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sexta-feira, 28 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24510 Antologia (93): "A Suécia e as lutas de libertação nacional em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau", por Tor Sellström (2008). Excertos: o caso da ajuda ao PAIGC – Parte IV


Capa de "O Nosso Livro 2ª  Classe".
Exemplar gentilmenmte cedido ao nosso blogue pelo Paulo Santiago, natural de Águeda (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 53, Saltinho , 1970/72) .


 
Foto do secretário geral do PAIGC, incluída em O Nosso Livro, 2ª ClasseAutor desconhecido. Amílcar Cabral, que passou a visitar  regulamente a Suécia, a partir de finais de 1968, era visto pelos seus admiradores suecos como  ”um mestre da diplomacia [...], uma pessoa notável e uma grande figura internacional, que era portador de uma mensagem extremamente positiva”.

"O Partido Social-Democrata e a Liga da Juventude Social-Democrata, da Suécia, recolheram fundos para a produção, no final dos anos sessenta, por parte do PAIGC, dos primeiros manuais escolares em português. 

"O primeiro livro (PAIGC: O Nosso Livro: 1ª Classe) foi impresso em 1970 pela Wretmans Boktryckeri em Uppsala, com uma tiragem de 20.000 exemplares. Nesse mesmo ano a Wretmans publicou O Nosso Livro: 2ª Classe, com uma tiragem de 25.000 exemplares. 

"Ao lado do nome da editora, na capa do segundo livro, dizia-se que o livro era publicado pelo PAIGC nas zonas libertadas da Guiné." 

(Fonte: Tor Sellström - A Suécia e as lutas de libertação nacional em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. Nordiska Afrikainstitutekl, Uppsala, 2008, pág. 152)


1. A Suécia (parceiro comercial de Portugal desde o ano de 1960, no âmbito da EFTA - Associação Europeia do Comércio Livre) e a Guiné-Bissau nunca tiveram, até ao final da década de 1960, praticamente quaisquer ligações (históricas, comerciais, ou outras). 

Tor Sellström, do Instituto Nórdico de Estudos Africanos, tem um texto de 290 páginas, sobre "A Suécia e as lutas de libertação nacional em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau" (publicado em 2008, em versão portuguesa). (Vd. ficha técnica a seguir.)

No livro o autor conta-nos como é que de repente  certas organizações suecas de solidariedade com a luta dos povos da África Austral e o governo sueco começaram a interessar-se pelo que se estava a passar naquele pequeno país de África Ocidental, que era/é a Guiné-Bissau,  um  território então sob administração portuguesa, com um escasso meio milhão de habitantes, e  com um pequeno partido nacionalista, o PAIGC;  a lutar pela sua independência.  

E não apenas a interessar-se: a partir de 1969, a Suécia a dar uma "ajuda humanitária", substancial, que se prolongou muito para além da independência, até meados dos anos 90. "As exportações financiadas com doações da Suécia representavam, durante este período, entre 5 por cento e 10 por cento do total das importações da Guiné-Bissau".

 Estamos a falar de valores que chegaram aos 2,5 mil milhões (!) de coroas suecas [c. 269,5 milhões de euros] durante o período de 1974/75-1994/95 (sendo de 53,5 milhöes de coroas suecas, ao valor actual,  ou sejam, cerca de 5, 8 milhões de euros, de 1969/70 até 1976/77).
 
Passados estes anos todos, julgamos que ainda tem algum interesse, para os nossos leitores, saber um pouco maios desta história e dos seus meandros 

Vamos continuar a seguir esta narrativa, reproduzindo, com a devida vénia, mais um excerto do livro de  Tor Sellström. Já chamámos, logo no início,  a atenção para alguns factos e dados que merecem a nossa contestação ou reparo crítico, nomeaadamente quando o autor fala do trajeto do PAIGC e do seu líder histórico, não citando fontes independentes e socorrendo-se no essencial da propaganda do PAIGC (ou de fontes que lhe estavam próximas)... 

Já apontámos, nos postes anteriores, para alguns exemplos desse enviesamento político-ideológico: (1) a greve dos trabalhadores portuários do Pijiguiti e o papel do PAIGC; (ii) a batalha do Como: (iii) o controlo de 2/3 do território e de 400 mil. habitantes por parte do PAIGC; (iv) as escolas, as clínicas e as lojas do povo nas "áreas libertadas"; (v) o assassassinato de Amílcar Cabral. etc.  .

O texto (na parte que nos interessa, a ajuda sueca ao PAIGC, pp. 138-172)  tem demasiadas notas de pé de página, que podem ser úteis do ponto de vista documental mas sáo extremamente fastidiosas para a generalidade dos nossos leitores. (Vamos mantê-las, para não truncar a narrativa; podem ser lidas na diagonal)

Os negritos são nossos: ajudam a destacar alguns dos pontos importantes do texto. O "bold" a vermelho são passagens controversas,  são uma chamada de atenção para o leitor, devendo merecer um comentário crítico (ou o recurso a leituras suplementares).

Corrigimos os excertos seguindo o Acordo Ortográfico em vigor.

Para já aqui ficam os nossos agradecimentos ao autor e ao editor, Nordiska Afrikainstitutekl (em inglês, The Nordic Africa Institute).

Ficha técnica: 

Tor Sellström - A Suécia e as lutas de libertação nacional em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. Nordiska Afrikainstitutekl, Uppsala, 2008, 290 pp. Tradução: Júlio Monteiros. Revisão: António Lourenço e Dulce Åberg. Impresso na Suécia por Bulls Graphic, Halmstad 2008ISBN 978–91–7106–612–1.

Disponível em https://www.diva-portal.org/smash/get/diva2:275247/FULLTEXT01.pdf

(Também disponível na biblioteca Nordiska Afrikainstitutekl (ou Instituto Nórdico de Estudos Africanos) aqui, em "open acess" .)


Resumo dos excertos anteriores (*):

Com base numa decisão parlamentar aprovada por uma larga maioria, a Suécia tornou-se em 1969 o primeiro país ocidental a dar ajuda oficial aos movimentos nacionalistas das colónias portugueses (MPLA, PAIGC, FRELIMO). O PAIGC vai-se tornar o principal beneficiário dessa ajuda (humanitária, não-militar). Muito também por mérito de Amílcar Cabral e da sua habilidade diplomática. Até então, e sobretudo na primeira metade da década de sessenta, o debate na Suécia sobre a África Austral tinha quase exclusivamente sido centrado na situação na África do Sul, onde vigorava o apartheid.

O êxito da campanha contra a participação da empresa sueca ASEA no projecto de Cahora Bassa em Moçambique, por volta de 1968–69, na altura em que decorria a guerra do Vietname, levou a que os principais grupos de pressão (“Grupos de África”, oriundos de cidade como Arvika, Gotemburgo, Lund, Estocolmo e Uppsala) se ocupassem quase em exclusivo da luta armada nas colónias portuguesas, com destaque para a Guiné-Bissau(Parte I).

Em 3 páginas (pp. 141-143), o autor faz um resumo da "luta de libertação na Guiné-Bissau",  usando unilatereal e acriticameente informaçáo propagandística do PAIGC, alguma particularmente grosseira como a pretensão deste de controlar 400 mil habitantes... (Parte II).

Nas páguinas 144-147, fala-se dos primeiros contactos com o PAIGC e das primeiras visitas ao território (Parte III)



 Excerto do índice (pág. 4)

O PAIGC da Guiné-Bissau: Desbravar terreno

Pág.

As colónias portuguesas no centro das atenções

138

A luta de libertação na Guiné-Bissau

141

Primeiros contactos

144

Caminho para o apoio oficial ao PAIGC

147

Uma rutura decisiva

152

Necessidades civis e respostas suecas

154

Definição de ajuda humanitária

157

Amílcar Cabral e a ajuda sueca

161

A independência e para além dela

168

 

O PAIGC da Guiné-Bissau: Desbravar terreno
(pp. 138-172)

Caminho para o apoio oficial ao PAIGC (pp. 147-152)

Os visitantes descreveram a forma como o PAIGC estava a construir uma sociedade democrática nas zonas libertadas, mantendo ao mesmo tempo em curso a luta armada com os portugueses.

