sexta-feira, 20 de abril de 2018

Guiné 61/74 - P18542: Notas de leitura (1059): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (31) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Dezembro de 2017:

Queridos amigos,
É bem elucidativo este relatório do gerente do BNU referente a 1946: sempre o ouro em pó, a especulação enfrene, a vida difícil com a alta de preços, belíssimos negócios para certos comerciantes. Aproveita-se para recordar que estamos a falar na presença do BNU na Guiné.
O banco, como se recordam abriu a sua primeira agência em Bolama ao público em 1903. Tinha função emissora, chegou a funcionar como casa de penhores, ainda na década de 1920. Em 1917 entrou em funcionamento a agência de Bissau, logo bastante influente.
Além de casa de penhores, o BNU vendia produtos caso dos tabacos. O BNU sabia muito bem que era a produção agrícola e as oleaginosas que pesavam na economia da colónia, daí o cuidado posto nos relatórios quanto ao que se passava com o óleo, a mancarra e o coconote. O BNU ligar-se-á à Sociedade Comercial Ultramarina, até deter o seu capital e se lançar no campo das experiências agrícolas. O BNU desaparece com o Banco Nacional da Guiné-Bissau. Mas no ano de 1981 deu-se a abertura de um escritório de representação do BNU na República da Guiné-Bissau.
Mas o que aqui se analisa é o BNU inserido na malha colonial.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (31)

Beja Santos

Há, na segunda metade da década de 1940, sérias lacunas, não constam alguns relatórios que podiam ser determinantes para acompanhar o processo desenvolvimentista que ocorreu na Guiné ao tempo de Sarmento Rodrigues. Processo esse que se refletiu na vida do BNU local. Procura-se então encontrar dados complementares sobre a vida da colónia. O Anuário da Guiné de 1946, coordenado por Fausto Duarte, fala-nos das realizações alusivas ao V Centenário do Descobrimento da Guiné. Vale a pena mexer ao pormenor: fizeram-se obras de reconstrução na Fortaleza de S. José de Bissau, benfeitorias no quartel de Bissau e Bolama, diz-se explicitamente que houve um primeiro fornecimento de calçado e talheres aos soldados indígenas, aumentaram as rações dos soldados, apareceu a Banda Militar; construíram-se faróis, houve fornecimento de armamento e transportes ao Corpo da Polícia; o serviço de águas, de saúde e da agricultura ampliaram-se de forma impressionante; houve obras em Bissau, pavimentaram-se artérias, melhorou-se o mercado municipal, o porto de Bissau, prolongou-se o cais do Pidjiquiti, retomou-se a construção do Palácio do Governo, reconstruiu-se o Palácio de Bolama; a cultura deu um salto, pois criou-se o Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, o Boletim Cultural, o Anuário da Guiné, foi criada a Missão Antropológica da Guiné, iniciou-se a instalação do Museu da Guiné; organizaram-se as comemorações do V Centenário da Descoberta, que culminaram com uma exposição em Bissau; e Rui de Sá Carneiro, o subsecretário das Colónias visitou oficialmente a Guiné.

