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sexta-feira, 20 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24775: Notas de leitura (1626):"Portugueses em África, Uma Breve História, Da Conquista de Ceuta à Descolonização", por Pedro Rabaçal; Marcador Editora (Editorial Presença), 2017 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Janeiro de 2022:

Queridos amigos,
Trata-se de uma iniciativa de divulgação, abarca a presença portuguesa em vários continentes, o capítulo dedicado à Guiné afigura-se-nos no essencial correto, menos correto o capítulo que dedica a descolonização, a bibliografia apresentada é muito precária e alguns dislates não impedem de considerar que a obra cumpre a sua função meramente expositiva e didática.

Um abraço do
Mário



Portugueses em África: uma breve história da nossa presença na Guiné

Mário Beja Santos

A
obra intitula-se Portugueses em África, Uma Breve História, Da Conquista de Ceuta à Descolonização, por Pedro Rabaçal, Marcador Editora (Editorial Presença), 2017. É uma obra de divulgação por alguém que tem no seu currículo o gosto por investigar, veja-se os títulos do que já publicou na Marcador Editora: 100 heróis e vilões que fizeram a História de Portugal; Imperadores Romanos, a vida de 30 Césares; Os grandes ditadores da História; 100 datas que fizeram a História de Portugal. Abarcando todas as parcelas do Império Português, ao longo de cerca de 150 anos, seleciona-se o que sobre a Guiné escreveu.

Tem um capítulo autónomo intitulado Guiné, a rebelde. Inevitavelmente fala nos lançados e tangomaus, no Tratado Breve dos Rios da Guiné, de André Alvares de Almada, nos piratas e presídios, na edificação da fortaleza de Cacheu, no enorme refluxo marcado pela Dinastia Filipina e a tentativa, após a Restauração, para melhorar a presença portuguesa; dá-nos um breve quadro da missionação e dos seus magros resultados; estamos chegados ao tráfico negreiro, a par do assédio francês e britânico, dá conta de que altas figuras da mestiçagem prosperavam com o comércio negreiro, caso de Caetano Nosolini e a sua mulher Aurélia Correia, e faz uma exposição digna de destaque:
“A atividade negreira de Caetano Nosolini correspondia à maioria da média anual de 2000 negros vendidos a Cuba. Enquanto não eram vendidos, trabalhavam nas suas plantações de café, amendoim, arroz, milho. As acusações e protestos contra Nosolini não passaram de uma brisa aquando das suas nomeações para governador interino da Guiné. Uma delas era a do homicídio do capitão mercador francês Dumaige, seguida da sua prisão e absolvição. A anulação da indemnização não teve efeito, dado a marinha francesa ter confiscado várias toneladas de mercadorias de Nosolini, sob a ameaça do uso da força.

O combate ao tráfico de negreiros significou o fim da prosperidade mercantil da Guiné no início do século XIX. As reduzidas guarnições locais passaram a ser pagas em géneros, como panos e barras de ferro, remunerações cuja a modéstia e lentidão despertavam frequentes atos de indisciplina. O hábito de enviar degredados merece ser exemplificado pelo caso do capitão-mor Manuel Pinto Gouveia, nomeado em 1905 e acompanhado de uma guarnição de 150 criminosos.
Um rival e concorrente de Nosolini, o também negreiro Joaquim António de Matos, não soube reconverter-se a novas atividades com a abolição da escravatura. E os negócios não lhe correram bem, como quando a Royal Navy destruiu o seu estabelecimento na ilha das Galinhas e libertou os escravos, em 1842”.


O autor debruça-se sobre os assédios francês e britânico, prossegue com os confrontos entre português e autóctones e o papel exercido por Honório Pereira Barreto. São referenciados vários desastres, como Bolor (1878) e a derrota de 15 de janeiro de 1886, num afluente do Rio Grande de Buba. Trata-se de um período de enorme instabilidade, em que os residentes dentro de Bissau vivem na maior das inseguranças. Mas tentou-se a expansão militar, sempre com enormes dificuldades e assim se chegou à Convenção Luso-Francesa de 12 de maio de 1886. A narrativa destaca as campanhas do capitão Teixeira Pinto, as violências do seu braço direito, Abdul Indjai e entramos num capítulo sobre a modernização da economia. Extinta a escravatura, a agricultura e a exploração madeireira passaram a ser as principais riquezas da Guiné, alargou-se a relação dos produtos de exportação, chegou-se ao século XX com o comércio externo nas mãos de sete casas comerciais (três francesas, uma franco-britânica, uma alemã e uma belga, e uma única portuguesa). Somente 18% do comércio externo da Guiné era realizado com Portugal (isto de 1909 até 1913), o controlo português surgiu em 1927 com a criação da CUF.

O autor refere a questão das grandes carências, da divisão entre civilizados, assimilados e indígenas, o período de transformações trazidos por Sarmento Rodrigues. E procede a uma inflexão, dedica um capítulo às rebeldias guineenses e às respetivas operações ditas de pacificação que culminam com a rendição da ilha de Canhabaque em fevereiro de 1936.

Inevitavelmente que irá falar da Guiné no capítulo dedicado à Guerra Colonial, há poucas novidades: o início de guerra em janeiro de 1963, a Operação Tridente, a natureza dos armamentos das tropas portugueses e guineenses, a chegada dos técnicos cubanos em 1965, as tentativas de Spínola em reverter os avanços do PAIGC, as ofensivas diplomáticas de Amílcar Cabral, os desastres da Operação Mar Verde, como Sékou Touré se aproveitou desta operação para proceder a uma nova purga sangrenta na República de Conacri; e temos a questão cabo-verdiana como um dos motores do assassinato de Amílcar Cabral mas o autor não perde a oportunidade para referir outros hipotéticos responsáveis.

Faz perguntas:
“O que o Estado Novo tencionava ao ajudar membros do PAIGC a tomar o poder dentro do partido? Fazê-lo mudar de lado? Uma simples aliança temporária contra o inimigo comum? Quem sabe, enfraquecer e dividir o PAIGC, o que soa mais provável. Porém, a eliminação de Amílcar Cabral acabou por não dar em nada.
Uma vez decapitado, o PAIGC deixou crescer outra cabeça dirigente, como uma hidra, e os respetivos combatentes lutaram com a maior firmeza, ansiosos por vingar a morte do líder. O escândalo internacional perante a morte de um famoso e respeitado não foi de certeza uma vitória diplomática para Portugal. O crime não serviu de nada ao Estado Novo nem ao colonialismo português. Amílcar Cabral era um homem, mas nenhuma bala podia eliminar as suas ideias”
.

Trata-se, pois, de um livro de divulgação, dá-se como certos elementos altamente discutíveis e jamais comprovados, é mais uma obra a juntar aos extenso reportório de tantos outros títulos orientados pelo prazer de fazer histórias breves do Império Português.

Cerimónia em frente do Palácio do Governador, Bolama, década de 1930
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Notas do editor

Último poste da série de 16 DE OUTUBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24762: Notas de leitura (1625): "Militar(es) Forçado(s), por Maximino R. Costa; edição de autor, 2017 (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 7 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24375: Historiografia da presença portuguesa em África (371): As campanhas de pacificação na Guiné no livro "História do Exército Português", pelo General Ferreira Martins; Editorial Inquérito, 1945 (Mário Beja Santos)

Com a devida vénia a Cabral Moncada Leilões. Foto editada


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Setembro de 2022:

Queridos amigos,
Não se pode dizer que a narrativa do general Ferreira Martins traga algo de novo àquilo que se tem vindo aqui ilustrar sobre as campanhas de pacificação, chamemos a este texto um exercício de divulgação. Há aqui algumas falhas de peso, não se fala na bravura de Graça Falcão no Oio, pelo que de novo se recomenda a quem queira estudar este período o importante levantamento documental efetuado por Armando Tavares da Silva que tem o título "A presença portuguesa na Guiné: história política e militar, 1878-1926", Caminhos Romanos, 2016.

Um abraço do
Mário



As campanhas de pacificação na Guiné no livro História do Exército Português, pelo General Ferreira Martins

Mário Beja Santos

Trata-se de uma obra de divulgação que fez a sua época, publicada em 1945 pela Editorial Inquérito. Veremos adiante que há de facto uma poderosa intervenção do Exército no caso vertente da Guiné, mas antes do Capitão Teixeira Pinto destacaram-se briosos oficiais da Marinha. Para quem se interessa pela matéria, a partir da página 470 deste tomo ir-se-á falar da pacificação da colónia da Guiné. Vamos ao que escreve o general Ferreira Martins.

