segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

Guiné 61/74 - P16907: Notas de leitura (916): “Guiné, Crónicas de Guerra e Amor”, da autoria de Paulo Salgado, Lema d’Origem Editora, 2016 (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Dezembro de 2016:

Queridos amigos,
Estas crónicas do confrade Paulo Salgado desobedecem às narrativas convencionais de um barco a partir, de um contingente a chegar, o choque das culturas, os desatinos da guerra, até à hora em que se dá a missão por cumprida. O autor pretende pôr ao espelho, de forma sincopada, a presença portuguesa até aos alvores da luta pela independência, umas vezes é um alferes combatente no Olossato, outras vezes cooperante, e neste caso a narrativa tem dois tempos e dois olhares ao espelho. Dir-se-á que uma guerra nunca acaba, são sulcos profundos e as memórias desaguam quando, no mesmo palco, e num outro quadro político, se dá um doloroso confronto: fez-se tanta guerra, usou-se de tanto heroísmo para que quem venceu ficasse tão apoucado?

Um abraço do
Mário


Guiné, crónicas de guerra e amor, por Paulo Salgado (2)

Beja Santos

“Guiné, Crónicas de Guerra e Amor”, Lema d’Origem Editora, 2016, de Paulo Salgado, faz parte da literatura de regressos, tem trama imaginativa: um alferes que combateu no Olossato e que regressa 20 anos depois; um entremeado de enredos com arco histórico amplo, desde a chegada à Senegâmbia até uma quase atualidade.

Vimos, em trecho anterior, que o alferes Alberto combate na região do Morés, Ponte de Maqué e Olossato são aquartelamentos que conhece na perfeição, as narrativas desdobram-se sob emboscadas, patrulhamentos, homens de carne e osso, brancos e pretos, há desejos de mulheres e há mulheres prisioneiras que depois voltam para o Morés.

Intui-se que o autor pretende dar-nos uma grande angular desses Descobrimentos, das relações interétnicas e cruzar a história de Portugal com a da Guiné, antes e depois da luta armada. Nesta literatura de regressos é bem possível, e não há que contestar, que se socorra da retórica e de uma verbosidade que supere distâncias e cronologias. Assim, se deve entender a filípica de Meireles, um subordinado de Alberto, quando diz:

“Apercebi-me em Santa Margarida que poderia resistir. A vacina era coletiva, envolvia todos, tomava todos pela mesma medida. Mas apercebi-me, ainda lá, que seria possível resistir sem quebrar todos os sentimentos de decência e de humanidade que cada um tem à sua medida; apercebi-me que alguns companheiros de sorte, ou de má sorte, contribuiriam para passarmos este cabo de tormentas. Mas tanto vilipêndio, tanta degradação, nunca imaginei!”.

Alberto interroga-o:

“Vais dizer-me o que efetivamente tens calado bem no fundo do teu ser, vais contar-me o que verdadeiramente te preocupa”. E Meireles soluça: “Meu alferes, o meu maior amigo, que brincou comigo na escola, na minha rua e o no meu bairro; que namorou as mesmas garotas; e com quem, já crescido, percorri as praias e as montanhas de Sintra nas nossas motas; aquele que considerava um irmão morreu numa emboscada em Guileje…”.

E termina o trecho, interrogativamente: “Os homens, os militares, também choram?”. Nesta literatura de regressos pode haver uma retórica que ajude a relevar as dores inultrapassáveis, as perdas afetivas irremissíveis.

É uma história de Portugal onde se fala da epopeia da construção da fortaleza de S. José ou de Amura, também da epopeia da missionação, e daí Frei Cipriano que andou por Caió, e dá-se toda a ênfase à visita ao Morés, 20 anos depois de por ali, nas fímbrias, se ter combatido. Descreve-se o modelo daquela base que nunca se conquistou a despeito de bombardeamentos contínuos, do uso maciço das forças especiais, de por ali terem tentado entrar vários batalhões. Um ancião combatente descreve a Alberto a vida no Morés, o seu hospital, a mudança permanente das casas de mato. Aquele ancião é um homem de convicções, mas não esconde o seu desalento:

“Estou velho, cansado, com mil dificuldades. O Partido prometeu; mas agora o governo não cumpre; não temos nada de nada. Os olhos entristeciam-se-lhe”.

