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segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Guiné 63/74 - P16804: (De)caras (55): Os picas e guias das NT, Malan Djai Quité e Mancaman Biai, que eu conheci, no Xime, em 1972 (António J. Pereira da Costa, cor art ref)



Guiné.Bissau > Região de Bafatá > Xime > Novembro de 2000 > Em primeiro plano, o Lúcio [Damiano Monteiro da] Silva, natural de Vizela,  ex-1º cabo,  CART 3494  (Xime e Mansambo, dez 1971 / abr 1974)... (Aliás, era conhecido por "Vizela".)

Quem seria, entretanto,  este velho habitante do Xime, por detrás do Lúcio Silva, envergando aquilo que se afigura ser uma velha farda ou do FARP / PAIGC  ou do antigo exército português ?... Ao fim de mais de 4 décadas de independência, está praticamente extinta a geração de guineenses que combateu na guerra. ao lado de (ou contra) o PAIGC...


Guiné.Bissau > Região de Bafatá > Xime > Novembro de 2000 > Da margem esquerda (Xime) à margem direita (Enxalé): a canoa ainda continua a ser um meio fundamental de "cambança"



Guiné.Bissau > Região de Bafatá > Xime > Novembro de 2000 > Pirogas em seco, e os "eternos meninos do Xime"...


Guiné.Bissau > Região de Bafatá > Xime > Novembro de 2000 > "Manga de ronco": a chegada da caravana dos "tugas, que veio de longe, do Porto.,..


Guiné.Bissau > Região de Bafatá > Xime > Novembro de 2000 >  O Rio Geba...Do outro lado, a margem direita, onde ficava a bolanha e a tabanca do Enxalé.


Guiné.Bissau > Região de Bafatá > Xime > Novembro de 2000 > Restos do cais acostável por onde, até ao fim da guerra, em 1974, passaram milhares e ,milhares de homens em armas... Já na altura, em novembro de 2000, o cais do Xime era uma desoladora ruína... Com o rio cada mais assoreado, deixou de ser praticável a navegação no Geba Estreito, e nomeadamente a partir de Bambadinca... O transporte dos produtos do leste faz-se agora por estrada...


Fotogramas do vídeo A Outra Guiné (The Other Guinea), de Hugo Costa, legendado em inglês. Vídeo (9' 27''). Ficha técnica: produção: Universidade do Porto, 2012; realização: Hugo Costa e Tiago Costa: diretor de fotografia: Hugo Costa; som: Hugo Costa... Duração: 9' 27''.

Cortesia de Albano Costa e Hugo Costa (2013). Edição e legendagem das imagens: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné
.

1. Nesta expedição, por terra, à Guiné-Bissau,  integrou-se um grupo do Norte, incluindo o Albano Costa, ex-combatente em Guidage [ou Guidaje]  e seus amigos, todos antigos combatentes na Guiné,  além do seu filho, Hugo Costa, realizador deste vídeo.

Recorde-se que o Albano Costa já era fotógrafo (profissional) quando fez a sua comissão de serviço, como 1º cabo at inf, na CCAÇ 4150 (Guidaje, Bigene, Binta, 1973/74). A sua paixão pela fotografia fez com que ele seja um dos nossos camaradas com mais e melhor documentação sobre a Guiné, de ontem e de hoje.

Em novembro de 2000, quebradas as últimas "resistências psicológicas", ele voltou à Guiné, agora como simples turista, revisitando sítios por onde estivera vinte e seis anos antes e conhecendo muitos outros de que só ouvira falar (por exemplo, o Xime e parte da  zona leste)...

Nessa altura, juntamente com o filho Hugo Costa (, nmascido em 1978, e então finalista de um curso de comunicação social), e mais um grupo de camaradas, ex-combatentes (, o Lúcio, Casimiro, Armindo, o Carlos, o Manuel Costa, o Xico Allen, etc.), o Albano fez um verdadeiro safari turístico-sentimental, durante 15 dias, de 11 a 26 de Novembro de 2000, percorrendo a Guiné-Bissau, de lés a lés, em dois jipes. Pelo meio apanharam um golpe de estado.

Dessa aventura ficou um extenso registo, em vídeo,  de que nos  chegou, em 2005, uma cópia, em 4 DVD, por mão do Sousa de Castro, o nosso grã-tabanqueiro nº 2. É um excelente trabalho de seis horas, sendo a realização, a insonorização e a montagem do Hugo Costa. Sabemos que o Hugo ficou, entretanto,  com o negócio do pai, dando assim  continuidade a uma empresa que tem a idade de 3 gerações, a Foto Guifões [vd, aqui a página do Hugo no Facebook] (*)



2. Dois preciosos comentários do António J. Pereira da Costa, um  ao poste P16793 (**). e outro ao poste P16772 (***), que nos obrigam (ou convidam...) a reler o notável retrato psicoprofissional que ele fez, em tempos, dos dois picadores e guias do Xime, o  Malan Djai Quité e o Macaman Biai, no poste P5803, da sua série "A minha guerra a petróleo" (****).


2.1. O único sítio onde tive conhecimento que havia guias/picadores, credenciados como tal, foi no Xime. Creio, pois, que se tratava de uma situação pontual. (*)


Tinha dois - o Malan Djai Quité e o Macaman Biai - que era civis assalariados. Não me recordo por quanto e, como já disse, estive próximo de "cortar a colecta" ao Macaman. A detecção de uma mina "reforçava" o pecúlio auferido e aqui recomeçam as suspeitas. Como era possível detectar minas numa zona onde, embora houvesse uns restos de picada, se andava, muitas vezes, a corta-mato, em terrenos de lala? É que bastava passar uns metros mais ao lado e não se detectava a mina... E o o que fazia com que o PAIGC fosse pôr minas num local onde as NT tinham percursos repetidos mas muito aleatórios? Enfim, dúvidas que devia ter tido antes...

O levantamento ficava a cargo do especialista das NT, como verifiquei.

Teoricamente alternavam na realização dos patrulhamentos. Como o Macaman começou a "alternar" pouco, desconfiei e, pelos vistos, com razão. Todavia, "a História o absolverá", como já disse noutros posts em que procurei analisar a complexidade da situação vivida por aqueles que ficavam e ali viviam depois da saída de cada unidade e sem qualquer alteração da situação que se vivia.

