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segunda-feira, 16 de outubro de 2023

Guiné 61/74 – P24761: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (11): A primeira visão aterradora de uma aeronave, um Alouette II ou III, aos 4 ou 5 anos (Cherno Baldé, Fajonquito)

Guiné > Região de Tombali > Catió >  CCAÇ 617 / BCAÇ 619 (Catió, Ilha do Como e Cachil, 1964/66) > Alouette II > "O meu batismo em heli". 

Foto (e legenda): © João Sacôto (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Angola > BCP 21 (1970/72) > Leste > Chiume > Dezembro de 1971 > No Leste de Angola, Chiume (Cú de Judas), heli AL III  no apoio ao 3º pelotão,  1ª CCP /  BCP 21.


Foto (e legenda) © Jaime Bonifácio Marques da Silva (2022). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné


A primeira visão aterradora 

de um helicóptero aos 4 ou 5 anos 

por Cherno Baldé (*)


Uma valiosa c0ntribuição guineense para a série "Coisas & loisas do nosso tempo de menino e moço" (**) 



O Cherno Baldé, em 1987,
na Moldávia, na antiga URSS
Foi naquela época que, na idade de 4 ou 5 anos, aconteceu a minha primeira visão de uma máquina voadora, que terá sido, provavelmente em meados de 1964, precisamente na altura em que estávamos em Samagaia, pouco tempo antes do ataque à zona que nos obrigaria a deixar a aldeia para nos refugiarmos em Cambajú, onde o meu pai já se encontrava a trabalhar alguns anos antes.

Estava com o meu irmão mais velho, Ibraima, a pastar as vacas nas imediações da aldeia, quando de repente ouvimos um ruído potente que vinha de cima, 

Quando nos virámos para ver, o avião já estava em cima das nossas cabeças, não dava para fugir, instintivamente, meti-me por baixo de umas raízes enormes de um poilão que estava por ali perto. Escondi-me o melhor que pude mas, foi por pouco tempo. 

Como o meu irmão estava a espreitar o avião e não lhe acontecia nada, sai também para ver. Na altura, os meus olhos viam com bastante nitidez e o avião voava a baixa altitude o que me permitiu ver, após uma breve inclinação deste, as pessoas sentadas, dois à frente e um na abertura lateral com as mãos apoiadas no que parecia ser uma metralhadora.

Esta visão ficou para sempre gravada na minha memória

Estranhamente, era também a visão da guerra que  alastrava pouco a pouco e que mudaria o cenário da vida, aparentemente pacífica, que levávamos até aí e mudaria, de forma inesperada, o caminho dos nossos destinos, criando, mais tarde, a incompatibilidade e a confusão entre o futuro que tínhamos vislumbrado na infância e ao qual queríamos dar continuidade e a nova realidade para onde nos tinha empurrado um destino diferente, passando pela escola portuguesa e enfrentando, assim, um futuro incerto e completamente desconhecido que nos levaria primeiro para Bafatá e mais tarde à capital, Bissau, onde funcionava o único liceu, na altura, e mais tarde para terras distantes e desconhecidas, no estrangeiro.

Uma vida feita de aventuras interessantes e também de sofrimentos, de conquistas e derrotas, de descobertas e imposições, de solidariedade e mercantilismo, sempre em ambientes de opressão cultural permanente e de recuo impossível, fruto da rápida transformação e globalização a que fomos sujeitos pela máquina de dominação Europeia e Ocidental.


Cherno Abdulai Baldé, Chico

Natural de Fajonquito, Sector de Contuboel, Região de Bafatá | Pertence à Tabanca Grande desde 18/6/2009, e tem cerca de 285 (!) referências no nosso blogue. É nosso colaborador permanente, especialista em questões etno-longuísticas. É autor de, pelo menos, três notáveis séries de conteúdo autobi0gráfico:
  • "Memórias do Chico, menino e moço";
  • "Memórias do Chico no Império dos Sovietes";
  • "Memórias do Chico: Refugiado na sua própria terra durante a guerra civil de 1998/99: 200 km e oito dias de aflição, entre Bissau e Fajonquito".
Vive em Bissau, onde é quadro superior numa organização estrangeira.
____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 19 de junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4553: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (1): A primeira visão, aterradora, de um helicanhão

domingo, 22 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P24004: Fotos à procura de... uma legenda (169): Um ministro de Salazar, desembarcado na fragata Nuno Tristão, no decurso da Op Tridente, Ilha do Como, c. jan/mar 1964 (José Belo, Suécia)


Guiné > Região de Tombali > Ilha do Como > c. jan / mar 1964 > Chegada do ministro da Defesa Nacional (1962-1968), general Gomes de Araújo, à fragata Nuno Tristão (Arquivo Histórico da Marinha)

Editada pelo Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2023)... Com a devida vénia a Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, "Sanctuary Lost: Portugal's Air War for Guinea 1961-1974". Volume I: Outbreak and Escalation (1961-1966), Helion & Co, UK, 2022 (*)


1. Comentário de José Belo no poste P23956 (*), que transformámos em poste, para a série "Fotos à procura de...uma legenda" (**), na expectativa de merecer a devida atenção de outros nossos leitores:

Curiosamente, tanto o meu Camarada e Amigo Graça de Abreu como eu próprio reagimos perante a foto de Excelentíssimo Senhor Ministro da Defesa desembarcando do helicóptero. Mas, como seria de esperar, vimos “coisas” diferentes naquela fotografia… ”catita”.

O Senhor Ministro desembarca na Fragata para se juntar ao comando da operação. “Equipado” para a função de comando nos trópicos (!) com o típico vestuário da época entre os altos expoentes do governo da ditadura e… não só. Gravata, blêizer assertoado, calças cinzentas e o indispensável chapéu na mão. Era um Senhor Ministro (General) vestidinho para “ir à missa” na igreja da Parada de Cascais.

A meditar-se sobre o ridículo de tal vestuário (marcante de uma certa maneira de estar, "tendo em conta o local e função”) acaba por se compreender tornarem-se desnecessárias argumentações (pseudomarxistas) quanto a utopias de Império sem se dispor de condições económicas, demográficas e políticas, para o manter e defender.

E, para mais, sei do que falo. Usei em toda a minha adolescência este uniforme “de ir à missa” e não só, precisamente nos sempre muito interessantes acontecimentos na Parada de Cascais da época. (Faltou-me o chapéu!)

Poeta português [ Alberto Caeiro / Fernando Pessoa] escreveu:

“Para além da curva na estrada / Talvez haja um poço, e talvez um castelo. / Etalvez apenas a continuação da estrada./ Não sei nem pergunto”.

Um abraço do JBelo

[ Jurista, vive na Suécia há 4 décadas; cap inf ref, ex-alf mil na CCAÇ 2381, Os Maiorais (Buba, Aldeia Formosa, Mampatá, Empada, 1968/70)]

2. Comentário adicional do editor LG:

Independentemente da pose e do vestuário do senhor ministro da Defesa, gen Manuel Gomes de Araújo (1897 -1982), é de referir o seguinte, que também tem interesse documental, e que complementa a legenda da foto acima:

 "Primeiro pouso de um helicóptero (um Alouette II, da FAP) numa unidade da Marinha, no caso a fragata Nuno Tristão. Pilotado por Villalobos Filipe (José Luis Villalobos Filipe, militar de Abril que faleceu em Dezembro de 2013, com 76 anos),  o héli participava na altura na Operação Tridente que tentou recuperar - de 14 de Janeiro a 24 de Março de 64 - a ilha do Como, na Guiné-Bissau - que era controlada pelo PAIGC, com Nino Vieira no terreno. 

