quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Guiné 63/74 - P16865: (D)o outro lado do combate (Jorge Araújo) (3): Mário Mendes (1943-1972): o último cmdt do PAIGC a morrer no Xime... Elementos para a sociodemografia do seu bigrupo em 1972: tinha 27.9 anos de idade e 8.9 anos de experiência de conflito...

 
[O nosso colaborador assíduo do blogue, Jorge Araújo (ex-Fur Mil Op Especiais da CART 3494. Xime e Mansambo, 1971/74): tem já mais de 105 referência no nosso blogue; ainda está no ativo, é professor universitário.]

MÁRIO MENDES (1943-1972): 
O ÚLTIMO CMDT DO PAIGC A MORRER NO XIME 

I. INTRODUÇÃO

Durante os últimos anos, particularmente nos momentos que antecedem os actos de passar a escrito as memórias historiográficas do CTIG (1972/74), surgem-nos no pensamento, ao vivo e a cores, algumas das principais imagens daquele palco onde a 22 de abril de 1972, sábado, iniciámos o «jogo da sobrevivência e da superação permanentes», com a sensação de ainda cheirar a pó e a terra vermelha.

Na guerra, a esse episódio chamam-lhe “baptismo de fogo”, e no nosso caso ele teve lugar na Ponta Coli [imagens abaixo], local escolhido superiormente para concentrar os efectivos das NT. Nesse dia a missão estava atribuída ao 4.º Gr Comb, constituído por 20 operacionais, mais 2 condutores e o picador Malan Quité. Após a “conquista diária” desse espaço, cada grupo era dividido em dois subgrupos, um instalado de manhã e o outro de tarde, situação modelo que vinha já da “velhice”, cuja missão era garantir a segurança a pessoas e bens que circulavam na estrada Xime-Bambadinca.

Pelo histórico das Unidades de quadrícula que nos antecederam, e que estiveram aquarteladas no Xime em diferentes períodos, nomeadamente a CART 1746 (1968/69), CART 2520 (1969/70) e CART 2715 (1970/72), sempre considerámos que num futuro mais ou menos próximo teríamos de passar por essa primeira experiência… não estivéssemos nós num contexto de guerra.

E aconteceu mesmo, ainda não tínhamos concluído o terceiro mês.

Em relação a este episódio, a História do Batalhão 3873, a que pertencia a CART 3494, refere na sua p. 59: “em 220600ABR72 grupo IN emboscou a segurança da PTA COLI (01 GRCOMB da CART 3494). As NT e Artilharia do XIME pôs o IN em fuga. Sofremos 01 morto (Furriel), 07 feridos graves e 12 feridos ligeiros”.



Xime (Ponta Coli, maio de 1972) – local do combate com o bigrupo do PAIGC, comandado por Mário Mendes (1943-1972).



A linha vermelha, ligando o Xime (aquartelamento) e a Ponta Coli (local da segurança), na estrada Xime-Bambadinca, era o itinerário diário utilizado pelas NT.

Os desenvolvimentos dos combates travados pela CART 3494 [curiosamente pelo mesmo Gr Comb – o 4.º] e respectivos resultados, quer na primeira emboscada, a 22 de abril de 1972, quer na segunda, a 01 de dezembro do mesmo ano, podem ser consultados nas narrativas: P9698, P9802, P12232 e P14495.

No presente texto, o que nos propomos abordar emerge desse contexto a partir de uma interrogação que há muito formulámos [e certamente o mesmo aconteceu com muitos de vós, ex-combatentes, em relação a experiências semelhantes], e que só agora encontrámos a competente resposta, ainda que parcelar.

E a questão era esta: em cada uma das emboscadas supra [e em todas as outras milhares que aconteceram em diferentes locais do CTIG ao longo dos treze anos do conflito], existia uma nuvem entre quem era atacado e quem atacava, ou seja, estávamos perante uma situação desigual, o que se entende/compreende, pois estas eram as regras do “jogo”, a camuflagem e a surpresa e a consequente aniquilação do opositor no menor espaço de tempo.

Não se sabia quem e quantos estavam do outro lado; os seus rostos, as suas alturas, as suas vestimentas, os seus equipamentos/armamentos, os seus nomes, as suas idades, as suas origens, em suma, nada se sabia no início de cada acção, e só com o desenrolar desta, eventualmente, poderíamos ter alguma resposta a esta curiosidade.