Sobre o Malan Djai Quité, ferido na primeira emboscada na Ponta Cóli, mas que, constava de relatório da acção, tinha feito fogo com duas (!) G-3 e de pé, já me pronunciei. Terá apostado no cavalo errado e pagou, caro(?),  a sua fidelidade. Sei que tinha a mulher em Demba Taco o quer seria estranho, se não fosse na Guiné. Poderá ter desaparecido a partir daí...
Vivia num abrigo construído por si mesmo e às vezes parecia ter problemas mentais, como naquela noite em que vestido apenas com uma "ridia" (rede) foi a casa da viúva Maria. O burburinho inerente e ficou-se por aí. 

Era um antigo lutador de luta mandinga e levou ao tapete o Costa - lisboeta e empregado do Sol-Mar - com bastante facilidade. Um dia perguntei-lhe por um chefe guerrilheiro que tínhamos informações que andava por ali, Tóda Na Fenba.
Respondeu:
- O gajo cá presta. Tem cu pequenino de Malan. Um dia jogámos porrada e Malan ganhou.


2.2. Apanhei uma situação [, na 2º metade do ano do 1972] em que já não havia duplo-controlo. Havia ligações familiares e de amizade entre ambas as partes. (**)

Recordo-me que a LDG afundou um vez uma canoa, na curva para o Geba Estreito. Foram salvos e vinham num estado miserável quando me foram entregues no Xime, Esfomeados e rotos,  e um deles era amigo do chefe da tabanca. Tive para com eles as atitudes regulamentares, mas não creio que ficassem por muito tempo. 

Quem estava para Sul do Xime ou tinha feito ou fora obrigado a fazer as suas opções. Todavia, a luta da "guerra a petróleo" era sempre pela população. Sei, por outras vias que não é possível à população "em geral" fazer opções nesta guerra ou numa ocupação de território, por exemplo. 

No caso do Mancaman aceitarei que numa primeira fase ele tivesse querido ficar com os portugueses. No fundo, na óptica dele, eram a facção com a qual tinha a ganhar. Porém, com o evoluir da guerra, ter-se-á começado a aperceber que as coisas não terminariam bem e até terá sido "avisado" de que as coisas, quando a guerra acabasse, correriam mal para "as cores dele".

Que fazer nesse caso? Filosofar e tentar jogar com um pau de dois bicos. Pelos vistos saiu-se bem. Que seja feliz!


3. Comentário do editor:

O primeiro comentário do António J. Pereira da Costa, surge na sequência de um outro comentário do editor em que se dizia:

 "Temos uma dívida de gratidão aos nossos guias e picadores, guineenses... Sem eles, as nossas operações teriam sido bem mais penosas e mortíferas... E alguns pagaram bem caro a sua dedicação às NT... Eram simples civis, assalariados.pagos à peça (mina detetada e levantada, picagem, serviço de guia...). Precisamos de conhecer melhor o seu trabalho no TO da Guiné. Temos falado pouco deles...Na realidade, pouco ou nada sabíamos deles"...

Retomamos aqui um texto, já antigo, mas de antologia, e que como tal merece ser relido, do Pereira da Costa (que foi um dos comdts da CART 3494, no Xime, na 2ª metade do ano de 1972), sobre os seus dois guias picadores (****).
_________________


(***) Vd. poste de 29 de novembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16772: (De)Caras (63): Em homenagem ao António Vaz (1936-2015), que nos deixou há um ano na véspera de natal: "os guias e picadores do Xime: Seco Camará 'versus' Mancaman Biai"

(****) Vd. poste de 12 de fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5803: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (2): Os guias e picadores, mandingas, do Xime, Malan e Mancaman: duas maneiras diferentes de ser e de estar na guerra...


(..:) Passei ali, [no Xime,]  aqueles que, ainda hoje, considero os cinco piores meses da minha vida. Por razões que não descortinei, nessa altura, a CArt 3494 utilizava dois guias-picadores para as suas operações e que eram pagos como tal: o Malan Djai Quité e o Mancaman  [Biai](...). Teoricamente guiariam alternadamente as forças que saíssem, procurando também detectar minas, o que lhes asseguraria um pequeno pecúlio, creio que de cerca de mil escudos, por cada mina anti-pessoal e dois contos, por cada mina anti-carro.

Estas, porém, o inimigo não tinha muito motivo para utilizar, uma vez que a tropa saía sempre em direcção ao Sul e apeada, considerando que nessa direcção não tínhamos qualquer aquartelamento até à curva do Corubal. Nunca entendi bem como é que numa área onde andávamos a corta-mato ou por trilhos pouco batidos, se poderiam colocar minas com boa possibilidade de serem accionadas. O inimigo poderia colocá-las, mas nada lhe garantia que iríamos passar naquele trilho e não a todo-o-terreno ou não abriríamos outro, alguns metros mais ao lado, que a Natureza pressurosamente iria fechar nos dias seguintes.

Detectar minas parecia-me uma coisa problemática, a menos que se soubesse onde íamos passar e, forçosamente com pouca antecedência, ali as colocassem. Efectivamente, da antiga estrada para a Ponta Varela e Ponta do Inglês restava pouco mais de um quilómetro. Depois, o terreno era "todo ou quase todo igual" e a progressão era feita a todo-o-terreno, com uma ou outra referência. Claro que poderíamos descer pela margem do rio, tendo-o sempre à vista e ao nosso lado direito, o que facilitava o movimento e dava a possibilidade de nos opormos às travessias, que, às vezes o inimigo tentava mesmo à luz do dia. De qualquer modo, uma coisa era certa: o caminho que seguiríamos entrava no âmbito do cálculo das probabilidades, um a dois quilómetros depois de sairmos do arame farpado.

Eram bem diferentes os dois guias, embora fossem ambos mandingas.


O Malan [Djai Quité], mais velho, 
rondaria os cinquenta e cinco anos... 


Era, portanto velho, no contexto da população, mas exibia os restos de uma constituição física notável que lhe permitia realizar sozinho trabalhos agrícolas, recorrendo a alfaias tradicionais. Usava uma espécie de remo, com cerca de dois metros de comprido e, espetando a pá no solo com uma inclinação inferior a 45º, ia removendo pasadas de terra que punha para o lado, abrindo uma leira onde plantava arroz.

