quarta-feira, 18 de outubro de 2017

Guiné 61/74 - P17876: Os nossos seres, saberes e lazeres (234): Passeio pedestre por algumas entranhas de Moffat (5) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 10 de Julho de 2017:

Queridos amigos,
O viandante vinha sedento de umas férias aprazíveis, pouco castigadoras de horários, deu sinal de tal propósito levando calhamaços para assinalar a sua firme disposição de ficar de perna estendida a saborear os elementos pastoris daquele Sul da Escócia.
Mas está-lhe na massa do sangue aquela irrequietude, vasculhar o território próximo, passá-lo a pente fino, e deixar-se seduzir-se por passeatas entre o património construído e natural. É disso que aqui se fala e continuará a falar. Uma das "vantagens" em viajar em low-cost é não se regressar carregado de tralha díspar, o viandante foi metódico na seleção musical e escassas roupas, havia vitualhas para prendas.
Férias cheias de sabor, acrescente-se, há aspetos daquela natureza que não se encontram em parte nenhuma, e não gostando o viandante de ver ruínas confessa que há ali ruínas de castelos que fazem da Escócia o tal local de sonho.

Um abraço do
Mário


Passeio pedestre por algumas entranhas de Moffat (5)

Beja Santos

É uma chuva miudinha, intermitente, incómoda para andar a cantar odes campestres, éclogas a favor destes desfiladeiros, charnecas e imensidades florestais. Contemo-nos com a prata da casa. Do remanescente da visita a Jedburgh Abbey, permite ao leitor que louvemos hossanas a esta porta lateral da igreja, praticamente intacta e com todos os sabores e requintes do que os britânicos chamam o romanesco, embora ataviado de elementos góticos. Estes obscuros construtores de igrejas e catedrais encontraram soluções primorosas para entrar neste espaços destinados a adorar Deus, fizeram estas peças de filigrana, e tratando-se de uma porta lateral nem foi necessário rebuscar aqueles elementos portentosos que encontramos no Pórtico da Glória, da catedral de Santiago de Compostela. Não sabe o que o tempo fará desta discretíssima porta lateral, à cautela mimoseio quem lhe quiser bem.


Estamos portanto em Moffat, comece-se pelo chamado ponto focal do povoado, the Moffat Ram, símbolo da longa história do centro comercial lanífero que foi Moffat. Agora, em termos turísticos, o que prometem como mais vibrante é o toffee (um caramelo com um sabor ligeiramente avinagrado), os gelados, a mostarda, pastelaria e o haggis local (bucho de carneiro recheado de vísceras). Ninguém dirá, vendo esta fotografia, que já choveu e daqui a um bocado correrá água a potes do céu, até pareço mentiroso com este azul celeste como pano de fundo da escultura icónica de Moffat.



Quem percorre a Grã-Bretanha questiona a raridade das casas arruinadas, tudo se reconstrói a partir de um estábulo ou de uma velha garagem. O viandante ficou contente com esta recuperação, sabe-se lá do quê, um bom entrosamento entre a pedra local e materiais que asseguram conforto, com as exigências atuais. Nada de pindérico, nenhuma pontinha daquele novo-riquismo que agora encontramos nos discípulos de Siza Vieira que inundam as nossas vilas e aldeias.


Aqui está um templo da doçaria, a Meca para todos os gostos açucarados. Acontece que o viandante entrou aqui com um grupo de septuagenários que passaram as férias da sua infância em Moffat. A discussão foi imensa, entre o que havia ontem e o que há hoje, lembrou-se a guerra e o racionamento do açúcar, que prevaleceu até 1952, houve quem lembrasse a má qualidade do pão e coisas assim, mas o que pesou nesta visita era o xelim que cada um deles recebia sábado de manhã, numa aldeia próxima, fizesse o tempo que fizesse, vinham aos doces. Chama-se a isto a saudade dos velhos, verem-se ao espelho da infância.


Quando o viandante foi professor de Sociologia do Lazer, lembrava aos seus alunos a importância crescente dos museus temáticos locais, do vinho ao queijo, da lã ao vidro, do ferroviário ao naval, todos os átomos de uma identidade nacional passam por conhecer a história do nosso microcosmos. O viandante quis conhecer o pequenino museu de Moffat, dispondo de uma casa secundária em Tomar deu consigo a pensar que Tomar tem uma longa história que não se confina ao Convento de Cristo nem ao Paço Real onde habitaram desde o Infante D. Henrique até à Rainha D. Catarina, a viúva de D. João III, há uma estupenda arqueologia industrial, com papel e lanifícios, até a memória daquela batalha da Asseiceira que marcou o fim do miguelismo, isto para já não falar da presença judaica ou na gastronomia. Este museu instalou-se numa antiga padaria e mostra sem lamechas nem prosápias o que Moffat era e fez, as suas personalidades e até a importância do seu caminho-de-ferro. Aqui nasceu, por exemplo, o homem que respondeu inteiramente pelos acontecimentos empolgantes da Força Aérea (RAF) na decisiva batalha da Grã-Bretanha.



Aqui permaneceu durante mais de duas semanas o viandante e companha, casa reconstruída obviamente, reconstrução acarinhada, poiso procurado o ano inteiro pelo conforto e meio ambiente. O proprietário chama-se Charlie, o viandante interessou-me mais do que pela sua correção e verbosidade própria deste tipo de estalajadeiros. É que a mulher de Charlie vive há anos com uma esclerose múltipla, tem cuidadora mas é Charlie que lhe dá o principal alimento da vida, o carinho, o viandante ia consultar o tablet lá a casa e ouvia aquela conversa impossível entre o cuidador do coração e o doloroso paciente, momentos houve em que sentiu vontades de chorar, tal é a força do amor, há muitíssimos anos que aquele corpo se degrada, não emite sons, o corpo é francamente vegetal e no entanto aquele Charlie enamorou-se de uma rapariga alemã que trouxe para a Escócia. E enamorado está.


É num parque onde cirandam crianças entre o minigolfe e as embarcações aquáticas que se levanta este singelo monumento para recordar o marechal da Força Aérea Hugh Dowding, o tal que respondeu pela luta nos céus, naquele período crucial de 1940, matando o sonho de Hitler em intimidar a Grã-Bretanha com os seus devastadores bombardeamentos.

Amanhã, haja chuva que houver, viandante e companha vão à procura de Robert Burns, o bardo nacional da Escócia, em Dumfries, um dia inteiro que dê para vasculhar as velhas estradas deste Sul da Escócia.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 11 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17849: Os nossos seres, saberes e lazeres (233): Passeio por uma grande abadia em ruínas, voyeurismo em Moffat (4) (Mário Beja Santos)

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