Logo no começo do século XX, sendo governador o Primeiro-Tenente da Marinha Júdice Biker, houve que reprimir revoltas em Jafunco (1901) e no Oio (1902) utilizando as poucas tropas disponíveis, mas contando com a cooperação de canhoneiras e a intervenção de auxiliares indígenas. Houve sublevação do gentio do Churo (Cacheu), reprimida pelo novo governador, Soveral Martins, também oficial da Marinha, em 1904. O autor enfatiza que estas operações não foram completadas por uma ocupação efetiva e cita o marechal Bugeaud: “Em África uma expedição não seguida de ocupação não deixa mais vestígios do que o sulco de um navio no oceano”. Governava a Guiné em 1907 o Primeiro-Tenente Oliveira Muzanty, outro oficial da Marinha, a quem se deve a ocupação da ilha Formosa (Bijagós), quando se deu a sublevação de régulo do Cuor, Infali Soncó. Embora à espera de uma expedição metropolitana, Muzanty lançou-se numa coluna de operações sobre a região revoltada do Cuor. Infali aliciara os régulos de Badora e do Xime. Muzanty foi temporariamente bem-sucedido, assaltou com sucesso a tabanca de Campampe, que estava solidamente fortificada. Por curto tempo, a margem esquerda do Geba, entre Xime e Bafatá, ficou pacificada.

No princípio de 1908, um outro destacamento constituído por praças da Marinha e outros militares europeus foi encarregado de, sob o comando do Capitão Ilídio Nazaré, efetuar a reparação das linhas telegráficas danificadas por rebeldes no Quinara, efetuou-se a reparação e castigaram-se os rebeldes. Em março, o Capitão Botelho Moniz bateu os Felupes de Varela, que se negavam ao pagamento do imposto. E a 19 desse mesmo mês chegou a tão desejada expedição metropolitana que trazia uma companhia de Infantaria 13, alguma artilharia deficiente e uma força de engenharia. Muzanty viu-se obrigado a reforçar o grupo expedicionário com uma companhia da Marinha e uma companhia mista de Infantaria (deportados europeus e atiradores indígenas). Irão bater a margem direita do Geba. O primeiro combate deu-se em Canturé, em 6 de abril, os Biafadas bateram-se bravamente, a povoação foi incendiada, a expedição seguiu para Sambel Nhantá, esta era a sede do regulado, régulo e sua comitiva fugiram, a coluna avançou para Madina que após hora e meia de combate foi tomada incendiada. Em 1 de abril, hasteava-se a bandeira portuguesa no Cuor, neste regulado, em Caranquecunda ficou uma companhia de Infantaria macua, dispondo de armamento velho.

Muzanty foi depois defrontar-se com os papéis que em 1894 o Governador Vasconcelos e Sá não conseguiu dominar. Depois de bombardeadas pela artilharia da fortaleza de Bissau, as povoações de Intim, Bandim e Antula, marchou uma desfalcada coluna sobre Intim, onde foi violentamente atacada mas a povoação foi ocupada e destruída. Prosseguiu a operação para Contume, celeiro natural da ilha, deu-se aqui um violento combate que custou a vida ao alferes Jaime Duque. Os Papéis não desarmaram e atacaram a coluna, a resposta foi enérgica, dentro de um quadrado que Papéis e Balantas não conseguiam desarticular, e os rebeldes acabaram por fugir. Com este violente combate de Intim terminou na Guiné a campanha de 1908.

O autor fala agora das operações de 1909, cita um livro do antigo governador Carvalho Viegas, donde extrai a seguinte observação: “Foi o Balanta, talvez o indígena que maior resistência opôs à expansão do propósito colonizador, enfrentado com decisão e valentia as colunas enviadas a recontros em que as armas de fogo não puderam contê-lo à distância.”

Foi este o inimigo com que se defrontaram os portugueses em 1909 quando na região de Gole (Porto Gole) gente sublevada atacou na manhã de 21 de fevereiro o posto militar, a guarnição conseguiu repelir o atacante. Havendo indícios de que em breve voltariam os Balantas a atacar o fortim com mais numerosos elementos, mandou o governador Muzanty reforçar a guarnição com tropas de infantaria e artilharia. E pela primeira vez é referida a presença de Abdul Indjai, ele é o régulo do Cuor. Sucediam-se os ataques dos sublevados, sem êxitos.

Estamos agora em 1912, não se pode ainda falar na ocupação definitiva da Guiné, as rebeliões sucedem-se. Em 1912, o Governador Carlos Pereira, também ele oficial de Marinha, organizou uma coluna de operações para castigar revoltosos, dirigiram-se primeiramente a Binar, foram depois a Cacheu, foram sucessivamente punindo rebeldes. É neste contexto que aparece na Guiné o Capitão João Teixeira Pinto. Começa por castigar rebeldes do Oio, leva consigo Abdul Indjai, conta com a colaboração de duas lanchas e de um grupo armado pela administração de Geba. Em 1913, Teixeira Pinto, quase só com irregulares de Abdul Indjai e de outro oficial de segunda linha, Mamadu Sissé, foi a Cacheu e bateu o gentio de Churo. As sublevações acalmaram mas não desapareceram. Em fevereiro de 1914, os balantas de Braia trucidaram o Alferes Manuel Pedro e o seu pelotão de cavalaria, houve chacina, coube ao Capitão Teixeira Pinto vingar os desditosos camaradas trucidados. Coube a Teixeira Pinto responder, obteve a pacificação de toda a região Balanta entre Mansoa e Geba.

Graças ao seu crescente prestígio, o governo aproveitou para em 1915 submeter definitivamente os Papéis e Grumetes de Bissau, a sua rebeldia era permanente. Teixeira Pinto pôs-se à frente de uma numerosa coluna, contava com os irregulares de Abdul Indjai, travou com os rebeldes renhidos combates de Intim e Bandim, cujas posições foram tomadas depois de um bombardeamento. Teixeira Pinto atacou ainda outras povoações, lutando sempre com a inaudita resistência dos rebeldes. Teixeira Pinto é preferido em Safim, recolhe-se a Bissau, mas a coluna, sob o comando do Tenente Sousa Guerra, continua o avanço e tomou de assalto outras posições. Depois de dois meses de operações em que as forças de Teixeira Pinto tinham sofrido 47 mortos e 202 feridos, tomaram-se de assalto outras posições rebeldes e a ilha de Bissau foi considerada como submetida. O autor fala da ilha de Canhabaque, houve operações em 1917, comandadas pelo Major Ivo Ferreira (Governador da Guiné entre 1917 e 1919), tais operações demoraram oito meses, mas os atos de rebeldia continuaram. Em 1925, o novo Governador, Vellez Caroço, viu-se forçado a realizar novas operações na ilha, apreendeu armas e munições, parecia que o castigo tinha sido duro, pura ilusão, as operações foram retomadas em 1935-1936, são consideradas como o termo das operações de pacificação, daí o monumento em Canhabaque, evocativo que era tido como o fim das rebeliões. O General Ferreira Martins concluiu assim as suas referências às campanhas de pacificação.


General Luís Augusto Ferreira Martins (1875-1967)
Joaquim Pedro Vieira Júdice Biker (1867-1926)
Alfredo Cardoso de Soveral Martins (1869-1938)
Imagem da guerra do Cuor, fotografia de José Henriques de Mello, 1908
No Xime, no decurso da guerra do Cuor, fotografia de José Henriques de Mello, 1908
Estátua do Capitão João de Teixeira Pinto
Monumento aos heróis da pacificação de Canhabaque, imagem retirada do livro “Bijagós Património Arquitetónico”, fotografia de Francisco Nogueira, Edições Tinta-de-China, 2016, com a devida vénia
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Nota do editor

Último poste da série de 31 DE MAIO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24357: Historiografia da presença portuguesa em África (370): Da CUF à Casa Gouveia, da Casa Gouveia à CUF: Uma viagem interminável (3) (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24071: In Memoriam (468): Historiador Armando Tavares da Silva (5/5/1939 - 1/2/2023), Professor Catedrático Aposentado da Universidade de Coimbra (Mário Beja Santos)

IN MEMORIAM

Armando Tavares da Silva (5/5/1939 - 1/2/2023)

Mário Beja Santos

Conheci Armando Tavares da Silva quando um dia, inopinadamente (sem prévio aviso) me abriu a porta do meu gabinete de trabalho, onde eu fazia voluntariado, na Praça Duque de Saldanha, estávamos em 2016, vinha ajoujado de um cartapácio, apresentou-se, fiquei a saber que era professor catedrático reformado, presidente da secção Luís de Camões da Sociedade de Geografia de Lisboa, que andara aturadamente no Arquivo Histórico Ultramarino, fora desperto pelos assuntos guineenses graças a um avô marinheiro que andara na guerra do Churo, em 1904, trouxera muitas memórias, decidiu-se por aprofundar, documento puxa documento e escreveu uma obra de referência “A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar, 1878-1926”, obra recheada de imagens e cartografia, viria este tão prodigioso esforço a ser premiado pela Gulbenkian.