"A bordo da fragata estava instalado o Posto de Comando da operação, que envolveu cerca de 1.200 homens da Marinha, Exército e Força Aérea. Para além da Nuno Tristão,  a Armada destacou para o zona 4 Lanchas de Fiscalização, 4 LDP e duas LDM. Foto da Marinha." 

(Fonte: Página do Facebook "Navios da Armada", com a devida vémia...

___________

Notas do editor:

domingo, 8 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P23960: (De) Caras (191): A morte do fur mil 'comando' Joaquim Carlos Ferreira Morais, no assalto a uma base IN, em Catunco, Cacine, em 7 de maio de 1965 (João Parreira, ex-fur mil op esp, 'comando', CART 730 / BART 733 e Gr Cmds “Os Fantasmas” e "Os Camaleões", Bissorã e Brá, 1964/66)



João Parreira, ex-fur mil op esp, 'comando',
CART 730 / BART 733
e Grupo de Comandos “Os Fantasmas” e "Os Camaleões",
Bissorã e Brá, 1964/66, membro da Tabanca Grande
desde 3/12/2005


1. Em complemento da versão do Amadu Djaló sobre a última operação realizada pelo Gr Cmds "Os Fantasmas (6 e 7 de maio de 1965) (*), publicamos aqui alguns excertos de postes do João Parreira (**), que trazem informações adicionais sobre a Op Ciao, em que ambos foram feridos, e em que morreu o fur mil comando' Joaquim Carlos Ferreira Morais,

(i) Julgo que vale a pena deixar escrito alguns eventos, durante o período de 6 de Maio a 11 de Junho 1965, alguns deles relacionados com a operação Ciao na mata de Catungo, em [6 e 7 de ] maio de 1965.

Na carreira de tiro dos paraquedistas, alguns dias antes tinha perdido uma aposta com o  Morais, pelo que me competia em qualquer altura pagar-lhe um almoço no Grande Hotel.

Como alvo, daquela vez, foram escolhidas 3 garrafas distanciadas umas das outras (também havia quem preferisse latas e até granadas). A aposta consistia em, virados de costas para cada uma delas, e por 3 vezes consecutivas, dar um salto, enfrentá-las e, instintivamente com a G-3 em patilha automática, dar apenas uma rajada de 3 tiros e, por sequência, acertar nas que ainda se encontrassem intactas.

Como não me foi dito que havia saída para o mato nesse dia, resolvi então convidá-lo para ir almoçar uma vez que faltavam poucos dias para ele regressar à Metróple.

Depois do almoço num ambiente calmo e agradável encontravámo-nos a beber whisky, a observar o que nos rodeava e a falar de coisas triviais, quando vimos o yenente Saraiva dirigir-se para nós pelo que pensámos que se ia sentar connosco.

Desde o meu primeiro dia que senti que iria ter boas relações com o ten [mil 'comamdo']  Saraiva [comandante do Gr Cmds "Os Fantasmas"]  e assim aconteceu quer em Brá quer nas nossas deambulações por Bissau ou em operações. No mato admirava o seu empenhamento, a sua descontração e o seu à-vontade.

Afinal tinha acabado de chegar do Gabinete do Governador e Comandante-Chefe, onde tinha ido receber informações sobre uma operação e sabendo por alguém que me encontrava com o Morais no Grande Hotel, foi ter connosco e disse-me para regressar a Brá o mais depressa possível a fim de me equipar para dentro de poucas horas partir para uma operação no Sul da Província, tendo o Morais, que já tinha acabado a comissão de serviço, dito que também ia.

Então, foi-nos comunicado nessa altura que, dado o pouco tempo disponível, nos daria pormenores durante o trajecto. Já em Brá vários camaradas dos outros dois grupos ["Os Camaleões" e "Os Panteras".] , ao saberem que o nosso grupo ía sair, insistiram com o Morais para não ir mas ele foi peremptório e disse:

– Já fiz tantas operações com o grupo,  que uma a mais não me faz qualquer diferença.

Progredindo silenciosamente por aqueles trilhos do mato naquela noite, escura como breu, em que à distância de um braço já não se via o camarada da frente, G-3 na mão e dedo no gatilho, 4 carregadores à cintura e nenhuma granada...     [E aqui abro um parêntese, para confessar que fiquei com uma certa aversão ao lançamento de granadas, que aliás todos nós as sabemos lançar, alguns porém só em teoria, desde que,  durante um tiroteio, numa das operação da CART 730 em que, para não largar a arma, resolvi utilizar só uma mão, pegando assim na granada com a mão esquerda e, sem pensar, uma vez que quer em treinos no CIOE (em Lamego), quer num dos combates já as tinha utilizado, daquela vez não sei o que é que me passou pela cabeça, o certo é que tentei imitar, talvez em desespero, o que via fazer em filmes de guerra, pelo que tentei puxar a argola com os dentes e o resultado foi óbvio, não só não consegui como fiquei com a ponta de um dente partido, tendo depois, como é natural, achado prudente ficar caladinho.]

 Continuando a progressão, e com todos os sentidos em alerta para aquela operação que se afigurava espinhosa e,  tentando não perder o camarada da frente, dois pensamentos iam-me constantemente martelando a cabeça: "o que é que eu ando para aqui a fazer no meio do mato nesta noite tão escura, sujeito a perder-me, levar com um balázio que me pode deixar incapacitado para toda a vida ou matar-me, quando ainda não há muito tempo me encontrava bem instalado e livre de perigo ?"...

E o outro: "Anda para aqui um gajo a dar o corpo ao manifesto enquanto muita malta nova na Metrópole anda neste momento a divertir-se em bares e em boites, e outros mais expeditos piraram-se do país, quando..."

Já estávamos tão perto do acampamento que,  quase de repente,  esbarrámos com um sentinela que foi mais lesto a detectar-nos, pelo que começou a fazer fogo, seguindo-se logo fogo cerrado dos seus camaradas.

Reagimos ao fogo até conseguirmos calar as armas do IN tendo depois entrado no acampamento que, segundo as informações que nos tinham sido dadas, era ocupado por cerca de 80 homens comandados por Pansau Na Isna.

Excitados com o êxito do golpe de mão em que não sofremos feridos e em que foram causadas baixas que não foi possível estimar, depois da debandada e a subsquente destruição do acampamento, seguimos carregados com todo o material abandonado pelo IN para junto de um  Pelotão que nos aguardava a alguns quilóemtros de distância.

Ao alvorecer foi possível olharmos com mais atenção para esse material, que a seguir descrevo  [e que o Amadu Djaló omite no seu relato]:
  • Pist met PPSH >3 ;
  • Carregadores p/ pist met PPSH > 10;
  • Bolsas lona p/ carregadores PPSH > 8;
  • Espingarda semiautomática M-52 > 1;
  • Esp Mosin-Nagant > 1;
  • Pistola CESKA > 2;
  • Carregador p/ pist. Ceska > 1;
  • Aparelho pontaria p/ Mort. 60 > 1;
  • Granada mort. 60 > 4 ;
  • Capas lona p/ mort. > 3;
  • Mina A/P PMD-7 > 3;
  • Granada de mão defensiva DEF F-1 > 7;
  • Granada de mão ofensiva RG-4 > 4;
  • Cunhetos p/ Gr Mão Of RG-4 > 1;
  • Sabre p/esp. Mauser > 1;
  • Carr. p/  metr lig  RPD > 4;
  • Carr. p/ PM 25 > 2;
  • Cunhetos metálicos p/mun. > 2;
  • Lâminas carregadores p/ esp. Simonov > 23;
  • Estojo limpeza p/ esp. Simonov > 1;
  • Cartuchos cal. 7,62 > 1.262;
  • Cartuchos cal. 7,65 > 39;
  • Cartuchos cal. 7,9 > 773;
  • Cartucheiras diversas > 13;
  • Detonadores pirotécnicos > 27;
  • Disparadores p/ minas > 11;
  • Disparadores tipo MUV > 10;
  • Petardos > 4;
  • Cordão neutro > 4 mts.;
  • Bornais lona > 15;
  • Suspensórios lona > 23;
  • Bolsas lona p/ carr. Degtyarev > 3;
  • Bolsas lona p/ acessórios > 3;
  • Almotolias > 3;
  • Capecetes de aço > 1;
  • Calças de caqui > 8;
  • Camisas de caqui > 7
  • Outro material > Vários livros e documentos. Material sanitário diverso: pensos individuais; ligaduras; algodão; comprimidos de sulfamidas; embalagens de penicilina; frascos de Sanergina; pinças; tesouras; tesouras de laquear; seringas; agulhas para injecções e ligaduras elásticas.