Outras vezes, pescava com uma espécie de rede (uma ridia, como ele dizia) e apanhava uma espécie de lagostins cuja cabeça tinha o comprimento quase igual ao do corpo. Eram saborosos e, infelizmente, poucas vezes apanhava mais de dez. Estou em crer que seria uma espécie de lagostins adaptados à água salobra, muito semelhantes aos que, por cá se desenvolvem nos arrozais.

O Malan fumava um daqueles cachimbos de madeira que enchia com toda a calma, dobrando cientificamente a folha do tabaco. Era um trabalhador infatigável e um guia de confiança. Era casado com uma mulher, mas vivia sozinho num abrigo minúsculo, construído por ele. Aproveitava o reabastecimento às auto-desfesas para visitar a mulher, em Demba-Taco. Levava-lhe dinheiro e alguns produtos da terra e eu nunca entendi de que é que uma mulher bastante mais nova que ele, vivia numa tabanca tão pequena e com tão poucos recursos.

Ao que me foi dito, durante os ataques com armas pesadas, sentava-se tranquilamente em cima do abrigo a fumar o cachimbo e explicava que "O homem 'mure', quando 'mure'!" e, por isso, não tinha grande necessidade de se abrigar. Ao que parece teria problemas sexuais de impotência, mas também de desejo.

O alferes Pinho, da Artilharia,  contou-me que um dia, durante uma operação, resolveu pôr-se a gritar no meio da bolanha de Lântar: "A tabanca matou o meu caralho!", enquanto mostrava a "prova do crime". Durante o meu tempo, só recebi queixa da Maria, viúva de um furriel dos comandos, e que vivia com um filho de quatro ou cinco anos.

Uma noite, o Malan resolveu visitá-la. Creio que não terá sido bem recebido ou nem sequer tolerado nas proximidades. Depois... uma intervenção da vizinhança em apoio da Maria resolveu o problema. No dia seguinte, ela veio apresentar queixa e eu lá tive que "lavar o cérebro" ao Malan. (...)

Um dia recebemos informações de que Tóda Nafemba e o Biota Tanhala andavam pelas redondezas e preparado-se para fazer das suas. A notícia (A-1, como é de calcular) dizia que um deles era natural do Xime. Convoquei o Malan e perguntei-lhe se sabia quem era. Respondeu-me que sim e acrescentou:
- Esse gajo cá presta e tem cu pequenino de Malan.

Intrigado quis saber porquê. Fiquei então a saber que o Malan tinha sido campeão de uma espécie de sumo, mas praticado com algo parecido com umas cuecas-fio-dental, em cabedal grosso. Ambos os contendores se agarravam pela cintura e procuravam, aplicando rasteiras, derrubar o adversário. Nos bons velhos tempos do Malan tinham competido e o agora guerrilheiro sempre fora levado de vencida. Mesmo sem o equipamento adequado, o impedido da messe, o atirador Costa, desafiou-o para um combate ali e naquele momento. O Costa, empregado de mesa do Solmar, em Lisboa, era um malandreco da cidade e julgou que podia "dar baile" ao velhote, mas como "quem sabe não esquece" desistiu à segunda queda.

Nas conversas que tive com ele, o Malan pareceu-me verdadeiramente infantil. Não estava sequer capaz de entender o mundo para além do que via e sentia. Para ele, a vida não ia além da sua tabanca e da natureza que a rodeava, do trabalho na terra ou no rio e, agora, porque era preciso, nem ele sabia bem porquê, fazia a guerra.

Não creio que odiasse o  Inimigo ou que tivesse qualquer assomo de patriotismo, na sua acepção mais corrente, naquele tempo. Julgo que lhe tinham dito que os turras eram maus e que ele tinha que guiar a tropa contra eles. Além disso, sempre ganhava dinheiro o que terá sido uma promoção social a que se foi habituando. A sua vida repartia-se quase exclusivamente pela sua actividade como guia-picador e os trabalhos que lhe asseguravam a subsistência.

"Este gajo é puro!", dizia o alferes Gomes depois de mais uma conversa metafísica entre ambos. Falavam de Deus (ou dos Irãs), da Natureza e dos hábitos dos Mandingas. A argumentação do Malan era pobre, mas não havia quem o demovesse das suas convicções acerca da sua fé ou da estrutura social e valores éticos dos Mandingas, que ele aceitava, sem hesitar. Enfim, seria aquilo a que poderíamos chamar a encarnação do "Bom Selvagem". Já perguntei por ele à malta que lá foi matar saudades. Ninguém sabe qual foi o seu destino, após a independência, o que não é nada bom sinal... Velho, renitente e tendo colaborado muito com os colonialistas, não lhe auguro um bom destino...


O outro guia 
era o Mancaman [Biai]...

Claramente mais novo que o Malan, era alto, bastante magro e vestia sempre à moda muçulmana tradicional. Falava baixo, parecia medir as palavras ou digerir as perguntas que lhe fizessem ou as deixas do interlocutor. Só depois de ter estudado bem o que lhe fora dito, respondia. Dir-se-ia que não queria ser apanhado em falso ou em contradições. Esfingicamente fechado,  era-me difícil saber o que pensava.

Pouco depois de eu ter chegado, começou a pretextar motivos para não guiar a companhia. Nunca entendi aquele volte face que coincidiu com a minha chegada. Presumo que terá pensado que eu imprimiria outra orientação à actividade operacional. Parecia estar farto de guerra e, por isso, procurava sair dela ou, no mínimo, reduzir a sua participação, a pouco e pouco. 

Creio que descria já de uma "esmagadora vitória das NT" e, sentenciado a viver naquela terra, não vislumbrava uma saída para o impasse em que se encontrava. Claro que o dinheiro que ganhava era-lhe fundamental para a sua sobrevivência, mas comprometia-o com algo de que queria afastar-se. Qualquer que fosse a sua opção teria custos. Posto perante a evidência de que tinha de continuar a participar nas acções da companhia, cedeu, com relutância e reatou a sua colaboração.