São centenas e centenas de páginas que começam na transformação da Guiné em província independente de Cabo Verde, meticulosamente vão sendo reveladas as atividades dos primeiros governadores, é o caso da guerra do Forreá, os incidentes do Casamansa, a delimitação de fronteiras (depois da convenção luso-francesa de maio de 1886), as intermináveis rebeliões, a indisciplina dos Papéis de Bissau, as tentativas de pacificação, com destaque para a governação de Oliveira Muzanty, as campanhas de Teixeira Pinto e o processo de Abdul Indjai, a governação de Vellez Caroço, o drama de heróis insurretos como Graça Falcão, a monopolização do comércio pela Casa Gouveia.

Não me cansei de louvar este levantamento monumental, uma singularidade na historiografia da Guiné colonial, tivemos a nossa querela a propósito das suas considerações finais quanto a legadas divisões em permanência entre militares e comerciantes, e mantive como mantenho sérias dúvidas quanto a todas as benevolências que ele atribui à campanha de Teixeira Pinto em Bissau, conducente à chamada pacificação definitiva de 1915. São arrufos entre estudiosos, mal ficaríamos se não houvesse divergências quanto ao olhar da sociedade e da política num certo período em análise.

A Guiné perde um investigador histórico de gabarito, foi colaborador do nosso blogue, deixou obra em várias instituições como a Sociedade de Geografia de Lisboa, o Instituto Português de Heráldica e a Sociedade Histórica da Independência de Portugal.

Curvo-me respeitosamente pela sua memória, pela companhia que nos trouxe e pelo acervo admirável que deixou sobre um importante período da nossa presença na Guiné.


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- Os editores e a tertúlia do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, lamentam a morte do insigne Historiador, Professor Armando Tavares da Silva, nosso confrade, endereçando aos seus familiares as mais sentidas condolências.

O Prof Armando Tavares da Silva deixa uma prestimosa colaboração neste Blogue, onde tem 52 referências, dando-nos a conhecer, no seu último livro publicado, a história política e militar da presença portuguesa na Guiné no período compreendido entre 1878-1926.

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Nota do editor

Último poste da série de 30 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24022: In Memoriam (467): Francisco Justino Silva (1948-2023), médico, ortopedista, ex-alf mil, CART 3492 / BART 3873, Xitole, e Pel Caç Nat 51, Jumbembem (1971/73) cerimónias fúnebres, hoje, em Porto Salvo, na igreja local, com velório a partir das 16h00; missa de corpo presente às 14h00 de 3.ª feira, seguindo o funeral para o cemitério de Carnaxide

quarta-feira, 5 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23674: Historiografia da presença portuguesa em África (337): Viagem por alguns títulos da Coleção Pelo Império, da Agência Geral das Colónias (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Janeiro de 2022:

Queridos amigos,
A coleção Pelo Império teve vida afortunada nas décadas de 1930 e 1940, são escassas as referências a acontecimentos guineenses, dedica-se uma monografia a Honório Pereira Barreto, há uma referência à obra de Senna Barcelos e temos depois algumas expedições militares, que aqui se transcrevem. Pode ser que no desenvolvimento desta pesquisa ainda surja mais alguma surpresa. Estava mergulhado nesta leitura quando retirei de um cartapácio dedicado ao Boletim Geral das Colónias algumas apreciações do antigo Governador Leite de Magalhães, que em 1931 foi retirado da Guiné numa revolta republicana de que aqui já se fez larga referência. O artigo em causa foi publicado em julho de 1932, é um pouco mais do que uma mera curiosidade.

Um abraço do
Mário



Viagem por alguns títulos da Coleção Pelo Império, da Agência Geral das Colónias

Mário Beja Santos

Nas décadas de 1930 e 1940, a Agência Geral das Colónias publicou um número impressionante de monografias referentes a figuras distintas da colonização, operações de ocupação e pacificação, e até investigadores e políticos marcantes ligados à criação do Império Africano.

O número 118, publicado em 1947, é dedicado a Cristiano José de Senna Barcelos, figura da Armada de grande distinção, no blogue já se fez larga referência aos seus "Subsídios para a História de Cabo Verde e da Guiné". É autor do texto o Tenente-Coronel Joaquim Duarte Silva. Vejamos um resumo que pode levar o leitor a interessar-se pelas investigações de Senna Barcelos, do maior relevo para o conhecimento da Guiné. Este oficial da Armada começou por escrever em 1892 um Roteiro do Arquipélago de Cabo Verde, um trabalho de caráter técnico, evidenciou aqui as qualidades de meticuloso investigador. Era natural da ilha Brava, sua terra natal. Em janeiro de 1899 foi nomeado para proceder, com a máxima economia, a estudos geográficos e hidrográficos no Arquipélago de Cabo Verde, auferindo apenas os seus vencimentos como se tivesse embarcado em qualquer dos navios em serviço no arquipélago.

Indiscutivelmente a sua obra capital são os "Subsídios para História de Guiné e Cabo Verde". A Academia Real das Ciências de Lisboa tomou a seu cargo a publicação do trabalho. Estes subsídios compõem sete partes, vão de desde 1470 a 1889. Escreve o autor Senna Barcelos se distingue pelo desassombro das suas opiniões, não gostava de louvaminhar e nunca escondeu o martírio do povo cabo-verdiano. Era um martírio que inspirava comentários acerbos, verdadeiros gritos de revolta. Senna Barcelos criticou profundamente as medidas tomadas por D. Manuel I como as de autorizar a execução de brancos e de pretos cristãos que se mostrassem rebeldes em sair da Guiné, bem como também criticou a penas brutais aplicadas aos lançados da Guiné, apesar de eles muitas vezes serem traidores à Pátria, colocando-se ao serviço de estrangeiros como pilotos e práticos nos rios e portos da Guiné – aplicava-se-lhes a pena de morte em caso de reincidência. Como Comandante da Canhoneira Rio Ave, tomou parte em operações militares e foi condecorado com a Cruz de Cavaleiro da Ordem da Torre e Espada.

Do número 55 desta coleção, com o título Glórias e Martírios da Colónia Portuguesa, tendo como autor o General Ferreira Martins, vejamos as referências à Guiné, com destaque para a campanha de 1908. Em dezembro do ano anterior chegaram à colonia o Capitão Ilídio Nazaré e o Tenente D. José de Serpa Pimentel, respetivamente Chefe e Subchefe do Estado-Maior da futura expedição. Nazaré foi encarregado do comando de um destacamento incumbido de proteger o restabelecimento das comunicações telegráficas que os Biafadas tinham cortado na região de Quínara, estavam revoltados no início de 1908. Em 19 de março desse ano desembarcava a expedição de Macuas destinada a castigar o régulo Infali Soncó. O Governador Oliveira Muzanty conduzia as operações. Juntou-se uma companhia da Marinha, uma companhia mista da Infantaria (deportados europeus e atiradores indígenas), em 1 de abril foram transportados para o Xime, ponto de concentração. Do Xime seguiram para Bambadinca, daqui para Canturé, aqui se travou o primeiro combate, houve resistência, mas a povoação foi assaltada e incendiada. Mais adiante destrui-se a tabanca de Madina, último reduto do régulo, a 9 era hasteada a bandeira portuguesa no Cuor. Chegou, entretanto, uma companhia de Macuas, forneceram-lhe armas, ficaram acantonados em Carenquecunda.

A expedição militar volta-se agora contra os Papéis insubmissos, a artilharia bombardeou Intim, Badim e Antula, os aguerridos Papéis atacaram a coluna, mas as povoações caíram, tivemos baixas. Deu-se combate muito duro no alto do Intim, foi o último ataque dos Papéis e Balantas, a campanha de 1908 terminou em 11 de maio.

Segue-se a referência à campanha do Oio de 1913, liderada pelo Capitão Teixeira Pinto. Ele contou com a ajuda de Vasco Calvet de Magalhães, Administrador da Circunscrição de Bafatá, e da Abdul Injai, andou disfarçado de comerciante para reconhecer a área, na direção Mansoa-Farim. Descreve-se os ataques gizados por Teixeira Pinto, ele conta com um pelotão de Infantaria, duas peças de artilharia e centenas de auxiliares, está apoiada por duas lanchas-canhoneiras, encontra resistências, mas vai marchando a coluna para Morés, há recontro, destroem-se tabancas, distingue-se pelo seu heroísmo e bravura Abdul Injai. Em 7 de junho de 1913 a bandeira portuguesa foi hasteada em Mansabá.

