla ao colo.
Claro que não incluía a mãe, por precaução.
Não foi preciso pensar e não respondi, como se nunca tivesse recebido aquela carta.

Obviamente, associei este quadro ao que o meu irmão me tinha relatado sobre uma Guiomar, embora sem pormenores, mas qualquer coisa seria de desagradável.

Mais tarde, recebi novo aerograma da minha mãe, pedindo-me autorização para levantar dinheiro da minha conta, pois a tia Jú estava aflita com umas despesas inesperadas que tinha de cumprir e a minha mãe já tinha ajudado, um pouco, mas não podia ajudar mais.
Logo respondi que sim, poderia levantar tudo o que a tia Jú necessitasse - para a tia Jú, tudo!
No entanto, deixou-me a pensar na coisa, pois era estranho...

Mesmo com algum problema inesperado, a tia Jú tinha o seu emprego, o marido o seu emprego, a avó Júlia a sua pensão, a sogra a sua pensão, as duas sem despesas, logo, porquê?!
Paciência, mais tarde teria oportunidade de conhecer a resposta e, no momento, era melhor esquecer.

"Adolfo, não consigo imaginar o que sente uma pessoa, em cenário de guerra e de falhas no mais elementar, como a comidinha, ao receber notícias da família, com situações que suscitam dúvidas e criam preocupações…"
Realmente, Daniel, era difícil conciliar a situação com algumas notícias que lá nos chegavam…
Mesmo o pouco tempo de descanso era assaltado por estas dúvidas e preocupações, apesar de sabermos que nada podíamos fazer.

Mas o meu relacionamento com toda a companhia continuava óptimo, em espírito de grupo saudável e imprescindível, com os condicionalismos próprios do contexto, mas com uma grande vontade de, em conjunto, procurarmos vencer todas as dificuldades que nos iam surgindo, sempre motivados pela esperança de um regresso a casa, sãos e salvos.
Mas as situações delicadas não podiam ser contornadas, pois faziam parte daquela realidade, e surgiam a cada momento.
Já com baixas, a moral ia ficando debilitada, mas o nosso espírito ia amadurecendo, a forma possível de continuarmos a nossa marcha.

Pouco mais de dois meses decorridos, durante uma emboscada que sofremos logo uns minutos depois do arame farpado do aquartelamento, ainda no início de mais uma operação, o capitão Assunção e Silva, um ranger bem preparado e bom líder, morre, com tiro certeiro no coração.
Além do capitão morto, mais dois ou três feridos, apenas.

Sim, mais uma operação, designada de reconhecimento, em que saía o primeiro grupo, do Ponte, o capitão Assunção e Silva, um ou dois dos comandos africanos e alguns milícias.
Como era necessário mais um graduado, o Ponte manifestou interesse em que eu participasse nesta operação, apesar de não ser o meu grupo, mas a solidariedade ‘obrigada’ sobrepunha-se a tudo, dadas as circunstâncias.
Mas não me esqueço de que, neste dia, eu estava muito mal disposto, com os meus problemas do aparelho digestivo, já conhecidos, e que se foram agravando.
Mas o cenário que vivíamos não tolerava más disposições…

Como o Daniel saberá, o desenrolar de uma emboscada pode durar segundos ou minutos, depende das circunstâncias.
Início, troca de tiros, uns segundos e… já está - final e retirada estratégica de ambas as partes…

Como o Daniel já deve ter ouvido, sempre que em situações como esta, toca a despir camuflados para apoiar em G3 e improvisar macas, até chegarmos ao aquartelamento, tudo rápido e em silêncio, claro, mais uma experiência para a vida.
Confesso que fiquei bastante abalado quando vi o capitão caído, já sem vida!
Aliás, um sentimento geral, em toda a companhia, quando entrámos no aquartelamento!

(Continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 4 de Dezembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23843: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte V - Chegada a Gadamael Porto

terça-feira, 22 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23804: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte X: Op Mar Verde, há 52 anos, em 22/11/1970: para Conacri, rapidamente e em força.

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Op Mar Verde > 22 de novembro de 1970 > Na lancha de regresso a Bissau. Os soldados Aliu Djaló, Abdulai Djaló Cula, Meta Baldé, furriel Félix Diuf, furriel Vagomestre (não lembro o nome) e soldados Papa e Idrissa Dabo, da esquerda para a direita. (Foto publicada no livro, pág. 182, sem indicação de fonte).



Tira da banda desenhada “Operação Mar Verde”, da autoria de A. Vassalo [ex-fur mil comando Vassalo Miranda, nosso camarada da Guiné], uma edição da Caminhos Romanos, 2012.