Pela razão já anteriormente descrita, foi dito ao Morais e ao Amadú para, a título voluntário, regressarem ao acampamento juntamente com outros que os quisessem acompanhar.

Andávamos descontraídos dentro do acampamento à procura de mais material, tendo por isso subestimado a estratégia do IN, pelo que, passado não muito tempo,  fomos todos nós (eramos 10) repentinamente atingidos por aquela bem orientada e por isso maldita granada de LGFog, ao que se seguiram durante algum tempo rajadas de várias armas.

(Em suma: O grupo que devido às circunstâncias foi muito sacrificado, era composto no início por 30 homens. Em 28 de novembro de 1964 uma explosão no regresso de uma operação causou 8 mortos e 2 feridos que foram evacuados para o HMP, em Lisboa. Tendo sido interveniente em mais operações, só no início de fevereiro de 1965 foi recompletado com um furriel (!!!). Em 20 de abril de 1965, na região do Inscassol ficámos 4 feridos com estilhaços de granada.)

Não sei como, mas o certo é que, apesar de feridos em Catungo,  ripostámos e aguentámo-nos como pudemos até que com alívio vimos a chegada dos restantes elementos do Grupo que, ouvindo o tiroteio e pensando que estávamos em apuros, foram em nosso socorro e assim afastaram o perigo.

Depois de se certificarem que o IN tinha desaparecido ajudaram-nos a chegar até junto do Pelotão que nos aguardava, onde foram então feitos tratamentos sumários aos feridos, tendo o Grupo regressado a Cacine e daí para Bissau, com excepção de dois que de Cacine foram directamente de heli para o Hospital.

(ii)  N[esta ] operação, a 6 de maio, efectuada a um acampamento situado na mata a SW de Catungo (Cacine), em que foi capturado grande quantidade de material de guerra e sanitário, o Grupo (reduzido a 22 homens) teve 10 feridos, entre eles o capitão de artilharia Nuno José Varela Rubim que mais tarde ficou a comandar a Companhia de Comandos.

Em virtude de ter sido ferido com alguma gravidade fui evacuado de heli para o Hospital Militar em Bissau, bem assim como um grande amigo e camarada, o furriel Joaquim Carlos Ferreira Morais, que, infelizmente, faleceu a meu lado e do qual ouvi a última palavra.

Como era amparo de mãe, e não tinha meios financeiros, teve que ser feita uma subscrição a fim de se angariar fundos para que o corpo pudesse regressar a Portugal.

Com a extinção do meu Grupo, que estava reduzido a pouco mais do que meia dúzia de homens,  fui integrado num dos dois restantes, "Os Camaleões", os quais também acabaram por desaparecer, tal como o outro, "Os Panteras", devido a muitos dos seus elementos terem terminado a comissão e estarem a aguardar o embarque. Deste modo deixaram de existir os três primeiros Grupos de Comandos formados no 1º Curso e tornou-se necessário criar o 2º. Curso, no qual participei" 

(iii) Não consegui resistir à tentação de escrever estas linhas quando vi um Alouette que aparece no blogue (poste P924), pois trouxe-me velhas recordações.

Isto, porque quando fui ferido nas costas em 7 de maio de 1965, em Cacine, durante o trajecto de madrugada para Bissau, e em zonas diferentes, tentaram alvejar o heli por 2 ou 3 vezes, não posso precisar.

Tinham-me injectado morfina e colocado de barriga para baixo numa maca de lona colocada no lado exterior direito do heli. Quando dos primeiros tiros e no meio da minha sonolência pensava: "Oxalá que nenhuma das balas acerte na maca pois fico furado!"...  E naquela altura nem me passou pela cabeça que podiam acertar no heli. Mais à frente novos tiros, mesmo pensamento mas já desejoso que o heli chegasse ao Hospital. No lado esquerdo do heli colocaram o corpo do camarada   [o fur mil 'comando' Morais] que faleceu a meu lado .

(iv) No Hospital durante uma visita da D. Beatriz Sá Carneiro, ela perguntou-me o que é que eu precisava e lembrei-me então de lhe pedir um Monopólio para a caserna dos nossos praças, tendo ela satisfeito o solicitado.

Por ironia do destino, em 22 do mesmo mês de maio o ten Maurício Saraiva, deslocou-se a Lisboa a fim de no dia 10 de Junho, no Terreiro do Paço, ser promovido a Capitão por distinção e condecorado com a Medalha de Valor Militar com Palma.

No dia em que o ten Saraiva estava a ser agraciado  [em Lisboa, no 10 de junho de 1965] fomos para terrenos perto da Base Aérea fazer treinos de saltos de helicópteros e um dos instruendos que ia no meu atrapalhou-se de tal maneira que,  ao saltar bateu,  com toda a força com a G-3 num dos vidros que o partiu.

Passados vários meses, o alf Rainha para se vingar dos danos infligidos aos seus camaradas do Grupo extinto , ["Os Fantamas" ] foi, estoicamente, com o seu recém-formado grupo "Os Centuriões", no qual tinham sido integrados dois ou três dos feridos da Op Ciao,  atacar o mesmo acampamento.

No jornal "Os Centuriões", oferecido em 21 de agosto de 1965 pela Centuria em Brá
ao Centro de Instrução de Comandos cuja abertura foi dedicada aos velhos "Fantasmas",  pode ler-se.

"Nós,  os Centuriões, sucessores dos famosos Fantasmas, dedicamos-lhes este terceiro número do jornal como prova de admiração pelos seus feitos e faremos o possível para os igualar e superar se a isso, como diz Camões, 'não nos faltar engenho e arte' (ser comando é uma arte).

"Queremos aqui deixar também a nossa homenagem aos nobres soldados de 'Os Fantasmas«, caídos no campo da luta em defesa do torrão Pátria e garantir aos vivos que faremos todo o possível para vingar as suas mortes" (...) (***)



Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAÇ 726 (Out 64 / Jul 66) > O pessoal em operações militares: na foto, acima, transporte às costas de um ferido, evacuado para o HM 241, em Bissau, por um helicóptero Alouette II (versão anterior do Alouette III, que nos era mais familiar, sobretudo para aqueles que chegaram à Guiné a partir de 1968). Foto do Alberto Pires, editada pelo Jorge Félix.