Confesso que desconfiei dele. Todavia, pensando melhor, comecei a compreender a sua indecisão e até angústia. Ele deveria estar a ver para o futuro. É que, depois de junho de 1972, as populações e os militares do recrutamento local, ou mesmo simples apoiantes da acção do Exército viviam, diariamente e há vários anos, o desgaste da guerra e, numa observação simples, podiam aperceber-se de que os campos estavam cada vez mais extremados e que a guerrilha, se não estava a ganhar a guerra, também não dava sinais de regredir, havendo até sítios onde já há alguns anos não era possível ir sem que isso implicasse uma operação militar de custos mais ou menos elevados e mais-valias duvidosas. É que, ir a um dado local só por ir não faria sentido. Permancer lá, teria custos consideráveis. Restava a última hipótese que era normalmente a mais corrente: ir, destruir o que houvesse e matar quem se revelasse, uma vez que a "população sob duplo controlo" era cada vez mais um mito.

Que é que um cidadão guineense poderia fazer, nesta situação? Não tenho dúvidas de que os mais atentos começavam a interrogar-se acerca do modo como tudo aquilo iria terminar. Creio que alguns começavam a prever que o fim seria certamente dramático. É dificílimo ter de optar em tempo de guerra ou grave convulsão. Porém, a vida real obriga a que essa opção seja uma escolha imediata e com reflexo na acção diária. A História cobra sempre dividendos aos vencidos de um fenómeno social e o cansaço da guerra, aliado à falta de êxitos claros da parte que apoiavam, dava-lhes a indicação de que maus tempos aí vinham. Só não sabiam quando.

A tabanca do Xime estava situada numa posição excêntrica que permitia que fosse abordada sem que o pessoal vigilante da companhia fosse alertado. Em noites de Lua-nova era mesmo difícil detectar movimentos para além do arame farpado. Daí até ao Poindom não havia ninguém. Depois, não sei. Estimo que as populações sob controlo do inimigo se dispersariam até à curva do Corubal. Não tenho elementos para dizer se e onde o inimigo residia naquela área.

Parecia que ali havia uma Terra de Ninguém. O PAIGC controlava as populações e o terreno para Sul do Poindom. Para Norte e até à linha definida pelas três tabancas (Amedalai, Taibatá e Demba-Taco), o domínio parecia ser nosso. Quase de certeza que o Mancaman não trabalhava para o PAIGC, mas tudo indica que sentiria uma certa pressão para reduzir a sua colaboração connosco e, se bem observado por alguém infiltrado na tabanca, poderia dar indícios utilíssimos, mesmo involuntariamente.

É o retrato que tenho esboçado destes dois homens que, em última análise, reagiam como podiam a uma situação social e política que martirizava a sua terra. Um nem sequer questionava a escolha que tinha feito e, como é habitual, terá sido trucidado pelos acontecimentos. O outro via-se entre dois fogos, sem possibilidade de optar, mas imaginando que se aproximavam tempos aos quais, no mínimo, teremos de chamar difíceis. Hoje podemos culpá-los de terem feito escolhas más. Será a opinião dos teóricos detentores da solução depois da poeira do cataclismo ter assentado. Hoje explicam como se deveria ter feito, mas é como se resolvessem um problema cuja solução lhes foi fornecida pelo desenrolar da História. (...)


quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Guiné 63/74 - P11169: (In)citações (48): Vídeo "A Outra Guiné / The Other Guinea", de Hugo Costa e Francisco Santos, ou o regresso ao passado do Albano Costa, ex-1º cabo, CCAÇ 4150 (Guidaje, Bigene, Binta, 1973/74)





A Outra Guiné (The Other Guinea), legendado em inglês. Vídeo (9' 27''). Cortesia de Albano Costa  e Hugo Costa  (2013)

Ficha técnica: produção: Universidade do Porto, 2012;  realização:  Hugo Costa e Tiago Costa: diretor de fotografia: Hugo Costa; som: Hugo Costa... Duração: 9' 27''.


Sinopse: Albano e um grupo de ex-combatentes voltam à Guiné-Bissau, 26 anos após o fim da guerra. Deslocam-se de jipe pelas diferentes localidades, contactando os locais, ajudando e travando amizades. O objectivo é rever o passado, encerrar um capítulo e conhecer uma outra realidade da Guiné.

(Albano and a group of ex soldiers go back to Guinea-Bissau, 26 years after the war ended. They travel by jeep, visiting different places, and contacting the locals, helping them and making friends. Their purpose is to revisit the past, closing a chapter and discovering a different reality in Guinea.)
— com Albano Costa em Guine-Bissau. (*)



1. O Albano Costa já era fotógrafo (profissional) quando fez a sua comissão de serviço, como 1º cabo, operacional, na CCAÇ 4150 (Guidaje, Bigene, Binta, 1973/74).

A sua paixão pela fotografia fez com que ele seja um dos nossos camaradas com mais e melhor documentação sobre a Guiné, de ontem e de hoje.

Em Novembro de 2000, quebradas as últimas "resistências psicológicas", ele voltou à Guiné, agora como simples turista, revisitando sítios por onde estivera vinte e seis anos antes e conhecendo muitos outros de que só ouvira falar (por exemplo, a zona leste)...

Nessa altura, juntamente com o filho (finalista de um curso de comunicação social), e mais um grupo de camaradas, ex-combatentes (, o Lúcio, Casimiro, Armindo, o Carlos, o Manuel Costa, o Xico Allen, etc.),  o Albano fez um verdadeiro safari turístico-sentimental,  durante 15 dias, de 11 a 26 de Novembro de 2000, percorrendo a Guiné-Bissau, de lés a lés, em dois jipes. Dessa aventura ficou um extenso registo, em vídeo de que me chegou, em 2005,  uma cópia, em 4 DVD, por mão do Sousa de Castro, o nosso grã-tabanqueiro nº 2. É um excelente  trabalho de seis horas, sendo a realização, a insonorização e a montagem do Hugo Costa.

Nessa viagem o Albano tirou muitas e ótimas fotografias, que eu tive o privilégio de ver, em Guifões, Matosinhos, no seu estabelecimento comercial... Na altura ele explicou-me por onde andou:

(...) "Eu tive o prazer de poder ir 15 dias à Guiné, como já sabes, e conhecer localidades que só conhecia de nome quando me encontrava com colegas que diziam aonde tinham estado, e eu agora passei por muitas delas: Mansoa, Jugudul, Bambadinca, Xime, Mansambo, Xitole, Saltinho, Aldeia Formosa, a famosa ponte Balana, Buba, Guilege, Gadamael Porto, Chogué, Empada, Catió Canjabari, Jumbembem, Farim e muitas, muitas mais". (...)