Estes eventos tinham obviamente um pano de fundo novo, no decurso da II Guerra Mundial foram tomadas posições que previam uma vaga descolonizadora, que efetivamente começou na Ásia e iria alastrar a África. Em “Contra o Vento”, por Valentim Alexandre, Círculo de Leitores e Temas e Debates, 2017, o historiador explana sobre as alterações que se deram no Norte de África e no próximo Oriente e tece o quadro do se passou na África subsariana:
“Só marginalmente foi palco de operações militares – na Etiópia, de onde as forças britânicas expulsaram as italianas; em Madagáscar, que tropas anglo-sul-africanas tomaram em Novembro de 1942, integrando-a na França Livre gaullista; e na Somália Francesa, ocupada pelos Aliados em 1943. O resto do Continente Negro não deixou de se ver envolvido no conflito militar mundial, nomeadamente pelo recrutamento de várias centenas de milhares de homens, enviados a combater na Europa, no Norte de África ou na Ásia, em nome da França e da Grã-Bretanha. Várias cidades em África – Cairo, Dacar, Lagos, Freetown e Cidade do Cabo, entre outras – serviram de pontos de apoio militar, pela utilização dos seus portos ou aeródromos, enquanto territórios como o Chade funcionaram como placas giratórias dos exércitos aliados que iam combater a Norte do Sara. Mas o maior impacto foi de ordem económica, afectando todo o continente. Numa primeira fase, a guerra, com os bloqueios marítimos e a falta de meios de transporte que provocou, contribuiu para fragilizar vastos setores, dependentes de mercados agora fechados ou inatingíveis, no mesmo passo que dificultou as importações, criando inflação. A partir de 1941-1942, o esforço bélico das potências europeias e dos Estados Unidos levou a um aumento drástico da procura tanto de bens de subsistência como de minérios essenciais ao fabrico de armamento. Para acorrer a essa procura, as administrações europeias reforçaram, as pressões sobre a população africana, impondo preços, reconversões coercivas de produção, e recorrendo às formas mais gravosas de exploração – trabalho forçado, culturas obrigatórias –, agora impostas em nome da necessidade imperiosa de vencer o inimigo (…) Um dos aspectos mais relevantes das mutações induzidas na África Negra pela II Guerra Mundial está no impulso dado à urbanização, que criou ou alargou um quadro propício à geração de novas formas de sociabilidade e de identidade, favoráveis ao enraizamento dos nacionalismos”.

Por isso se pode entender o que se escreve no relatório de 1946:
“Numa maneira geral, o comércio da Guiné tem feito bom negócio. Os comerciantes de Bissau, do ramo mercearias e fazendas devem estar cheios de dinheiro. Vendem a maior parte dos artigos por preços altíssimos e ninguém melhor do que nós pode ver a que ponto chegam estes abusos de altos preços, pois nos passa pelas mãos grande parte das facturas relativas às importações.
No ramo das ferragens e artigos para automóveis, é uma verdadeira loucura a falta de escrúpulos. Peças e artigos que aparecem na casa do comerciante por dois ou três escudos e são vendidos a trinta e quarenta. Há autoridades que podiam e deviam vigiar estes factos, mas facto é que não se vê nada feito e assim se torna cada vez mais difícil a vida dos que vivem, apenas, dos vencimentos”.


E a análise deriva para o estado do mercado, compreensivelmente o que se passa na agricultura é o dado relevante:
“As campanhas do arroz e da mancarra, feitas simultaneamente, correm como é costume. Mais normalmente a campanha do arroz. Destrambelhadamente a da mancarra. Fixam-se cotações oficiais para compra ao indígena. Sabem-se as cotações, pouco mais ou menos, porque será paga no exterior. Mas estas duas bases não servem para nada. Cada um se lança a comprar o mais que pode e assim se vão alterando os preços, na esperança de que as cotações do exterior venham a subir e a cobrir os disparatados preços locais. Uma verdadeira lotaria.
A Casa Gouveia, que podia ser uma reguladora de preços, transforma-se numa verdadeira desreguladora. Mal administrada, apesar de vir um inspector ajudar a gerência local, na época da campanha, não faz se não desequilibrar tudo e acaba por fazer a triste figura de comprar muito menos que os outros. Os sírios, com a rede das suas 120 casas espalhadas pela colónia, absorvem a maior parte da colheita, pagando bem, o que podem fazer melhor que os outros porque têm uma organização baratíssima e por estarem cheios de mercadorias bem escolhidas que vendem em grande escala. Ganham bem nas mercadorias e, neste ganho pode bem caber sem lhes fazer diferença de maior o que pagam a mais pela mancarra. No fim, enquanto se não exportar, vendem-na a quem mais lhe der – e a dar mais tem aparecido a Casa Ed. Guedes Lda.