Partindo dessa premissa, seguimos em frente com mais uma investigação tendo por fonte privilegiada a Casa Comum – Fundação Mário Soares, a quem agradecemos.

Ainda que a informação recolhida seja reduzida, considerámo-la suficiente para produzir algum conhecimento que, como é hábito, decidimos partilhá-la(o) convosco.

E a pergunta de partida era: «quem foi Mário Mendes, Cmdt do bigrupo do PAIGC que nos emboscou a 22 de abril de 1972, na Ponta Coli?», da qual resultou a única baixa em combate da CART 3494 durante os cerca de vinte e oito meses da comissão ultramarina, para além de mais dezassete feridos, entre graves e menos graves, em que apenas cinco elementos saíram ilesos, um dos quais fomos nós. Estes são os números fidedignos que tive a oportunidade de os escrutinar naquela ocasião.


II. MÁRIO MENDES – CMDT DO BIGRUPO EM ACÇÃO NO XIME

Soube que Mário Mendes era Cmdt de bigrupo do PAIGC e que actuava no então Sector 2, da Frente Xitole-Bafatá, em particular no triângulo Xitole-Bambadinca-Xime.

A acção mais antiga que se conhece foi comunicada a Amílcar Cabral (1924-1973) pelo Cmdt da Frente Leste, Mamadu Indjai, a 29 de abril de 1969, referindo a esse propósito o seguinte [de acordo com a nota manuscrita apresentada]:
.


Comando Sul

MSG – No dia 20/4/69 os combatentes do Partido realizaram na estrada Bambadinca/Xime [Ponta Coli] onde os inimigos sofreram muitas baixas humanas de feridos e mortos. Por nosso lado não houve nada mal. Foi dirigido por Mário Mendes e Sampui Na Sa – Sector dois – Mamadu Indjai – 29/4/69.


Citação:
(1969), "Mensagem - Comando Sul", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40645 (2016-12-8)




No entanto, a História do BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70) refere que esta emboscada aconteceu em 18[4]0700 [P15154], não indicando quais as consequências da mesma.



Soube, também, que Mário Mendes nasceu em 1943, na Vila de Bissorã, na Região do Oio. Era casado. Em 1962 aderiu ao PAIGC, com 18/19 anos [desconhece-se o mês de nascimento], a exemplo do Arafam Mané [1945-2004] [P16823], desde quando deu início à sua actividade na guerrilha. Era Cmdt de bigrupo, pelo menos desde 1966, ano que foram elaborados pelo organismo de Inspecção e Coordenação do Conselho de Guerra, as listas [mapas] das FARP referentes à constituição dos bigrupos existentes em cada Frente, conforme demonstra o exemplo abaixo, onde consta o nome de Mário Mendes e de mais trinta e sete elementos.





Citação:
(1966), "FARP - Frente Xitole-Bafatá", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40466 (2016-12-8)

Instituição: Fundação Mário Soares

Pasta: 07068.099.051

Título: FARP - Frente Xitole-Bafatá

Assunto: Listas das FARP emitidas pelo organismo de Inspecção e Coordenação do Conselho de Guerra do PAIGC – Frente de Xitole-Bafatá.

Data: c. 1966

Observações: Doc. Incluído no dossier intitulado Militar

Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral

Tipo Documental: Documentos


A partir dos dados contidos nessa lista [mapa], que consideramos como os casos da investigação ou a “amostra de conveniência”, procura-se compreender melhor quem estava do outro lado do combate, particularmente na primeira emboscada na Ponta Coli [Xime], a 22 de abril de 1972, dando indicadores de tendência para outros casos e outras épocas. Com este propósito, procedemos à organização de alguns desses dados referentes a cada um dos sujeitos constituintes do “bigrupo de Mário Mendes”, sobre os quais pretendemos retirar conclusões.

Para o efeito, esses dados foram agrupados quantitativamente e apresentados em quadros estatísticos de frequências (caracterização da amostra por idade: a de nascimento e a de adesão ao Partido) e de quadros de variáveis categóricas em relação aos restantes elementos (ano de adesão ao PAIGC e idade e anos de experiência cumulativas ao longo do conflito).