Conheci o Albano, o "fotógrafo de Guifões", no Natal de 2005, na Madalena, Vuila Nova de Gaia. É um homem afável e bem disposto. Mandou-me depois umas tantas fotos, para eu matar saudades de Bambadinca e do meu Rio Geba... Aliás, em quinze dias ele e os seus camaradas foram a quase todo o lado e ainda apanharam um golpe de Estado pelo meio, o do Ansumane Mané!...  [Neste vídeo, vemos apenas a sua passagem pelo Xime, por Bissau - antigo hospital militar, HM 241 - e Cofeu e Guidaje; há, nomeadamente, em Bissau, vestígios ainda recentes da guerra civil de 1998/99; a visita às ruínas do antigo HM 241 é uma verdadeira dor de alma...].

As primeiras fotos chegaram-me com a seguinte nota que eu achei uma delícia: "Estou a enviar nove fotos tiradas em cima da ponte sobre o rio Geba, à entrada para Bambadinca... As legendas, bem, até nem é preciso, podem ficar no imaginário de cada um....Mas,  se quiseres,  ilustrar com texto de tua autoria, estás à vontade, para apróxima eu envio-te mais, vai aos poucos"...

Ao longo dos anos temos publicado muitas fotos dele e do filho (que voltou à Guiné-Bissau em 2006, numa expedição organizadas pelo Xico Allen)(**). Ao vê-las, eu tive a estranha sensação de que o tempo nada mudara: e no entanto, a Guiné-Bissau é hoje um país independente... [Eu próprio voltaria lá, em 2008]... Pelo menos, a terra continua vermelha, o Rio Geba corre limpo para o mar, as crianças parecem ser felizes e têm sonhos como todas as crianças do mundo, o peixe sai dos rios e entra nas bolanhas, há velhas pirogas abandonadas nas margens e os toca-toca andam cheios de gente viva e alegre pelas estradas esburacadas da Guiné profunda, longe do bidonville que é hoje Bissau...

Deixem-me dizer-vos quanto adorei ver este vídeo de 9 minutos. O Albano é um pai babado e tem razões para isso. O Hugo é um rapaz de grande sensibilidade e talento e dá aqui, mais uma vez, mostras do grande amor que tem pelo seu velhote.

Parabéns, Albano, Parabéns, Hugo. Temos arranjar maneira de divulgar, através do blogue, as outras 6 horas de vídeo que o Hugo fez em 2000 (e de que presente vídeo é apenas uma amostra, se bem que mais profissional)... A grande maioria dos nossos camaradas nunca irão poder voltar à Guiné para fazer a catarse ou simplesmente para matar saudades como tu, Albano, meu bom amigo e camarada...

Façam, entretanto,  o favor de consultar a página no Facebook do Hugo Costa:

(i) Designer de Imagem
(ii) Vive em Porto
(iii) Nasceu a 1 de Setembro de 1978
(iv) Sabe língua portuguesa, língua inglesa, língua castelhana e 3 outros
(v) 2012 : Concluiu os estudos na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto
(vi) 2006:  Concluiu os estudos na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto;
(vii) 2005: Concluiu os estudos na École Régionale des Beaux Arts de Saint Etienne, França;
(viii) 1999: Concluiu os estudos em ESAP - Escola Superior Artística do Porto

O Albano Costa também tem página no Facebook. (LG)

quinta-feira, 2 de março de 2006

Guiné 63/64 - P581: Os meninos do Geba: uma desabafo, melancólico (Albano Costa)

Guiné- Bissau > Saltinho > 2000 > Lavadeiras do Rio Corubal © Albano Costa (2006)


Texto do Albano Costa:

Meu caro amigo Luís Graça

Só neste momento me foi possível ver as fotos (1): as legendas estão perfeitas e o resto também... Realmente neste mundo em que estamos a viver, às vezes eu penso como aqueles meninos são tão felizes!... Eles não vão à escola, é verdade, o que é pena... Mas naquela situação eu pergunto: para quê?... E logo penso que pena eu tenho de estes meninos não terem uma escola...

É tudo muito complicado, até no nosso Portugal: tantos meninos que um dia se transformam em jovens adultos, a esforçarem-se tanto a fazer os seus cursos e um dia quando imaginavam que iriam realizar o seu sonho, vai tudo por água abaixo, que se vêem sem futuro para o seu curso... E aí eu penso, ao menos os meninos na Guiné neste sentido não têm este trauma de terem andado na escola e de quase nada servir-lhes isso..

Isto é só um desabafo, melancólico, porque a escola é muito importante, mas é também importante fazer uma «estrada» para os futuros homens de amanhã terem por onde caminhar...
(...) Eu vou arranjar mais umas fotos para te enviar e para fazeres delas o que vem entenderes na ilustração do teu «nosso» blogue, que está a tomar proporções enormes, e ainda bem.

Um abraço,
Albano
_________

(1) Vd. pots de 27 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXCII: Album fotográfico do Albano Costa (1): O Geba

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2006

Guiné 63/74 - P575: Album fotográfico do Albano Costa (1): O Geba

O Albano Costa já era fotógrafo (profissional) quando fez a sua comissão de serviço, como 1º cabo, operacional, na CCAÇ 4150 (Guidage, Bigene, Binta, 1973/74).

A sua paixão pela fotografia fez com que ele seja, de longe (com o Humberto Reis) um dos nossos tertulianos com mais documentação sobre a Guiné, de ontem e de hoje.

Ele já aqui nos contou como, em Novembro de 2000, quebradas as últimas resistências psicológicas, voltou à Guiné, agora como simples turista, revisitando sítios por onde estivera vinte e seis anos antes e conhecendo muitos outros de que só ouvira falar...

Nessa viagem de 15 dias, de que já aqui falámos, com um grupo de camaradas, ele não só fez um excelente vídeo (realização, montagem e insorização do Hugo Costa, seu filho) como tirou muitas e óptimas fotografias, que eu já tive o privilégio de ver, em Guifões, Matosinhos, no seu estabelecimento comercial...

Há dias o Albano (que eu só conheci no Natal de 2005) mandou-me umas tantas, para eu matar saudades de Bambadinca e do meu Rio Geba... Com a seguinte nota que eu achei uma delícia:

"Estou a enviar nove fotos tiradas em cima da ponte sobre o rio Geba, à entrada para Bambadinca... As legendas, bem, até nem é preciso, podem ficar no imaginário de cada um....Mas se quiseres ilustrar com texto de tua autoria, estás à vontade, para apróxima eu envio-te mais, vai aos poucos"...

