segunda-feira, 26 de junho de 2017

Guiné 61/74 - P17515: Facebook...ando (45): A cotovia dançante (Manuel Luís R. Sousa, SAj Reformado)

Cotovia
Com a devida vénia ao autor da foto


1. "A cotovia dançante" é um texto do nosso camarada Manuel Luís R. Sousa, Sargento-Ajudante da GNR na situação de Reforma, (ex-Soldado da 2.ª CCAÇ / BCAÇ 4512/72, Jumbembem, 1972/74), publicado por ele no Facebook que não resisti e incluir no nosso Blogue. 
As memórias e as gentes de Trás-os-Montes são para mim um fascínio.
Carlos Vinhal


A cotovia dançante

Nos anos sessenta do século passado, ainda durante a vigência do Estado Novo, as famílias mais abastadas ou remediadas de Trás-os-Montes, tinham como um dos seus principais objectivos mandar educar os seus filhos, afastando-os do trabalho duro do campo de onde provinham os seus principais rendimentos, recorrendo ao trabalho de assalariados, daqueles que não estudavam, para manterem as suas terras granjeadas.
Terem um filho doutor, engenheiro, professor, médico, ou outras profissões qualificadas, era algo que lhes dava orgulho, estatuto.

Era notório o frenético bulício em casa dessas famílias com a ansiedade de receberem os meninos ou as meninas, ainda na fase dos estudos ou já a trabalharem, por altura das férias da Páscoa, Natal e, eventualmente, em fins-de-semana, reservando-lhes os miminhos da época que a terra dava, ou, então, desdobravam-se em canseiras, quando eles não vinham a casa, a despachar-lhes esses mimos através do Caminho-de-ferro ou mesmo pelos correios.
Destas iguarias, destaco as frutas da época, os folares por altura da Páscoa, por exemplo.

Quando estes seus rebentos vinham à terra destacavam-se, em relação aos trabalhadores do campo, pelo seu aspecto citadino, bem vestidos e mais polidos no trato, mantendo-se um pouco distantes, conscientemente ou não, dos jovens da aldeia seus contemporâneos que não tiveram possibilidades de estudar, ainda que, alguns, com capacidade para tal, não abrindo mão do seu estatuto maior. “Que tirassem o cavalinho da chuva” um ou outro jovem “inculto” da aldeia se sonhassem sequer fazer a corte a algum ou alguma dessas criaturas “eruditas”, que até tinham sido colegas de classe e de carteira durante o ensino primário.
“Cada macaco no seu galho”, melhor dizendo, as diferenças sociais, naquele tempo, tinham uma fronteira bem definida.

Depois, a partir de 1974, após a revolução de Abril, com a generalização do ensino, abrangendo todas as famílias, esbateram-se todas aquelas diferenças sociais.
Alargou-se, portanto, a um maior número de jovens a possibilidade de saírem da terra para estudarem e trabalharem também nos grandes centros urbanos, enveredando por profissões mais ou menos qualificadas no sector terciário da economia, nos serviços, regressando também a casa por altura das festas do ano, onde os pais e restantes familiares os recebiam rejubilando de alegria.
Só que, com esta mudança, em total desequilíbrio, a sangria das gentes das aldeias aumentou exponencialmente, até porque coincidiu também com o fenómeno migratório do país, concretamente a emigração, levando à desertificação do interior, particularmente de Trás-os-Montes.
Ou seja, aquelas gerações de jovens, hoje já “entradotes”, com filhos adultos, outrora recebidos com exultação e mimados pela família quando periodicamente regressavam a casa, actualmente chegam à aldeia e notam, com mágoa, que as cortinas da janela da casa que os acolhia se mantêm estáticas no interior da vidraça, eventualmente com teias de aranha, por entre as quais, tantas vezes, surgia o primeiro sorriso de boas-vindas, sinal de que os que antes os recebiam em festa já partiram, dando lugar a um silêncio sepulcral que faz doer a alma.

Hoje, no meu caso pessoal, embora morando longe pelas razões já referidas, e ligado que estou sentimentalmente a essas terras de família parcialmente abandonadas naquelas circunstâncias, desloco-me frequentemente a Freixiel, Vila Flor, em que se concentra toda esta história, a fim de, na medida do possível, ir adiando o abandono completo de uma ou outra propriedade: podar algumas videiras para, no tempo, ter a possibilidade de comer uns “mouriscos”, aplicar herbicida, apanhar azeitona, etc.