Fotos: © Alberto Pires (Teco) / AD - Acção para o Desenvolvimento, Bissau (2007) / Jorge Félix (2009). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar; Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
___________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 7 de janeiro de 2023 > Guiné 61/74 - P23958: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XVII: O maluco do Honório nunca mais!... E depois o meu adeus à guerra dos “Fantasmas”, maio de 1965

(**) Vd. postes de:

3 de dezembro de 2005 > Guiné 63/74- P312: Velhos comandos de Brá: Parreira, o últimos dos três mosqueteiros (Virgínio Briote)

30 de junho de 2006 > Guiné 63/74 - P929: Felizmente falharam os tiros no heli (João Parreira)

sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23930: Notas de leitura (1538): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (10) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Dezembro de 2022:

Queridos amigos,
O trabalho de investigação de Hurley e Matos, que aqui se condensa, tem, para além do mérito próprio da probidade da avaliação dos factos que fazem, revelar a insídia que se veio a montar acerca dos primeiros líderes militares na Guiné, na eclosão da guerrilha. Louro de Sousa, nomeado comandante-chefe em cima dos acontecimentos, enviou sempre ao Governo relatórios fidedignos da crescente guerrilha, não dispunha de nenhum sistema de informações fiável, deparou-se com a fuga das populações e uma tremenda falta de recursos, nomeadamente terrestres e aéreos para contrariar os efeitos da guerrilha, que se manifestava muito atuante na região Sul, no Corubal e no Morés, principalmente. Não havia informações sobre os efetivos da guerrilha, nem até mesmo das bases de apoio na República da Guiné Conacri. Os efetivos eram tão minguados que quando o capitão Alípio Tomé Pinto chegou a Binta, em 1964, este importante porto estava praticamente cercado por forças e população afeta ao PAIGC. Hurley e Matos diagnosticam aqui as carências de meios aéreos e mostram como Louro de Sousa e a FAP estavam conscientes de que se impunha um abrir mão a meios humanos e materiais de grande envergadura. Era sempre tudo às pinguinhas, a fartura só virá com o superstar Spínola.

Um abraço do
Mário



O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974
Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (10)


Mário Beja Santos
Este primeiro volume d’O Santuário Perdido, por ora só tem edição inglesa, dá-se a referência a todos os interessados: Helion & Company Limited, email: info@helion.co.uk; website: www.helion.co.uk; blogue: http://blog.helion.co.uk/. Depois de sumariar o prefácio, entrámos no primeiro capítulo intitulado “O Vento da Mudança”, verificaram-se as alterações operadas no início da era de descolonização e as consequências que vieram a ter na colónia da Guiné. Os capítulos subsequentes permitem-nos ter, mediante processo diacrónico, a evolução dos decisores políticos quanto à formação e equipamento da FAP nos diferentes teatros de operações, e depois o trabalho incide sobre a Guiné, os equipamentos existentes no período que precede a eclosão da guerrilha e as sucessivas respostas para permitir à FAP sucesso na multiplicidade dos desempenhos. Estamos agora a acompanhar a evolução dos primeiros anos da guerra e a resposta da FAP.

Como vimos no texto anterior, o General Venâncio Deslandes deslocou-se à Guiné e produziu um relatório alertando para a gravidade da situação, propôs um conjunto de medidas para melhorar a eficácia do aparelho político-administrativo, incluindo a fusão da estrutura do comando militar, recomendação que foi posta em prática no ano seguinte, mas em 1963 a autoridade política e militar permaneceu dividida entre o Governador Vasco Rodrigues e o Comandante-Chefe Louro de Sousa. A falta de entendimento entre os dois oficiais inevitavelmente criou atrito e complexidade desnecessária no planeamento militar. Deslandes recomendou igualmente o emprego de forças de “intervenção” de reação rápida capazes de responder rapidamente a atos hostis que se pudessem desencadear em qualquer ponto do território.

Baseado em parte na insistência de Deslandes, chegaram a Bissalanca em setembro os primeiros helicópteros Alouette II, “emprestados” do Esquadrão 94 em Angola, foram os precursores da frota de helicópteros que irá gradualmente revelando significativa. Um relatório suplementar de 1963, do Tenente-Coronel Augusto Brito e Melo da Secretaria-Geral da Defesa Nacional, deu ênfase às necessidades da FAP na Guiné. O dispositivo aéreo em Bissalanca incluía sete F-86, oito T-6, oito Austers, três C-47, um Broussard, um P2V-5 Neptune (este em alerta na Ilha do Sal). Os aviões Sabre estavam atrasados. Brito e Melo não deixava de sublinhar que “a coordenação ar-terra é deficiente e, portanto, a eficiência da campanha ar-terra é baixa”.

Enquanto Deslandes e Brito e Melo redigiam os seus relatórios, a FAP sofreu as suas primeiras perdas em combate na Guiné. Em 22 de maio de 1963, no decurso da operação Seta, aviões F-86 e T-6 atingiram alvos no reduto da guerrilha na Ilha do Como. O Furriel António Lobato, tendo suspeitado sido atingido por fogo de metralhadora, pediu ao seu asa, Eduardo Casals, que voasse por baixo dele e inspecionasse a parte inferior para avaliar os danos. O T-6 de Casals tocou na hélice de Lobato durante a inspeção, o que causou a queda do avião de Casals e a sua morte (o seu corpo foi recuperado nesse mesmo dia pelas forças portuguesas). Lobato conseguiu direcionar o seu avião danificado para um arrozal, onde foi capturado por militantes do PAIGC, assim começava o cativeiro mais longo da Guiné, ele passaria os próximos sete anos recluso, primeiro na Maison du Force de Kindia e depois na prisão de La Montaigne em Conacri. Foi o único aviador português prisioneiro de guerra.

Apenas nove dias depois de Lobato ter sido capturado, em 31 de maio, dois F-86 pilotados pelo Capitão Fausto Valla e pelo 2.º sargento Manuel Pereira Clemente, enquanto realizavam uma missão de bombardeamento na região de Bedanda, as aeronaves sofreram estilhaços de uma das suas próprias bombas de 250 kg, os pilotos voltaram imediatamente para Bissalanca, mas o F-86 de Fausto Valla incendiou-se, forçando-o a ejetar-se. Pereira Clemente conseguiu aterrar em Bissalanca sem mais incidentes, depois de despejar a sua artilharia no Geba, o jato de Fausto Valla explodiu antes de chegar a Bissalanca. Três meses mais tarde, a FAP sofreu uma das perdas mais mortíferas da guerra quando um Auster caiu após bater numa palmeira quando descolava de Bissalanca, em 4 de setembro. Nenhum dos três aviadores a bordo (Alferes Eduardo Spínola Freitas e José Madureira Nobre e Primeiro-Sargento José Pinheiro Garcia) sobreviveu. No mês seguinte, ãem 14 de outubro, o Capitão João Cardoso Rebelo Valente faleceu quando o seu T-6 se despenhou durante manobras na região de Morés-Olossato.

Os desaires da FAP continuaram quando o único Broussard sofreu um grave acidente, nove meses depois de ter sido introduzido no teatro da guerra; em 4 de dezembro um segundo Auster descolou e caiu, matando o piloto 2.º Sargento André Miranda Farinha e dois meteorologistas da FAP, Tenente Austrelindo Gaspar Dias e o 1.º Sargento Humberto Silva Matos. Em síntese, a FAP perdeu sete aeronaves e sete pilotos (seis mortos e um prisioneiro) devido a acidentes ou fogo hostil durante o primeiro ano de guerra – uma taxa considerada insustentável.

Em setembro de 1963, Louro de Sousa, perante o Conselho Superior da Defesa Nacional, reclama mais aeronaves para apoiarem operações previstas, pediu entre dez e quinze helicópteros Alouette III para substituir os três helicópteros Alouette II; pediu mais doze T-6, nove DO-27 e quatro F-86. Durante a sua exposição, destacou a insuficiente cobertura aérea, a inadequada capacidade de reconhecimento aéreo para assegurar eficiência às suas forças na Guiné. Louro de Sousa, tendo exposto o caráter das operações da guerrilha do PAIGC, apelou ao envio de forças de reação rápida incluindo paraquedistas e transporte aéreo adequado – no fundo, seguia as propostas de Venâncio Deslandes.

