segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

Guiné 61/74 - P17088: Notas de leitura (932): “Baía dos Tigres”, por Pedro Rosa Mendes, Publicações Dom Quixote, 1999 (3) (Mário Beja Santos)



Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Dezembro de 2015:

Queridos amigos,
Baía dos Tigres foi o primeiro livro dos jornalista Pedro Rosa Mendes, a obra ganhou prontamente notoriedade e foi publicada em Espanha, França, Alemanha, Itália, Grã-Bretanha e Estados Unidos.
Não conheço na literatura de viagens, em língua portuguesa, um pesadelo de tal envergadura no desenho do teatro de horrores, há para ali figuras de Shakespeare, umas desavindas com o destino, outras obstinadas em manterem-se naqueles lugares com que se identificam, nenhuma razão os faz partir, é uma peregrinação trágica de um repórter que partiu de Lisboa com a convicção de que era exequível, um século depois, cumprir o famosíssimo trajeto de Capello e Ivens, de Luanda a Quelimane. Pedro Rosa Mendes deambulará entre guerras, e mesmo a tragédia moçambicana não escapa ao seu olhar.
Quando concluímos a leitura desta obra prodigiosa somos levados a rememorar a guerra que experimentámos, a que se atribuía uma causa e um sentido. E à distância física dos tormentos, temos que reconhecer que quem fica, por amor ou obrigação, é joguete de ambições, carne para canhão, e naqueles jogos monstruosos há gente que se locupleta e goza com o sofrimento dos outros.

Um abraço do
Mário


Baía dos Tigres, por Pedro Rosa Mendes: 
uma obra-prima na descida aos infernos (3)

Beja Santos

Em “Baía dos Tigres”, Publicações Dom Quixote, Pedro Rosa Mendes não só descreve e anota magistralmente os lugares e as pessoas que vai encontrando numa viagem impossível que seria a travessia do continente africano por terra, algo como o itinerário que Capello e Ivens percorreram e que consta do famosíssimo relato “De Angola à Contracosta”, como conta histórias e ouve testemunhos que nos deixam pregados às descrições emocionantes. Tome-se o caso de Ben-Ben:
“Ben-Ben, futuro chefe do estado-maior das FALA e delfim de Jonas Savimbi, era apenas um alferes quando foi a casa de João Miranda no Dirico para o escoltar à morte. João Miranda estava havia 20 dias em prisão domiciliária porque a UNITA o acusara de ser um agente da PIDE. O preso não se revia em nenhuma das acusações.
João Miranda, natural de Bragança (1945) e em Angola desde os 11 anos, tinha família e loja no Dirico. A administração, a polícia e os muitos amigos na pequena povoação tentaram protegê-lo da condenação mas a UNITA insistia em relacioná-lo com a PIDE. A solução foi a fuga. O agente Covachan da PSP (mais tarde fez parte da segurança do presidente Ramalho Eanes), preparou-lhe a fuga numa noite de Janeiro de 1975, providenciando diesel às escondidas para que João Miranda pudesse atingir o Mucusso.
A mulher, Elisabete, e as filhas saíram noutra viatura com o pretexto de irem na direção contrária, de compras ao Huambo. O plano era atravessarem o rio Cubango de canoa, no Calai. Quando chegou ao Mucusso e passou a fronteira para o Sudoeste Africano, as autoridades sul-africanas responderam com rapidez. Comunicaram com o comando do Rundu, que enviou prontamente tropas para receber a família no Calai”.

Há um Paulo de Sousa em Lusaca que é super-enérgico e super-influente, o repórter esboça uma água-forte portentosa, inigualável. Como portentosa é a descrição dos bombeiros, mestiços ou negros, que representavam interesses comerciais em zonas do sertão angolano onde os brancos não podiam chegar. A história é tão mais curiosa dado o facto de Pedro João Baptista e Anastácio Francisco se terem antecipado meio-século à primeira travessia do continente por Livingstone (1854-56) de Luanda a Quelimane. E sabe-se que tal aconteceu de ciência certa, Pedro João Batista escreveu um diário. E o autor observa:
“Uma das delícias do Diário de Pedro João Baptista é o seu estilo. Não era um letrado não sendo um analfabeto, era um militar sertanejo. Escrevia com os pés mas olhava com génio. O pombeiro inventou uma gramática anárquica, onde o discurso direto irrompe sem aviso e os verbos não têm isso de conjugação, onde a pontuação tem a irregularidade do fôlego e expressões eruditas convivem com um léxico existente em nenhum dicionário. Os conceitos científicos não estão lá. Os pontos cardeais não existem mas é uma evidência que Leste se diz “andar com o sol na cara”. O rigor da descrição é tal que foi fácil identificar os locais e acidentes por onde passou o pombeiro”.