Nesta rotina anual de tentar preservar essas humildes leiras que a geração anterior nos deixou, no mês de Fevereiro deste ano, 2017, pondo as rodas ao caminho de cerca de duzentos quilómetros, a partir de Vila do Conde, podei as videiras nas “Melaínhas”, é assim que se chama uma das propriedades, e, nessa altura, podei também um grande damasqueiro, almejando deliciar-me com os frutos, cuja maturação ocorre em Junho.
Com vista a recuperar a excelente qualidade de uma macieira existente na propriedade já na fase decadente do tempo útil de vida, enxertei uma outra pequena de duas que tinha ali plantado em Novembro do ano passado, precisamente para esse efeito.

Em Março, voltei ali para aplicar o herbicida, tendo verificado que o referido damasqueiro já mostrava umas dúzias de damascos na fase inicial da sua formação que espreitavam por entre a rebentação da ramagem depois da poda.

Chegado agora o mês de Junho, pelos meus cálculos, achei que estava na altura de ali regressar com alguns objectivos bem definidos: aplicar novamente o herbicida nas ervas que germinaram no verão; inteirar-me do estado de evolução da enxertia da macieira; apanhar os damascos do damasqueiro que tinha podado; saborear as cerejas de três cerejeiras, duas das quais ainda pequenas que, entretanto, eu também tinha enxertado há dois ou três anos; apalpar uns figos lampos e deleitar-me com eles caso estivessem maduros.

Cheguei à aldeia num dia particularmente quente, cerca do meio-dia, o que me obrigou a fazer uma sesta prolongada até ao fim da tarde.
Já a serra “Tinta” se entrepunha entre o sol- poente e as “Melaínhas” ao fim da tarde, quando ali cheguei, agora pela fresca, para aferir do estado do terreno para no dia seguinte, bem cedo, aplicar o herbicida e particularmente curioso em ver o estado de tudo o que acima enumerei:
A pequena macieira, uma das duas que plantei, para minha satisfação, apresentava a enxertia consolidada, com dois rebentos já bem desenvolvidos;
Dirigindo-me ao damasqueiro, de pujante de ramagem, apenas encontrei três ou quatro damascos no chão, apressando-me a apanhá-los e a disputar a minha parte com as formigas, neles engalfinhadas aos centos, desalojando-as com duas assopradelas, que com sofreguidão saboreei a sua excepcional doçura;
As cerejas, nem uma para a prova. Já os pássaros tinham passado com a “cesta” antes de mim;
Os figos lampos estavam ainda duros como cabaças e nem um pude tragar. Portanto, apenas com a boca doce dos damascos, que resgatei da voracidade das formigas, limitei-me a acabar de dar volta à propriedade, constatando também que as oliveiras já mostravam a azeitona formada, depois da floração, do tamanho aproximado de grãos de chumbo, deixando antever, se tudo correr bem, uma generosa colheita.

Ao lusco-fusco, entrei no caminho que ladeia a terra para voltar a casa.
Sem viva alma por ali àquela hora, do outro lado do caminho, pousada nos arames da vinha do vizinho Pedro Melo, vi uma cotovia a executar eventualmente os últimos acordes do dia do seu canto, como que a assinalar a hora do recolher, visto que a noite já avançava.
Por cortesia para com a ave, parei e procurei imitar o seu canto com o meu assobio natural, vocal.
Ora, esta apercebendo-se de que eu falava a mesma linguagem, com algum sotaque, eventualmente, ou seja, que cantava a mesma canção, circundou-me algumas vezes em voo lento, como curiosa em observar-me. Depois, ora pousava na parede da nossa propriedade no meu lado esquerdo, ora nos arames da vinha do vizinho, do lado direito, à minha frente, a responder-me a cada vez que eu assobiava e a imitava, exibindo-se numa espécie de bailado.

Como se não bastasse já estar fascinado pela simpatia e destreza da ave, ali imobilizado como uma estátua, esta, a dada altura, pousou no caminho à minha frente, a escassa meia dúzia de metros, numa sucessão de vénias, ora envolvendo-se no pó do caminho, rojando sucessivas vezes o peito no chão, ora exibindo a plumagem eriçada como a querer atingir o meu tamanho, pondo em destaque a crista de plumagem que caracteriza a espécie, num ritual idêntico ao de, sendo macho, atrair uma fêmea.
- Por quem és, cotovia, quem sou eu para merecer de ti tanta deferência…! Pensei cá comigo.