A operacionalidade dos meios aéreos disponíveis era um tremendo desafio. De acordo com uma avaliação da 1.ª Região Aérea, elaborada em agosto de 1963, apenas metade dos oito Auster em Bissalanca estava em condições operacionais, os outros em grandes reparações ou a aguardar peças. Um dos quatro DO-27 recém-entregues a Bissalanca já estava inoperável, por falta de peças. A situação complicava-se por falta de mecânicos e pelo uso criterioso de baterias. A eficácia de combate do T-6 estava limitada pela ausência de informações técnicas sobre o uso e manutenção das armas. Três C-47 estavam na revisão periódica nas OGMA, e a falta de peças de substituição era crónica. Na Ilha do Sal, os dois Neptune também se debatiam com limitações operacionais devido à falta de recursos. O relatório da 1.ª Região Aérea avaliou os oito caças Sabre como operacionais, apontava-se para obrigatoriedade de um ciclo periódico de manutenção; considerava-se que o armamento dos F-86 era precário, exigindo substituições nos dispositivos de suporte das bombas. Em agosto de 1963, o Coronel Krus Abecassis, Chefe-de-Estado-Maior da 1.ª Região Aérea, identificou a necessidade de enviar para Bissalanca oficiais experientes para preencher vagas e alertou para a escassez de especialistas em comunicação. Na já referida reunião do Conselho Superior da Defesa Nacional, Louro de Sousa instou para o reforço dos quadros superiores, era indispensável a presença de dois tenentes-coronéis em Bissalanca.

Por último, havia a necessidade imperiosa de enviar meios financeiros para melhorar as instalações, quartéis, torres de vigilância e iluminação perimetral. Louro de Sousa apelou à introdução de radares e sistemas de comunicação adequados e equipamentos para lidar com qualquer intrusão do espaço aéreo da Guiné. Já ao tempo havia a preocupação dos meios aéreos dos dois vizinhos hostis.

Operações portuguesas de contraguerrilha, 1963
Destroços do T-6 do capitão Rebelo Valente que caiu em outubro de 1963 (Coleção Alberto Grandolini)
Outra imagem da queda do T-6 do capitão Rebelo Valente (Coleção Alberto Grandolini)
Um P2V-5 Neptune na Ilha do Sal, ao lado de um F-86 que esporadicamente era enviado para Cabo Verde para participar na defesa aérea local (Coleção Touricas)

(Continua)

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Notas do editor:

Poste anterior de 23 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23909: Notas de leitura (1535): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (9) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 27 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23922: Notas de leitura (1537): Germano Almeida, prémio Camões (2018), filho de pai português e mãe cabo-verdiana, explica a origem mítica de Cabo Verde: uma criação divina, não por maldição... por distração (Luís Graça)

sexta-feira, 25 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23815: Notas de leitura (1522): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (5) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Novembro de 2022:

Queridos amigos,
Dando continuidade à exposição que os autores fazem quanto ao elenco de aeronaves que participaram nos 3 teatros de operações, aqui se procede a uma súmula de quem foi quem no combate aéreo, no transporte de seres humanos e armamento, na vigilância aérea durante as operações terrestres, entre outras atividades. Aqui se fala nos helicópteros de que guardamos memória, os Alouette II e III, o Dakota e o DO-27, cada um de nós guarda seguramente memórias de viagens benignas ou associadas a operações ou transporte de feridos. Os autores recordam a doutrina da NATO para a defesa euro-atlântica a como esta se revelou dinâmica na preparação de pilotos que foram confrontados, sobretudo pelos franceses e pelos britânicos do que era o combate à contrainsurgência. Aparentemente, tudo levava a crer nessa fase inicial de que a superioridade aérea não merecia discussão, o fornecimento da sofisticada artilharia e mais tarde dos mísseis terra-ar ainda não estava previsto.
Veremos adiante como se processou a escalada da guerra.

Um abraço do
Mário



O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974
Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (5)


Mário Beja Santos


Este primeiro volume d’O Santuário Perdido, por ora só tem edição inglesa, dá-se a referência a todos os interessados: Helion & Company Limited, email: info@helion.co.uk; website: www.helion.co.uk; blogue: http://blog.helion.co.uk/. Depois de sumariar o prefácio, entrámos no primeiro capítulo intitulado “O Vento da Mudança”, verificaram-se as alterações operadas no início da era de descolonização e as consequências que vieram a ter na colónia da Guiné.

Dando continuidade ao capítulo “Aviões com a Cruz de Cristo”, depois de ter falado do Neptune, Invader, Harvard, Sabre e do Fiat G.91, é a vez de introduzir o Alouette II e o Alouette III. O Alouette II, de 5 lugares, foi o primeiro helicóptero a turbina, veio suplantar os motores de pistão mais pesados. Entrou em funções em junho de 1955 e a sua produção acabou 20 anos depois, foi usado em cerca de 50 países. O Alouette II teve grande desempenho na Argélia, no Congo, na Rodésia, bem como na África colonial portuguesa. Este helicóptero chegou ao Montijo em 1957, em 1960 já estava em Angola. O Alouette III beneficiou de algumas melhorias, tinha um motor mais potente e uma maior capacidade de carga (até 6 passageiros ou 2 toneladas de carga). Um piloto português observou que era uma “aeronave extraordinariamente robusta e fácil de pilotar”. Tinha fatores muito positivos do seu lado: exigia apenas meia hora de manutenção a cada hora de voo, possuía maior robustez, e era conhecido por sobreviver a fogo de armas ligeiras e até mesmo disparos de rockets antitanque. O Alouette III fez história durante décadas, andou nos combates no Zimbabué e nos conflitos fronteiriços da África do Sul, na guerra indo-paquistanesa, nos 3 teatros da guerra que Portugal travou em África. A FAP recebeu 142 Alouettes III entre 1963 e 1975, a sua carreira lendária findou em 2020.

O Auster foi muito utilizado na Segunda Guerra Mundial, era uma aeronave multiusos, possuía uma manutenção rudimental; chegou a Portugal em 1961, foram adquiridas 15 aeronaves no Reino Unido e outras 147 foram montadas nas Oficinas Gerais de Material Aeronáutico, dos quais 102 estiveram ao serviço operacional em África. Não era muito apreciado por ter uma descolagem um tanto difícil e os pilotos temiam a sua tendência de fazer um loop no solo. No entanto, teve um papel de destaque na fase crucial da guerra. Transportava os feridos, servia como posto de comando e pousava em pistas rudimentares. Foi retirado do serviço da FAP em 1976.

O Broussard foi concebido para satisfazer exigências do exército francês, entrou em serviço operacional na Argélia em operações e missões de busca e salvamento, tendo seguido mais tarde para o Chade. Portugal encomendou 5 aeronaves para entrega em 1960, estiveram ao serviço até 1976. O DO-27 foi produzido em massa na Alemanha. Foi das aeronaves mais apreciadas nos diferentes teatros de operações, pelo seu desempenho, a sua capacidade operacional e a facilidade de manipulação. Precisava de apenas 70 metros para descolar e apenas de 50 para pousar. Entrou ao serviço em dezembro de 1961 e foi retirado em 1979. O Dakota era o nome por que era conhecido no Reino Unido o Douglas C-47, ganhou estatuo lendário pela sua participação nas mais célebres campanhas de transporte aéreo, logo na operação Overlord, o desembarque da Normandia em 6 de junho de 1944. Serviu para transporte de tropas, avião de carga, bombardeiro, avião de reboque planador, transporte de feridos. Entrou na FAP em 1943, esteve na guerra de África e foi retirado em 1976 do serviço da FAP. O Skymaster nunca atuou na Guiné. Foi da maior importância o seu desempenho quando os soviéticos cercaram Berlim, os Skymaster tiveram desempenho fundamental no abastecimento da cidade cercada. Foi a primeira aeronave a seguir para Luanda, perderam-se 3 em acidentes, esteve operativo até 1973.