Guiné > Arquipélago dos Bijagós > Ilha de Soga > Novembro de 1970 > A 1ª Companhia de Comandos na LDG Montante, nos preparativos para a saída. (Foto publicada no livro, a preto e branco, em pequeno formato,  pág. 174, sem indicação de fonte)



Guiné > Arquipélago dos Bijagós > Novembro de 1970 > O general Spínola na LDG, momentos depois de se ter dirigido aos Comandos, fardados e equipados como se fossem gerrilheiros do PAIGC. (Foto publicada no livro, a preto e branco, em pequeno formato,  pág. 175, sem indicação de fonte)




Guiné > Arquipélago dos Bijagós > Carta de Bubaque (1057) > Escala 1/50 mil > Posição relativa das ilhas de Soga, Bubaque, Rubane e Formosa.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2021)




Guiné > Brá > Em 1965, os então 1º cabo Abdulai Jamanca e o soldado Justo Nascimento.  (Foto publicada no livro,  pág. 171, sem indicação de fonte)

Foto (e legenda): © Virgínio Briote (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Presumivelmente em Brá ou Fá Mandinga > s/d >  Soldado Caetano Gomes, morto na ilha de Sogo,   em acidente no mar, já depois do regresso d Op Mar Verde. (Foto publicada no livro,  pág. 181, sem indicação de fonte)

1. Continuamos a reproduzir excertos das memórias do Amadu Djaló (1940-2015), infelizmente já falecido, em Lisboa, no Hospital Militar, aos  74 anos.

A fonte continua a ser o ser livro "Guineense, Comando, Português" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp.), de que o Virgínio Briote nos disponibilizou o manuscrito em formato digital. A edição, que teve o apoio da Comissão Portuguesa de História Militar, está há muito esgotada. E muito pouco provável que haja, em breve, uma segunda edição, revista e melhorada. Entretantio, muitos dos novos leitores do nosso blogue nunca tiveram a oportunidade de ler o livro, nem muito menos o privilégio de conhecer o autor, em vida.



Quinta do Paul, Ortigosa, Monte Real, Leiria >
IV Encontro Nacional do nosso blogue >
20 de Junho de 2009... O VB e o Amadu.
Foto: LG (2010)
O nosso coeditor jubilado, Virgínio Briote (ex-alf mil, CCAV 489 / BCAV 490, Cuntima, jan-mai 1965, e cmdt do Grupo de Comandos Diabólicos, set 1965 / set 1966) fez, duarnte largos meses, com enorme paciência, generosidade, rigor e saber, as funções de "copydesk" (editor literário) do livro do Amadu Djaló, ajudando a reescrever o livro, a partir dos seus rascunhos.

Recorde-se, aqui o último poste 
desta séreie (*):  o então sold cond auto,  Amadú Djaló,   foi um dos poucos guineenses a frequentar o 1º Curso de Comandos da Guiné, que decorreu entre 24 de agosto e 17 de uutubro de 1964. Desse curso fizeram parte 8 guineenses: além do Amadu Djaló, o Marcelino da Mata, o Tomás Camará e outros. 

Deste curso sairam ainda os três primeiros grupos de Comandos, que desenvolveram a actividade na Guiné até julho de 1965: Camaleões, Fantasmas e Panteras. E começou logo, o Amadi, a entrar em combate. no Grupo Comandos Fantasmas, do alf mil 'comando' Maurício Saraiva. 

Hoje vamos dar um salto de 6 anos, e vamos com ele até Fá Mandinga (Sector L1, Bambadinca), à  ilha de Sogo e depois a Conacri... Foi seleccionado  em meados de 1969 para a 1ª Companhia de Comandos Afrocanos (em formação), comandada pelo cap graduado 'comando' João Bacar Jaló, seu amigo de Catió, e com a supervisão do major Leal de Almedida.  

Um ano e tal depois, em 22 de novembro de 1970, vêmo-lo a caminho de Conacri, no âmbito da Op Mar Verde. Faz hoje 52 anos. Vamos aqui recordar as memórias que ele nos deixou dessa temerária operação. 

Há mais de oitenta referências no nosso blogue sobre a Op Mar Verde. Mas o depoimento do Amadu Djaló é único: ele esteve lá, também sentiu dúvidas sobre a "legitimidade" da operação (fora do território nacional,e numa terra donde eram provenienetes os seus progenitores!), também experimentou sentimentos contraditórios (incluindo medo) mas não desertou como alegadamente terá desertado  o tenente 'comando' graduado João  Januário Lopes. Regressou, vivo, e continuou nos comandos e depois na CCAÇ 21 até ao 25 de Abril de 1974. É o único militar, guineense, que escreveu sobre a Op Mar Verde.




Capa do livro de Bailo Djaló (Bafatá, 1940- Lisboa, 2015), "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974", Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada.