O autor dedica um capítulo aos mártires da Guiné, 1914, refere abundantemente a resistência encontrada para ocupação ao longo do século XIX, assassínio de governadores, a chacina de Jefunco, em 1878, da força comandada pelo Tenente Calisto dos Santos, todos massacrados e muito mais. Escreve o autor: “Ao findar o século, pode dizer-se que as únicas regiões onde era reconhecida a nossa autoridade eram as ocupadas pelos povos Mandigas e Fulas, à exceção do Oio, onde, em 1897, uma pequena coluna comandada pelo Tenente Graça Falcão foi trucidada, escapando milagrosamente este oficial, mas não tendo a mesma feliz sorte o Tenente António Caetano e o Alferes Luís António. Seguiram-se, no primeiro decénio do século atual, as campanhas, menos infelizes, empreendidas de 1901 a 1909 pelos Governadores Júdice Biker e Muzanty”.

E descreve os trágicos acontecimentos de 5 de fevereiro de 1914, saiu de Mansoa um pelotão de Cavalaria comandado pelo Alferes Manuel Augusto Pedro, com a missão de reconhecer o local onde conviria lançar uma ponte. Segundo a narrativa de um sobrevivente, a coluna foi atacada pelo gentil de Braia, a massa atacante empurrou o pelotão do Alferes Pedro para junto do rio. Aqui foi morto a tiro, os outros tentaram salvar-se caminhando para o lodo onde foram trucidados à catanada, entretanto subia a maré, não foi possível tirar o cadáver do alferes do lodo nem dos restantes soldados do pelotão, veio uma força auxiliar, mas era tarde.

Aqui se põe fim aos apontamentos tirados da Coleção Pelo Império, vamos separadamente fazer referência a um curioso documento assinado pelo antigo Governador Leite de Magalhães e publicado no Boletim Geral das Colónias, em 1932.


José Henriques de Mello
Pelotão da Companhia Mista. Fotografia de José Henriques de Mello
No Xime, durante a campanha do Cuor, 1908. Fotografia de José Henriques de Mello
No Xime, manufatura do rancho de Infantaria, 1908. Fotografia de José Henriques de Mello
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Notas do editor:

- Fotos editadas por CV

Último poste da série de 28 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23650: Historiografia da presença portuguesa em África (336): Imagem do nosso Império Africano num atlas inglês de 1865 (Mário Beja Santos)

terça-feira, 30 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23569: In Memoriam (451): Gratas recordações do confrade António Júlio Emerenciano Estácio (1947-2022) (4): “Bolama, a saudosa…”, lembranças afetuosas da sua juventude (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de 26 de Agosto de 2022 do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70):

Queridos amigos,
É a hora da despedida do António Estácio, saboreei a releitura da sua pesquisa sobre a presença portuguesa na Guiné, não há revelações surpreendentes, mas uma enumeração exaustiva de eventos, vamos ter informações em catadupa desde a criação de Bolama até à sua viagem de despedida, falará comovidamente da família, do convívio, das brincadeiras com outros meninos, é tocante. Minucioso, não esquece tanto as guerras de pacificação como a questão de Bolama, bateu à porta de muita gente, neste texto recolheu o testemunho de alguém que viveu no ilhéu do Rei e que descreve a intensidade fabril daquela Casa Gouveia; viajaremos por diferentes tempos, ouviremos falar de muita gente, fas publicações, dos escritores e em dado momento ele lembra-nos Fernanda de Castro que era filha do capitão do porto de Bolama, aqui morreu sua mãe, aqui ela encontrará inspiração para aquele que terá sido o best seller infanto-juvenil do Estado Novo, Mariazinha em África. Há que confessar que António Estácio adoeceu entretanto e a edição ressentiu-se da falta de revisão. Mas o que é mais relevante é que esta viagem a Bolama é um testamento de amor que não esqueceremos tão cedo.

Um abraço do
Mário


Gratas recordações do confrade António Estácio:
“Bolama, a saudosa…”, lembranças afetuosas da sua juventude

Mário Beja Santos

Deste livro, edição de autor, 2016, nesse mesmo ano aqui deixei as minhas impressões de leitura, o meu pasmo com o acervo informativo que Estácio foi recolhendo, primeiro sobre a história da nossa presença na Guiné, antes de 1879, quando esta foi desafetada de Cabo Verde. Estácio leu muito, e não se limitou ao Boletim Oficial da Guiné. Leu António Loureiro da Fonseca que recorda aos vindouros o sangue que se derramou em sucessivas guerras. Não esquece os dados essenciais dessa nossa presença, desde as companhias de tipo majestático, o comércio de Cacheu e Ziguinchor, a questão de Bolama, a criação do seu município em setembro de 1871, entre tantíssimos exemplos que eu aqui podia relevar.

Recorre a testemunhos de gente do seu tempo, caso do Manuel Duarte Freire que era filho de trabalhador da Casa Gouveia e que descreve a vida no ilhéu do Rei, ficamos a saber um pouco mais sobre a CUF:
“No ilhéu do Rei, local onde a CUF tinha o seu complexo industrial, talvez o único e o maior que me lembre, o qual era composto por vários armazéns, de enorme capacidade, consoante o tipo de mercadoria a que se destinasse, como, por exemplo, de 30.000 toneladas para o amendoim, 10.000 toneladas de arroz em casca e de várias toneladas de coconote. Tinha uma fábrica de descasque de arroz, outra para mancarra e uma outra de aproveitamento de óleo. Na fábrica destinada ao descasque de mancarra ficava a de óleo de amendoim, sendo esta ali construída no ano de 1956, ou seja, no mesmo ano em que foi construída uma ponte nova que tornou possível a atracagem de barcos de maior dimensão. No ilhéu, havia tratores para mudar e transportar as mercadorias, assim como as diversas balanças para assegurarem as pesagens. No caso do descasque de arroz, ele era ali processado e embalado, enviando-se para Bissau ou carregando-se para outros destinos, quer fosse Lisboa ou diversos países. A mancarra foi ali descascada, ensacada e enviada para a metrópole, onde era produzido o conhecido Óleo Fula. Porém, a partir de 1957, a fábrica de óleo da ilha do Rei começou a separar logo e a produzir o óleo, farinhas, sabão, glicerina e o Óleo Fula passou a ser logo ali produzido. Todos os resíduos foram aproveitados para farinhas que eram exportadas para a Holanda, o mesmo sucedendo com o sabão e a glicerina. Este é o meu testemunho, vivido no ilhéu do Rei, na boa e velha Guiné, onde cheguei em 15 de março de 1951 e permaneci até 1958. Regressei com a finalidade de continuar a estudar em Tomar, tendo tido a sorte de ir parar onde havia tantos guineenses amigos e de quem guardo imensas saudades (certamente que Manuel Duarte Freire se refere ao Colégio Nun’Álvares, instituição de ensino onde estudaram muitos guineenses)".


Nesta curta memória é inviável elencar a farta pesquisa de Estácio, põe o enfoque no período republicano, fala-nos da Liga Africana, Liga Guineense e Centro Escolar Republicano; não esquece a bravura de Sebastião Casqueiro e as operações militares no Churo, a ocupação do Oio, as operações de Teixeira Pinto, transcreve mesmo as narrativas do próprio Capitão João Teixeira Pinto. E há o contraditório, o advogado Loff de Vasconcelos a apresentar queixa-crime contra Teixeira Pinto e Abdul Indjai, indicando um rol de testemunhas de grande peso socioeconómico, era a contestação ao que se chamou o regime abusivo de Teixeira Pinto. E se isto se trata de uma listagem impressionante de nomes, informações em catadupa sobre acontecimentos de vária ordem, nomeações, inaugurações, muitos recortes de notícias publicadas na imprensa local.

Não esquece Honório Pereira Barreto, a presença de Gago Coutinho, a governação de Velez Caroço, o acidente com a Esquadra Balbo, as visitar alemãs, a autorização dada a Pan American de faz escala em Bolama; em 1947 dá-se a inauguração da carreira aérea Dacar-Bissau, por avião e Junker 52 da Air France; e a participação de dezenas de guineenses das etnias Bijagó, Balanta e Fula na I Exposição Colonial Portuguesa, capitaneava a participação um bravo militar, o régulo Mamadu Sissé, acompanhado de quatro mulheres e dois filhos; não são esquecidos os periódicos (todos eles de vida breve); a revolta republicana de 1931 e a sua precária Junta Governativa; a figura do escritor e publicista Fausto Duarte; e em 1953 chega a Guiné o professor Paulo Quintela à frente de um grupo de antigos estudantes de Coimbra; e até o Manuel Joaquim do cinema não é esquecido.