Hoje vou partilhá-las com o resto da tertúlia. Ao vê-las, tenho a sensação de que o tempo não mudou nada: e no entanto, a Guiné-Bissau é hoje um país independente... Pelo menos, a terra continua vermelha, o Rio Geba corre limpo para o mar, as crianças parecem ser felizes e têm sonhos como todas as crianças do mundo, o peixe sai dos rios e entra nas bolanhas, há velhas pirogas abandonadas nas margens e os toca-toca andam cheios de gente viva e alegre pelas estradas esburacadas da Guiné profunda, longe do bidonville que é hoje Bissau...


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > A terra vermelha nas margens do Rio Geba. perto de Bambadinca > Novembro de 2000 > © Albano Costa (2006)

Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bambadinca > Rio Geba > Pescando o peixe que fará o mafé da próxima refeição > Novembro de 2000 > © Albano Costa (2006)

Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bamnbadinca > Rio Geba > Esta criança muito provavelmente não tem escola... mas tem a liberdade de pescar no rio > Novembro de 2000 > © Albano Costa (2006)

Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bambadinca > Rio Geba > Um dia estas crianças serão adultos e terão saudades do seu rio e da sua infância... > Novembro de 2000 > © Albano Costa (2006)

Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bambadinca > Ponte sobre o Rio Geba > A pescaria foi boa... Será uma ajuda para a dieta alimentar da família > Novembro de 2000 > © Albano Costa (2006)

Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bambadinca > Ponte sobre o Rio Geba > Uma paragem dos tugas para matar saudades... > Novembro de 2000 > © Albano Costa (2006)

Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bambadinca > Ponte do Rio Geba > Uma parte do grupo dos tugas: o Albano é os egundo a contar da esquerda > Novembro de 2000 > © Albano Costa (2006)

Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bambadinca > Nas imediações do Rio Geba > Um toca-toca fazendo-se à estrada, mal asfaltada > Novembro de 2000 > © Albano Costa (2006)

domingo, 15 de janeiro de 2006

Guíné 63/74 - P431: Tio (Albano) e sobrinha (Sandra) 'apanhados pelo clima' (Albano Costa)

Mensagem do Albano Costa (ex-combatente da CCAÇ 4150, Guidaje, 1973/74>)

Caros amigos tertulianos e demais bloguistas em geral, eu ao tomar esta iniciativa de escrever estas letrinhas gostaria de deixar bem claro que é a minha e só a minha opinião.

Quando eu resolvi ir à Guiné em Novembro de 2000 não foi fácil a minha decisão!...
Pedi opinião a pessoas que já lá tinha ido, porque a ideia que eu tinha era sempre a mesma!... A zona onde a minha CCAÇ 4150 esteve era uma zona muito complicada, assim como todas, mal se saía fora do arame farpada era logo porrada!...

Guiné-Bissau > Novembro de 2000 > Albano Costa, reodeado de novos amigos, fazendo um pausa, a caminho do Chugué...
© Albano Costa (2006)

E eu vivi muitos anos com esse pensamento, e actualmente continuo a sentir que a grande maioria dos ex-combatente ainda pensa como eu pensava!... Eu compreendo, não é fácil esquecer!... Aliás, nunca mais esquece!... E ao ler estes testemunhos, aqui reproduzidos no blogue, dá para uma pessoa entender como ao fim de 30/40 anos - o tempo que vai da nossa passagem pela Guiné - , os relatos são como tudo isso ainda se tivesse passado hoje!...

Guiné-Bissau > Novembro de 2000 > Os novos expedicionários, a caminho de Bedanda... Como podem ver, as picadas não mudaram muito... © Albano Costa (2006)

Ainda dá para imaginar que os ex-combatentes julgam a Guiné na mesma. Mas, não!... Não está na mesma, a Guiné é um país realmente muito pobre, mas tem toda a segurança para quem o quiser visitar e há uma coisa que tem e que é muito rica, as pessoas, essas que na altura nós chamava-mos turras e eles a nós tugas, hoje chamam-nos como muitos guineenses me chamaram:
- Somos irmãos, a diferença é só na pele, o sangue é o mesmo. - Afinal foram 500 anos de história.

Gostaria de ver a Guiné mais desenvolvida e esse mesmo desenvolvimento é pena que não se esteja a ser feito através do turismo, esse turismo que tinha nos ex-combatentes uma grande massa humana, era só o governo pensar um pouco mais no investimento, mas não demorar muito tempo porque se não os ex-combatentes vão envelhecendo e então aí torna-se mais difícil. Como alguém bem recentemente escrevia no blogue aquilo que eu digo neste momento:
- Julgei que ia à Guiné e esquecia, mas teve o efeito contrário, ficou a vontade de lá voltar sempre. - É o que acontece comigo.

Em 2004, uma minha sobrinha que faz parte um grupo de jovens universitários que fazem voluntariado social e se dedicam a missões humanitárias (GASPorto -Grupo Acção Social do Porto) veio-me perguntar se conhecia alguma missão na Guiné. Eles queriam fazer acção social naquele país durante dois meses. Prontifiquei-me logo a ajudar, eles lá foram, alguns com mais coragem que outros e algumas famílias um pouco na expectativa... Mas lá foram e o que fizeram foi muito bonito. Adoraram principalmente aquele povo. Eu vou transcrever as cartas que a Sónia me escreveu, com a devida autorização da autora:

Primeira carta, em 25 Agosto 2004

Oi familiazinha, isto aqui é mesmo um sonho, Moçambique é bonito, tem uma beleza mágica, mas a Guiné não fica nada atrás. A verdura é magnífica, as paisagens são uma coisa que só visto. O tio tinha razão, é um país com uma beleza enorme.

Bissau é esta confusão, parece o Porto, sempre com muito pessoal, até trânsito temos, o que torna tudo engraçado. O mercado de Bandim é aquela coisa cheia de pessoas, passando na rua só se vê cabeças.
Guiné-Bissau > 2004 > A Sónia e o Nuno num toca-toca (táxi colectivo)... Uma experiência que os jovens em Portugal não podem ter... © Albano Costa (2006)

Os toca-toca são muito porreiros, há sempre lugar para mais dois, cabe sempre mais alguém.