Quadro 1 – distribuição de frequências em relação ao ano de nascimento dos elementos do bigrupo de Mário Mendes (n-38)



Da análise ao quadro 1, verifica-se que o ano de nascimento com maior percentagem (maioria relativa) é 1945 (21.1%) com 8 casos (moda), seguido de 1947 (15.8%), com 6 casos, e 1942 e 1943 (13.2%), em terceiro, com 5 casos cada.

Quando analisado por períodos, verifica-se que o maior número de casos (n-16) estão entre os nascidos em 1943 e 1945 (42.2%) (grupo central), enquanto entre 1937 e 1942 e entre 1946 e 1950, os valores são iguais (n-11 = 28.9%).

Quadro 2 – distribuição de frequências em relação à idade de adesão ao PAIGC dos elementos do bigrupo de Mário Mendes (n-38)´



Da análise ao quadro 2, verifica-se que existem três idades com maior percentagem de adesão ao Partido, respectivamente 18, 20 e 21 anos, com 7 casos cada (18.4%), seguida dos 16 anos, com 4 casos (10.6%). As restantes idades não têm significado estatístico.

Quando analisada a adesão ao Partido por períodos, verifica-se que o maior número de casos (n-16) estão entre as idades de 18 e 20 anos (42.2%), seguido pelo grupo de idade superior, entre 21 e 26 anos, com 12 casos (31.5%), e o grupo de menor idade, entre 13 e 17 anos, com 10 casos (26.3%).

Analisada a adesão ao Partido entre os 18 e 21 anos, idades semelhantes ao período normativo da incorporação militar na legislação portuguesa, à época, os valores apontam para uma maioria absoluta com 23 casos (60.5%), seguida por 10 casos nas idades inferiores (26.3%) e, somente, cinco casos nas idades superiores (13.2%).


Quadro 3 – distribuição de frequências em relação ao ano de adesão ao PAIGC dos elementos do bigrupo de Mário Mendes (n-38)



Da análise ao quadro 3, verifica-se que o ano onde se registou maior adesão ao PAIGC, com maioria absoluta, foi 1963, com 21 casos (55.3%), seguido de 1962, com 10 casos (um dos quais Mário Mendes) (26.3%). Os anos de 1964 e 1965 registaram 7 casos cada (7.9%).

Quando analisada a partir da soma dos dois primeiros anos (1962 + 1963), anos de preparação e início do conflito, a percentagem sobe para 81.6% (n-31).

Quadro 4 – distribuição de frequências em relação à idade verificada ao longo do conflito, contados após a adesão individual ao PAIGC, no caso dos elementos do bigrupo de Mário Mendes (n-38)


Da análise ao quadro 4, e partindo da hipótese meramente académica de que o bigrupo se tinha mantido constante ao longo do conflito, pelo menos até 22 de abril de 1972, data da emboscada sofrida pela CART 3494 (algo que não se pode garantir ou confirmar), Mário Mendes teria, então, vinte e nove anos [sombreado castanho]. Os restantes elementos teriam a idade referida na linha [sombreado verde] do ano de 1972.


Quadro 5 – distribuição de frequências em relação ao número de anos de experiência na guerrilha ao longo do conflito, contados após a adesão ao PAIGC, no caso dos elementos do bigrupo de Mário Mendes (n-38)


Da análise ao quadro 5, e partindo da hipótese meramente académica apresentada no quadro anterior, Mário Mendes teria, então, dez anos de experiência na guerrilha [sombreado castanho], bem como de outros nove combatentes. Os restantes elementos teriam os anos de experiência referidos na linha [sombreado verde] do ano de 1972.


III. MÁRIO MENDES – 25 de maio de 1972, o dia da sua morte

Quatro semanas depois de ter organizado e comandado a emboscada à CART 3494 [4º Gr Comb] na Ponta Coli, viria a morrer na acção «GASPAR 5», realizada no dia 25 de maio de 1972, 5.ª feira, por seis Gr Comb [três da CART 3494 e três da CCAÇ 12].

Recupero o que escrevi no P12232, por nela ter participado.

O “encontro” com Mário Mendes aconteceu na Ponta Varela [Xime – mapa acima], tendo-lhe sido capturada a sua Kalashnicov, bem como três carregadores da mesma e documentos que davam conta do calendário das “acções” a desenvolver naquela zona pelo seu bigrupo.