Convém abreviar, aqui se endereça um derradeiro abraço de saudade a este confrade que irá lembrar emotivamente a vida familiar, os seus amigos, irá ouvi-los e não se coibirá de dizer que estava a viver as mais belas recordações da sua vida. Não esquece o nome de escritores e evoca Fernanda de Castro que viveu em Bolama, autora de um impressionante bestseller infantojuvenil que marcou gerações, Mariazinha em África, fui buscar a minha edição da Ática, de 1947, com desenhos de Ofélia Marques, e transcrevo algumas passagens:
“Dum lado e doutro da estrada, só se viam arrozais, arrozais verdes, arrozais a perder de vista… Estava calor, um calor de rachar, mas o ar deslocado pelo carro em movimento dava uma sensação de frescura a Mariazinha e a Ana Maria. Pássaros de todas as cores, de todos os feitios, voavam sobre o arrozal. Insetos enormes vinham esborrachar-se de encontro aos vidros do automóvel. Uma cobra amarela, pintalgada de preto, rastejava ao longo da estrada. E nem uma árvore, nem um arbusto, nem uma sombra no horizonte.
Pouco a pouco, porém, a paisagem foi mudando. Às superfícies cultivadas dos arrozais sucedia-se agora o capim, capim alto, serrado, onde uma fauna perigosa e hostil proliferava, palpitava, rastejava… Árvores enormes, a princípio isoladas, pareciam sentinelas à beira da floresta”
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E, mais adiante:
“Meia hora depois, surgia Buba, terra de maravilha! Nem casas, nem barcos, nem carros, nenhum sinal de civilização. Os raros comerciantes brancos que ali viviam, tinham as suas casas no interior, muito longe do cais, e este cais rudimentar era o único vestígio da passagem dos brancos por aquelas terras.
No rebocador, os marinheiros manobravam para atracar e todos se preparavam já para o desembarque.
A região não podia ser mais bonita! Bananeiras carregadas de bananas vinham quase até ao rio. Borboletas que pareciam flores e flores que pareciam pássaros confundiam-se, nas árvores, com os frutos coloridos – as mangas, as goiabas, os cajus.
- Olha, Ana Maria! – exclamou Mariazinha. – O cais está cheio de gente!
Com efeito, no cais apinhavam-se dezenas, centenas de pretos, alguns dos quais tocavam uma música estranha nuns instrumentos ainda mais estranhos. O barulho era ensurdecedor… Raparigas e mulheres, embrulhadas em panos berrantes, com lenços vistosos na cabeça e fios de contas de vidro em volta do pescoço, dos pulsos e dos tornozelos, batiam palmas a compasso e sorriam para os brancos; pretinhos nus, com enfiadas de sementes vermelhas em volta da barriga, guinchavam e saltavam como macaquinhos; separados dos outros, estavam os tocadores, que tocavam tantã e uns instrumentos esquisitos que pareciam violinos mal feitos. E, ao longo do cais, uma multidão colorida acenava, gritava, barafustava, uma multidão amiga que abriu alas à passagem dos brancos e depois os seguiu, em cortejo, até a casa do Administrador.”


Ainda encontrei uma outra obra da responsabilidade do António Estácio mas dedicada à escola de regentes agrícolas que ele frequentou, seguramente outro belo testemunho de saudade.
Porto de Bolama, 1912
Bolama, fachada do Banco Nacional Ultramarino, mais tarde Hotel Turismo
Monumento aos aviadores italianos caídos em desastre aéreo, no início da década de 1930
Lembranças da velha Bolama
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Nota do editor

Último poste da série de 25 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23555: In Memoriam (450): Gratas recordações do confrade António Júlio Emerenciano Estácio (1947-2022) (3): Uma viagem a Bissau para saber mais sobre a mítica Nha Bijagó (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 22 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23378: Historiografia da presença portuguesa em África (322): A Guiné e as Campanhas Coloniais (1850-1925) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Julho de 2021:

Queridos amigos,
A coleção Batalhas da História de Portugal teve grande notoriedade, para além das livrarias chegou a vender-se nos quiosques e papelarias, teve imensa procura, recebeu apoio da Academia Portuguesa de História e vários investigadores consagrados colaboraram ativamente nos diferentes livros. Um deles foi dedicado às campanhas coloniais, poder-se-á dizer que não traz grandes novidades mas é uma boa síntese divulgativa e permite uma leitura num contexto comparativo com as campanhas que decorreram em Angola (Cuamato, Dembos, Lunda, I Guerra Mundial), Moçambique (Campanhas da Zambézia e a luta contra os Bongas, Barué, Chire, Macequece, Campanhas do Sul do Save, Marracuene, Magul, Coolela, Chaimite, a Campanha de Gaza, até à pacificação do Angoche), depois temos um quadro dos acontecimentos na Índia e Macau até às campanhas e revoltas em Timor. Enfim, uma obra que merece ser apreciada num meritório trabalho de divulgação que infelizmente parece ter arrefecido, é público e notório o abrandamento de trabalhos em torno do Império Colonial Africano e mesmo do Império Português em geral.

Um abraço do
Mário



A Guiné e as Campanhas Coloniais (1850-1925)

Mário Beja Santos

A Coleção "Batalhas da História de Portugal" consagrou um volume às campanhas coloniais que ocorreram entre 1850 e 1925 em Angola, Moçambique, Guiné e Timor. O texto principal deste volume é da responsabilidade do Prof. Doutor António Ventura, QUIDNOVI, 2006. Como é compreensível, vamos cingir as nossas observações ao que o historiador refere sobre a Guiné.

Vejamos como ele introduz a problemática das campanhas na colónia:
“Na Guiné, desde a década de 40 do século XIX que se sucederam as sublevações e os confrontos entre diversas etnias locais, por um lado, e entre estas e as autoridades portuguesas, por outro. Em 1844, os Grumetes atacaram a Fortaleza de Bissau, que contava com um reduzido número de defensores. Em 1853, foi criado o cargo de Governador da Guiné, com residência em Bissau, ficando-lhe subordinado o governo da Praça de Cacheu. Nesse ano, ocorreu a sublevação dos Papéis, que atacaram Bissau, que só foi salva graças à intervenção de forças francesas: o brigue Palinure desembarcou um destacamento em socorro da Praça. A 9 de Outubro de 1856, Honório Barreto conseguiu forçar a submissão destes sublevados”.
No período posterior dá-se uma nova organização administrativa, a Guiné é constituída como um só concelho, fica subdividida em Praças e Presídios, sob a administração de um Governador chamado da Guiné Portuguesa, residente em Bissau, virá a ser a sede de um Distrito Administrativo Militar, na vila é também criada a Comarca Judicial. Os conflitos interétnicos agudizam-se: a guerra sangrenta de Fulas contra Mandingas e Beafadas, que se estenderá ao Forreá em 1866. Em 1871 eclode nova rebelião dos Grumetes de Bissau, durante a qual foi morto o Governador-interino do Distrito. Em 1878, os Felupes atacaram em Bolor uma força comandada pelo Tenente Calisto dos Santos, morrem dois oficiais e 50 soldados. O acontecimento tem grande repercussão em Lisboa, decide-se romper com a dependência de Cabo Verde e estabelece-se autonomia da Província, pela primeira vez há uma capital na Guiné, Bolama.

Mas as sublevações não param, logo houve que reprimir uma revolta do Batalhão de Caçadores N.º 1, em Bolama. No ano anterior, os Felupes de Jufunco cediam todo o seu território a Portugal. Assinam-se tratados de paz com os Fulas do Forreá e com os Beafadas de Guinala. A despeito desta atmosfera de paz, em 1881 os Fulas e Futa-Fulas do Forreá atacaram a Praça de Buba, e pouco tempo depois revoltam-se os Beafadas de Jabadá, tudo fica aparentemente resolvido com acordos de paz. Não param as sublevações mas também as homenagens ao governo da colónia. Em 1885 é feita a paz em Buba entre os Fulas e Beafadas, depois de uma longa guerra de extermínio. No ano seguinte, Portugal confirma e ratifica a Convenção Luso-Francesa, renuncia-se ao território do Casamansa incluindo o porto de Ziguinchor. Sucedem-se pequenas desordens, rebeliões na ilha de Bissau, no Leste e nos Bijagós. Onde fervilha a tensão é mais à volta da fortaleza de Bissau, mas também há guerra na região do Geba. em 1892, a província é convertida em Distrito Militar Autónomo. Criaram-se os Comandos Militares de Bissau, Cacheu e Geba, mas os efetivos continuam a ser minúsculos e as rebeliões na ilha de Bissau permanentes. Tudo parecia ter melhorado na região de Cacheu bem como na região de Cacine, melhorara a ocupação militar da Guiné, para além de Bolama e Bissau, estendia-se a Geba, S. Belchior, Sambel-Nhantá, Cacheu, Farim, Buba, Bolola, Contabane, Cacine e Cacondo. Ao todo, estavam no território dois destacamentos com sete oficiais, dois sargentos e duzentos cabos e soldados.