Operação Mar Verde, 22/11/1970: Para Conacri
rapidamente e em força
(pp. 168/183)

por Amadu Djaló (*)



(i) Acaminho da "misteriosa" ilha de Soga

Quando chegámos a Fá Mandinga a primeira coisa que fizemos foi ajudar o pessoal da formação a preparar mais de trezentos pregos para uma viagem que íamos fazer e ainda não sabíamos para onde.

O capitão João Bacar Jaló e o major Leal de Almeida, mal desembarcaram do heli, deram ordens para distribuir os pregos pelo pessoal e logo a seguir tomámos os nossos lugares nas viaturas. Sabíamos que íamos directos ao Xime [1], e depois o destino era desconhecido.

No Xime embarcámos numa LDG que, logo que o pessoal entrou todo, começou a manobrar para sair do porto e a seguir rumou para ocidente.

Na minha e nas nossas cabeças, as dúvidas eram cada vez maiores, ninguém nos dizia para onde íamos e o que íamos fazer. Como Bissau ficava para ocidente, o capitão João Bacar disse que se desembarcássemos em Bissau mandava matar o carneiro capado que tinha em casa.

Bissau ficou à nossa vista e pensei na grande noite de festa que iríamos ter. A lancha encostou na margem contrária e quando vimos a cidade a passar à frente dos nossos olhos perdemos as esperanças. Estava cansado, fui dormir, e não sei o que se passou durante o resto da noite. Quando acordei, já depois das 7h00 de terça-feira, o barco estava fundeado em frente de uma ilha, no meio do mar.

Disseram-me que estávamos entre Bubaque e a Ilha de Soga, no arquipélago dos Bijagós. Que estamos a fazer neste sítio? Era uma pergunta que todos faziam, resposta ninguém tinha. O que vimos foi um grande movimento na ilha que me disseram chamar-se Soga.

Nesta altura veio-me à lembrança que, em Fá Mandinga tínhamos recebido instrução de combate dentro de cidades [ministrada pelo cap art Morais da Silva, hoje cor ref, membro da nossa Tabanca Grande... LG]. E também recordei o que tinha ouvido do adivinho de Paunca [Mamadu Candé, pág. 166 ]. Que íamos para uma grande cidade e que íamos sofrer muitas baixas. Eu nunca falei nesta conversa a ninguém, a não ser ao João Bacar. Fiquei com estes pensamentos na cabeça.

Na noite de terça-feira, os militares fizeram um espectáculo na lancha, que durou até às 02h00 da madrugada de quarta-feira. Quando me levantei na manhã seguinte, a minha cabeça não parava com perguntas. Ia ser uma quarta-feira comprida [2].

Por que estamos nas Ilhas dos Bijagós se aqui não há guerra nenhuma? Por que estão aqui uns gajos, que alguns dizem que falam francês? Em nenhuma parte de Portugal se fala francês! Por que viemos até aqui e não fomos combater? De que é que estamos à espera, neste local?

Já estávamos saturados de mar, mas pelo menos saltávamos para a água. Estávamos a tomar banho quando vimos um heli a passar ao lado do nosso barco e a pousar na ilha de Soga. A seguir vimos um bote, só com um marinheiro, a aproximar-se da nossa lancha. Ficámos ali a observar e, pensei para mim, que as nossas interrogações iam brevemente ter resposta.

Quando o bote encostou, o motorista chamou o major Leal de Almeida e o capitão João Bacar, que desceram para o bote e rumaram directos à ilha. Em ânsias ficámos a aguardar, cerca de duas horas, até que vimos o bote voltar na nossa direcção.

As pessoas que vinham eram nossas conhecidas, era o major e o capitão e não os largámos de vista, a ver se descobríamos alguma coisa nos olhos deles. Quando subiram, a olhar para o chão ou para o lado, chamaram os quadros da nossa companhia.

A reunião começou com o major Leal de Almeida a distribuir objectivos: o grupo do alferes Djamanca [3] ia ocupar a emissora. O furriel Demba Chamo Seca ia com a sua equipa [4] e com um grupo da Frente de Libertação da Guiné-Conacri [5], chefiado pelo comandante Tcham, cortar a luz à central eléctrica. O grupo do alferes Tomás Camará [6] ia atacar a Guarda Nacional.

A minha equipa reforçava a equipa do furriel Talabio e devia seguir com um grupo do FLNG para o Palácio. Eu ia com o major Leal de Almeida, levava dez soldados africanos da 15ª CCmds e mais onze milícias, comandadas pelo régulo Sambel Coió [7] e mais quarenta homens do FLNG, num total de sessenta e nove homens, com dois morteiros de 60, dois de 82, um canhão sem recuo e uma MP e onze carregadores, naturais da República da Guiné-Conacri. O nosso primeiro objectivo era cortar as ligações ferroviárias entre Conacri 1 e Conacri 2, rebentar com os caminhos-de-ferro. Depois ficávamos ali em reserva para um eventual pedido de apoio dos outros grupos.