 A construção da nova sociedade, na qual a disponibilização de cuidados de saúde e de serviços de educação era um elemento essencial, era ameaçada não só pelos constantes bombardeamentos aéreos, mas também por uma enorme escassez de material e para as escolas e clínicas rurais que iam sendo criadas. Foi com este enquadramento que o PAIGC pediu ajuda à Suécia.

O primeiro pedido em nome do movimento de libertação foi feito em Outubro de 1968 pelo historiador britânico Basil Davidson (49) a Per Wästberg, um membro destacado do Comité Consultivo Sueco para a Ajuda Humanitária, organismo criado pelo governo sueco (50). Wästberg, por sua vez, apresentou o pedido ao Ministério dos Negócios Estrangeiros (51). 

Na sua carta, Davidson, destacando que atuava unicamente como ”um intermediário”, confirmava poder organizar ”um debate direto com o PAIGC na altura julgada mais conveniente” (52), realçando haver ”uma necessidade urgente de serem disponibilizadas algumas ajudas de tipo não-militar nas zonas libertadas”, e acrescentando:

"Tenho a sensação de que seria muito útil se os nossos amigos na Suécia pudessem, tão rapidamente quanto possível, angariar o dinheiro necessário para comprar bens do seguinte tipo 1) produtos médicos, e 2) leite em pó e carne enlatada. [...] A outra sensação que tenho é que devemos, neste momento, concentrar-nos em avançar depressa em vez de querer fornecer grandes quantidades. Estou especialmente a pensar nos muitos casos relacionados com napalm que eles têm, ou na quase total ausência de stocks de produtos de primeira necessidade ou, ainda, no facto de (ao que julgo saber) estarem a receber muito pouca ajuda militar e quase nenhuma ajuda não-militar" (53).

O secretário geral do PAIGC fez, menos de dois meses depois, a sua primeira (de muitas) visitas à Suécia, a convite do Partido Social Democrata (54). Essa visita marcou o início dos laços estreitos que uniriam a organização de Cabral e o partido no poder na Suécia, bem como o movimento organizado de solidariedade(55). 

A visita teve lugar num momento crucial. A campanha contra o projecto de Cahora Bassa em Moçambique dispunha de um apoio bastante alargado e, em finais de Novembro de 1968, um grupo de activistas deu início em Gotemburgo a ”acções directas” contra a ASEA, a que se seguiram, pouco tempo depois, e um pouco por toda a Suécia, manifestações contra a empresa e contra o próprio governo social democrata. Estava em curso o debate a nível nacional quanto ao projecto de Cahora Bassa quando o governo votou, a 29 de novembro de 1968, a favor da Resolução 2395 da Assembleia Geral das Nações Unidas sobre as colónias portuguesas.

Ao votar, o governo expressou oficialmente a sua preocupação ”com a actividade continuada e intensificada de interesses estrangeiros, de tipo económico, financeiro e outros, que impedem a concretização das aspirações legítimas dos povos africanos desses territórios”. Apoiava ainda o apelo feito no sentido de ”conceder aos povos dos territórios sob domínio português a ajuda moral e material necessárias para que os seus direitos inalienáveis sejam repostos” (56).

Enquanto o governo do primeiro ministro Tage Erlander não agiu de acordo com a sua posição internacionalmente declarada relativamente à primeira questão ou seja, a recusa em intervir contra a ASEA, fê-lo imediatamente no caso da assistência aos movimentos de libertação. Dez dias depois, a 9 de Dezembro de 1968, o Ministro dos Negócios Estrangeiros Torsten Nilsson apresentou uma declaração de intenções fulcral, ao dizer que:

"A Suécia é um dos estados que tem vindo a pedir que sejam aprofundados os esforços no sentido de acabar com a política de discriminação racial na África Austral e com a caduca e grotescamente provocadora política colonial portuguesa. Contudo, como é do conhecimento geral, não podemos contar, num futuro próximo, com passos no sentido de acabar com estas iolações. Que podemos então fazer, para deixar bem patente a nossa solidariedade com estes povos oprimidos? [...] A Suécia vem vindo, desde há longa data, a dar contribuições financeiras para a formação de refugiados oriundos da África Austral e, para além disso, há já alguns anos que ajudamos a custear as despesas de aconselhamento jurídico das pessoas acusadas de crimes à luz das chamadas ”leis do apartheid” na África do Sul. Temos também ajudado a garantir o sustento das pessoas a cargo daqueles que têm sido presas ou detidas por razões definidas nas referidas leis. [...]

"Essas contribuições têm sido dadas para ajudar os povos oprimidos de África que não conquistaram a liberdade. A luta continua e mantemos contactos com vários líderes dos movimentos de libertação em África, alguns dos quais nos solicitaram ajuda. Estamos preparados para ajudar, tal como ajudamos a frente de libertação do Vietname do Sul, disponibilizando medicamentos e material médico. A ajuda educativa aos membros dos movimentos, através das suas organizações é também uma possibilidade que estamos dispostos a analisar. Está em questão a disponibilização de ajuda humanitária. Essa ajuda melhorará a situação dos membros desses movimentos e vai permitir-lhes continuar com maior facilidade a sua luta para obter a liberdade para os seus povos" (57).

Ao falar em contactos com líderes dos movimentos de libertação de África, é muito provável que Nilsson se estivesse a referir sobretudo a conversações tidas com Amílcar Cabral pouco tempo antes. Pierre Schori, que participou nas conversações com o líderdo PAIGC, descreveria mais tarde Cabral como ”um mestre da diplomacia [...], uma pessoa notável e uma grande figura internacional, que era portador de uma mensagemextremamente positiva” (58). 

Que tenha sido Cabral a pessoa que, ao fim de anos de contactos estreitos entre a Suécia e líderes nacionalistas da África Austral, acabaria por ”quebrar o gelo” quanto à ajuda oficial directa, é algo que fica patente pela celeridade com que ogoverno, após a sua visita, deu forma e conteúdo à declaração de Nilsson. Pouco mais de duas semanas volvidas sobre a declaração, o embaixador da Suécia na Libéria, Olof Ripa,recebeu instruções para entrar em contacto com o governo em Conacri para apurar se a ajuda directa da Suécia ao PAIGC seria ou não aceitável para o governo anfitrião (59). 

Ripa respondeu em Fevereiro de 1969 que o governo de Sékou Touré apoiava o PAIGC e que ”sem a mais pequena sombra de dúvida, participaria activamente no envio de remessas de ajuda humanitária da Suécia para os movimentos de libertação” (60).

Durante a sua estadia em Estocolmo, Cabral visitou também a ASDI, onde pôde confirmar, em traços gerais, o teor do pedido feito por intermédio de Basil Davidson edeu mais pormenores quanto às necessidades do PAIGC nas áreas da saúde, educação e necessidades básicas, tais como alimentos e têxteis (61).  

No seguimento dessas conversaçõese com base na declaração de intenções do governo, em Abril de 1969 o director geral daASDI, Ernst Michanek, tomou (ainda antes de o parlamento sueco ter tornado públicoo seu posicionamento sobre este mesmo princípio) a decisão de enviar uma missão para apuramento de factos ao Senegal e à República da Guiné62 com a finalidade de ”estudar as condições para entrega de ajuda ao PAIGC” (63).

A missão oficial, chefiada por Curt Ström, responsável pelo departamento de formação da ASDI, esteve na África Ocidental em meados de Maio de 1969, na mesma alturaem que a Comissão Permanente do Parlamento para as Dotações (64) discutia a questão geral do apoio sueco aos movimentos africanos de libertação. A conclusão foi que essa ajuda estava em conformidade com o direito internacional, ”nos casos em que as Nações Unidas tenham tomado uma posição inequívoca contra a opressão de povos que lutam pela liberdade nacional” (65). 

A Suécia tornar-se-ia assim no primeiro país ocidental industrializado a apoiar uma política de ajuda humanitária oficial directa aos movimentos de libertação nas colónias portuguesas, no Zimbabué, na Namíbia e na África do Sul (66). 