Em 1896, é a vez dos Manjacos manifestarem rebeldia. Inicia-se a primeira Campanha do Oio, é durante estas operações que um chefe Mandinga, Lamine Indjai, aliado dos Portugueses, morreu a defender a bandeira que levava e que não deixou cair nas mãos dos sublevados. Mas a campanha terminou de uma maneira desastrosa, Graça Falcão, Comandante de Farim e responsável pela Campanha escapou por um triz. Até ao fim do século vão aumentando os postos militares. Há populações que se recusam a pagar imposto e insubordinam-se, daí várias campanhas, logo na zona de Churo, envolvendo forças terrestres e navais, os Papéis submetem-se. Cria-se uma companhia mista de artilharia em Bolama, efetuam-se uns trabalhos de delimitação de fronteiras, as forças portuguesas e francesas foram alvo de ataques. Em 1907 começa a guerra do Cuor, que prosseguirá no ano seguinte, com um contingente nunca visto. O régulo do Cuor, Infali Soncó, foge depois de ter dado séria resistência. Novas operações na ilha de Bissau, é aí que se faz notar Abdul Indjai, que acabará exilado em S. Tomé, depois perdoado e mais adiante vamos vê-lo como um autêntico braço direito do Capitão Teixeira Pinto.

As sublevações, insurreições e insubordinações são uma constante entre o fim da Monarquia e os primeiros anos da I República. A grande alteração começa a ser dada com as operações de Teixeira Pinto nas regiões de Mansoa e Oio, em 1913, com o apoio de forças navais, acompanha-o uma guarda avançada de Abdul Indjai e 400 irregulares. Em janeiro de 1914, depois de nova revolta no Churo começa a marcha da coluna de operações de Cacheu, comandada por Teixeira Pinto, em abril estes territórios dão-se como pacificados, Teixeira Pinto prossegue contra os Manjacos e dá-se por finda a campanha de Cacheu e Costa de Baixo. Teixeira Pinto volta-se agora para os Balantas que pedem a paz. Teixeira Pinto embarcou para Lisboa e só regressou em janeiro do ano seguinte. Desta feita, a grande questão é Bissau, os Papéis dão imensa luta.

Teixeira Pinto e o Tenente Sousa Guerra mais 1600 guerreiros com Abdul Indjai à cabeça, de novo com apoio naval, procuram obter uma vitória definitiva. Os sublevados pareciam levar tudo a melhor até que foram repelidos por Teixeira Pinto que contra-ataca e toma de assalto as posições de Intim e Bandim e mais adiante Antula, e depois Safim, a marcha terminará em Bor e Biombo. Com a captura do régulo de Biombo e a rendição do régulo de Tore terminava com êxito completo a campanha da ilha de Bissau. Foi uma pacificação que custou um elevado preço aos portugueses e seus aliados: 284 mortos e feridos. Mas ainda se estava longe de uma pacificação efetiva. Em março de 1917 era declarado o estado de sítio em todo o arquipélago dos Bijagós, o Tenente Sousa Guerra comanda uma coluna com o objetivo de estabelecer um posto militar em Canhambaque, mas nada sucedeu. De novo declarado o estado de sítio em maio com o mesmo objetivo de estabelecer um posto militar em Canhambaque, o sucesso foi reduzido. É neste período que surgem graves problemas com Abdul Indjai, então régulo do Oio e Cuor, o seu comportamento e os abusos praticados provocaram um grande descontentamento das populações, as autoridades portuguesas viram-se obrigadas a agir contra o seu antigo aliado. Novas operações em julho de 1919 e prisão de Abdul Indjai que será demitido do posto de Tenente de 2.ª linha, previa-se a sua deportação para Moçambique mas morreu em Cabo Verde.

Vão continuar a haver problemas nos Bijagós, grandes combates, em maio de 1926, durante esta fase de tentativa de ocupação, nesta região Bijagó sublevada as forças portuguesas tiveram 22 mortos e 74 feridos. A chamada pacificação da Guiné será reconhecida só em 1936, com a submissão de Canhambaque e a paz com os Bijagós.

Infali Soncó, régulo do Cuor, ainda no momento de confraternização com as tropas portuguesas, 1908, fotografia de José Henriques de Melo
Ataque dos auxiliares portugueses na chamada Guerra do Cuor, 1908
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Nota do editor

Último poste da série de 15 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23352: Historiografia da presença portuguesa em África (321): Grande polémica (2): Luís Loff de Vasconcelos versus Teixeira Pinto e Abdul Indjai (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 15 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23352: Historiografia da presença portuguesa em África (321): Grande polémica (2): Luís Loff de Vasconcelos versus Teixeira Pinto e Abdul Indjai (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Junho de 2021:

Queridos amigos,
Permanecem muitos pontos de interrogação quanto às razões fundadas que poderão ter levado à extinção da Liga Guineense, instituição declaradamente republicana, outrora reconhecida como muitíssimo útil e que passa a ser tratada como uma entidade demoníaca por se ter oposto aos planos perpetrados pelo Capitão Teixeira Pinto para submeter os indígenas de Bissau. Como ficou demonstrado, Abdul Indjai saqueou e destruiu por anos a economia dos Papéis e dos Grumetes da ilha. Não se conhece melhor documento que rebata as teses triunfalistas pró-Teixeira Pinto que o opúsculo escrito por Luís Loff de Vasconcelos, conceituado escritor cabo-verdiano que seguramente teve acesso a depoimentos que a versão oficial silenciou.
É inaceitável que a História da Guiné Portuguesa deixe na penumbra uma investigação determinante para se perceber não só o caráter da campanha de pacificação mas pelo facto de se dever atribuir o sucesso da mesma a um saqueador que foi régulo e déspota tão turbulento que pela segunda vez foi levado ao exílio.
Respeitando o contraditório, vamos ver agora as teses que se opõem.

Um abraço do
Mário



Grande polémica (2):
Luís Loff de Vasconcelos versus Teixeira Pinto e Abdul Indjai


Mário Beja Santos

Em "A presença portuguesa na Guiné, História Política e Militar, 1878-1926", por Armando Tavares da Silva, Caminhos Romanos, 2016, a versão das depredações praticadas pelo chefe de quadrilha Abdul Indjai e os seus irregulares e as responsabilidades do capitão Teixeira Pinto distinguem-se literalmente das acusações apresentadas por Luís Loff de Vasconcelos. Aliás, Tavares da Silva dá-nos um quadro curricular mais alargado do que o do publicista cabo-verdiano. Logo em 1906, o Governador Almeida Pessanha vê-se obrigado a refrear Abdul Indjai, este tinha servido de auxiliar na campanha do Churo. O mercenário senegalês tentara várias vezes atacar o Oio, fora sempre repelido, a sua gente de guerra fazia razias, servindo-se do nome do Governo. Em abril, Abdul é preso e o seu bando disperso, é enviado para S. Tomé. No ano seguinte, o príncipe real D. Luiz Filipe de visita a S. Tomé, concede permissão para Abdul regressar à Guiné, e este participará nas campanhas de Badora e Cuor, conta o revoltoso régulo Infali Soncó. Ao lado do Governador Oliveira Muzanty, Abdul e os seus irregulares participam nas operações, põe o régulo revoltoso em fuga e Abdul irá ser nomeado régulo do Cuor, suscitando inúmeras queixas. Em 1912, o Capitão João Teixeira Pinto chega à Guiné como Chefe de Estado-Maior, irá dedicar-se à ocupação e pacificação da província. Dá prioridade à ocupação das regiões de Mansoa e Oio, parte disfarçado em inspetor da Casa Soller, atravessa a região, sugere ao governador Carlos Pereira que se recorra a grumetes ou a irregulares. Pede-se a colaboração da Liga Guineense que mostra indisponibilidade e Teixeira Pinto aproveita-se de Abdul Indjai e dos seus irregulares, pretende atacar o Oio num flanco e o administrador de Geba, Calvet de Magalhães, atacará pelo outro.