A seguir entregou-nos mapas das zonas e papeis com os objectivos de cada agrupamento e, no final de tudo, disse-nos que o objectivo era Conacri.

Quando ouvimos falar de Conacri ficámos abananados e as reacções foram imediatas.

 Nós estamos de acordo em actuar em qualquer parte do território nacional. Não estamos em guerra com Conacri!    reagiu assim o tenente Januário, que era o 2º comandante da CCmds. 

E quase todos os quadros estavam de acordo com esta reacção. Os únicos que não se manifestaram foi o comandante da companhia, o capitão João Bacar, e o alferes Sisseco. Entretanto, contrariando as ordens recebidas, o alferes Justo desabafava para os soldados:

– Vocês sabem para onde nos queriam mandar? Para Conacri!

Nessa altura os soldados também se manifestaram abertamente contra a ideia. Perante esta situação, o major Leal de Almeida escreveu uma mensagem a dizer que a 1ª Companhia de Comandos recusava a missão.

Este foi um momento muito, muito difícil. Para os dois comandantes e para nós também. Para mim, a missão de tirar os companheiros da prisão era uma operação própria para os Comandos. E, se a decisão fosse essa, era uma missão completamente legítima e para ser executada por nós. Esta era a minha ideia, aquilo que o meu íntimo me dizia.

Então, o major disse-nos que ia mandar a mensagem e que, a partir deste momento, a vida militar dele estava nas nossas mãos. Se, posteriormente, a companhia decidisse participar na acção, podiam pensar que tinha sido ele, que era o único branco da CCmds, que nos tinha influenciado.

 –
  Meu major, nós não tomaremos nenhuma decisão sobre esta ou outra missão enquanto o meu major não regressar. 

Uma opinião quase geral. Algumas horas passadas voltámos a ver o heli na direcção de Soga e o bote a vir outra vez a caminho da lancha. Quando acostou, quem é que vinha nele? Era o comandante Alpoim Calvão, que nos tinham dito que era o comandante da operação.

Quando acabou de subir para a LDG, nós levantámo-nos e cumprimentámo-lo. Mandou-nos sentar e ouvimo-lo chamar pelo major e pelo João Bacar. Estiveram cerca de uma hora reunidos.

Depois da reunião, o nosso major foi o primeiro a aparecer. Quando passou ao meu lado, que estava sentado junto do médico da companhia, ouvi-o dizer:

– Eu não vos disse? Mandaram-me buscar!

Entraram para o bote os dois, o major e o comandante Calvão, e rumaram noutra direcção. A preocupação entre nós era cada vez maior. No nosso barco reinava um silêncio total, cada um a pensar para si. Um soldado, o Galé Bari, era o único que, de vez em quando, nos entretinha com histórias que nos faziam rir. Mas a noite foi tão comprida e tão cansativa como tinha sido o dia. Os pensamentos surgiam uns atrás dos outros. Não era só o facto de ter medo. Era também a vergonha de recusar entrar numa acção para a libertação dos nossos companheiros presos e haver outras unidades envolvidas.

Seriamos os únicos a tomar esta decisão? Nós não sabíamos, não podíamos entrar em contacto nem com os fuzileiros nem com as milícias do Sambel Coió.

Quinta-feira [8] de manhã, ainda antes das 9 horas, voltámos a ouvir o barulho do heli e vimo-lo na direcção de Soga. E vimos o bote, outra vez a dirigir-se para a nossa lancha. Quando encostou, reconhecemos o nosso major, que, soubemos depois, tinha passado a noite em Bissau.

Quando subiu, vimo-lo com outra cara. Cumprimentou-nos alegremente e nós ficámos mais animados. A seguir mandou os quadros reunirem-se com ele.

Disse-nos que os objectivos se mantinham e falou sobre a forma como íamos agir. Primeiro, não levávamos as nossas fardas, nem as nossas armas. Levávamos Kalashs e íamos vestidos com roupa do PAIGC, equipamentos, chapéus, tudo de cor castanha. Segundo, que havia um capitão do Exército da Guiné-Conakry que comandava uma companhia que ia connosco. E terceiro que todos nós levávamos um braçal, de cor verde, no ombro esquerdo e que serviria de sinal da operação “Mar Verde”. E que qualquer pessoa que, em Conacri, nos mostrasse um pano, grande ou pequeno, desde que fosse de cor verde, era dos nossos.


(ii) A caminho de Comacri, e que Alá nos proteja!


Terminou a reunião, dizendo que a operação estava bem planeada. E que tínhamos, em Conacri, gente à nossa espera, mesmo militares, que apoiavam a nossa acção!

 
– E as fardas e as armas, onde estão?  – perguntou  um e depois outros.

  Aí atrás, em baixo, onde vocês estão. Alguns de vocês estão sentados nelas!