Todos lutam para exportar mancarra para o estrangeiro, que paga melhor que a metrópole. É provável que, nestes tempos de miséria, o estrangeiro aceite tudo e pague tudo. Mas, se houver o rigor de outros tempos sobre a qualidade e limpeza da mancarra, bem maus bocados podem surgir, pois a nossa mancarra é embarcada num estado lamentável de impureza e sujidade de toda a ordem, isto sem falar em qualidade.
A loucura do comércio é de tal ordem que ninguém usa, nem quer usar, as tararas onde a mancarra era limpa de cascas, terras e pedras, antes de ir à balança e ser paga. Assim, conscientemente, o comerciante paga aquelas sujidades por mancarra boa, talvez porque está certo de a embarcar no mesmo estado e de lhe pagarem sem discussão. É claro, o exportador que vai buscar a mancarra ao interior já se não livra das quebras próprias o transporte, cargas e descargas, pois nestas andanças vai perdendo o peso da terra que se vai em poeira ou se deposita no fundo dos barcos ou no chão dos ‘cercos’ e dos armazéns.
Nos territórios vizinhos, cada vez é maior o cuidado com a selecção de sementes, qualidade e limpeza do produto a exportar. Nós não damos valor, ao que se vê, a esses cuidados que, em nosso modesto entender tanto valor têm e sob todos os aspectos”.

Anuário da Guiné Portuguesa, 1946

Finda a análise da praça, o gerente passa em revista a situação dos clientes e não se pode resistir a transcrever o que ele escreves sobre, Rezendes, Irmãos:
“Formada por Izaias Mata-Mouros Rezende da Costa e Alberto Mata-Mouros da Costa. O capital é de cem contos, em partes iguais. Só o sócio Izaias vive em Bissau, onde a firma ocupa o estabelecimento da antiga firma alemã Sociedade Ringel, Lda. O sócio Alberto, não sabemos o que faz em Lisboa. Izaias foi empregado da Casa Gouveia, em Canchungo. Houve qualquer coisa com ele, endoideceu e foi para Lisboa, de onde voltou comerciante. Não deve ter capital. Trabalha em comissões e consignações e é arrojado. Como nunca teve fama de grande equilíbrio, pelo que estamos vendo, é natural que ainda venha a criar alguma má situação aos que confiem no seu palavreado, e este costuma ser muito”.

E mais uma vez o gerente volta a falar no ouro em pó:
“Os negócios com o Senegal fraquejaram muitíssimo. Mantém-se, porém, sobretudo na região de Bafatá, os negócios clandestinos sobre o ouro em pó, trazidos pelos djilas do território francês. Este negócio movimenta milhões de francos pois não se faz na nossa moeda. O djila precisa de francos para ir comprar mais ouro. Assim, só paga o que compra no nosso território com francos senegaleses, os comerciantes aceitam bem para pagarem o ouro. Nos últimos anos da guerra, o ouro em pó vendeu-se à razão de 13 a 20 contos por quilo. Hoje o preço do quilo regula por 23 a 24 contos”.

Há agora um sumiço de relatórios, voltaremos a dispor de documentação a partir de 1949.

(Continua)
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Notas do editor:

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Último poste da série de 16 DE ABRIL DE 2018 > Guiné 61/74 - P18527: Notas de leitura (1058): “Memórias da minha guerra colonial”, de João Matos Lourenço Rosa; edição de autor de 2009 (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Antº Rosinha disse...

O Ouro que vinha do Senegal para a Guiné nos anos 40, como demonstra BS com este testemunho, mostra como os gilas influenciavam a economia (pequenina) na Guiné Portuguesa, indo e vindo para cá e para lá.

Repete-se com a independência política do PAIGC, jogo idêntico, mas sem ouro, mas de uma maneira mais grave.

Com a independência, houve um tempo em que a Guiné Bissau, estava tão dependente do comércio com o Senegal, e até com a Gâmbia, tanto clandestino como regular, que a "independência política" até parecia um objectivo apenas exclusivo e único do PAIGC, porque o povo e a economia não contavam para esse partido.

Um caso passado com o governo de Luís Cabral,que tinha obrigação mais que ninguém de mostrar mais respeito pelas funções, havia um caso repetidíssimo com ele e após ele, em que tudo o que rendesse dinheiro cambiável, era sacado dos Armazens do Povo, e ia parar à fronteira do Senegal atravez dos gilas a troco de CFA.

Desses produtos era por exemplo arroz ou sabão, oferecidos para distribuir pelo povo, e este só os via chegar de navio e levados em camiões para o Senegal, dia e noite.

Os ministros e familias precisavam de divisas para viajar.

Hoje a Guiné já tem a mesma moeda do Senegal