No caso da ”Guiné portuguesa”, a decisão fazia referência expressa ao PAIGC e aos passos preparatórios a dar relativamente à ajuda sueca, declarando-se que de acordo com a informação recebida pelo comité, estão a ser exploradas as possibilidades práticas de alargar a ajuda humanitária sueca no campo da educação às vítimas da luta travada sob a liderança do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), no sentido de libertar a Guiné portuguesa da soberania de Portugal. O comité tem, entre outros aspectos, com referência ao apoio que já está a ser alargado, por forma a abarcar o Instituto Moçambicano (67), uma abordagem positiva relativamente a esse tipo de ajuda, caso seja possível ultrapassar os problemas de índole prática, e partindo do princípio que o governo vai explorar as possibilidades de acção que se lhe apresentem (68).

A Guiné-Bissau não faz parte da África Austral. Num sentido estrito, as relações da Suécia com o PAIGC não devem portanto ser incluídas neste estudo. Contudo, o PAIGC tinha uma ligação estreita com o MPLA de Angola e com a FRELIMO de Moçambique.

Em conjunto com os seus aliados do CONCP e com a SWAPO da Namíbia, o ANC da África do Sul e a ZAPU do Zimbabué, fazia, para além do mais, parte do chamado Grupo de Cartum de ”autênticos” movimentos de libertação. Num contexto internacional, a luta de libertação na pequena colónia portuguesa situada na costa da África Ocidental estava, no âmbito do contexto acima descrito, muitas vezes justaposta com as lutas na África Austral. Esta justaposição é, em larga medida, de incentivar e utilizar como fonte de inspiração.

A importância da cooperação com o PAIGC para a participação sueca na questão da África Austral é enorme. O primeiro programa global sueco alguma vez concebido para dar ajuda humanitária directa e oficial a um movimento de libertação africano foi criado em conjunto com o PAIGC, o qual, por sua vez, estava profundamente empenhado numa luta armada contra uma nação europeia que tinha ligações comerciais formais com a Suécia, facto que determinou o carácter e as limitações da ajuda. 

Apesar de apelos veementes, feitos pelo movimento de solidariedade não-governamental e pela esquerda socialista de uma forma geral, em prol de um ”apoio incondicional”, ou seja, que fossem disponibilizadas verbas que o PAIGC pudesse usar a seu belo prazer, foi mantida uma orientação para a vertente humanitária. 

Apesar disso, as autoridades passaram, pouco tempo depois, a equacionar ajuda ”humanitária” com ajuda ”não-militar” ou ”civil” e, consequentemente, a alargar o âmbito dessa cooperação. Particularmente significativa foi a interpretação de ajuda humanitária ao PAIGC feita pelo governo sueco e pela ASDI, e que foi posteriormente aplicada aos movimentos de libertação na África Austral. A cooperação com o PAIGC não apenas definiu o conteúdo geral e a estrutura do programa de ajuda oficial da Suécia aos movimentos de libertação, mas criou também uma cultura institucional dentro da ASDI, e entre esta e o Ministério dos Negócios Estrangeiros. Daí que seja relevante fazer um esboço da cooperação entre o governo sueco e o PAIGC (69).

_______________

Notas do autor:

(44) Rudebeck participou activamente no Comité da África do Sul de Uppsala/Grupo de África. Voltou à Guiné-Bissau em 1972. Mais tarde professor assistente de ciências políticas na Universidade de Uppsala, Rudebeck publicou em 1974 um livro intitulado Guinea-Bissau: A Study of Political Mobilization (”Guiné-Bissau: Um estudo da mobilização política”) (op. cit.).

(45) Knut Andreassen e Birgitta Dahl: Guiné-Bissau: Rapport om ett land och en befrielserörelse (”Guiné-Bissau: Relatório sobre um país e um movimento de libertação”), Prisma, Estocolmo, 1971. Dahl, que na altura desempenhava um cargo na ASDI, viria a ser nomeada Ministra da Energia (1982–90) e do Ambiente (1986–91). Tornou-se presidente do parlamento sueco em 1994.

(46) Tal como Bengt Ahlsén: Portugisiska Afrika: Beskrivning av ett kolonialimperium och dess sönderfall (”A África portuguesa: Apresentação de um império colonial e sua queda”), Svenska Utbildningsförlaget Liber AB, Estocolmo, 1972. Após uma visita, em finais de 1971, às zonas libertadas, Anders Ehnmark e o fotógrafo Jean Hermanson publicaram Exemplet Guiné-Bissau: Ett reportage om en befrielserörelse (”O exemplo da Guiné-Bissau: Relatório sobre o movimento de Libertação”), Bokförlaget PAN/Norstedts, Estocolmo, 1973. O jornalista norueguês Johan Thorud acompanhou-os na viagem, publicando o seu próprio relato na Noruega (Geriljasamfunnet:Guiné-Bissaus kamp mot Portugal / ”A sociedade da guerrilha: A luta da Guiné-Bissau contra Portugal”, Tiden, Oslo, 1972).

(47) Uma vez que os conhecimentos que a ASDI detinha sobre o PAIGC e sobre a situação nas zonas libertadas era limitado, pediu-se a Palm e a Dahl que apresentassem à agência relatos das suas visitas, documentos esses que teriam depois um papel importante na tomada de decisão de aumento da ajuda oficial sueca ao MPLA de Angola.

(48)  Marianne Rappe: Memorandum (”Samtal med Folke Löfgren på SIDA den 21.4.1972: PAIGC”/”Conversa com Folke Löfgren na ASDI 21.4.1972: PAIGC”), ASDI, Estocolmo, 24 de Abril de 1972 (MFA).

Foto: Birgitta Dahl acompanhando o PAIGC às zonas libertadas da Guiné-Bissau em Novembro de 1970. (Foto: Knut Andreassen)

(49) Davidson estava muito ligado à causa nacionalista nas colónias portuguesas desde os anos cinquenta e visitou as zonas libertadas na Guiné-Bissau em 1967. O seu relato, intitulado The liberation of Guiné , foi publicado em 1969 em língua sueca, com o título Frihetskampen i Guiné-Bissau (Natur och Kultur, Estocolmo).

(50) Inicialmente criado em 1964 para aconselhar o governo na área da ajuda oficial sueca aos jovens refugiados africanos na área da educação, os membros do CCAH (nomeados oficialmente) representaram o Ministério dos Negócios Estrangeiros, a ASDI, as OGNs mais representativas e pessoas com conhecimentos especiais sobre a África Austral. Per Wästberg fazia, a título de exemplo, parte deste último grupo. 

O comité desempenhou um papel vitaldo ponto de vista dos destinatários da ajuda humanitária enviada pela Suécia. A começar pela decisão do parlamento sueco de aumentar a ajuda directa oficial aos movimentos africanos de libertação, o seu mandato e número de membros foi aumentando gradual e regularmente ao longo dos anos. Para além de dar assessoria à África Austral, o CCAH deu depois o seu apoio ao governo sueco na questão da ajuda humanitária à América Latina. O apoio dado pela Suécia ao Vietname e aos movimentos nacionalistas na Indochina nunca fez, contudo, parte do mandato do CCAH. 

O comité foi presidido pelo director geral da ASDI, que contava com o apoio de um pequeno secretariado,composto por funcionários da ASDI e do Ministério dos Negócios Estrangeiros, para preparar as reuniões e os pontos que nelas haviam de ser discutidos. 

Por norma, as recomendações eram apresentadas sob a forma de memorandos, cujo conteúdo se baseava, por sua vez, em contribuições e comentários feitos por agentes relevantes no terreno. O trabalho do Comité era feito num espírito de estrita confidencialidade, havendo registo apenas das decisões tomadas e nunca dos debates tidos. As recomendações apresentadas pelo secretariado foram, com poucas excepções, seguidas pelo comité e aprovadas pelo governo, para serem aplicadas pela ASDI. 

Num período de ano e meio, entre 1981–82 – 1982–83, por exemplo, o CCAH discutiu 100 pedidos, que representaram no total um valor próximo dos 270 milhões de coroas suecas, ao longo de 13 reuniões. Em 91 casos, o comité seguiu o parecer do secretariado, propondo uma dotação superior em 2 dos casos e uma dotação mais reduzida ou a rejeição pura e simples da proposta em 7 casos (SIDA/Kjellmer: Memorandum (”Beredningen för humanitärt bistånd: Ärenden 1981–82 och 1982–83”/”Comité Consultivo para Ajuda Humanitária: Pontos 1981–82 e 1982–83”), ASDI, Estocolmo, 17 de Fevereiro de 1983) (SDA).