Eram umas caixas que estavam ali, meio desprezadas. Estavam ali desde que tínhamos embarcado na LDG. Ninguém deu por elas, ninguém tinha achado que valesse a pena olhar para elas.

Abrimo-las e logo começámos a fardar-nos. Uma hora depois ninguém parecia pertencer ao Exército Português.

Por volta das 10h00, avistámos um barco muito velho a navegar na nossa direcção. Trazia o general Spínola, corremos para a formatura. Quando chegou, o capitão João Bacar Djaló mandou apresentar armas, o general correspondeu à continência e depois iniciou um pequeno discurso.

Que se não fosse governador ia connosco. Mas que nós iríamos participar com o espírito dele e que havíamos todos de regressar, se Deus quisesse. Gritámos o nosso grito “Comandos ao ataque”, três vezes. Depois deste grito, já não podíamos voltar atrás, era o nosso juramento.

A partir deste momento, acabaram-se as reclamações. Mesmo assim, um pequeno grupo não estava satisfeito com a missão.

Acabada a reunião, o nosso general [9] regressou no barco e nós saltámos para a ilha de Soga. Aqui esperava-nos o trabalho de formar os grupos e enquadrar a gente da Frente de Libertação da Guiné-Conakry.

Faço aqui, agora em 2009, uma nota que nunca revelei. A última ordem que recebi do major Leal de Almeida foi que se tivéssemos êxito na acção, era que devia manter-me em Conari até o Movimento de Libertação da República da Guiné controlar totalmente a situação. Só depois, o meu grupo seria recolhido de avião, de barco ou até em viaturas. Esta ordem foi-me transmitida na sexta-feira [10], dia destinado aos preparativos, um dia em que nem tempo tivemos para almoçar. Só mais tarde jantei no barco.

Pensando hoje, lembro-me que houve sobreviventes do desembarque na Normandia, na IIª Guerra Mundial e talvez eu não estivesse assim tão perto do fim dos meus dias. Só que as guerras têm diferenças.

A nós, o PAIGC não nos poupava. Que me lembre, não me recordo de ver algum dos nossos matar os feridos. Nem deixávamos nenhum ferido do PAIGC na terra de ninguém. Se estivesse ferido, pedíamos a evacuação para o Hospital Militar. Certamente, alguns entre nós, brancos ou negros, não se comportavam assim, tão dignamente, mas não eram a maioria. E se nós fossemos apanhados pela tropa de Sékou Turé, de certeza que não haveria nenhum sobrevivente.

A partida deu-se às 17h35 dessa mesma quinta-feira, 20 de Novembro, comigo a falar para dentro e a mirar os tarrafos [11] até ao pôr-do-sol. Talvez eu estivesse a olhar pela última vez aquelas paisagens da minha Guiné.

A frota era constituída por seis navios: duas LDG e quatro patrulhas. A nossa lancha foi a terceira a partir. No mar víamos, às vezes, dois barcos que seguiam na dianteira. Continuámos a navegar até sábado 
[21 de novembro] , quando nos foram feitas importantes recomendações. Ninguém podia acender luz nem fumar fora do porão. O jantar ia ser servido às 17h00. E a ordem de desembarcar ia ser dada até às 23h00.

Ao pôr-do-sol começámos a ver as luzes de Conacri. Lembro-me de olhar para o relógio, eram 19h00, quando disse para um colega, o 1º cabo Galé Bari, para me deixar dormir um pouco.

 És parvo? Nós vamos dormir nas ruas, um sono de que nunca mais vamos acordar!

 Podem sobrar alguns     respondi.

 
– Não, vamos morrer todos, ninguém vai sobrar!

Estava a gozar, ele a dizer para o lado e nós a rirmo-nos.

Quando chegámos ao local onde íamos fazer o transbordo para os botes, a lancha parou e o pessoal começou a sair.

Se não me engano, éramos quatros grupos sob o comando do capitão João Bacar Jaló. O alferes Djamanca, eu, Amadu Bailo Djaló, o furriel Talabio Djaló e o pessoal da Frente de Libertação da Guiné-Conakry. Os primeiros a desembarcar foram os grupos do Jamanca [12] e do Talabio Djaló.

Outros grupos já estavam em acção em Conacri [13], ouvíamos tiroteio cerrado e rebentamentos. O meu grupo, em que ia o major Leal de Almeida, foi o último a desembarcar. No momento em que estávamos a passar da lancha para os botes, ouvi, no meu rádio, o comandante Calvão a dizer ao nosso major que o tenente Januário tinha desertado.

 O quê ?  – perguntou  o major.

 
  O Januário desertou!

 
   O quê?

 
– O Januário fugiu  rematou o comandante.

   Mas fugiu com o grupo, ou sozinho?    insistiu o major.

 
– Stop       fechou assim a conversa o comandante.

