sexta-feira, 7 de abril de 2017

Guiné 61/74 - P17218: Notas de leitura (944): “O país fantasma”, de Vasco Luís Curado, Publicações Dom Quixote, 2015 (3) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Janeiro de 2016:

Queridos amigos,
São quase 500 páginas de uma história bem contada, tudo irá começar no torvelinho dos acontecimentos de 1961, com o massacre de brancos e pretos em fazendas no Norte de Angola. O escritor vai pondo os protagonistas no terreno, descobre um ponto de encontro para eles comunicarem e lança-os, em plena guerra civil, a viajar em colunas como refugiados em que se volatizou a esperança.
Uma estrutura impecável, com as tensões bem doseadas, é um caminhar até 1975 sem mascarar os dramas humanos, sem lamechices, sem bodes expiatórios, cuidando de que há sempre um juízo histórico para aquilatar como se decidiu, como se errou, como se perdeu e achou.

Um abraço do
Mário


O país fantasma, por Vasco Luís Curado (3)

Beja Santos

Continua a escalada da guerra civil, os brancos, em colunas quilométricas, chegam a Nova Lisboa, procuram a família e os amigos. Célia, a namorada de Alexandre, viaja com elementos de um partido da extrema-direita branca, gente que criou um esquadrão da morte encarregado de cometer assassinatos políticos, assaltos a portos policiais e quartéis para obter armas. “Queriam sabotar o programa para a independência. Assaltavam bancos e carrinhas de valor, agentes cambistas, estações de rádio, fábricas. Infiltrados em negócios de tráfico de armas, formaram um arsenal particular com armas ligeiras e pesadas. Suspeitava-se de que tinham sido eles a atacar uma viatura militar portuguesa, disfarçados com fardas da FAPLA, para criar confusão entre os militares portugueses e o MLPA”. Tomé, o elemento do esquadrão da morte explica a Célia como é que pretendem reestabelecer a ordem em Angola:
“Receberemos ajuda da África do Sul. Vamos fazer o que já devíamos ter feito há muito tempo, se os brancos não estivessem tão desunidos e não fossem enganados por Lisboa. Vamos proclamar unilateralmente a independência de Angola e construir um Estado à imagem da Rodésia. Uma aliança entre as forças armadas sul-africanas e a FNLA, com muitos portugueses à mistura, derrotará o MPLA”.
Célia agradece a boleia, sai em Sá da Bandeira. Capelo, antigo oficial português e fazendeiro na Gabela, discursa na primeira pessoa do singular, narra que chegaram a Nova Lisboa, os refugiados procuram um conforto possível naquele pandemónio. Inscrevem-se na lista de espera do voo para Portugal:
“A maior ponte aérea civil do mundo atingiu proporções que ninguém previra. Não havia horários de voo. Assim que aterrava, um avião reabastecia-se de combustível, enchia-se de passageiros até aos limites mínimos de segurança e descolava. Não se sabia quando chegaria o seguinte”.
Tudo serve para fugir, parece um êxodo bíblico: viaja-se em barcos de capotagem e barcaças, no paquete de luxo Infante D. Henrique, colunas motorizadas, algumas com 3 mil camiões, empreenderam a travessia de África em direção a Portugal, arrisca-se tudo para sair do Inferno. Nova Lisboa está num caos, já se comprou todo o ouro possível, a moeda estrangeira era trocada por angolares a um quinto do valor oficial. Comprava-se tudo o que os refugiados ou as empresas vendiam barato por não poderem transportar para fora do país. Todos os fugitivos têm histórias deprimentes para contar. Célia parte para se juntar à família em Nova Lisboa, é impossível chegar a onde está Alexandre. Sobrelotada, Nova Lisboa rebenta pelas costuras: vai desaparecendo a comida, as fábricas fecham, as quintas e vacarias eram assaltadas e os guerrilheiros matavam animais caros, como vacas leiteiras, por serem brancos e ser necessário matar tudo o que era branco. Depois, começou a faltar o carvão, a lenha, o gás e a gasolina. A capital da região agropecuária mais rica de Angola estava a passar fome. Aquela família vai para o aeroporto no dia marcado para o voo, tudo caótico:
“As listas de espera obrigavam pessoas a viver ali há mais de uma semana. Havia tendas oferecidas pelo Exército, havia abrigos improvisados com chapas de zinco como teto, entre caixotes e malas. Cozinhava-se o que se podia”.
Ouve-se perfeitamente o tiroteio, depois de muitas peripécias entram no avião:
“O piloto recusou a descolar enquanto estivesse montada uma metralhadora antiaérea sobre o telhado do aeroporto”.
E assim chegam a Lisboa, é o tormento da adaptação, a via-sacra à procura de familiares ou de um espaço definido pelas autoridades. Voltou-se ao discurso na primeira pessoa do singular, um discurso penitente, uma sentida discriminação, a vida vai-se refazendo, como diz o autor somos também o resultado de catástrofes e mudanças, aquela última descolonização africana era apenas um episódio de perdas e sobrevivência que os seres humanos protagonizavam.