Inebriado com todo aquele episódio, de repente fui tomado por um estranho arrepio na espinha, ao lembrar-me de alguém, que já partiu, de cujo rosto irradiava o sorriso com que nos recebia, feliz, habitualmente por entre aquelas cortinas de renda branca da janela, ao ser alertado pelo trabalhar do motor do carro quando chegávamos. Cortinas que, nostálgico, vi imóveis, como habitualmente acontece depois da sua partida, nessa manhã quando ali parei o carro em frente a casa ao terminar a viagem.

Perante esta sensação estranha, interiorizei em mim, sem que para isso tenha qualquer explicação plausível, que esse ente querido estava a comunicar comigo através da dança daquela pequena ave, saudando-me por me empenhar em zelar aquelas terrinhas que nos deixou, e perguntando-me por novas de toda a prole, que ela, como matriarca que era, devotada e incondicionalmente amava. Fantasias ou ilusões minhas, claro.
Ou não...

Depois daquele nosso “diálogo” de um ou dois minutos, a cotovia dançante circundou-me mais uma vez em voo rasante, como a despedir-se, e partiu embrenhando-se na noite que já caía.

Manuel Sousa
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Nota do editor

Último poste da série de 1 de fevereiro de 2017 > Guiné 61/74 - P17012: Facebook...ando (44): Quem não chora não mama e, para a tosse, um chazinho de cascas de cebola com limão, adoçado com um pouco de mel (Manuel Luís R. Sousa)

3 comentários:

Manuel Sousa disse...

Obrigado amigo Carlos Vinhal pela tua generosidade em estares sempre disponível para todos nós, companheiros de luta, neste caso reproduzindo com exactidão, como é teu apanágio de perfeccionista editor deste blogue, este meu texto da"Cotovia Dançante", um retrato que faço de terras transmontanas, a minha naturalidade.

Obrigado, mais uma vez.

Anónimo disse...



Amigo e camarada Manuel Sousa:

Somos conterrâneos do Nordeste Transmontano e as nossas experiências do passado têm muita coisa em comum. Com alguma variação dependente dos anos e dos costumes das aldeias o relacionamento dos rapazes que saiam para estudar, com os seus familiares e os outros rapazes era bastante semelhante ao que eu conheci. Se bem que na minha aldeia somente os filhos dos ricos, quatro famílias, das quais no meu tempo, só os filhos de uma delas estudava, tinham direito a um tratamento diferenciado com as correspondentes vénias, da maioria dos filhos dos trabalhadores à jeira e até mesmo de alguns filhos de lavradores que também estudavam. Tudo isso tinha relação com a distribuição de terras que era desigual entre as aldeias. Mas meu amigo do que gostei mais foi do teu diálogo com a cotovia, e da comunicação que através da dança e dos cantares estabelecestes os dois. Com essa estória tão linda, tão poética, fazes reviver a tua mãe com a sensibilidade e a saudade que te é própria, tão própria como o teu amor à natureza, as aves, às planta. às árvores.
Serás sempre feliz porque tu estás em comunhão com tudo o que é essencial à vida.
Um grande abraço.
Francisco Baptista

Manuel Sousa disse...

Obrigado amigo Francisco Batista pelo teu eloquente comentário, como, aliás, é teu predicado sempre que escreves.
Sendo eu de Folgares e Freixiel, Vila Flor, e tu de Brunhoso, Mogadouro, não sei se estou enganado em relação à tua aldeia, corrigir-me-ás se for o caso, está no nosso ADN o amor e a paixão por aqueles idílicos recantos transmontanos, que nos viram nascer, e as suas gentes.
Separadas aquelas aldeias por uma escassa meia dúzia de léguas, faz com que, como bem dizes, tenhamos tido muitas experiências em comum dos verdes anos da nossa juventude, que, de vezes em quando, através destes textos, damos a conhecer aos nossos companheiros de luta usando como canal este nosso blogue.
O nosso amigo Carlos Vinhal está sempre atento no seu “posto de sentinela” e não deixa escapar um.
Um abraço para ti e para ele.

Manuel Sousa