Para mim e talvez para outros, não estava a ser novidade esta deserção. Ainda em Soga vi o tenente Januário vestido com roupa civil, uma calça de terylene verde e uma camisola branca, de manga curta.

 Djaló, eu não entro no ataque. Vou-me entregar, portanto não levo farda. Vou com esta roupa, as botas de fecho ao lado e quando lá chegar, tiro o dólmen e o quico e fico à civil.

Fiquei surpreendido mas não acreditei. Eu sabia que o tenente Januário tinha um irmão que combatia pelo PAIGC, tal como alguns de nós tínhamos familiares que também combatiam por eles.

Quando pusemos os pés em terra, Conakry estava às escuras e os tiros e rebentamentos eram mais esporádicos. Meia hora depois do desembarque talvez, ouvi pelo rádio o comandante Calvão dar ordem de retirada, com a indicação de abandonarmos as posições em terra.

A missão do meu grupo tinha sido abortada. O grupo do capitão João Bacar tinha acabado de chegar ao porto e ficámos ali, a aguardar a chegada dos restantes grupos. Momentos depois, chegou o grupo do Jamanca, que vinha completo e que não tinha conseguido localizar a emissora. Agora, restava-nos esperar o Talabio Djaló e os seus homens. Este grupo trazia-nos preocupações porque, desde que desembarcou, não deu qualquer sinal, nem chamou nem respondeu aos nossos contactos rádio. Não sabíamos o que era feito dele e do grupo. Até ao momento, era o único grupo com o qual não tínhamos tido qualquer notícia.

João Bacar disse que o meu grupo e o dele tinham que manter aquela posição até que todo o pessoal estivesse embarcado.

As duas últimas equipas, nove homens comigo, foram as últimas a embarcar para o bote que nos transportou para a lancha. Quando já estávamos encostados à lancha, preparados para entrar, ouvi o João Bacar dar ordem ao furriel Djalibá Gomes para ir buscar o Talabio, que acabava de informar que estava a chegar ao porto.

O bote, em grande velocidade, regressou ao cais e, passados uns minutos, vimo-lo a regressar, mas só trazia o Djalibá e o motorista do bote.

 Onde está o Talabio?

–  O Talabio não estava no cais. Quem lá estava era o IN    respondeu o Djalibá!

O Talabio nunca mais chamou, a hora marcada para a partida já tinha passado e foi decidido iniciar o regresso à nossa Guiné.

Mais tarde, soube pelo Francisco Gomes Nanque, um soldado da minha equipa que tinha ido na missão do furriel Talabio, o que tinha acontecido.

Depois de desembarcar, o grupo do Talabio dirigiu-se para o Palácio, onde se confrontou com a guarda. Da troca de tiros resultou um ferido no grupo, um engenheiro natural da Guiné-Conakry, chamado Bari, que ficou incapacitado de andar. O Talabio deve ter-se preocupado mais com o transporte do ferido do que com o rádio. E, quando chegaram ao porto, no regresso da missão, o Talabio pediu pelo rádio ao João Bacar que os fossem recolher.

Todas as nossas tropas já estavam nas lanchas. Restavam apenas aqueles nove homens. Os gendarmes atacaram com rajadas o bote que se aproximou do cais para os recolher e foi então que deram com os homens do Talabio. Do grupo só escaparam dois, o Francisco Nanque e o soldado Mário Dias, que conseguiram sair do local a nado.

O Francisco foi recolhido por um navio holandês mas como ninguém o percebia levaram-no para a próxima escala, na Libéria. Como ninguém se percebia, chamaram um cubano para servir de intérprete. Francisco disse que era soldado português e que tinha feito parte das tropas que tinham atacado algumas instalações em Conacri.

A Libéria não tinha relações com o nosso país, mas também não via Portugal como um grande inimigo. Enquanto mantinham o Francisco detido, num regime pouco rigoroso, fizeram seguir para Lisboa, a informação de que tinham em seu poder um soldado português, chamado Francisco Gomes Nanque, que afirmava ter participado no ataque a Conacri. Segundo o Nanque, não demorou muitos dias a resposta de Portugal, que lhe foi dada a conhecer pelas autoridades liberianas: que o Nanque tinha sido soldado, de facto, mas já tinha passado à disponibilidade e que se dizia que tinha participado na agressão a Conakry o devia ter feito por razões materiais e que o Estado português não tinha nada com isso.

 
   Eu sou militar português!  insistia o Francisco Nanque.

Dias depois, perguntaram-lhe se tinha coragem para ser entregue na Embaixada de Portugal, na África do Sul. Com roupas novas que lhe deram, embarcou acompanhado de dois polícias liberianos. Entretanto, Sékou Touré já tinha reclamado várias vezes ao Presidente da Libéria que o soldado lhe devia ser entregue.