O DC-6 era o concorrente direto da Douglas com a Lockheed, atuou na guerra da Coreia. Portugal comprou 10 aviões usados DC-6 à Pan American, foi-lhes destinado o serviço ultramarino, viagens entre Lisboa e Moçambique. Esteve operacional até 1978. O Boeing 707 gozou de uma grande popularidade, era o símbolo de uma nova tecnologia e de um moderno design, a Boeing construiu 1000 aeronaves entre 1958 e 1978; possuía variantes militares para vigilância e reconhecimento, comando e controlo. Os TAP adquiriram três 707 para uso comercial, adquiriram-se outros tantos para o serviço da frota transoceânica.

Importa acrescentar que muitas das aeronaves da FAP foram projetadas e fabricadas para cumprir os papéis do poder aéreo segundo a doutrina da NATO. O F-86F, por exemplo, distinguiu-se em combates aéreos contra caças soviéticos; o F-84G foi utilizado por Portugal em Angola; o Neptune foi otimizado para a guerra submarina e o Fiat G.91 foi explicitamente concebido para satisfazer um requisito da Aliança Atlântica. As aeronaves da FAP envolvidas na política de defesa euro-atlântica da NATO tinham base permanente em Portugal Continental e nos Açores.

A adesão à NATO teve um sério impacto nas Forças Armadas e introduziu mudanças radicais na formação, táticas e doutrina. Com o incentivo de Humberto Delgado (adido militar em Washington) e do Chefe de Estado-Maior, General Botelho Moniz, um número crescente de oficiais da Força Aérea esteve em cursos e exercícios no estrangeiro – é a geração NATO, que induziu os comandos das Forças Armadas a mudar a orientação para um uso adequado do poder aéreo. Os principais aliados nesta operação de formação foram a França e a Grã-Bretanha, eram os dois maiores impérios europeus e estavam confrontados com sublevações nacionalistas, tinham larga experiência em campanhas de contrainsurgência. A FAP não possuía experiência de combate para enfrentar estes conflitos armados, enviou oficiais para formação, vieram inclusivamente palestrantes e até docentes que lecionaram no Instituto de Altos Estudos Militares quanto ao papel da aviação em guerra subversiva.

Entre 1959 e 1963, um punhado de oficiais frequentou cursos de teoria revolucionais e contrainsurgência orientadas pelas Forças Armadas francesas, britânicas, norte-americanas e até belgas. Publicaram-se manuais de apoio aéreo na contraguerrilha. A expetativa para a FAP parecia lisonjeira, os franceses na Indochina e na Argélia, os britânicos na Malásia e no Quénia, entre outros, desfrutavam inequivocamente de uma superioridade sobre inimigos que não podiam adquirir ou operar com meios aéreos nem possuíam artilharia antiaérea. Teve-se inicialmente a ilusão de que a FAP só precisava de meios relativamente modestos e que as aeronaves da FAP poderiam ser usadas numa grande variedade de funções.

A evolução da guerra comprovou que era mesmo ilusão, havia que evoluir para adversários cada vez melhor equipados.
Alouette II
O Alouette III foi o mais importante helicóptero utilizado por Portugal em África
A enfermeira paraquedista Maria Arminda dentro de um DO-27
Um Dakota na Guiné

(continua)

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Notas do editor

Poste anterior de 18 DE NOVEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23794: Notas de leitura (1519): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (4) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 24 DE NOVEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23811: Notas de leitura (1521): "Uma longa viagem com Vasco Pulido Valente", de João Céu e Silva (Lisboa, Contraponto, 2021, 2924 pp) - O Estado Novo, a guerra colonial, o Exército e o 25 de Abril (Luís Graça) - Parte III: Salazar, Caetano e as Forças Armadas... (Considerar os capitães milicianos como "voluntários" e "mercenários", raia o insulto, não?!..)

quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

Guiné 61/74 - P21766: (De)Caras (169): Maria Ivone Reis, major enfermeira paraquedista reformada, faz hoje 92 anos e é uma referência para outras outras mulheres e para nós, seus camaradas: excertos de um seu depoimento, publicado em 2004 na Revista Crítica de Ciências Sociais - Parte II (e última)


Tancos > Batalhão de Caçadores Paraquedistas > 26 de maio de 1961 > As 11 candidatas ao 1º Curso de Enfermeiras Paraquedistas > Da esquerda para a direita, de pé: Cap Pára Cunha, Mª Ivone, Mª da Nazaré (falecida), Mª Arminda, Mª de Lurdes, Mª. Margarida Costa, Mª do Céu Bernardes e Major Lelo Ribeiro; na primeira fila, de cóscoras: Mª do Céu Policarpo, Mª Zulmira André (falecida), Mª Helena, Mª Margarida Pinto e Mª Irene... (Deste grupo inicial de onze voluntárias, só ficaram seis...).

Escreve a Maria Arminda:

 (...) "Lembro-me do primeiro dia que te conheci[, Maria Ivone]. Saímos do Aeroporto da Portela a vinte e seis de Maio de 1961, cerca das 9h30 e a bordo de um velho “Junker” (JU 52), que passou a partir desse momento a ser o nosso fiel amigo, íamos prestar provas psicofísicas ao Batalhão de Caçadores Paraquedistas em Tancos. Como estava um dia com chuviscos, algumas de nós íamos de lenços na cabeça, tipo meninas do colégio em jeito de passeio de fim de curso." (...) (*)

Foto (e legenda): © Maria Arminda (2012). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


Maria Ivone Reis, ten enf
paraquedista,  Cacine,
12/12/1968.
Foto de António J. Pereira
da Costa (2013) (***)
1. Continuação da publicação de excertos de um depoimento sobre "a presença e a participação femininas na guerra colonial", prestado, em 2004,  pela nossa camarada,  Maria Ivone Reis, major enfermeira paraquedista reformada.


Com 92 anos feitos hoje (**), a Ivone Reis é portadora, infelizmente da doença de Alzheimer, e está ao  cuidado do IASFA - Instituto de Ação Social das Forças Armadas
há já uns largos anos. Poe essa razão, já não nos poder ler 
nem comunicar connosco. Aproveitamos, todavia, a data do seu aniversário  para dar a conhecer, um pouco mais, 
a sua história de vida e o seu testemunho como enfermeira paraquedista do 1º curso (1961) (. A Maria Arminda Santos também é desse curso e ficaram para sempre amigas.)

Ambas são, aliás,  membros da nossa Tabanca Grande. 
A Ivone Reis tem mais  de 25 referências no nosso blogue. Esteve no TO  da Guiné em três comissões (1963, 
1965 e 1969). Esteve igualmente em Angola 
e Moçambique. 

Sabemos,por outro lado, do respeito e admiração que todas 
as antigas enfermeiras paraquedistas, mais novas, têm por 
esta nossa camarada, que é para elas uma figura de referência 
(, tal como a Maria Arminda, outra decana do grupo). 
Em jeito de singela homenagem,  fomos buscar um seu antigo depoimento, 
publicado em 2004 na Revista Crítica de Ciências Sociais  (, editada 
pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra).


Com a devida vénia à editora e à autora (Margarida Calafate Ribeiro), tomamos a liberdade de selecionar e reproduzir aqui alguns excertos do longo depoimento da nossa camarada Maria Ivone Reis (****) , que pode ser lido na íntegra aqui:

Margarida Calafate Ribeiro, "Dois depoimentos sobre a presença e a participação femininas na Guerra Colonial", Revista Crítica de Ciências Sociais [Online], 68 | 2004, colocado online no dia 01 outubro 2012, criado a 19 abril 2019. URL : http://journals.openedition.org/rccs/1212 ; DOI : 10.4000/ rccs.1212


Depoimento de Maria Ivone Reis (2004) (Excertos) 

(II e última parte) (****)



[Comparando a Guiné, Angola e Moçambique]

(...) A Guiné, embora fosse um território violento do ponto de vista da guerra, era mais acessível por ser mais pequeno e geravam-se relações mais próximas entre as pessoas. Estávamos em cima de todos os acontecimentos de uma forma muito solidária e muito humana e tínhamos uma boa relação uns com os outros: militares, civis e africanos. 