Tavares da Silva descreve minuciosamente as operações no Oio e o pedido de paz das gentes da região de Mansabá, são presos vários revoltosos, dá-se como submetidos os Balantas do Oio. Calvet de Magalhães tem uma progressão mais acidentada, mas também chega a bom porto. O êxito das operações leva à concessão de medalhas e louvores. Pouco depois de Carlos Pereira ter deixado a Guiné começam a surgir notícias que atribuem atrocidades a Abdul e aos seus quadrilheiros no Oio. A Legação Britânica na Guiné enviara uma nota para o ministro em Lisboa informando-o do aventureiro Abdul e dos seus 400 indígenas senegaleses, que praticariam terríveis barbaridades, massacres, roubos e raptos. Troca-se inúmera correspondência entre as autoridades mas as queixas não cessam. Chega novo governador, Andrade Sequeira, que nomeia uma comissão para ir ao Oio apurar as atividades de Abdul e dos seus homens. É neste tempo que se dá o massacre do Pelotão de Polícia Rural do alferes Pedro e Teixeira Pinto segue para Bissorã e Mansoa, correm operações em Cacheu, no seu relatório ao Governador, Teixeira Pinto não deixa de observar que a revolta dos indígenas era proveniente não só do seu espírito de guerreiro mas ainda e principalmente da sua falta de educação. Temos novas queixas contra a gente de Abdul, vêm do tenente António José Teixeira de Miranda, comandante do posto de Mansabá. Mas Andrade Sequeira nomeia Abdul tenente de 2.ª Linha. Seguem-se as operações para submeter os Balantas, Abdul Indjai colabora e Teixeira Pinto pede ao governador a nomeação do chefe de quadrilha para régulo do Oio. Depois de uma pausa em Lisboa Teixeira Pinto regressa à Guiné e temos agora a Campanha de Bissau que irá levar Luís Loff Vasconcelos a escrever acusações demolidoras. É escusado procurar transparência nas argumentações utilizadas se era ou não evitável a guerra na ilha de Bissau. A Liga Guineense opunha-se tenazmente e tinha razões de sobra, o seu espírito republicano era definido por uma elite de mercadores profissionais liberais e contavam com a simpatia de gente cristianizável e em vias de alfabetização, os Papéis e os Grumetes, pedia-se tolerância e prudência, o imposto de palhota começara a ser pago e o armamento em posse dos régulos inquietos eram armas de pedreneira, argumentavam. E a operação é decidida, mesmo havendo vozes discordantes no Conselho Administrativo.

Desenrolam-se as operações em maio de 1915, Teixeira Pinto leva um fraquíssimo contingente regular, os irregulares de Abdul, é apoiado pelo régulo mandinga Mamadu Sissé e pelos Futa-Fulas de Alfa Mamadu Seilu. Não houve mistério na argumentação trocada sobre quem e porquê mandou prender os dirigentes da Liga Guineense, teria havido um prisioneiro que confessara às gentes de Abdul e quem dirigia a resistência e fornecia cartuchame eram figuras ligadas à Liga.

Tavares da Silva dá um amplo desenvolvimento às queixas de Andrade Sequeira sobre o comportamento dos auxiliares. Temos que admitir que mesmo na hipótese de haver excessos na argumentação de Luís Loff sobre as pilhagens e destruições dos quadrilheiros de Abdul, não havia relação sustentada quanto às responsabilidades da Liga Guineense, entretanto entredita e depois extinta. Houve inquestionavelmente movimentações de diferentes interesses para amnistiar ou incriminar os Grumetes, Andrade Sequeira é enérgico, manda sair da ilha os quadrilheiros de Abdul. O comportamento do governador é dúbio, informa o ministro que no atual momento político seria inexequível aniquilar de vez Abdul, havia que o desarmar. Vasco Calvet de Magalhães envia um documento a Andrade Sequeira biografando Abdul, é arrasador, escravizava os prisioneiros e diz mesmo: “Abstenho-me de me ocupar também das barbaridades que lhe deixaram praticar em Bissau e que são do domínio público, não faltando testemunhas dos factos entre os quais o de ter enterrado gentes vivas, etc.”.

E começam as acusações a Teixeira Pinto. Quanto às atrocidades, permitira, tudo vem perfeitamente documentado na obra de Tavares da Silva, e inclusive as inquirições que foram ordenadas fazer a Brito Capello, em dado passo já se insinua práticas administrativas irregulares, tudo acabará arquivado quer porque o governador Andrade Sequeira deixa a Guiné quer porque Teixeira Pinto morre em combate em Moçambique.

E assim chegamos a 1919 e à campanha contra Abdul Indjai, régulo do Oio. O Secretário-geral Caetano Barbosa informa o novo Governador Oliveira Duque das prepotências praticadas pelo chefe de quadrilha. Abdul ainda entrega armas, por exigência do Governo, mas a situação na região, mormente em Mansabá, era de nítido mal-estar entre as populações. Abdul comete o erro de querer oferecer resistência, será preso e deportado para a cidade da Praia, onde irá falecer.

A despeito de inúmera documentação existente, permanecem mistérios que só uma investigação mais apurada permitirá desvendar: quanto à fundamentação da extinção da Liga Guineense, instituição criada por republicanos; se existiram conivências de alguns dos seus membros com os revoltosos Papéis e Grumetes da ilha de Bissau; se Teixeira Pinto se permitiu a fazer vista grossa das atrocidades e pilhagens praticadas pelo chefe de quadrilha e os seus irregulares; como foi possível encontrar justificação por manter este praticante de barbaridades como régulo que agia por conta própria, saqueando, escravizando, fazendo coleta de impostos, armado até aos dentes. É uma investigação muito incómoda para este período colonial: o heroico capitão Teixeira Pinto teve de se socorrer de um chefe de quadrilha e notório criminoso; não são evidentes as ligações entre a Liga Guineense e a rebelião dos régulos da ilha de Bissau; é politicamente insustentável na segunda década do século XX uma potência colonial se apoiasse num bandido sanguinário para fazer ocupação e pacificação. Há que sair deste mar de trevas e procurar apurar o rigor da verdade.

Luís Loff de Vasconcelos
Abdul Indjai
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Nota do editor

Último poste da série de 8 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23337: Historiografia da presença portuguesa em África (320): Grande polémica (1): Luís Loff de Vasconcelos versus Teixeira Pinto e Abdul Indjai (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 8 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23337: Historiografia da presença portuguesa em África (320): Grande polémica (1): Luís Loff de Vasconcelos versus Teixeira Pinto e Abdul Indjai (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Junho de 2021:

Queridos amigos,
Permanecem muitos pontos de interrogação quanto às razões fundadas que poderão ter levado à extinção da Liga Guineense, instituição declaradamente republicana, outrora reconhecida como muitíssimo útil e que passa a ser tratada como uma entidade demoníaca por se ter oposto aos planos perpetrados pelo Capitão Teixeira Pinto para submeter os indígenas de Bissau. Como ficou demonstrado, Abdul Indjai saqueou e destruiu por anos a economia dos Papéis e dos Grumetes da ilha. Não se conhece melhor documento que rebata as teses triunfalistas pró-Teixeira Pinto que o opúsculo escrito por Luís Loff de Vasconcelos, conceituado escritor cabo-verdiano que seguramente teve acesso a depoimentos que a versão oficial silenciou.

 É inaceitável que a História da Guiné Portuguesa deixe na penumbra uma investigação determinante para se perceber não só o caráter da campanha de pacificação mas pelo facto de se dever atribuir o sucesso da mesma a um saqueador que foi régulo e déspota tão turbulento que pela segunda vez foi levado ao exílio. 

Respeitando o contraditório, vamos ver agora as teses que se opõem.

Um abraço do
Mário



Grande polémica (1):
Luís Loff de Vasconcelos versus Teixeira Pinto e Abdul Indjai


Mário Beja Santos

O papel da Liga Guineense e a sua extinção continua envolto em mistério. Tendo denunciado as atrocidades e roubos perpetrados por Abdul Indjai e os seus auxiliares ao serviço da chamada Campanha de Pacificação da ilha de Bissau, em 1915, sabe-se que alguns dos seus dirigentes foram presos, que um governador da Guiné entendeu haver motivos para o desaparecimento da Liga e entretanto um conhecido escritor e publicista nascido em Cabo Verde, Luís Loff de Vasconcelos, escreveu no ano seguinte uma demolidora catilinária que intitulou A defesa das vítimas da guerra de Bissau, o extermínio da Guiné, editado pela Imprensa Libânio da Silva, Lisboa, 1916. 

O  documento pode ser consultado na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa. Como é óbvio, dar-se-á depois direito ao contraditório, e para tal usar-se-á a obra de Armando Tavares da Silva.

O escritor cabo-verdiano dirige-se ao Ministro das Colónias, ao Governador da Guiné, Andrade Sequeira, à justiça portuguesa e ao povo português, e logo desembainha a espada:

“É triste dizê-lo, mas a Guiné Portuguesa esteve durante longos meses no domínio de uma ditadura feroz e de um temor indiscritível. Desde 1914, até à chegada do atual governador, Andrade Sequeira, não se respirava livremente nesta colónia. A Guiné era um teatro de guerra, mas não uma colónia habitável. Deu-se a invasão das hostes guerreiras de Abdul Indjai, arvorado em chefe dos irregulares e poderoso auxiliar das nossas reduzidíssimas forças militares regulares, comandadas pelo Chefe de Estado Maior, sob a razão ostensiva de se focar rebeliões que não existiam senão na fantasia e no cérebro doentio e ardente de alguns megalómanos, e ainda sob o fundamento da resistência dos indígenas em pagar o imposto de palhota.