Chegado ao aeroporto de uma cidade sul-africana, que o Nanque não recorda o nome, foi levado pela polícia ao encontro de um cônsul português que se encontrava, por acaso, no aeroporto. Muito surpreendido, o cônsul afirmou que o embaixador português na África do Sul se encontrava em Lisboa. Depois de várias peripécias, os polícias liberianos que o acompanhavam não viram outra saída senão voltarem para a Libéria. Apanharam um avião que fazia escala em Londres. No controle dos passageiros, autoridades da fronteira inglesa, inteiradas do assunto, sugeriram que se contactasse a embaixada portuguesa em Londres.

Ao corrente da história, o embaixador prontificou-se a falar com o Francisco. Sempre acompanhado pelos dois polícias da Libéria foi transportado às instalações da embaixada de Portugal, onde foi recebido pelo embaixador. Depois das identificações, o embaixador acedeu em ficar com o Francisco Nanque e, na frente da polícia, deu ordens para o encerrarem numa sala, fechada à chave. Mal os polícias saíram, o Francisco ouviu o rodar das chaves e recebeu um abraço sorridente do responsável pela embaixada.

No mesmo dia, o embaixador enviou uma mensagem para Lisboa e, no dia seguinte, o Francisco desembarcou no aeroporto da Portela, onde estava uma viatura militar que o transportou para o QG. Um dia de interrogatórios depois, levaram-no para o Depósito Geral de Adidos, com a ordem de não lhe permitirem qualquer saída. O comandante Calvão foi informado do caso e encontrou o Francisco no DGA. Que não podia estar preso quem tinha entrado numa operação para libertar os nossos prisioneiros de Conacri. Albergou-o em casa, durante cerca de quinze dias, e levou-o a conhecer Lisboa e os arredores. Depois, reencontrei o Francisco Gomes Nanque, em Brá, que me contou esta história.

Soube-se também que o Mário Dias foi a nadar até uma pequena ilha onde foi recolhido por pescadores. Pouco se soube da odisseia dele, apenas que, cerca de três dias depois de ter sido encontrado, foi entregue às autoridades de Conakry.

Voltando ao regresso de Conakry. Era um domingo, por volta das 07h00, havia nevoeiro, e continuámos a navegar durante aquele dia e a noite seguinte, até que chegámos à Ilha de Soga.

Os fuzileiros e o pessoal da Frente de Libertação da República da Guiné-Conari regressaram aos seus locais e, a nós, mandaram-nos desembarcar na Ilha de Soga [14].

 Agora estamos em Soga, a fazer o quê? Sem transporte, porquê? O que é que estamos a fazer aqui, neste local?

Alguns de nós ouviram as declarações do tenente Januário à rádio Conacri. Que pertencia aos Comandos Africanos. E quando lhe perguntaram onde estavam sediados, o tenente disse que o quartel era em Fá Mandinga.

   Fá Mandinga, onde é?

   Perto de Bambadinca     respondeu.

 Pensámos que, talvez, as razões da nossa prolongada estadia em Soga se pudessem prender com as declarações do Januário.

A paisagem não mudava. E neste intervalo de tempo, num dia [15], tivemos uma fatalidade. Alguns companheiros nossos estavam a tentar arranjar peixe. Um deles lançou uma granada ofensiva para a água, na altura em que, sem saber, o soldado Caetano Gomes estava mergulhado. Morreu.

Nós íamos passando o tempo da forma como podíamos, falando uns com os outros, trocando impressões sobre as missões.

O grupo do Jamanca não conseguiu chegar à emissora de Conacri, que era uma acção muito importante. Segundo o Jamanca, tinha ocorrido um erro fatal para a missão. O indivíduo, natural da Guiné-Conacri, que ia levar o grupo à vivenda da emissora, já não ia a Conacri há alguns anos. Ele sabia onde era a vivenda da emissora, mas quando lá chegou com o grupo a vivenda não estava lá. No lugar da vivenda estava um edifício com vários pisos e ficaram sem saber onde ficava a emissora.


(iii) É o meu filho, Amadu!

As preocupações tinham passado para nós, os que estávamos em Soga. Escrevemos cartas para as famílias, metemos as cartas numa caixa de correio e, três dias depois, veio um heli que as levou todas. Estávamos contentes, nada nos tinha acontecido e as nossas famílias em breve iam receber notícias nossas. Aproximava-se a Festa do Ramadão, que estávamos habituados a respeitar e a passá-la fora do quartel. Passámo-lo em Soga, com o régulo Sambel Coio a dirigir as orações.

Mais ou menos 15 dias depois chegou uma lancha para nos levar para Fá Mandinga. A viagem iniciou-se à meia-noite e qualquer coisa e quando chegámos ao Xime era quase meio-dia, sempre a navegar. Uma grande coluna de viaturas estava à nossa espera.

