quinta-feira, 21 de setembro de 2017

Guiné 61/74 - P17785: Historiografia da presença portuguesa em África (92): quando a Guiné do tempo de Sarmento Rodrigues tinha uma "boa imprensa": Norberto Lopes, o grande repórter da "terra ardente"



Um dos muitos anúncios de casas comerciais que existiam na Guiné em 1956. A empresa  Aly Souleiman & Companhia, com sede em Bissau, tinha filiais em diversos  pontos do território da Guiné, de norte a sul, incluindo Bafatá e Gadamael.

"Aly Souleiman  (apelido grafado à francesa...),  e não "Ali Suleimane" (à portuguesa) era um  próspero comerciante sírio-libanês, já citado pelo repórter Norberto Lopes em 1947 aquando da sua visita a Bafatá...

O acrónimo da empresa era ASCO, tal como o seu endereço telegráfico (*)... Algumas das mais importantes empresas estrangeiras, e nomeadamente as de origem francesas, com negócios no Senegal e na Guiné portuguesa, usavam acrónimos ou siglas: NOSOCO, SCOA, CFAO...

Está, definitivamente, explicado o  mistério do acrónimo ASCO que aparece num edifício de Gadamael, e sobre o qual gastámos alguns bons KB...


Foto: © Màrio Vasconcelos (2015). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Região de Tombali > Gadamael > CART 2410 (1968/69) > Messe e quarto de sargentos... Foi também, até ao início da guerra o edifício da filial local da empresa ASCO - Aly Souleiman & Conpanhia... O durante muito tempo o enigmático acrónimo (ou sigla)  A.S.C.O. ainda já estava nessa época. (e ainda hoje lá está) , ao cima da parede lateral direita (*).

Foto (legenda): © Luís Guerreiro (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Norberto Lopes (Vimioso, 1900-Linda A Velha, Oeiras, 1989) foi um notável jornalista e escritor, tendo estado entre outros ao serviço do "Diário de Lisboa", onde foi chefe de redação, desde 1921, cronista e grande repórter, além de diretor (entre 1956 e 1967). Saiu do "Diário de Lisboa" para cofundar em 1967 o vespertino "A Capital" (que dirigiu até 1970, ano em que se jubilou).

Mestre do jornalismo na época da censura, transmontano de
alma e coração,. sempre se bateu pela liberdade de expressão, que considerou a maior conquista do 25 de Abril. Entre a suas obras publicadadas, destaque-se:"Visado pela Censura: A Imprensa, Figuras, Evocações da Ditadura à Democracia "(1975). Aprendeu a lidar com a censura e os censores e a escrever nas entrelinhas.

Em sua honra e memória, foi criado pela Casa de Imprena o Prémio Norberto Lopes de Reportagem de Imprensa. Claro, conciso, preciso. objetivo e imparcial... são alguns dos atributos da sua escrita e do seu estilo como repórter da imprensa escrita, um dos maiores do nosso séc. XX português. Foi. além disso, um grande amigo da Guiné e dos guineenses. Tal como nós, também ele bebeu a água do Geba...

Já aqui publicámos uma nota de leitura sobre o seu livro "Terra Ardente -Narrativas da Guiné". (Lisboa, Editora Marítimo-Colonial, 1947, 148 pp. + fotos) (**).

Sobre o livro, o nosso crítico literário Beja Santos escreveu o seguinte:

"(...) Visitou a Guiné, como jornalista por ocasião das celebrações do 5.º centenário do seu descobrimento. Do que viu e sentiu publicou uma série de artigos e depois enfeixou-os sob o título de Terra Ardente. É uma prosa afogueada, sem fazer tagatés aos poderes do dia mas sem esconder a profunda admiração pelo trabalho do seu amigo Comandante Sarmento Rodrigues. 

(...) Convém recordar que Norberto Lopes tinha da Guiné um termo de comparação, visitara-a cerca de 20 anos antes. Agora, mostra o seu entusiasmo (...)' É incontestável que a Guiné está no limiar de uma era nova. Quem tenha percorrido, como eu, o interior da colónia e admirado alguns dos aspectos mais salientes do progresso realizado nos últimos tempos, não pode deixar de reconhecer que está a escrever na Guiné uma página nova e brilhante em matéria de administração colonial'. (...)