Com frequência ouvia-se em Bissau rebentamentos e poderia não acontecer nada que afectasse as pessoas. Mas, muitas vezes era um rebentamento em qualquer zona da Guiné e tocava o telefone. A enfermeira que estava escalada, entrava no jipe e imediatamente partia para a pista e voávamos para o local. 

Em Angola ou Moçambique era muito diferente devido à vastidão dos territórios. Às vezes ir buscar um ferido era como ir daqui a Frankfurt. 

(...) Depois há a diferença das situações, que tem a ver com a diversidade de cada pessoa, de cada situação… era consoante o grau de paciência ou de sofrimento daquele que acompanhávamos. 

Um dia, um jovem soldado, foi vitimado por uma mina, que lhe esfacelou um pé. Já instalado no avião que fazia a sua evacuação para o hospital militar, a enfermeira pára-quedista que o acompanhara, perguntou-lhe se tinha muitas dores. Com a cabeça ele acenou-lhe que não, mas o seu rosto continuava a espelhar todo o sofrimento que lhe ia na alma. 

A enfermeira tentou confortá-lo, dizendo-lhe para ter confiança na competência e dedicação dos médicos e de toda a equipa hospitalar que o iria tratar. Prontamente, ele olhou fixamente para a enfermeira e diz-lhe com contida emoção: “Senhora enfermeira, com pé ou sem pé, estou vivo! O que me preocupa é a dor da minha mãe quando souber.” (...)


[Alouette II e Alouette III]

 (...) A força moral daqueles jovens, naquela época, era tremenda e isso transmitia-nos uma grande força para enfrentar os problemas e para lhes dar resposta. Agora o que era mais grave para mim, era quando púnhamos o ferido na maca, víamos os sinais vitais, pulsação e tomávamos consciência de que a vida estava em risco. Aí o problema era chegar a tempo ao hospital. Felizmente que todos os que tive em mãos hegaram a tempo. São situações de muito sofrimento, que nos tocam muito.

A memória daqueles jovens que entregaram a sua juventude, sem saber bem porquê. Recordo um outro caso, esse de alto risco a vários níveis. No quartel nós podíamos sair do avião, mas na zona de combate nós não devíamos sair do avião ou do helicóptero. Era uma circunstância de muito risco. Se houvesse ataque do inimigo o helicóptero teria de levantar voo imediatamente ficando a enfermeira em terra em grande risco, sem meios nem ambiente para tratar dos feridos. Eventualmente fizemos isso em situações muito excepcionais, bem medidas, porque podia tornar-se um altruísmo muito arriscado para a vida dos outros. 

Nesse aspecto é muito importante a questão do medo, porque ajuda ao raciocínio e ao controlo. O importante é perceber como controlar o medo, para termos oportunidade de perceber a razão do medo e para que possamos ultrapassá-lo.
 
(...) Mas como dizia, o episódio que recordo foi muito no início da guerra, ainda com o Alouette II, que era um avião muito pequeno sem espaço para as macas dentro do avião. As macas iam fixas lateralmente – cá fora – de modo que nem podíamos assistir ao ferido. Depois, com o Alouette III, já 
tínhamos espaço para as macas cá dentro e para assistir ao ferido. 

Um dia fomos buscar um ferido e estávamos no quartel numa zona de guerra no Sul da Guiné, onde tinha havido um bombardeamento. Num local mais avançado em relação ao quartel estava o chamado posto avançado das tropas que era um tenda de campanha com um médico e o pessoal militar que dava apoio no campo da enfermagem. Nessa manhã houve muitos feridos.

Quando o avião estava para aterrar fazia uma volta sobre o aquartelamento para avisar que ia chegar à pista. Logo a ambulância avançava, e simultaneamente seguia para a pista um jipe de apoio e segurança. Na pista mudávamos o ferido da maca de campanha para a maca do helicóptero ou do avião. Naquela altura aterrámos na pista e lembro-me de ouvir dizer que o doente estava em estado grave. Perguntei de imediato se poderia ir lá abaixo à tenda. E fui. Encontrei um ambiente de luta pela vida. 

O rapaz, um soldado, tinha levado um tiro no tórax, e estava um fogareiro de petróleo a ferver material agulhas e outros instrumentos. Perguntei ao médico o que é que podia fazer, informando que tínhamos o avião à espera. O rapaz tinha uma hemorragia pulmonar, estava em risco, e eles tentavam cateterizar uma veia para pôr soro. Mas havendo uma hemorragia muito grande, as veias ficam colapsadas. Foi então que o médico pediu a um dos colaboradores que fosse ao quadro eléctrico do quartel buscar daqueles tubos vermelhos da electricidade e, retirando-lhes os fios metálicos, cateterizou a veia e conseguiu colocar o soro. 

E foi debaixo de perigo que avançamos com aquele corpo frágil, o colocámos num Unimog com uma tela com a Cruz Vermelha em cima e o transferimos para o avião. Chegou ao hospital com a pulsação mínima para poder sobreviver e recuperou. Ele era da zona de Castelo Branco e sei que a mãe dele me procurou, mas eu não fiz nada, apenas o assisti a bordo. O médico e a sua equipa é que fizeram um trabalho extraordinário.


[Tive muita sorte, nunca tive mortos nem partos]

(...) Ao longo de tantos anos e com tantos casos tive muita sorte. Nunca tive mortes, mas também nunca tive partos. Uma colega minha ficou muita aflita, porque um bebé nasceu a bordo e não sei o que ela fez, sei que depois daquela ansiedade acabou por conseguir entregar a criança à mãe. Para além deste trabalho dos feridos, de um lado e do outro, havia o contacto com as populações, o apoio àquelas pessoas.

Havia a população que encontrávamos nas saídas de apoio operacional no mato e com quem estabelecíamos relações. Mais uma vez dou o exemplo da Guiné, onde as coisas eram mais imediatas, devido à dimensão do território. Era tudo muito pequenino, negros, brancos, mestiços, civis, militares vivíamos todos em conjunto. 

Lembro-me de uma criança que vinha com frequência ao nosso Posto de Socorro visitar-nos. Era filha de um carpinteiro da Base Aérea. Um dia ele, o pai, disse-me que gostava muito que eu pudesse levá-la para Lisboa, para lhe dar uma vida que ele não lhe poderia dar. Expliquei-lhe que a minha actividade profissional era imprevisível e por isso era impossível impor uma responsabilidade dessas à minha família.


[Socorríamos também dos feridos do PAIGC]

(...) Ao longo dos anos da guerra estive na Guiné em 63, depois em 65 e finalmente em 69, e de cada vez que lá voltava, encontrava uma outra Ivone, porque eles davam aos filhos os nomes das pessoas de quem gostavam. Entre eles e nós havia uma relação simpática e gratificante.

Socorríamos também os feridos do lado adversário. Deontologicamente, homem/mulher, ferido/doente é, e deve ser sempre tratado como humano que é. Quando “o” tinha diante de mim como ferido, não fazia julgamentos, não se faz qualquer julgamento sobre uma pessoa que sofre. O humano fala sempre mais alto e penso que nós portugueses, por aquilo que me foi dado observar, temos uma sensibilidade muito humana. Mas chegavam-nos alguns papéis dos movimentos de libertação. (...)