No cais do Xime, a companhia de europeus [16], que estava lá aquartelada, estava à nossa espera no cais, com máquinas a tirarem-nos fotos. Depois prosseguimos o nosso trajecto, em coluna até Fá Mandinga. Pessoas das tabancas, mulheres, crianças, homens de todas as idades, vieram para as bermas da estrada saudar o nosso regresso. Fomos passando de tabanca em tabanca até Fá Mandinga. Quando finalmente chegámos, o capitão João Bacar Jaló disse-me:

 – Amadau, vai para Bafatá e diz às nossas famílias que preparem um bom jantar.

Logo que pude, apanhei lugar num carro civil que acompanhou a coluna e fui, feliz, em direcção à minha cidade. O carro parou à porta da minha casa, eram mais ou menos 15h00 daquela tarde, um sobrinho meu estava na varanda da frente, a brincar. Ouvi-o chamar pela minha mãe, a dizer que o tio já estava ali. A minha mãe não acreditava, que não podia ser, que aquele carro era civil, que eu nunca vinha em carro civil.

Quando saltei da viatura, perguntei ao meu sobrinho pela minha mãe. Ela ouviu, gritou alto, é o meu filho Amadu! Veio a correr, encontrámo-nos no meio do corredor, com um grande abraço e eu voltei a sentir o coração dela a bater com força.

Ela estava muito fraca, agarrei-lhe na mão e levei-a para o quintal. Depois, a minha irmã contou que ela estava muito fraca porque não comia quase nada desde a minha despedida. Dizia que o seu filho comprou o peixe, escolheu o prato e não comeu.

Naquele momento, não pude deixar de pensar no erro que tinha cometido naquela 2ª feira, quando comprei uma cabeça de bicuda e lhe pedi para fazer a caldeirada. Infelizmente, antes da comida ficar pronta, vieram procurar-me, estava eu no mercado. Um soldado tinha-me pedido para vir cá fora falar, num sítio mais sossegado. Foi nessa altura que soube da ordem que tinha vindo de Bissau, a mandar recolher toda a tropa de Comandos para uma reunião. Quando cheguei a casa, mudei de roupa, preparei a minha bagagem e despedi-me da família. A minha mãe ainda me disse para esperar pelo almoço e eu, infelizmente, respondi que não tinha tempo.

Esta resposta feriu a minha mãe profundamente, no fundo do coração. E a minha irmã estava ali a dizer-me que, a partir daquela tarde a minha mãe quase não comia, porque não tinha vontade.

Uma surpresa tive eu e os meus companheiros, que tínhamos estado em Soga, e que tínhamos escrito cartas para os nossos familiares. Quando regressámos ao nosso quartel, dias depois, essas cartas que nós tínhamos escrito foram-nos entregues abertas. Soube depois, que as cartas tinham sido remetidas para o Comando-Chefe, abertas e lidas e só depois, reenviadas para Fá.

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Notas do autor Amadu Djaló e/ou od editor Virgínio Briote

[1] Nota do editor: sede da CArt 2715.

[2] Nota do editor: 11 Novembro 1970.

[3] Nota do editor: Grupo “Hotel”.

[4] Nota do editor: “Índia”.

[5] Nota do editor: do “Front de Libération National Guinéen”, constituído em março d e  1969 por refugiados guinéus na Costa do Marfim, Senegal e Gâmbia.

[6] Nota do editor: “Óscar”.

[7] Nota do editor: Sambel Coio Baldé, ex-régulo de Sancorlá, tinha sido libertado do Tarrafal.

[8] Nota do editor: 12 de novembro de 1970.

[9] Nota do editor: ao princípio da tarde de 20 de novembro de 1970, o general Spínola, após ter visitado Mansambo e a tabanca de Gandamã, deslocou-se para o ilhéu de Soga.

[10] Nota do editor: 20 de novembro de 1970.

[11] Vegetação rasteira que bordeja a costa.

[12] Nota do editor: da LDG Bombarda.

[13] Nota do editor: os prisioneiros portugueses, 26, foram libertados por volta das 04h00 da manhã por um grupo de 30 fuzileiros, comandado pelo 1º tenente Cunha e Silva e transportados para a LFG Dragão.

[14] Nota do editor: às 16h25,  de 2ª feira, 23 novembro 1970, os navios fundearam ao largo do ilhéu de Soga, após o que todos os militares portugueses desembarcaram.

[15] Nota do editor: 25 de novembro  de 1970.

[16] Nota do editor: CArt 2715

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Negritos / Parênteses retos com notas / Subtítulos: LG]
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Nota do editor:

Último poste da série > 19 de novembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23796: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte IX: "Amadu, que vamos fazer ao puto ?"... "Meu alferes, vou levá-lo para Bafatá, a minha irmã cuidará dele!"... A história do puto, "turra", Malan Nanque, que o Amadu salvou e adotou como sobrinho...