Enfim, diz Beja Santos, "há momentos em que o jornalista sem contenção mostra-se lavrante da prosa, aprimora o que em princípio é o espartilho do espaço da reportagem" (...)

Pois está  na altura de dar a conhecer,  um pouco mais, o trabalho de Norberto Lopes, sobre a Guiné ao tempo do governador geral Sarmento Rodrigues (***). O livro, "Terra Ardente", não é de fácil acesso,  para a generalidade dos nossos leitores, mas em contrapartida as suas reportagens publicadas do "Diário de Lisboa" podem ser lidas no portal Casa Comum, da Fundação Mário Soares.


2. Recuperámos e publicamos com a devida vénia, a narrativa nº 8, relativa à viagem Bolama-Bafatá... A reportagem foi originalmente publicada no "Diário de Lisboa",  em 25/2/1947.

Síntese:

(i) Norberto Lopes deixa Bolama, agora decadente, que ele conhecera, há anos atrás, ainda com o estatatuto de capital da Guiné, sob o governo de Velez Caroço, personagem que admira;

(ii) segue, cambando o Rio Grande, para São João e Fulacunda;

(iii) a decadência dos biafadas leva-o a refletir sobre o risco de crescente "islamização" dos povos da Guiné e a necessidade de apostar forte numa política de integração dos povos ribeirinhos, animistas (balantas, felupes, papéis, bijagós...);

(iv) dali segue para Buba, Xitole e Bambadinca, atravessando o rio Corubal de canoa, dado o colapso de um setor da ponte  General Carmona, logo depois da sua inauguração (1937);

(v) fala dos problemas de comunicação no território, de difícil resolução, o que é ilustrado com uma incrível foto de uma "ponte de estacaria" na estrada Gabu-Pirada (e não Tirada, evidente gralha tipográfica);

(vi) do outro lado do rio Corubal está uma carrinha "Austin" que o levará a Bambadinca e Bafatá, passando pelo Xitole, sendo esta  região descrita como uma das mais férteis e prósperas da Guiné;

(vii) Bambadinca é referida como uma "florescente povoação" e "importante centro comercial" mas é Bafatá que lhe enche os olhos;

(viii) aqui produzia-se na altura cerca de 14 mil toneladas de mancarra por ano, metade do total da produção da colónia;

(ix) vila desde 1918, Bafatá destronara a  histórica vila de Geba, tornando-se o segundo maior centro populacional e o maior entreposto comercial do território;

(x) são citadas duas grandes casas comerciais, que florescem na capital da mancarra;  a Aly Souleimane & Companhia, de origem sírio-libanesa (***), e a Barbosa & Comandita, de origem cabo-verdiana.

A descrição da vila de Bafatá e dos seus progressos termina com a seguinte nota de belo recorte literário:

“À noite acende-se a luz eléctrica. Já corre a água nos marcos fontenários. Trilam ralos. Coaxam sapos. Chiam morcegos. Silvos agudos anunciam a proximidade do mato, porque, em qualquer povoação da Guiné em que se estejam, a selva nunca está distante e faz sempre valer os seus direitos milenários”.

Como diríamos hoje,  a Guiné do tempo de Sarmento Rodrigues  (****) também teve a sorte de ter uma "boa imprensa"... Muito melhor, de resto,  da que tem hoje, infelizmente,  a Guiné-Bissau. (LG)
.





















Recorte do "Diário de Lisboa" (diretor: Joaquim Manso), nº 8708, ano 26, terça feira, 25 de fevereiro de 1947, pp. 1 e 3 .


Cortesia de portal Casa Comum > Fundação Mário Soares > Arquivos > Diário de Lisboa / Ruella Ramos > Pasta: 05780.044.11059

Citação:

Citação:(1947), "Diário de Lisboa", nº 8708, Ano 26, Terça, 25 de Fevereiro de 1947, CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_22398 (2017-9-20)


[Seleção, montagem dos recortes, edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
_____________


(***) Vd. poste de 19 de março de 2017 > Guiné 61/74 - P17155: Historiografia da presença portuguesa em África (72): Subsecretário de Estado das Colónias em visita triunfal à Guiné, de 27/1 a 24/2/1947 - Parte I: A consagração do governador geral, o comandante Sarmento Rodrigues, como homem reformador e empreendedor (Reportagem de Norberto Lopes, "Diário de Lisboa", 27/1/1947)