(51) Carta enviada por Per Anger, Ministro dos Negócios Estrangeiros, a Olof Ripa, embaixador sueco na Libéria, Estocolmo, 19 de Dezembro de 1968 (MFA).

(52) Carta enviada por Basil Davidson a Per Wästberg, Londres, 17 de Outubro de 1968 (MFA).

(53) Ibid.

(54) Arbetet, 13 de Dezembro de 1968. Durante a sua visita à Suécia, nos finais de Novembro de 1968, Amílcar Cabral encontrou-se também com C.H. Hermansson, secretário geral do Partido de Esquerda Comunista (Comité da África do Sul de Uppsala: ”Protokoll”/”Actas”, Uppsala, 8 de Novembro de 1968) (UPA). De acordo com Onésimo Silveira, representante permanente do PAIGC na Suécia, ”os contactos com os partidos comunistas do Ocidente eram, contudo, diminutos” e o PAIGC não quis ”imiscuir-se nas suas lutas” (ibid).

55. O Partido Social-Democrata e o PAIGC já tinha entabulado contactos antes da visita de Cabral à Suécia, em finais de 1968. Já antes, nesse mesmo ano, o partido no poder tinha, por exemplo, doado 10.000 coroas suecas ao movimento de libertação, dinheiro esse retirado do Fundo Internacional para a Solidariedade, criado em Outubro de 1967 (Pierre Schori em Arbetet, 13 de Dezembro de 1968). Tinham também sido feitos contactos estreitos, atravésde Onésimo Silveira, que vivia e estudava em Uppsala, com o Comité da África Austral dessa cidade universitária.

Esses contactos haveriam de levar o movimento sueco para a solidariedade a apoiar o PAIGC. Em meados de 1968, apenas para dar um exemplo, foi enviada uma unidade de raios-x para o PAIGC em Conacri, com a ajuda do Comité da África do Sul de Uppsala: ”Protokoll”/”Actas”, Uppsala, 30 de Junho de 1968) (UPA). 

Cabral visitou também Uppsala durante a sua estadia na Suécia, comparecendo numa reunião pública co-organizada pelo Comité da África do Sul, a Associação Social-Democrata Laboremus, a Associação de Estudantes de Verdandi e a Liga da Juventude do Partido de Esquerda (VUF). A reunião teve lugar na Universidade a 27 de Novembro (”Amílcar Cabral: Demonstrationer inte nog. Vi behöver konkret hjälp”/”Amílcar Cabral: As manifestações não chegam, precisamos de ajuda concreta” em Uppsala Nya Tidning, 28 de Novembro de 1968). 

Em 1969 o Comité da África do Sul de Uppsala deu início a uma campanha de angariação de fundos a nível nacional em prol do PAIGC (Södra Afrika Informationsbulletin, n. 12, 1971, p. 49) e, como acima foi dito, vários membros do comité, entre os quais Bertil Malmström, Lars Rudebeck e Birgitta Dahl, visitaram as zonas libertadas da Guiné-Bissau em 1969–70. 

Como forma de protesto pela visita de estado do presidente senegalês Léopold Senghor à Suécia (Senghor era visto como um traidor do PAIGC), que se realizou em Maio de 1970, o Comité da África do Sul de Uppsala e um conjunto de organizações políticas montaram espectaculares manifestações, ligadas com o seu aparecimento na universidade (”En Diktare och Diktator Besöker Norden”/”Um poeta e ditador visita os países nórdicos” em Södra Afrika Informationsbulletin, no. 9, 1970, pp. 5–8 e ”Senghor-rättegången”/ ”O Julgamento Senghor” em Södra Afrika Informationsbulletin, no. 14, 1972, pp. 23–25).

(56) Assembleia Geral das Nações Unidas, Resolução 2395 (XXIII) de 29 de Novembro de 1968, citada no Yearbook of the United Nations: 1968, Gabinete de Informação ao Público, Nações Unidas, Nova Iorque, 1971, p. 804.

(57) ”Discurso do Ministro dos Negócios Estrangeiros”, 9 de Dezembro de 1968 no Ministério dos Negócios Estrangeiros: Documents on Swedish Foreign Policy: 1968, Estocolmo, 1969, p. 116.

(58) Entrevista com Pierre Schori, p. 333.

(59) Carta de Per Anger, Ministério dos Negócios Estrangeiros, enviada a Olof Ripa, embaixador da Suécia na Libéria, Estocolmo, 19 de Dezembro de 1968 (MFA).

(60) Carta de Olof Ripa, embaixador da Suécia na Libéria enviada a Per Anger, Ministério dos Negócios Estrangeiros, Monróvia, 19 de Fevereiro de 1969 (MFA).

(61) Kerstin Oldfelt: Memorando (”Humanitärt bistånd till Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC)”/”Ajuda humanitária ao PAIGC”), ASDI, Estocolmo, 22 de Julho de 1969 (SDA).

(62) Curt Ström: ”Reserapport” (”Relato de viagem”), ASDI, Estocolmo, 13 de Junho de 1969 (SDA).

(63) Ibid.

(64) Em sueco, Statsutskottet.

(65) Parlamento sueco 1969: Declaração no. 82/1969 pela Comissão das Dotações, p. 24.

(66) Ironicamente, o deputado que assinou a histórica declaração da Comissão Permanente sobre Dotações foi Gösta Bohman. No ano seguinte, tornou-se Presidente do Partido Moderado, conservador, o único partido sueco tradicional a excluir-se da parceira alargada com os movimentos de libertação na África Austral.

(67) O apoio oficial sueco ao Instituto Moçambicano da FRELIMO, sediado em Dar es Salaam, na Tanzânia, tinha vindo a aumentar desde 1965.

(68) Parlamento sueco, 1969: Declaração no. 82/1969 pela Comissão das Dotações, p. 24.

(69) Incluído sobretudo como uma introdução ao tema da ajuda sueca aos movimentos de libertação da África Austral, o ”desvio” pela via do PAIGC e da Guiné-Bissau, é tudo menos global. Apesar de serem dados exemplos que ilustram o âmbito e o carácter da ajuda do governo sueco, o importante papel desempenhado pelo Partido Social-Democrata, pelos Grupos de África e por outras organizações de solidariedade, não recebe o reconhecimento devido. 

Para além de tudo aquilo que é acima referido, deve notar-se também que o Partido Social-Democrata e a Liga da Juventude Social-Democrata recolheram fundos para a produção, no final dos anos sessenta, por parte do PAIGC, dos primeiros manuais escolares em português. O primeiro livro (PAIGC: O Nosso Livro: 1ª Classe”) foi impresso em 1970 pela Wretmans Boktryckeri, em Uppsala, com uma tiragem de 20.000 exemplares. Nesse mesmo ano a Wretmans publicou (”O Nosso Livro: 2ª Classe”), com uma tiragem de 25.000 exemplares. Ao lado do nome da editora, na capa do segundo livro, dizia-se que o livro era publicado pelo PAIGC nas ”zonas libertadas da Guiné”.

[ Seleção / adaptação / revisão / fixação de texto / itálicos / bold, para efeitos de publicação deste poste no blogue: L.G ]
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Nota do editor:

segunda-feira, 17 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24482: Antologia (90): "A Suécia e as lutas de libertação nacional em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau", por Tor Sellström (2008). Excertos: o caso da ajuda ao PAIGC – Parte I


Mapa da Suécia (Fonte: Tor Sellström - A Suécia e as lutas de libertação nacional em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau, 2008,  pág, 8) (com a devida vénia)


Fonte: Tor Sellström - A Suécia e as lutas de libertação nacional em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau, 2008, pág, 277) (com a devida vénia)


1. A Suécia  (membro da União Europeia, desde 1995 e hoje também nosso parceiro da NATO) foi  um parceiro importante do PAIGC durante a guerra colonial, e em especial durante o período final (e decisivo) de 1969-74. 

Foi o primeiro país ocidental a prestar ajuda não-militar, humanitária, aos movimentos nacionalistas que, em Angola, Guiné e Moçambique, lutavam pela independência dos seus países, respetivamente MPLA, PAIGC e FRELIMO.  E quebrou com a doutrina (ocidental) de os classificar como movimentos "terroristas" e/ou "comunistas".