As pessoas são muito simpáticas, sempre com um sorriso nos lábios e as crianças, essas são um doce com o seu sorriso.

O ano passado gostei muito de estar em Macia (Moçambique) e tive pena de não ir para lá este ano, mas agora que cá estou também estou a adorar.

O nosso trabalho, apostamos muito na educação, as crianças estão de férias nesta altura do ano, mas nós criamos aulas de recuperação e elas aparecem, damos a primária do 5.º ano ao 8.º ano, isto em Nhoma e em Nhacra [a nordeste de Bissau]. Temos muitos miúdos, principalmente na escola primária.

A nossa grande dificuldade é o crioulo, os mais pequenos não entendem o português. Apenas se fala português dentro da sala de aula e só quando vão para a escola, mas aos poucos vamos conseguindo.

A nível de saúde o projecto é mais para realizar em Portugal, vamos ver se o Hospital Santos Silva [, de Gaia, ]nos quer ajudar com algum material básico.

Locais que já conheço, fomos este fim-de-semana a Varela, não sei se o tio conhece, é na região da beira mar, perto de Cabo Roxo, quase a chegar ao Senegal. A praia é uma praia selvagem, sem qualquer mão do homem, é natural. A viagem de lá foi um sonho, é um bocado longe mas valeu a pena. O Padre Eugénio levou-nos de carro até Safim e depois fomos com um casal português que o Nuno conhece. Fomos de carro até lá, passámos por Buba e fomos até Cacheu, lá atravessamos de jangada até ao outro lado e aí passámos 7 horas de picada pelo meio da natureza.

Os buracos, os saltinhos e toda a paisagem tem um encanto magnífico. Quando chegámos já era noite, pelo caminho o senhor Fernando foi a caçar uns pássaros e pelo caminho o jipe dele teve um furo no pneu, e rapidamente do meio do nada apareceu logo quem nos ajudasse. A casa era um filme, não tínhamos luz, a casa tinha alguns bichinhos, na jardim tínhamos que ter cuidado porque às vezes há cobras, mas tudo isto faz parte da Guiné e sem estes bichinhos não era a Guiné.

O tempo é muito quente, é mesmo muito quente. Há dias em que o calor é mesmo insuportável, mas aos poucos nós habituamo-nos.

Mais novidades tenho mas não posso escrever tudo só na primeira carta, vou escrevendo para a família e assim vão sabendo como estão as coisas por aqui.
Obrigado por todo o apoio que me deram e por me terem ajudado.

Beijinhos para todos, e só mais uma coisa, as mangas são uma delícia, é um fruto mesmo bom. Sabe tão bem comer uma manga e saborear aquele paladar. Quando for para Portugal vão deixar muitas saudades.

Agora despeço-me mesmo, as prximas aventuras seram escritas futuramente.Beijinho grande para todos.

Sandra Neves - a guineense 2004.



Segunda carta, em 18 de Setembro 2004

Olá,tio.

Imagine onde estou? Vou descrever para ver se consegue adivinhar.

Tenho umas casinhas redondas, umas palhotas onde vou dormir esta noite. Neste momento estou sentada numa cadeira de palha, ao ar livre debaixo de um telhado de palha a ouvir a natureza. Da parte da tarde tive a tomar banho numa água límpida e quente, no final da tarde não havia água, podiamos atravessar a pé para o outro lado. Ah, e estou na companhia de um senhor muito simpático. Já sabe aonde estou, sim no clube Fo noya, em Buba. Isto aqui é muito bonito, esta natureza que transmite tanta paz, uma beleza pura, sem a mão do homem.

Antes de cá chegarmos passamos pelo Saltinho, parámos na ponte onde estivémos a ouvir e ver aquela queda de água, onde a água tem aquela força e beleza que só quem vê sabe do que estou a falar. O Sr. Baldé disse que o tio esteve lá quando aqui esteve, tirei fotos e quando chegar vamos ter muito que falar.

Ontem ficámos a dormir em Gabu [antiga Nova Lamego, no nordeste], e fomos jantar a um restaurante onde cantámos, dançámos e as pessoas foram tão queridas que hoje famos lá tomar o pequeno almoço. Como é possível alguém dar tanto carinho a um grupo de jovens portugueses que nunca viu!... Sentimo-nos em casa. Quando saimos de lá, o Nuno canta uma canção à Dona do restaurante e ela até ficou com os olhos com água, são tão queridos. O tio tinha razão, este povo é muito acolhedor e aqui nada nos falta porque as pessoas fazem por isso, o carinho que nos dão faz esquecer muitas coisas.

Hoje passamos por Bafatá, Bambadinca e apesar de muitas casas estarem destruidas e de as coisas precisarem de uma mãozinha há sempre aquela beleza.

Vou contar um segredo: quando se levantou a ideia na direcção do GASPorto em eu vir para a Guiné, tive pena de não ir novamente para Macia - Moçambique, mas não estou nem um bocadinho arrependida, a nossa família deixou de ter dois apaixonados pela Guiné e passou a ter três apaixonados pela Guiné.

E quando chegar quero contar-lhe o nosso trabalho aqui e os nossos projectos de futuro, e no que estiver dependente de nós temos muitos projectos e ideias para o futuro e apostamos num projecto para continuar. Não sei se os meus pais já comentaram mas um dos nossos projectos são os pais adoptivos à distância e já levamos connosco algumas crianças que precisam de pais, elas são tão queridas e merecem ser felizes.

Tio, agora compreendo o seu brilho nos olhos quando fala da Guiné, deste povo, destas crianças. Vamos ter mesmo muito que falar.
Guiné-Bissau > Guidaje > Novembro de 2000 > O Hugo Costa, o repórter de serviço, filho do Albano, na hora da despedida... © Albano Costa (2005)

Estou a 5 semanas de trabalho, e já dói cá dentro pensar na despedida: com estes quase dois meses com este povo, a despedida custa muito.

Na última semana vou às ilhas e depois e depois relato como é a sua beleza.

Beijinhos para todos. Gosto muito de todos vocês. Obrigado por todo o apoio que me deram. Até breve

Sandra Neves
(a menina apaixonada pela Guiné).


Isto é mais um testemunho do que é a Guiné dos tempos modernos. Que pena eu tenho de os seus governantes não olharem um pouco mais para a parte turística, que ajudava a desenvolver mais a nossa Guiné-Bissau.