(****) Último poste da série > 20 de setembro de  2017 > Guiné 61/74 - P17782: Historiografia da presença portuguesa em África (91): 1ª Exposição Colonial Portuguesa, Porto, 1934: parte do seu sucesso foi devido à Rosinha Balanta, 'exposta ao vivo', e ao seu fotógrafo, o portuense Domingos Alvão (1872-1946)

4 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

1. Lamentavelmente, não temos um anuário das nossas empresas que operaram na Guiné até à data da independência... Se tem havido algum esforço nesse sentido, temos sido nós, aqui no blogue, a fazê-lo...

2. Alguém sabe mais alhuma coisa sobre a ASCO - Aly Souleiman & Companhia ? Por onde para esta família, sírio-libanesa ? Há descendentes em Portugal e/ou na Guiné-Bissau ?

Em 1956, tinha, além da sede em Bissau, filiais nas região de Bafatá e Gabu (Xime, Bambadinca, Baftá, Contuboel, Sonaco), na regão do Oio (Mansoa, Mansabá, Farim), na região do Cacheu (Pecixe, Bula), e região de Tombali (Catió, Cacine, Campeane, Gadamael)...

3. Não sei se Norberto Lopes voltou à Guiné, já no tempo da guerra... Não me parece, já que de 1956 a 1967 era diretor do diretor do "Diário de Lisboa"...

Tabanca Grande Luís Graça disse...

As gralhas tipográficas nos topónimos da Guiné eram frequentes, na imprensa escrita: já detetámos alguns: Tirada em vez de Pirada, Contubos em vez de Contuboel...

Por outro lado, gostava de poder localizar a tabanca de Portugal, perto do Xitole (ou Chitole, em 1947), referida pelo jornalista...

Tabanca Grande Luís Graça disse...

O nosso saudoso amigo e grã-tabanqueiro Pepito (Bissau, 1949-Lisboa, 2014), descrevia Bissau, no início dos anos 50 do século passado, nestes termos:

(...) Acompanhava-o [, ao Amílcar Cabral.] a sua primeira mulher, Maria Helena Rodrigues, silvicultora, que chegando 3 meses depois dele, ia conhecer pela primeira vez a cidade de Bissau, nessa altura uma pequena urbe com muito poucos habitantes, espalhados por duas zonas distintas: de um lado a cidade colonial, dita “civilizada”, que incluía a Fortaleza da Amura, o agora chamado “Bissau Velho”, o porto de Pindjiguiti e a avenida da Republica, hoje Amílcar Cabral.

Esta parte estendia-se até ao monumento “Esforço da Raça” e Palácio do Governo, nessa altura ainda em construção; do outro, à volta do centro, localizava-se a parte popular, dita dos “indígenas”, onde vivia maioritariamente a etnia pepel.

Era na parte colonial que moravam os poucos intelectuais presentes no país e se encontravam localizadas as grandes firmas estrangeiras como a NOSOCO e a SCOA, às quais se juntavam as portuguesas (A.C. Gouveia, Barbosa & Comandita, Álvaro Camacho e Sociedade Comercial Ultramarina, entre outras) e uma enorme plêiade de pequenos comerciantes libaneses como Mamud ElAwar, Aly Souleiman, Michel Ajouz, etc.

No resto do país o comércio de produtos e bens elementares era fundamentalmente assegurado pelos “djilas”, comerciantes ambulantes que percorriam de bicicleta e canoa todo o território. (...)


https://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/2013/01/guine-6374-p10966-amilcar-cabral-um.html

Antº Rosinha disse...

"Não sei se Norberto Lopes voltou à Guiné, já no tempo da guerra..."

Luís, Norberto Lopes talvez nunca mais tenha voltado à Guiné nem ao além-mar, nem por falta de jornais em Bissau se tenha lio muitas coisas do homem.

Mas nos jornais diários de Luanda, por exemplo, talvez fossem lidas colunas diárias deste jornalista durante toda a guerra até ao fim e sempre sobre a causa ultramarina.

Estou convencido que era um grande entusiasta das coisas que iam de Bissau a Timor, tal como muitos anti ou pró-salazaristas daquela geração de gente: Galvão, Delgado, Norton de Matos, para não mencionar os prós que eram aos milhares.