A ajuda oficial sueca, iniciada em 1969, não foi uma decisão unilateral do partido que estava então no poder, o social-democrata (dirigido por Olof Palm, 1927-1986),  foi também compartilhada por outros partidos com representação parlamentar, como o partido Liberal e o partido do Centro, por exemplo.

A Suécia foi,  além disso,  um dos três maiores assistentes económicos do novo país lusófono, a Guiné-Bissau, desde a independência até ao ano económico de 1994/95.

Na sua série “Da Suécia com saudade”, o nosso amigo e camarada José Belo já aqui abordou, há uns anos, e ao longo de vários postes, esta ajuda ao PAIGC e depois à Guiné-Bissau:

(…) Com um início modesto em 1969, o governo sueco acabaria por enviar para o PAIGC,  durante a guerra, um total de 53,5 milhöes de coroas suecas (ao valor actual). [cerca de 5, 8 milhões de euros; 1 euro = 9,2761 SEK, à taxa de câmbio em 31/10/2014].

Assistência que, em crescendo rápido, acabou por vir a financiar a maioria das atividades näo militares do PAIGC, salientando-se o sector alimentar, transportes, educação e saúde.

A isto somavam-se vastos e constantes fornecimentos para as chamadas "Lojas do Povo".

Posteriormente à independência, a Guiné-Bissau foi o único país da África Ocidental a ser incluída nos denominados países programados para a distribuição da assistência sueca ao desenvolvimento.

Com resultados muito díspares(!), a assistência total à Guiné independente, durante o período de 1974/75-1994/95,  foi de 2,5 mil milhões (!) de coroas suecas [c. 269,5 milhões de euros], colocando então a Suécia entre os 3 maiores assistentes económicos do país. (…) (*)

Alguns dos nossos leitores terão curiosidade em saber como é que um pequeno partido revolucionário (o PAIGC) de um pequeno país de África, a Guiné (então colónia portuguesa com cerca de meio milhão de habitantes) caiu nas boas graças dos suecos… Tor Sellström, num texto de 290 páginas, publicado em português, em 2008, conta-nos essa história, uma história que interessa, pelo menos, aos suecos, aos portugueses e aos guineenses... Vamos segui-lo, reproduzindo alguns excertos do seu livro e chamando igualmente a atenção para alguns factos e dados que merecem a nossa contestação ou reparo crítico, quando o autor não cita fontes independentes ou se limita a replicar a propaganda do PAIGC.

O texto, de 290 páginas, tem muitas, demasiadas,  notas de pé de página, úteis  (do ponto de vista documental) mas maçadoras, que o leitor poderá dispensar ou apenas ler na diagonal.. Em todo o caso, mantivemo-las. Os negritos são nossos: ajudam a destacar alguns dos pontos importantes da narrativa.  O "bold" a vermelho são passagens controversas, que devem merecer um comentário crítico da nossa parte. Corrigimos os excertos seguindo o Acordo Ortográfico em vigor.

Para já aqui ficam os nossos agradecimentos ao autor e ao editor, Nordiska Afrikainstitutekl (em inglês, The Nordic Africa Institute).

Contamos com os comentários do nosso amigo e camarada José Belo, ex-cap inf ref, que vive na Suécia há mais de quatro décadas, e que poderá, com os seus comentários críticos e esclarecimentos adicionais, ajudar-nos a entender melhor este documento.

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Ficha ténica: 

Tor Sellström - A Suécia e as lutas de libertação nacional em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. Nordiska Afrikainstitutekl, Uppsala, 2008, 290 pp. Tradução: Júlio Monteiros. Revisão: António Lourenço e Dulce Åberg. Impresso na Suécia por Bulls Graphic, Halmstad 2008ISBN 978–91–7106–612–1.

Disponível em https://www.diva-portal.org/smash/get/diva2:275247/FULLTEXT01.pdf

(Também disponível na biblioteca Nordiska Afrikainstitutekl (ou Instituto Nórdico de Estudos Africanos) aqui, em "open acess" .)

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Tor Sellström - A Suécia e as lutas de libertação nacional em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau: o caso da ajuda ao PAIGC – Parte I

 Excerto do índice (pág. 4)

O PAIGC da Guiné-Bissau: Desbravar terreno

Pág.

As colónias portuguesas no centro das atenções

138

A luta de libertação na Guiné-Bissau

141

Primeiros contactos

144

Caminho para o apoio oficial ao PAIGC

147

Uma rutura decisiva

152

Necessidades civis e respostas suecas

154

Definição de ajuda humanitária

157

Amílcar Cabral e a ajuda sueca

161

A independência e para além dela

168

 

Prólogo (pp. 11-12)

Durante a guerra fria o mundo ocidental em geral considerava os movimentos nacionais de libertação na Guiné-Bissau e na África Austral como ”terroristas” e/ou ”comunistas”. A Suécia, que pertencia aos países não-alinhados constituiu uma exceção, tendo sido seguida posteriormente pelos outros países nórdicos.

Com base numa decisão parlamentar aprovada por uma larga maioria, a Suécia tornou-se em 1969 o primeiro país do Ocidente a dar ajuda oficial aos movimentos nacionalistas, os quais, depois de uma prolongada luta armada contra o poder colonial português, o governo de minoria branca e o apartheid, sairiam vencedores e tornar-se-iam os partidos no poder.

O presente volume sobre a Suécia e a luta de libertação em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau baseia-se no estudo do autor ”A Suécia e a libertação nacional na África Austral”, publicado em dois volumes pelo Instituto Nórdico de Estudos Africanos, respetivamente em 1999 e 2002.

A edição original em inglês contém longas exposições sobre o Zimbabué, Namíbia e África do Sul, não incluídas nesta versão. A esta, seguiu-se um volume com entrevistas a proeminentes políticos africanos e suecos, formadores de opinião e funcionários públicos, intitulado ”Libertação na África Austral: Vozes regionais e suecas”.

Depois da publicação da edição original inglesa houve quem argumentasse a favor de uma tradução para português dos capítulos que tratavam do surgimento de uma opinião sueca e da ajuda à luta de libertação de Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. Muito embora com alguns anos de demora, é com satisfação que agora posso ver essa obra realizada.

Como autor, é minha esperança que com este livro se dê a conhecer as relações estreitas entre a Suécia e esses países e que essas relações possam ser difundidas a um maior público quer em África quer na antiga potência colonial, Portugal.

Dever-se-á aqui salientar, em primeiro lugar, que a minha exposição tem como foco a ajuda oficial sueca, ou seja, o apoio dado pelo governo sueco ao MPLA, à FRELIMO e ao PAIGC durante o período que decorreu entre 1969 e 1975. Em segundo lugar, que esta é uma obra constituída por extratos retirados da edição original, mais abrangente, em dois volumes. Algumas descrições contextuais, argumentações e comparações foram por isso excluídas.

Este volume não teria vindo a lume sem a ajuda de António Lourenço, amigo e colega do Instituto Nórdico de Estudos Africanos em Uppsala, cuja vida esteve relacionada de perto com o período histórico aqui discutido que, embora curto, teve repercussões não só em África mas também em Portugal e na Suécia. Mais do que ninguém, ele assumiu a responsabilidade pelo texto que a seguir se apresenta.

Tor Sellström

Durban, Agosto de 2007

 

O PAIGC da Guiné-Bissau: Desbravar terreno 

(pp. 138-172) 

As colónias portuguesas no centro das atenções 

(pp. 138-141)


A situação na África do Sul, onde vigorava o apartheid, dominou o debate na Suécia sobre a África Austral na primeira metade da década de sessenta. Eduardo Mondlane, presidente da FRELIMO de Moçambique, na sua segunda visita à Suécia realizada em setembro de 1965, criticou abertamente o emergente movimento de solidariedade por, no seu entender, se concentrar quase exclusivamente na África do Sul, dizendo que “é uma ilusão acreditar que o problema da África do Sul nada tem a ver com o dos territórios portugueses de Angola e Moçambique ou com a Rodésia do Sul, e que pode ser resolvido sem que estes territórios sejam libertados. É desejável que o movimento na Suécia em prol da África do Sul inclua também os territórios em questão” (1).