Albano Costa
(... com um brilhozinho nos olhos. LG)

Comentário de L.G.:

Albano: Bonito texto este!... Temos que convidar a Sandra, que é enfermeira (e que até gostaria de trabalhar, uns tempos, no Hospital Nacional Simão Mendes - atenção, Paulo Salgado, aí em Bissau!) para entrar para a nossa tertúlia... Uma moça de grande sensibilidade e generosidade. Parabéns, tio!

quinta-feira, 5 de janeiro de 2006

Guiné 63/74 - P404: Mansambo revisitado (Novembro de 2000) (Albano Costa)

Texto do Albano Costa, o nosso homem de Guidage e de... Guifões!

1. Amigo Luís Graça:

Quero deixar aqui a minha satisfação em termos estado juntos, nas vésperas de Natal, com o Marques Lopes, o José Teixeira, o Allen e o Hugo Costa, numa amena cavaqueira em casa dos teus estimados cunhados (o meu muito obrigado pela simpatia com que eles nos receberam, assim como a tua esposa), mas isto é mesmo assim, a «nossa» Guiné tem destas coisas.

Aquilo que muitos dos nossos camaradas que por lá passaram, e que ainda hoje não conseguem esquecer, aqueles tempos muito difíceis, espero que este blogue (em que és, e muito bem o seu comandante) sirva para fazer com que esses mesmos camaradas ao ter o conhecimento deste invento - cada vez maior - os faça mudar de opinião e possam, a partir do dia em que entrem nele, ver a Guiné, outrora muito má (por causa dos políticos da época), agora com outros olhos, e que sintam o povo guineense e português um só povo. Acho que vale a pena transmitir esta mensagem.

Quem tiver possibilidades em lá ir, e puder passar pela zona aonde esteve, que vá porque vale a pena. Luís, como dizes no blogue e muito bem, em Março o Allen vai à Guiné com o seu jipe e eu, claro, gostava muito de lá voltar, que estas coisas o que custa é a primeira vez, porque depois o «bichinho» está sempre cá dentro e quer lá voltar. Que o digam o Casimiro do Porto, o Armindo de Moreira de Cónegos, o Camilo (algarvio): estes são alguns dos que foram «mordidos», assim como o Hugo Costa que me disse:
- Pai, gostava de fazer uma viagem de jipe à Guiné. - E eu não resisti e já estou a preparar-me para o deixar ir, o Hugo Costa também foi daqueles que ficou apaixonado por aquele povo.

2. Agora para o nosso novo tertuliano Marques dos Santos [ex-furriel miliciano da CART 2339, Mansambo, 1968/70, afecta ao BCAÇ 2852, Bambadinca, 1968/70].

Em primeiro de tudo estou a escrever estas letrinhas para te felicitar pela tua entrada neste blogue. É que estas coisas estão a fazer com que nós possamos desabafar aquilo que tem andando dentro de nós e que procuramos esquecer, mas não conseguimos. Foram momentos passados e com o andar da idade mais vai saltando para a nossa mente e, tirando as nossas «caras metades» que lá vão fazendo um esforço para nos aturar, mais ninguém quer saber de nós. E aqui que eu vou encontrando um bom passatempo para relembrar aqueles tempos de menino e moço.

Tenho lido as [tuas] memórias, e fiquei a pensar como está a fazer tão bem ao Marques dos Santos a ir ao fundo do baú buscar todas aquelas recordações. Eu por mim quando vou ao fundo do meu, sinto-me bem.

Agora eu quero informar que quando voltei à Guiné - foram das coisas maravilhosas por que passei na minha vida, e adorava lá voltar, quem sabe - quando estive em Mansambo, andámos atrás do dito quartel e só encontrámos um pequeno monumento à entrada do mesmo.

Só agora é que dá para entender porque não existiam as casernas, é que pela tua descrição eram abrigos, claro, esses ficaram com o tempo todos tapados, e não se via nada. Mas não desanimes, que agora existe lá muita população e muito hospitaleira como vai demonstrada nas fotos que envio, do quartel, e as outras, quem sabe se ainda recordas alguém, os meninos esses são filhos de guineenses do teu tempo. Há imagens muito interessantes, quem sabe talvez um dia as possas ver.

Se tiveres possibilidades de ir à Guiné vai sem qualquer receio: aquele povo adora-nos, eu aqui falo por aquilo que senti. Foi um dilema muito grande dentro de mim para me decidir a ir e confesso que mesmo quando lá cheguei ainda tinha um certo receio mas ao fim de umas horas apercebi-me que aquele povo gosta mesmo dos «irmãos» portugueses.

Albano Costa

Legendas das fotos de Mansambo


Estrada nova, fica a 50 metros, ao lado da antiga que passa pelo meio das belas tabancas

Lúcio, Casimiro, Armindo e Carlos [quatro dos camaradas que fizeram a viagem à Guiné com o Albano e mais outros tantos em Novembro de 2000], posando ao lado da placa que indica a povoação de Mansambo, do lado do antigo quartel

A pequena picada que dá, pelo meio das belas tabancas, em direcção ao antigo quartel

A entrada do quartel de Mansambo é isto ou o que resta...


A entrada do quartel de Mansambo também tem este monumento, o brazão da CART 2714 ("Bravos e Leais"), pertencente ao BART 2917 (1970/1972). Já em 1996, era o único que restava de pé.

População de Mansambo. Em 1969/71, apenas existia meia dúzia de famílias, ad dos guias e picadores que trabalhavam para as NT.


Na despedida da população de Mansambo... Era sempre o momento mais triste sentido por todos nós...


Um camião avariado na estrada Mansambo-Xitole... Isto faz-te lembrar alguma coisa, ó Marques dos Santos ? Sim, as colunas logístics Bambadinca - Mansambo - Xitole - Saltinho...

Créditos fotográficos : © Albano Costa (2006)

3. Comentário de Carlos Marques dos Santos, depois de visualizar estas imagens:
Mansambo, antes e agora. Até eu fiquei de boca aberta. Mansambo, aquilo??? Mas está explicado. No meu tempo só havia uma tabanca com meia dúzia de pessoas. O Leonardo era o chefe. O Lali Baló - ou Baldé (?) - e uma mulher lindíssima mais um filho pequenino.

Um Abraço,
Marques dos Santos
(Cart 2339, 1968/69)