Abdul Indjai aproveitou-se dessas incursões militares; as importantes presas de guerra eram para ele e seus guerreiros, recrutados aqui e acolá, compostos da pior gente de todas as raças da Guiné. Era uma quadrilha de bandidos, assolando e saqueando o território ocupado por outras tribos, mascarados e disfarçados em auxiliares das nossas forças!

 Quadrilha aguerrida, composta também de muitos Torancas (indígenas da colónia francesa) profissionais da guerra e do saque. Abdul Indjai recorreu a um ardil: declarou-se que os Papéis não acudiam ao apelo da civilização, à subordinação ao governo, à entrega de armas e ao pagamento do imposto de palhota e que, portanto, estavam em estado de rebelião, a que era indispensável pôr termo”.

Loff de Vasconcelos (na foto à direita) elabora a minuta de agravo, apresenta a relação dos acusados como autores e chefes do incitamento à chamada rebelião dos Papéis de Bissau, e prossegue a sua perlengada:

“A história das operações militares dirigidas contra os indígenas da ilha de Bissau, em maio de 1915, é fácil fazer-se e mais fácil ainda de compreender-se. Pela portaria de 13 de maio de 1915, do governador Oliveira Duque, foi imposto aos indígenas da ilha de Bissau a entrega de armas e o pagamento do imposto de palhota. Atribuiu-se que fizeram desacatos e não permitiram no arrolamento, desrespeitando a nossa soberania, pelo que foi determinado a criação de uma coluna de operações para submeter os indígenas rebeldes de Bissau".

Ora, diz Loff de Vasconcelos, as coisas passaram-se de modo muito diferente. Os Papéis pegaram em armas, não por espírito de rebelião, mas porque suspeitavam que Abdul Indjai conspirava contra eles, intrigando-os com as autoridades da colónia, interessava-lhes provocar a guerra para saquear. Abdul foi o chefe de guerra, à frente de 1500 irregulares, incluindo 200 cavaleiros. 

Não se enganaram na suspeita; enganaram-se, porém, na vitória que esperavam alcançar contra esse temível e temido inimigo da sua raça e a derrota sofrida custou-lhe tudo o que tinham em gado e mantimentos, foi parar às mãos da gente de Abdul. Deu-se este absurdo: uma das razões da guerra foi a recusa do pagamento de imposto de palhota. Ora, tendo-lhes sido confiscados os bens perderam os recursos – os meios prejudicaram os fins.

Esta guerra fez-se não para servir os interesses da colónia mas pura e simplesmente e com a anuência inqualificável do Governador Oliveira Duque para vingar a morte do seu filho. 

E Loff Vasconcelos traça-nos o retrato de Abdul Indjai: é um emigrado de Ziguinchor, foi para Cacheu e Costa de Baixo, fez comércio e conseguiu ser um pequeno cliente da Casa Alemã Soller, ia pagando os calotes com as cabeças de gado que foi apresando na guerra aos Balantas e no Oio. Descreve episódios de negócios frustrados, vivia em Geba quando ocorreu que os Oincas não quiseram satisfazer o pagamento do imposto de palhota, ele então ofereceu-se para recolher o imposto, levou homens armados, nem tudo correu bem, conseguiu escapar milagrosamente. Na região de Geba roubava, pilhava e atacava caravanas. O comandante de Geba deu-lhe voz de prisão, Abdul foi levado para Bissau e deportado para São Tomé pelo governador Oliveira Muzanty. Em São Tomé foi perdoado pelo príncipe real Luís Filipe.

Loff de Vasconcelos acrescenta ainda outros dados biográficos que ele considera eloquentes. Em 11 de maio de 1915, dois dias antes da declaração de guerra de Bissau, Abdul era investido no cargo de régulo do Oio – falamos de um homem que tinha sido deportado para São Tomé em 1906 como inconveniente à tranquilidade da província e cujas tropelias chegaram a ameaçar as nossas boas relações com as autoridades estrangeiras vizinhas.

 Em 3 de junho de 1915, Teixeira Pinto e a força maioritariamente constituída pelos auxiliares e regulares invadiu as populações de Antim, Bandim e Antula. Seguiu-se carnificina e fuga; todo o rico e extenso território habitado pelos Papéis está hoje na maior desolação e miséria. Calcula-se que cerca de cinco mil cabeças de gado vacum foram apresados pelos irregulares. E Loff de Vasconcelos assegura que a maioria da população civilizada da Guiné foi contrária a esta guerra. E segue-se a parte jurídica.

Logo a declaração do prisioneiro de guerra, António Gomes, que dissera que a rebeldia do gentio Papel e dos Grumetes em não prestar obediência ao Governo se devia aos Grumetes Grandes que pertenciam à Liga Guineense – é este o único depoimento concreto em todo o monstruoso processo, em que foram inquiridas 45 testemunhas. 

Ora um prisioneiro de guerra que se presume estar em estado de coação, o seu testemunho não tem valor jurídico. Foram proferidas acusações gravíssimas à Liga Guineense. Loff mostra carta de Teixeira Pinto com data de 9 de março de 1913 em que se exalta a página brilhante escrita pelos Grumetes de Bissau para a consolidação da soberania portuguesa, aludindo ao castigo infligido a Balantas e Felupes em 1912. E Loff diz que o governo se aproveitou dos serviços da Liga Guineense para seus fins, sempre que deles carecia chamando-lhes prestimosa Liga, segue-se a petição de queixa e participação contra o capitão Teixeira Pinto e Abdul Indjai, vem o rol dos queixosos acusados de instigadores da revolta dos Papéis de Bissau, e Loff argumenta:

“Como poderiam os agravantes estar implicados num crime de rebelião se eles sempre se esforçaram para evitar essa desastrosa guerra de Bissau como provam alguns documentos? Não cabe na mente de nenhum cérebro regularmente organizado e regulamentado a suposição de que os agravantes poderiam ter tido a vaidade de instigar essa guerra? 

Era ao agravante António Teixeira, um velho respeitável, caráter pacífico e concentrado, exemplaríssimo chefe de família, amigo dos portugueses e comerciante abastado, a quem poderia convir a guerra de Bissau?

 Era Augusto Domingos da Costa, antigo empregado e tesoureiro de alfândega, louvado pela coragem e sangue-frio com que resistiu às ameaças dos gentios que em grande número assaltaram o Posto de Arame, que teria interesse na revolta dos Papéis? 

Era Gomes Barbosa, Alvarenga, Robalo, Gomes e Lopes, prestimosos cidadãos, que têm prestado relevantes serviços a esta colónia, que desejariam a rebelião dos Papéis e a guerra de Bissau? 

Certamente que não. Todos eles tinham interesse no contrário, como sempre manifestaram. O culpado é quase sempre aquele a quem o delito aproveita. Procurem-se os verdadeiros culpados, hão de encontrá-los – que não os agravantes. Os hoje acusados poderão converter-se amanhã em acusadores”.

Para Loff de Vasconcelos, a declaração do estado de sítio e organização da coluna para submeter os chamados rebeldes de Bissau não era mais do que a continuação do plano de guerra de 1913. Mas os tempos tinham mudado. Em maio de 1915, uma grande parte das povoações de Bissau já tinha começado a pagar o imposto de palhota e os régulos pediam insistentemente ao governo para não lhes fazer a guerra e se não pagavam mais foi porque lhes diziam que quem não pagasse teria a visita de Abdul Indjai. 

Era público e notório que a Liga Guineense se opunha tenazmente à guerra. Depois de descrever a calamidade em que ficara a ilha de Bissau, Loff junta à lista dos testemunhos dos atos de barbaridade praticados e vai acusar diretamente Teixeira Pinto. Ele era comandante das operações militares, organizou um inquérito na povoação de Bissau e na vila de Bolama, levantando de motu proprio autos de investigação, procedendo a buscas e apreensões, requisitando e ordenando capturas de pessoas não militares, usurpando as funções de agentes da polícia judiciária militar. Mandou prender os queixosos, deixando de cumprir, mesmo que tivesse competência legal para o fazer, os preceitos correlativos do Código do Processo Criminal Militar.

É este o escopo essencial do documento elaborado por Loff Vasconcelos. Convém agora ouvir argumentação que se opõe e na sua sequência damos a palavra à argumentação utilizada por Armando Tavares da Silva na sua obra Presença Portuguesa na Guiné: história política e militar, 1878-1926.

(continua)

João Teixeira Pinto
Abdul Indjai
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Nota do editor

Último poste da série de 1 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23318: Historiografia da presença portuguesa em África (319): “História das Colónias Portuguesas, Obra Patriótica sob o Patrocínio do Diário de Notícias", da autoria de Rocha Martins, da Academia das Ciências de Lisboa; Tipografia da Imprensa Nacional de Publicidade, 1933 (Mário Beja Santos)