["Quando é que isto acaba ?"]

(...) Eu tinha dúvidas em relação à descolonização, não que achasse que as coisas estavam bem. Mas Salazar deixou de governar em 1968. De 1968 a 1974 vão seis anos, ninguém mudou nada e só Salazar é que tem culpa? Todos nós fomos culpados, eu também porque não era capaz de dar gritos pela Paz. O que se passava é que enquanto havia um homem inocente a combater, que era o soldado, nós deveríamos estar numa retaguarda de apoio. 

No entanto, eu perguntava com frequência desde os primeiros dias: “Quando é que isto acaba, não há direito que isto aconteça…”


[Na festa do Senhor Santo Cristo com os militares açorianos da CCE 274, Fulacunda, 1963]

 (...) Falávamos da guerra, daquilo que se passava de forma muito objectiva e das coisas engraçadas, fazíamos umas partidas, festas. Lembro-me da Companhia CCE 274, aquartelada em Falacunda, na Guiné, em 1963. Tinha sido uma Companhia muito sacrificada e um dia em que eu e uma colega fomos em missão prestar assistência e evacuar feridos na sequência do rebentamento de uma mina, um militar desabafou: “Que pena, estas senhoras só vêm cá em dia de azar”. Respondemos prontamente: “Fechem a guerra e convidem-nos”. 

O convite veio no último domingo de Maio, para a festa do Senhor Santo Cristo. A Companhia CCE 274 era constituída por açorianos e os festejos iniciaram-se com uma missa celebrada pelo capelão-militar, seguida de almoço e batuque, em que os soldados, passados pela chaminé, ficaram negros e “transformaram-se” em negros. E as duas enfermeiras foram de Fafás. A guerra tinha estes aspectos humanos, agradáveis, solidários,ainda que na sombra daqueles festejos estivessem os mortos na picada e a eles prestámos homenagem.


 [“Tive sorte por que os meus rapazes ficaram todos ilesos” (alferes de artilharia, do quadro permanente,  cego e sem uma perna)]

 (..) Tínhamos uma vida mentalmente saudável, mas com o coração sempre “atento”, um pouco sentido, porque as circunstâncias eram complicadas. Quando acompanhávamos um ferido perguntávamo-nos: “Como é que esta mãe amanhã vai saber deste filho? Ou a mulher?”. Estávamos sempre numa vivência de sofrimento. Todas as semanas, vinham feridos para Lisboa e uma de nós acompanhava-os, embarcando de regresso logo que possível.

Eventualmente também vinham alguns feridos na TAP, dependia das circunstâncias. Morreu no ano passado um homem que tive ocasião de acompanhar numa destas viagens. Era oficial de Artilharia. Conheci-o na Beira, vindo de Nampula e recordo que quando chegou o avião o médico estava a tratar de um doente idoso, um colono branco. 

Quando o avião entrou em linha de voo, perguntei ao médico o que tinha aquele doente e se precisaria do meu auxílio. O médico disse-me que ele era cego dos dois olhos, e que não tinha uma perna. Fiquei apreensiva. Fui ter com ele, apresentei-me e disse-lhe que poderia contar comigo ao longo da viagem. Muito serenamente, com os olhos vendados, pôs as mãos dele nas minhas e disse-me: “Tive um azar muito grande, mas tive sorte”. 

Lembro-me que pensei onde estaria a sorte daquele homem. Perguntei-lhe se tinha dores. Disse-me que não e continuou: “Tive sorte por que os meus rapazes ficaram todos ilesos”.

Lembro-me de estremecer perante a nobreza daquele homem. Ele era alferes do quadro, tinha um pelotão à sua responsabilidade e naquele estado dizia-me que tinha tido sorte, porque os seus rapazes estavam todos bem.

Admiro profundamente esses homens que tanto sofreram. Muito pouca gente lhes dá o valor e tudo o que eles merecem, porque são homens extraordinários. Tenho a maior simpatia, admiração e respeito por esses homens e sempre que me chamam, nomeadamente da Associação dos Deficientes das Forças Armadas, vou sempre. Admiro extraordinariamente aqueles homens que não se queixam, que são cegos, deficientes em geral, por causa da guerra. (...)

[Cruz Vermelha Portuguesa e Movimento Nacional Feminino]

 (...) No acompanhamento dos feridos a Cruz Vermelha dava muito apoio ao visitar os doentes nos hospitais militares ou afins. 

O Movimento Nacional Feminino estava mais vocacionado para a relação entre os combatentes e as famílias. Se, por exemplo, um soldado tinha deixado os seus haveres em qualquer sítio, tinha sido ferido e depois vinha para o hospital e daí para Portugal, o Movimento Nacional Feminino através de cartas ou por contactos através dos seus núcleos fazia o possível para que as coisas fossem entregues ao soldado ou às famílias. 

Eu tenho cartas de militares, que me pediam que falasse com pessoas por eles indicadas, familiares ou que tratasse de pequenos assuntos, o que contribuía para o bem-estar daqueles jovens. 

Nessa medida, a Cruz Vermelha e o Movimento Nacional Feminino foram instituições solidárias e humanas, importantes para suavizar o vazio  o desconforto da viagem de um combatente, particularmente daqueles que sofriam fisicamente e para quem o desconforto psíquico e moral se tornava ainda mais difícil de suportar. (...)


 [O 25 de Abril e as suas contradições]

(...)  Vivi o 25 de Abril toda contente, a bater palmas, porque finalmente acabava a guerra. Mas ao fim de uma semana fiquei triste deixei de perceber o que estava a acontecer. Eu tinha regressado após tantos anos de África e estava na Força Aérea, a trabalhar no Hospital. Fui saneada a 17 de Abril de 1975 e isso surpreendeu-me. O hospital, no qual tanto me empenhara, ia abrir em Janeiro de 1976. 

Nunca me disseram a razão do meu saneamento e para que efectivamente eu saísse tinha de assinar uma rescisão de contrato com a Força Aérea. Andei um ano e meio naquela situação, falei com o General Costa Gomes, mas nunca me disseram a causa e eu nunca assinei nada. Após a eleição do General Eanes fui reintegrada na vida activa hospitalar até à minha reforma. (...)


 [O doloroso regresso à Guiné nos anos 80]

(...) Há uns tempos, na minha paróquia, onde sou catequista e nos dedicamos em equipa a preparar pessoas adultas para o baptismo, na década de 80, apareceu um rapaz da Guiné, de 19 ou 20 anos. Andava nas obras e estudava. O pai era muçulmano, mas ele queria ser baptizado. Cultivámos uma certa relação afectiva, de amizade e, por vezes, encontrávamo-nos em grupo. Finalmente o rapaz baptizou-se e continuou a conviver connosco.

Um dia, disse que gostava de ser padre. E há dois anos foi ordenado sacerdote. No ano passado, quando fez um ano de ser ordenado, convidou-nos a acompanhá-lo à Guiné. Vivi um terrível dilema, não queria mesmo ir, expliquei-lhe as minhas razões, mas acabei por ceder e sofri muito. 

Lembrei-me das casas cor-de-rosa velho ou caiadas de branco naquele verde luxuriante de Bissau e olhava para aquilo tudo degradado, aquela pobreza extrema, aquelas crianças na rua, ao abandono. Não há explicação, não há justificação possível para mim. Fiquei muito chocada. Não quero voltar a Angola nem a Moçambique. (...)

[Seleção / subtítulos / revisão e fixação de texto, para efeitos de publicação neste blogue: LG]

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 13 de janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9348: Parabéns a você (367): Maria Ivone Reis, 83 anos: enfermeiras, paraquedistas, amigas, companheiras de aventura e camaradas para sempre! (Maria Arminda)