Muito devido às críticas de Mondlane,  a situação mudou muito nos finais da década de sessenta. No início de 1966 o Comité de Lund para a África do Sul decidiu,  ”após muita ponderação”,  que o seu boletim informativo, o Syd- och Sydvästafrika passaria, doravante, a cobrir a situação ”nos outros países da África Austral”. Explicava-se então que ”os seus problemas têm um vínculo claro com a situação na África do Sul”. Marcava-se assim o início de uma cobertura cada vez mais intensa das lutas de libertação nas colónias portuguesas, deixando para segundo plano a situação na África do Sul e na Namíbia.

O êxito da campanha contra a participação da empresa sueca ASEA no projeto de Cahora Bassa em Moçambique, por volta de 1968–69, na altura em que decorria a guerra do Vietname, levou a que o movimento se ocupasse quase em exclusivo da luta armada nas colónias portuguesas (2).

Em junho de 1971, aquando de uma conferência dos primeiros Grupos de África, oriundos de Arvika, Gotemburgo, Lund, Estocolmo e Uppsala, decidiu-se ”concentrar a propaganda nas colónias portuguesas” (3).

No ano seguinte, o Södra Afrika Informationsbulletin (sucessor do Syd- och Sydvästafrika), dirigido e publicado pelos Grupos de África, afirmava como seu principal objetivo a divulgação ”de informação sobre a atualidade da luta em Angola, na Guiné-Bissau e em Moçambique; do desenrolar da situação em Portugal; dos interesses suecos em Portugal e em África e do papel do imperialismo dos EUA em África” (4).

Algumas das principais editoras suecas publicaram na mesma altura livros dedicados à questão das colónias portuguesas. Num estudo sobre as lutas de libertação na África Austral, Gun-Britt Andersson dizia em 1973 que ”na Suécia tem sido muitas vezes mais fácil obter informações sobre as colónias portuguesas do que sobre a África do Sul” (5),

A alteração da situação na África do Sul foi a responsável pela mudança de direção. O regime do apartheid tinha, na prática e de facto, esmagado a oposição democrática no interior da África do Sul e os movimentos de luta nacionalista da Namíbia e do Zimbabué eram ainda incipientes, mas os movimentos de libertação em Angola e Moçambique tinham, por volta dos anos 60, conseguido afirmar a sua presença, de forma precária mas real. Ao opor-se à ditadura fascista do Portugal de Salazar e recebendo um apoio inequívoco da Declaração da Descolonização, publicada pelas Nações Unidas em 1960, estes movimentos viram aumentar a atenção internacional dada às suas causas durante a segunda metade da década de sessenta. As Nações Unidas apelavam repetidamente aos seus estados-membros para que aumentassem a assistência aos povos das colónias portuguesas e, na sua estratégia de libertação, a Organização de Unidade Africana deu prioridade a esses territórios, considerando-os como os elos mais fracos na corrente do domínio colonial e de minoria branca (6).

Na Suécia, as primeiras moções parlamentares em que se propunha apoio oficial às organizações africanas de libertação surgiram a partir de 1967, a favor dos movimentos das colónias portuguesas (7). Assim que a política de assistência oficial foi aprovada pelo parlamento sueco em 1969, a quase totalidade dos recursos foi dedicada aos movimentos da África portuguesa, situação que se manteve até meados dos anos setenta.

Dos 67,5 milhões de coroas suecas concedidas como apoio humanitário direto aos movimentos de libertação da África Austral e ao PAIGC durante o ano fiscal de 1969–70  (8) a 1974–75, 64,5 milhões, ou seja, uns esmagadores 96 por cento, foram canalizados para o MPLA de Angola, a FRELIMO de Moçambique, o PAIGC da Guiné-Bissau e Cabo Verde (9). Nesse mesmo período, o ANC da África do Sul, a SWAPO da Namíbia e a ZANU e ZAPU do Zimbabué receberam, juntos, apenas 3 milhões de coroas (10).

Na verdade, o apoio a este último grupo foi, a princípio, visto como um contrapeso político à concentração nas colónias portuguesas, motivado pela necessidade que se sentiu de aumentar a credibilidade internacional da política geral sueca relativamente aos movimentos de libertação. Ao avaliar os dois primeiros anos da nova política, o Departamento de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento do Ministério dos Negócios Estrangeiros concluiu, em setembro de 1971, que ”o destaque dado aos territórios portugueses deve ser mantido”. Declarava também o seguinte:  “O apoio simbólico concedido aos movimentos de menor dimensão da parte austral do continente deve também ser prosseguido, por razões humanitárias e morais, mas também políticas, uma vez que o apoio mostra que a Suécia não segue uma via anti-portuguesa, mas sim um caminho de apoio à libertação (11).

A partir de finais da década de sessenta, e até à queda do regime de Lisboa em Abril de 1974, e posterior independência de Angola, Guiné-Bissau e Moçambique, tanto o governo quanto o movimento de solidariedade suecos concentraram os seus esforços nos movimentos de libertação das colónias portuguesas (12).

 A luta travada pelo PAIGC, Partido Africano para a Independência da Guiné e de Cabo Verde, e a destreza política e envergadura do seu secretário geral, Amílcar Cabral, tiveram um enorme impacto. A futura e importante participação nos movimentos de libertação da África Austral, com os quais já existia um relacionamento estreito, foi em grande medida norteada pelo encontro com a luta num pequeno país da África Ocidental, que antes de 1969 era praticamente desconhecido.

(Continua)

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Notas do autor:

(1) Mondlane em Dagens Nyheter, 17 de setembro de 1965.

(2) Sören Lindh, destacado dirigente dos Grupos de África, diria mais tarde: ”demos prioridade à luta armada nas colónias portuguesas. [...] Isso também implicou não atender exigências de reconhecimento de uma ou outra organização de outras áreas apesar de, obviamente, estarmos solidários com a sua luta” (Entrevista a Sören Lindh, p. 305).

(3) Os Grupos de África na Suécia: ”Circular nº. 4”, sem indicação de lugar, 23 de setembro de 1971 (AGA). Os Grupos de África começaram, a partir de Outubro de 1970, a enviar circulares em inglês, descrevendo as suas atividades, para os gabinetes dos movimentos de libertação e organizações de solidariedade com intuitos solidários, sobretudo as baseadas na Europa. Estas cartas de informação, nas quais se incluíam comentários sobre a assistência oficial dada pela Suécia aos movimentos de libertação, foram até 1977 escritas ad-hoc. A partir de meados de1984 começou a ser publicado o Scandinavian Newsletter on Southern Africa (”Boletim Escandinavo sobre a África Austral”), uma publicação mais formal e ambiciosa, na qual era dada informação genérica sobre as relações entre a Dinamarca, a Noruega, a Suécia e a África Austral, mas incidindo sobretudo no tema das sanções contra a África do Sul.

(4)   Södra Afrika Informationsbulletin, nº. 15–16 de maio de 1972, p. 2. Os Grupos de África publicaram em janeiro de 1972 um livro sobre as lutas de libertação em África, quase exclusivamente dedicado às colónias portuguesas. Um pequeno capítulo desse livro era dedicado à África do Sul (criticando o ANC) mas não se discutia, por exemplo, a situação no Zimbabué (AGIS: Afrika: Imperialism och befrielsekamp/”África: Imperialismo e luta de libertação”, Lund). Numa reflexão sobre os acontecimentos em África e a mudança de perspetiva dos Grupos de África após a independência de Angola, Cabo-Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe, a AGIS publicou um livro em agosto de 1977, intitulado Befrielsekampen i Afrika (”A luta de libertação em África”, Estocolmo). Foi uma obra escrita por vários membros do grupo, liderado por Mai Palmberg, e que incluía capítulos sobre a Namíbia e o Zimbabué. Em 1983 foi publicada uma versão revista, em língua inglesa (Mai Palmberg (ed.): The Struggle for Africa, Zed Press, Londres).