O ponto de encontro destes retornados é a Baixa, mais propriamente o Rossio. Capelo e Mateus reencontram-se. Em Portugal vive-se o período revolucionário. À porta do Banco de Portugal, são longas as filas dos funcionários públicos do Quadro de Adidos, vêm levantar o vencimento, conversam, desabafam, contam histórias mirabolantes dos caixotes que se extraviaram. Os retornados vão acompanhar as notícias da intensa guerra civil, sobretudo do que se vai passar em Luanda, à volta do 11 de Novembro de 1965. Capelo reencontra a irmã, é uma conversa de surdos. Estamos em Novembro, o Rossio está cheio de gente, há para ali uma manifestação, pretendem levar um caixão com terra de Angola para o Palácio de Belém. Do outro lado há uma outra pequena multidão de ex-combatentes das guerras de África, os ânimos aquecem, o confronto é iminente, e o final do romance histórico é metafórico, sublime:
“O caixão que continha terra de Angola foi erguido no ar, acima das cabeças, e só então é que Mateus o viu. Num impulso absurdo, vários braços empurraram o caixão na direção dos ex-combatentes, como para lhes mostrar que tinham alguma culpa pelo morto de que se estava a fazer o funeral simbólico. Pondo-se em bicos de pés, Mateus tornou a ver o caixão, caravela periclitante movida por vagas e vagas de braços, que alcançou o limite daquele mar e oscilou mais ainda, por que já não se sabia que rumo lhe dar, e desapareceu da sua vista, náufrago”.

A trama de um romance histórico como este é um correr da escrita em cima da lâmina, é preciso uma história muito bem contada, plausível, com gente que aparenta ter carne e osso para que a narrativa capture o leitor, é então que o rigor histórico, ou quase, corre fluido entre os parágrafos, e toda aquela multidão que vivera tantos anos longe da guerra apercebe-se que chegou a hora de partir, aquele dragão vomita um fogo que os colonos não poderão apagar. Vasco de Luís Curado ganhou a aposta com este importante romance histórico, em que as próprias descrições da violência se inserem corretamente na tessitura das descrições. Naquele ano de 1975 chegaram náufragos que contribuíram para o fermento novo da democracia portuguesa.
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Nota do editor

Último poste da série de 3 de abril de 2017 > Guiné 61/74 - P17202: Notas de leitura (943): “O país fantasma”, de Vasco Luís Curado, Publicações Dom Quixote, 2015 (2) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Antº Rosinha disse...

Mais uma boa descoberta de BS.

Mas estas histórias de retornados, talvez mais completo já teria escrito Felícia Cabrita e outros, nunca serão retrato total, se não virmos o olhar de brancos e pretos.

E aqui parece que o olhar do africano não se nota, ou aparece pouco.

Nem mesmo têm aparecido escritores brancos/mestiços/africanos/retornados a esmiuçar o assunto.

Parece que há um retraimento, ou escrúpulos a mais, dessa estirpe de gente, que são os mais lúcidos de todos os que possam falar do assunto.

Uma pena que não apareça essa gente a que me refiro, a escrever sobre o assunto:retornados.