Outra apreciação exemplar é a do brigadeiro-general Kalutotai:
“O brigadeiro-general vive numa das pequenas casas arrasadas pela invasão sul-africana e pela guerra civil. Não serão mais do que 10, as ruínas delas, moradias de guerreiros, sem arruamento mas alinhadas numa alameda de árvores enormes que dão sombra a uma história de violência total. A mobília desapareceu no fogo e o resto são instalações de zinco, esteiras, buracos de bala e de obus, alguidares e cães, roupas que secam e bebés que choram a céu aberto. Estes são os privilégios de Kalutotai, comandante da UNITA na área militar do Caiundo. A localidade do Caiundo – o antigo centro de cantineiros, lojistas do mato – erguia-se numa elevação sobre o Cubango, a ponte que ligava ao Sudoeste Africano foi dinamitada em 1975. De dia, se é de paz, o brigadeiro senta-se na varanda térrea e, sem mexer um dedo, ou mexendo apenas o pequeno chicote contra a perna esticada, controla a reta que traz ao rio a estrada de Menongue para a Namíbia. Ele vê sempre muito antes de ser visto. É talvez por isso que continua vivo. O Caiundo é uma célula onde flutuam canoas e Kalutotai é comandante da sua própria prisão perpétua. Em Angola, os partidos – dois exércitos – não são opções ideológicas, tornaram-se simples contingências geográficas – combate-se e vota-se pelo sítio onde se está”.

É Kalutotai que autoriza que o autor prossiga viagem, será uma viagem indescritível. A carta que Pedro Rosa Mendes escreve ao senhor Ventura, diretor da Direção de Estrangeiros e fronteiras de Angola, Cuíto, Bié, Angola, é prosa memorável, crítica mais mordaz aos pequenos poderes do funcionário déspota e mesquinho não pode haver. O autor despedaça-o, redu-lo à sua insignificância:
“Disseram-me que Vossa Excelência era muito nervoso e muito crente. Fiquei chocado e contente. Gente assim produz conversões dramáticas. Deus é a sua última hipótese.
Como na última vez que o vi, Vossa Excelência não me está a olhar nos olhos: nessa ocasião não conseguia, hoje não pode. Dá igual: “Não lhe dou mão nem adeus. Nada fez para merecer isso”.

Viajamos aos tropeções, sempre pela mão do autor, atravessamos fronteiras, conhecemos pessoas extraídas de preciosas antologias do exótico ou do extraordinário. Viajamos à toa, por vezes com a respiração suspensa, o autor corre perigos:
“José rema o meu sarcófago pelas ilhas e rápidos. Costuramos uma fronteira: há ilhas que são Namíbia, outras são Angola. Vou deitado no chão da canoa, com os braços estendidos ao lado do corpo, e a canoa adapta-se ao meu corpo. A cabeça e os ombros encaixam nela. Um sarcófago é isso, uma caixa à medida para a última travessia. Tivemos de aguardar a noite para voltar a Angola encobertos por ela. Devido ao embargo das Nações Unidas, a fronteira angolana está fechada nas áreas controladas pela UNITA, como é o caso do Cuando Cubango. Na Faixa de Caprivi o controlo é muito apertado. As patrulhas namibianas andam rio acima e rio abaixo. São renhidamente zelosas eficientes, quando veem alguém atravessar o rio atiram a matar”.

O belo horrível é dado pelo cristalino da língua, impecável, e os pormenores mais medonhos, contados com absoluta dureza. Ouve-se um piano, este sufoca os gritos dos executados, temos uma descrição do horror absoluto:
“Os jovens da Organização dos Pioneiros de Angola tinham a sua bandeira e toda a gente tinha que se pôr em sentido num raio de três quarteirões quando era hasteada. Quem não, levava um tiro ou era preso, os meninos da OPA treinavam-se nisso para ser futuros dirigentes. Os camponeses não sabiam, distraiam-se, eram levados para a cave daquela casa abandonada – era de uma professora de música que fugira meses antes – e torturados ao som do piano para o piano abafar os seus gritos. O terror lança mão de qualquer objeto. Até de um piano”.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 24 de Fevereiro de 2017 > Guiné 61/74 - P17079: Notas de leitura (931): “Baía dos Tigres”, por Pedro Rosa Mendes, Publicações Dom Quixote, 1999 (2) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Patricio Ribeiro disse...

Estou a aguardar, quando é que o Pedro faz sair o livro sobre a Guiné, das suas muitas recolhas desde há muitos anos, sobre um dos seus presidentes...
Abraço