(5) Gun-Britt Andersson: Befrielse i södra Afrika (”Libertação na África Austral”), Världspolitikens Dagsfrågor, nº 3, 1973, Utrikespolitiska Institutet, Estocolmo, 1973, p. 33. Na qualidade de secretária de estado dos Negócios Estrangeiros, Andersson liderou a delegação sueca às Nações Unidas/OUA para a conferência de Oslo sobre a África Austral, realizada em abril de 1973. Desempenhou vários cargos na ASDI (Agência Sueca para o Desenvolvimento Internacional) e na SAREC (Agência Sueca para a Cooperação com os Países em Vias de Desenvolvimento na Área da Investigação Científica), foi representante da ASDI na Tanzânia entre 1983 e 1984. Em 1994 foi nomeada subsecretária de estado dos Assuntos Sociais e, em 1999, subsecretária de estado dos Negócios Estrangeiros, com a pasta da Cooperação Internacional para o Desenvolvimento.

(6) A chamada ”estratégia do dominó” foi delineada numa reunião do Comité da OUA para a Libertação, realizada em Dar es Salaam em junho de 1964. De acordo com essa perspetiva, centrada numa análise da força dos regimes coloniais e brancos, o apoio da OUA (e consequentemente, o apoio internacional) deveria incidir em primeiro lugar na luta das colónias portuguesas e, depois, no Zimbabué, na Namíbia e, por fim, na África do Sul. Numa cadeia de acontecimentos em dominó, a libertação de um país reforçaria (em princípio) o processo de independência dos outros países. Não constituirá surpresa constatar que o ANC da África do Sul, a quem era dada uma menor prioridade, criticou a estratégia da OUA, declarando ”opor-se à teoria estratégica segundo a qual a intensificação da luta na África do Sul deverá acontecer na sequência da libertação da Rodésia do Sul, de Moçambique e de Angola. Privar o movimento de libertação da África do Sul de assistência, fazendo-a depender da libertação de outros territórios é, na nossa opinião, fazer o jogo da ”aliança ímpia” entre a África do Sul, a Rodésia e Portugal” (citação em Thomas op. cit., pp. 92–93). 

Apesar disso, a libertação de facto da África Austral seguiu o esquema em dominó, delineado pela OUA.

(7) Foi o Partido de Esquerda Comunista quem apresentou as primeiras moções ao parlamento, advogando a concessão de assistência oficial por parte da Suécia aos movimentos de libertação nas colónias portuguesas. Em janeiro de 1967, Lars Werner, futuro líder do partido, acompanhado de outros membros do ainda chamado Partido Comunista da Suécia, apresentou uma moção a favor da FRELIMO de Moçambique, que foi rejeitada pela Comissão Permanente para os Negócios Estrangeiros. Werner, acompanhado por C.H. Hermansson, presidente do agora chamado Partido de Esquerda Comunista, voltou a apresentar a moção em janeiro de 1968. Desta feita, a moção pretendia conceder apoio ”ao movimento de libertação das colónias portuguesas através do CONCP”, ou seja, a aliança entre a FRELIMO, o MPLA e o PAIGC (Parlamento sueco, 1968: Moção nº 507 na Câmara Segunda (Werner) e Moção nº 633 na Câmara Primeira (Hermansson e outros), Riksdagens Protokoll, 1968, pp. 12 e 1 a 3). 

Esta iniciativa foi, também ela, rejeitada pela maioria parlamentar mas, um ano depois, moções similares apresentadas pelo Partido Social Democrata (no poder) e pelo Partido de Esquerda Comunista (na oposição), pelo Partido do Centro e pelo Partido Liberal, mereceram apoio, preparando o terreno para a histórica decisão tomada em 1969 pela Comissão Permanente das Dotações.

(8) Durante o período abrangido pelo presente estudo, o ano fiscal na Suécia começava a 1 de julho e terminava a 30 de junho.

(9) Consulte as tabelas em anexo relativas às transferências de capitais da ASDI para os movimentos de libertação da África Austral e para o PAIGC (Vd. Anexos, pp. 275 e ss.)

(10) Na Suécia, foram os intelectuais e os jornais liberais quem primeiro fez ouvir a sua voz contra a África do Sul do apartheid. É de assinalar que também foi o Partido do Centro e o Partido Liberal, na oposição, quem primeiro pediu que fosse concedido apoio financeiro direto e oficial ao ANC, à SWAPO, à ZANU e à ZAPU. Esse pedido foi apresentado pela primeira vez no parlamento sueco em janeiro de 1969, ou seja, antes dessa política ter sido oficialmente endossada. Os líderes do Partido do Centro, Gunnar Hedlund e do Partido Liberal, Sven Wedén, apresentaram uma moção conjunta ao parlamento sueco, em prol dos movimentos na África Austral ”que lutam por justiça social e económica. São dignos de especial nota, neste contexto, os movimentos que operam na Rodésia, Moçambique, Angola, Guiné portuguesa, Namíbia e África do Sul” (Parlamento sueco 1969: Moção nº 511 na Câmara Segunda, Riksdagens Protokoll 1969, p. 16). Moções do mesmo teor foram apresentadas em 1970 e em 1971 pelos partidos ”do centro” não-socialistas e, em janeiro de 1972, os novos líderes do Partido Centro e do Partido Liberal, respetivamente Thorbjörn Fälldin e Gunnar Helén, voltaram a defender a necessidade de apoiar os movimentos de libertação da África do Sul, Namíbia e Zimbabué. 

No documento que conjuntamente apresentaram ao parlamento, Fälldin e Helén declaravam que estavam ”na generalidade” de acordo com a ajuda dada pela Suécia, maioritariamente destinada aos movimentos de libertação das colónias portuguesas, mas consideravam ser ”urgente” que os movimentos da África do Sul, Namíbia e Zimbabué ”recebam ajuda sueca, apesar de terem tido um sucesso apenas limitado nas suas ações” (Parlamento sueco, 1972, moção nº 934, Riksdagens Protokoll 1972, p. 16).

Em termos gerais, poderia concluir-se que, no início da década de setenta, a esquerda sueca dava prioridade aos movimentos de libertação nas colónias portuguesas, apesar de os partidos de centro não-socialistas estarem a favor de se aumentar o apoio aos nacionalistas da África do Sul, Namíbia e Zimbabué. Tal como foi referido anteriormente, deve constatar- se o facto de o Partido Social Democrata, no poder, não ter tomado a iniciativa parlamentar face a qualquer dos movimentos africanos de libertação apoiados oficialmente pela Suécia.

(11) Ethel Ringborg: Memorandum (”Stöd till befrielserörelser”/”Apoio aos movimentos de libertação”), Ministério dos Negócios Estrangeiros, Estocolmo, 7 de Setembro de 1971 (MFA). A fazer fé numa nota manuscrita, fica a sensação de que foi escrito como ”informação de base” para o Ministro dos Negócios Estrangeiros, que se fez representar na reunião do Comité Consultivo da Ajuda Humanitária (CCAH), realizada duas semanas depois.

(12) A ajuda oficial, ainda que reduzida, ao ANC (iniciada em 1973), à SWAPO (1970), à ZANU (1969) e à ZAPU (1973) antecedeu o reconhecimento, dado a esses movimentos pelos AGIS entre três e seis anos depois.

[ Seleção / adaptação / revisão / fixação de texto / negritos, para efeitos de publicação deste poste no blogue: L.G  Com a devida ao autor e à editora.]  

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Notas do editor LG:

(*) Vd. poste de 3 de novembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13842: Da Suécia com saudade (40): A ajuda sueca ao PAIGC, de 1969 a 1973, foi de 5,8 milhões de euros (Parte I)...  à Guiné-Bissau, de 1974 a 1995, foi de quase 270 milhões de euros... Depois os suecos fecharam a torneira... (José Belo)

(**) Último poste da série > 11 de maio de  2023 > Guiné 61/74 - P24306: Antologia (89): Cabo Verde, "refém de uma história contada" (Expresso das Ilhas, 27 de janeiro de 2022)

segunda-feira, 25 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23199: Notas de leitura (1440): “A Balada do Níger e Outras Estórias de África”, por Amílcar Correia, Civilização Editora, 2007 (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Julho de 2019:

Queridos amigos,
Deste soberbo livro de viagens com várias peregrinações africanas, Pedro Rosa Mendes comentou que "A viagem acontece no domínio profundo das pegadas que outros deixaram - no sentido aborígene da palavra e na ração como uma pegada inscrita na memória. O conjunto é um trânsito permanente entre a atualidade, a História cultural, a biografia e a incursão pelo sonho - outros dirão, pela ficção, como registo documental". Pode ser lido como um caderno de bordo, um bloco de notas com conteúdos dispersos para diferentes reportagens, o que releva é a intensidade do olhar do viajante, começa em Tombuctu, assombrou-se com a Mauritânia, andou por territórios onde se fala português e está presentemente na África do Sul, um dos países mais desiguais do mundo, não perdeu a oportunidade de registar os comentários de portugueses que ali labutam.