A narrativa move-se numa corrediça entre o passado e o presente: fala-se das urnas que estavam em Bissorã e que os do Olossato recusaram; numa atualidade que nos é próxima, o cooperante Alberto encontrou um caçador que vive há décadas na Guiné, um autêntico “lançado”; o mesmo cooperante Alberto ouve desabafos do médico no Hospital Simão Mendes, um médico que não tem recursos para mitigar sofrimentos e salvar vidas… E dentro deste arco histórico, o autor destaca páginas onde é patente a frágil presença colonial portuguesa é o caso da carta enviada pelo governador de Cabo Verde, Maldonado de Eça, ao ministro da Fazenda, Marquês de Ponte Lima, estamos nos fins do século XVIII, diz cabalmente:

“A Praça de S. José está em estado de desgraça, pois as construções estão em ruínas, a guarnição de 190 soldados sem pagamentos e sem vestuário, andando os homens trajando como os nativos, e a população católica sem serviço religioso. A Praça de Cacheu está quase abandonada, a artilharia sem reparos, os soldados como os de Bissau, o serviço religioso nesta dita Praça e na de Ziguinchor não é celebrado, pois o padre se refugiou na povoação, em concubinato, os soldados e os poucos particulares são obrigados a vender escravos para comprar mantimentos”.

E há os medos, sempre enleantes, no crescendo de ansiedade antes das operações, apresentam-se pretextos para não participar, ter medo não é desumano. Fala-se de um lançado célebre, Ganagoga, de nome João Ferreira, perdido de amores por Kali. E depois aquele cooperante na área da saúde, que já foi Alberto, o combatente do Olossato, sobe à Pensão Central, que descreve e vê-se que tem uma memória intacta:

“Subiu as escadas íngremes exteriores, em ferro forjado, antiquíssimas, talvez dos anos 30 do século passado, e acedeu, já no patamar, a um amplo piso, onde, à maneira colonial, uma larga varanda circunda todo o prédio. Ao cimo das escadas, numa sala de jantar mais reservada a clientes especiais, um grupo de comensais vai no fim da refeição”. E aparece D.ª Berta: “Depara com a proprietária, sentada diante da mesa comprida e larga, coberta por uma toalha asseada, aguardando, de forma amistosa, convivial, simpática, maternal, os seus clientes”.

Vai ser o tempo da guerra civil, e daí se salta para um episódio das campanhas da pacificação, recorda-se que a cólera se reacende décadas depois da independência e por fim, quando a guerra praticamente acabou para Alberto, prova uma dura flagelação em Mansabá, onde permanece na atividade de realização de exames de quarta classe a soldados e milícias.

Vivera-se o nervosíssimo da espera do embarque, houvera patrulhamentos, emboscadas, um golpe de mão falhado algures em Amina Dala ou em Iracunda ou em Consonco ou Bissancage ou Ionfarim ou em Changue Bedeta, houvera muita coisa, e agora este imprevisto em Mansabá. Assim se põe termo a estas crónicas de guerra e amor e não será por acaso que se evoca o poema Liberdade por Sophia de Mello Breyner Andresen, que assim culmina: Aqui o tempo apaixonadamente/Encontra a própria liberdade.
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Nota do editor

Poste anterior de 30 de Dezembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16894: Notas de leitura (915): “Guiné, Crónicas de Guerra e Amor”, da autoria de Paulo Salgado, Lema d’Origem Editora, 2016 (1) (Mário Beja Santos)

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