sábado, 17 de março de 2018

Guiné 61/74 - P18428: Os nossos seres, saberes e lazeres (257): Em Bruxelas, para comemorar 40 anos de uma amizade (7) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 19 de Dezembro de 2017:

Queridos amigos,
O viandante programou associar um passeio por artérias bem conhecidas e visitar exposições discretas mas que lhe suscitaram enorme interesse: a vida e adaptação dos imigrantes que aqui batem à porta à procura de vários sonhos, desde o trabalho, uma vida em paz, um futuro para os filhos, e percorrer em grandes passadas a história da civilização e da cultura à volta do livro, da escrita e das bibliotecas.
Um itinerário que garantiu uma enorme satisfação. Sempre que se detém junto de um edifício que se viu tantas vezes, há sempre a descoberta de diferentes pormenores. Como diz José Saramago, a viagem nunca acaba, o que se vê no Verão não é o que se vê no Inverno, daí o aliciante de viajar todo o ano, em mangas de camisa ou de gabardine, é o sobressalto da descoberta que empolga e dá ânimo para partir e regressar, enquanto temos forças e a curiosidade toma conta de conta de nós.

Um abraço do
Mário


Em Bruxelas, para comemorar 40 anos de uma amizade (7)

Beja Santos

O viandante confessa as suas limitações: nunca vira algo de tão singelo, de uma modéstia tão tocante, e de tão grande dignidade no chamado diálogo intercultural, a exposição “Bruxelas: terra de acolhimento”, patente no Museu Judaico da Bélgica. Em menos de dois séculos a antiga capital do Brabante transformou-se numa cidade-mundo, por ali cirandam gentes de 184 nacionalidades. Quem organizou a exposição andou a remexer nos arquivos da polícia dos estrangeiros que conservam dois milhões de dossiês individuais de estrangeiros chegados à Bélgica depois de 1839; mas bateu-se à porta de muita gente, pois exibem-se objetos pessoais, múltiplos testemunhos provenientes de quatro cantos do mundo. Uma exposição que abre campo à reflexão das migrações contemporâneas, à fixação dos diferentes povos pelos bairros de Bruxelas e por outras regiões do país, testemunha-se como é viver em Bruxelas ou noutro ponto do país, não se foge ao tabu colonial belga e à vida terrível de minorias perseguidas como os albaneses e os republicanos espanhóis e os judeus que acabaram deportados. Vejam-se estes refugiados políticos albaneses a chegar à gare de Namur em 1954 e um casamento judaico em Bruxelas, em 1942.



Antes dos judeus serem martirizados chegaram à Bélgica famílias de republicanos espanhóis, com o franquismo atravessaram os Pirenéus, nem sempre foram bem acolhidos em França, aqui chegaram e constituem hoje uma das maiores comunidades de emigrantes. A exposição permite observar onde, nesta terra de acolhimento, vive, por que bairros se repartem. Porque há os bairros pobres, caso de Molenbeek ou Schaerbeek. Marroquinos, cipriotas ou turcos procuram alojamento e viver em comunidade. Como em tudo na vida, assim que os emigrantes começam a prosperar abandonam os bairros pobres e escolhem as comunas exteriores, a pobreza permite redes de socialização, de trabalho e até de coesão religiosa. A exposição tem pesquisas inteligentes como o estudo de uma imigração espanhola gravada em vinil, os restaurantes espanhóis, dos anos 1950 para os anos 1960 fervilhavam de flamencos, eram espetáculos abrilhantados por trabalhadores como canalizadores ou gente da construção civil que à noite vinha aqui ganhar uns cobres.



Anoitece, aquele céu aguarelado deixa o viandante eufórico, a igreja em frente é a de Notre Dame de la Chapelle, não é a primeira vez que se diz que aqui está sepultado um dos maiores génios da pintura europeia, Bruegel, o Velho. Como estamos em maré de peregrinação, de ver o que já está muito visto mas que é eternamente belo para quem ama esta paisagem citadina, avança-se agora para o centro, para contemplar aquela arquitetura onde há sempre um pormenor a descobrir, mais não seja a elegância de uma fachada onde destoa uma vitrina, pelas formas ou pelo colorido. É este o caso, não é dos piores, há muitíssimo mais agressivo, mas dá que pensar porque não existem regras que permitam aos comerciantes escolher modelos de vitrinas e portas compatíveis com o esplendor arquitetónico.



No Monte das Artes há um edifício muito pouco procurado pelos turistas, é a Biblioteca Real da Bélgica, o viandante vem à procura de uma exposição intitulada Librarium, é um espaço de descoberta único, uma aliciante viagem pela história do livro, das escritas e das bibliotecas, selecionaram documentação espantosa, percorremos a civilização e a cultura com os seus livros, códices e manuscritos, moedas e tudo o mais que tem a ver com a história do livro e até o seu restauro. É um espaço cheio de vida, com pequenos concertos, muitos colóquios, visitas guiadas às áreas de restauro. O viandante não pode deixar de visitar as recordações aqui depositadas de um Prémio Nobel da Literatura, Maurice Maeterlinck, o único belga galardoado. Para quem já veio de outras exposição singela e talentosamente apresentada, sai-se daqui com a barriga cheia.



Monte das Artes! Também por aqui se passou vezes sem conta, seja para ir ao Palácio das Belas Artes, um pouco mais abaixo ou subir até ao Museu de Arte Moderna, onde tem autonomia o Museu Magritte, ou passear pelos jardins da Albertina. Veja-se o que está escrito neste guia que acompanha o viandante sobre os percursos de Bruxelas: “Familiarize-se pouco a pouco e olhe com uma outra perspetiva para os jardins da Albertina. À beira do Boulevard l’Empereur, que cerca o Monte da Artes, aperceba-se da transformação urbana e arquitetónica provocada pela construção da ligação que aproximou a estação de Midi à estação do Nord. Volte para trás, torne a subir os jardins e siga pela rua Ravenstein para chegar ao n.º 23 e descobrir o Palácio das Belas Artes”.

Por hoje já chega, o viandante sente-se consolado por continuamente ter a felicidade de percorrer estas ruas, ruelas, avenidas e boulevards, praças e pracetas, largos e impasses da desconcertante Bruxelas. Há quem diga que a cidade tem muito pouco a oferecer, é pura mentira, como estas imagens ilustram.
Anoiteceu profundamente, o viandante regressa a penates, melancólico, dentro em breve terá de partir desta cidade que lhe dá doce acolhimento.




(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 10 de março de 2018 > Guiné 61/74 - P18398: Os nossos seres, saberes e lazeres (256): Em Bruxelas, para comemorar 40 anos de uma amizade (6) (Mário Beja Santos)

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