Um abraço do
Mário



Ali para as bandas da Guiné e um pouco por toda a África (3)

Beja Santos

“A Balada do Níger e Outras Estórias de África”, por Amílcar Correia, Civilização Editora, 2007, é um livro de cambanças, tudo começa na mítica Tombuctu, seguiu-se a Mauritânia, o deserto do Saara é um referencial, por diversas razões: é o maior depósito de sal do continente africano, nele se cruzam as redes comerciais entre o Mediterrâneo e a África negra, há mesmo a registar a presença portuguesa na ilha de Arguim, ao largo da Mauritânia. Da Mauritânia seguiu-se para outras paragens, está-se neste momento na Ilha de Moçambique. E vem uma memória histórica:
“Vasco da Gama ancorou aqui em 1498, mas o que o navegador português encontrou naquele ponto da costa oriental de África, não foram, porém, as especiarias que tanto procurava. Foi, antes, um dinâmico estaleiro naval que os árabes fizeram crescer, e que ainda continua a ser um setor determinante na vida da ilha. Persas e árabes mantiveram, ao longo dos anos, um movimento comercial constante em toda a costa oriental, pelo que esta ilha no canal de Moçambique se tornou rapidamente na base do comércio português de especiarias proveniente do Oriente”.

Fala-se de escravatura e depois segue-se para Maputo. Amílcar Correia circula por entre os labirintos e tendas do mercado, vê os curandeiros em exercício e dá-nos uma informação:
“Xipamanine é um mercado absolutamente informal. De tal forma que não há organização não-governamental que possa aproveitar os seus preços baixos, devido à ausência de qualquer documentação ao qual se possa chamar fatura, para a compra de uma vulgar folha A4 ou de qualquer outro produto que só aqui se encontra. O que não impede, é bom de ver, que se possa comprar tudo o que se quiser. Até a roupa de comunhão que uma qualquer criança europeia vestiu numa cerimónia na década de 50, 60 ou 70!”.

E apresenta-nos um mercado tal qual: “Os clientes circulam ininterruptamente pelos corredores apertados e os locais de venda são uma espécie de beliches comprimidos: alguém a dormir ou a cozinhar no chão e a mercadoria amontoada no primeiro andar”. E adiciona um novo elemento, a violência juvenil: “Os miúdos das ruas de Maputo são temidos pela sua astúcia e insistência. E violência. Uma delinquência banal e inevitável nestas ruas da baixa, que se aproveita do movimento de pessoas e da concentração de comércio. Disputas entre crianças de rua acabam invariavelmente mal, diante da indiferença de quem passa ou do olhar dos seguranças que garantem a proteção dos estabelecimentos comerciais e respetivos clientes”.

E a viagem prossegue no Soweto, o repórter apresenta-nos quem lhe faz companhia, o padre António Nunes, nascido em Câmara de Lobos e imigrante na África do Sul desde os nove anos de idade, foi o primeiro e único português a ser ordenado padre pela diocese católica de Joanesburgo. Segue-se um interessante comentário do autor: “Ser padre católico e homem branco numa cidade como Soweto é uma dupla tormenta. Na township, os pecados não se redimem. O padre confessa, simplesmente, três arrependidos por mês. Os casamentos católicos são mais uma festa a acrescentar ao calendário de festejos tradicionais africanos. A pia batismal é utilizada para abençoar crianças filhas de mães solteiras muito jovens e muitas vezes já portadoras de SIDA (é negra a maioria dos 70 mil bebés que anualmente nascem já infetados pelo vírus) (…) A pobreza extrema é comum à esmagadora maioria dos habitantes deste subúrbio a quinze quilómetros de Joanesburgo. Mesmo assim, as famílias não hesitam em endividar-se quando morre um dos seus. A tradição obriga a quase dois anos de ritual fúnebre, que começa com uma grande festa para familiares e vizinhos, que continua um mês depois com outra festa para a limpeza das pás do enterro, de modo a que o infortunado seja vítima da sorte, e que termina mais tarde com os melhoramentos da sepultura. Este longo processo de despedida – uma profunda devoção ao antepassado – contribui para acentuar a pobreza da população”. E segue-se uma constatação: “A África do Sul democrática não melhorou as condições de vida desta gente. Os negros do Soweto continuaram a ser negros e continuaram no Soweto. Os cerca de dois a quatro milhões de pessoas que habitam a South West Township terão esperado mais da exemplar transição sul-africana”.

Fala-se da criminalidade que tomou conta de Joanesburgo e alguém observa que o desemprego, a corrupção e o crime são os cancros da sociedade sul-africana. É bem esclarecedora a conversa do repórter com Dinis Adrião, especialista em marketing policial. “O centro da cidade de Joanesburgo, afiança Dinis Adrião, registou uma descida da criminalidade nos últimos anos, devido à instalação de centenas de câmaras de vídeo que vigiam o crime nas principais ruas da baixa. Outrora florescente, o cogumelo de arranha-céus do centro da cidade foi conquistado por imigrantes indígenas e bandos armados, que o projeto Business against crime, uma parceria entre os comerciantes e a polícia, tentou devolver a Joanesburgo. As câmaras foram instaladas num complexo de arranha-céus emblemáticos na cidade: o Carlton, cujo edifício principal, um hotel de luxo, foi fechado por causa da insegurança. Passear nestas ruas durante a noite ou nos fins de semana ainda é um ato absolutamente oligofrénico e tão cedo não deixará de o ser. Desarmar a população na posse de armamento ilegal e reduzir o número de agentes que todos os anos morrem em serviço são as prioridades de uma força que quer passar a fazer policiamento com um caráter mais preventivo. Mas não só. A polícia de Joanesburgo pretende incentivar a vigilância da vizinhança, de modo a que um sinal estranho seja de imediato comunicado aos agentes e aos vizinhos. A ideia é a de que os agentes em áreas residenciais desenvolvam a memória do carteiro e saibam como se chamam os residentes e quais os seus hábitos e horários, para que não sejam surpreendidos por assaltantes mais dissimulados”.

Não vale a pena superlativar mais a delinquência em Joanesburgo. É um dos pontos altos de “A Balada do Níger”, esta circunavegação na região da África Austral. Há preocupações históricas e evidentemente aparecem portugueses no palco, vejamos este comentário:
“O início da ambição europeia de transformar o continente numa possessão sua poderá situar-se na Cidade do Cabo, com o estabelecimento de uma primeira colónia holandesa. Até aí, a presença europeia era sobretudo portuguesa, ao longo da costa, e limitada a uma presença militar que garantisse segurança e logística a caminho da Ásia.
A Companhia Holandesa das Índias Orientais decidiu radicar-se na extremidade do continente, após um grupo de náufragos ter construído um forte, em 1647, para assim se proteger dos ataques nativos. Uma expedição enviada pela Companhia Holandesa construiu uma igreja calvinista, organizou uma plantação de vegetais e de vinhas e uma quinta para a produção animal. E eis a Cidade do Cabo, em 1652, com base de aprovisionamento das embarcações que iam e vinham da Índia”
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Assim apareceram os bóeres, chegará o tempo de um conflito mortífero com os ingleses. A viagem prosseguirá pelo Quénia e Tanzânia, Amílcar Correia dar-nos-á um olhar esplêndido sobre estas regiões em que se põe termo a esta bela reportagem intitulada “A Balada do Níger”.

(continua)

Joanesburgo
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Nota do editor

Último poste da série de 22 DE ABRIL DE 2022 > Guiné 61/74 - P23188: Notas de leitura (1439): “A Balada do Níger e Outras Estórias de África”, por Amílcar Correia, Civilização Editora, 2007 (2) (Mário Beja Santos)