Depois de alguns elementos (5/6) do seu grupo terem sido detectados pelas NT na referida acção, e que não se sabia, naturalmente, de quem se tratava, um daqueles elementos [Mário Mendes] liderou uma estratégia de fuga que não lhe foi, desta vez, favorável, por via de lhe(s) ter sido movida perseguição, obrigando-nos a serpentear várias vezes os mesmos trilhos, entre itinerários de vegetação e clareiras.

Por isso, estou crente que Mário Mendes, a partir do momento em que ficou sem rumo certo e sem portas de saída, movimentando-se em várias direcções, sem sucesso, tomou consciência de que aquele dia seria o último da sua vida. E foi … por intervenção de elementos da CCAÇ 12.


IV.  CONCLUSÕES

Chegado a este ponto, e partindo da análise aos resultados apurados e apresentados nos quadros acima, é possível concluir que durante o combate travado entre os elementos do bigrupo de Mário Mendes e do 4.º Gr Comb da CART 3494, na Ponta Coli, existiram diferenças significativas nas seguintes três variáveis.

1. – Idade: [bigrupo – 27.9] ≠ [4.º Gr Comb – 21.6]

2. – Quantidade de elementos: [bigrupo – ⅔ ] ≠ [4.º Gr Comb – ⅓]

3. – Anos de experiência no conflito: [bigrupo – 8.9] ≠ [4.º Gr Comb – 0.25].

Porque se sabia pouco sobre o Cmdt Mário Mendes, e dos elementos que liderava, este é o meu pequeno contributo para o seu aprofundamento.


O que se pode dizer mais…? Deixo este estudo à vossa consideração.

Obrigado pela atenção.

Um forte abraço de amizade com votos de muita saúde.
Jorge Araújo.
12DEC2016.
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2 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Jorge, mas que grande prenda de Natal!... Não, não é um "pequeno contríbuto", como modestamente dizes, mas sim um grande contributo para o estudo da sociodemografia da guerrilha do PAIGC...

No caso do bigrupo do Mário Mendes, é um grupo de combate reduzido e desfalcado (n=38), com muito anos de guerra em cima, tendo os seus elementos sido recrutados na sua maioria logo em 1963...

Devia ser também um grupo já com bastantes baixas em 90 anjos de combates... Recordo que foi também o Mário Mendes e elementops do bigrupo que nos puseram as duas minas A/C, à saída do reorenamento de Nhabijões, acionadas por viaturas nossas em 13/1/1971... Tivemos um morto e duas dezenas de feridos, alguns graves, como o fur mil António Marques que ia comigo numa GMC...Estavamos com 19 meses de Guiné...Para o Marques a guerra iria durar mais 2 anos, no calvário dos hospitais... Por sorte, esse não foi o meu dia de azar: ia à frente, o Marques ia atrás, em cima da vitura com 2 secções... Eu estava na altura no 4º Gr Combate, o mesmo creio eu que matou o0 Mário Mendes... Um ajuste de contas, 16 meses depois!

É bom lembrar que a malta da CCAÇ 12, do recrutamemto local, também era mais velha e mais experiênte que a tua malta da CART 3494... Os nossos soldados tinham jurado bandeira em maio de 1969...

Boas festas para ti e família e não deixes que estas dolorosas recordações do "inferno do Xime" te estraguem o teu Natal... LG

Cherno Balde disse...

Caro amigo Jorge,

A analise eh muito interssante, mas não sei se podemos considerar a variável "anos de experiência de conflito" como uma vantagem a apontar para o outro lado, porque escapa-nos a mais importante que é o moral (variável qualitativa determinante) dos grupos no periodo em analise que, de facto, poderia indicar-nos a disposição real dos elementos em continuar a querer matar e, também, morrer pela causa. Nao esquecer que o desgaste devido ao prolongamento para alem do expectavel e a violencia da Guerra podem ser elementos que podiam entrar facilmente nas motivacoes para a sublevacao e o assasinato do lider, Amilcar Cabral em 1973.

Em tempos perguntei a um antigo combatente o significado de 'Fiofioli' e a resposta eh sem equivocos: Fiofioli (lingua balanta)significa em crioulo 'Bunda fede' disse-me ele a rir, ou seja, traduzido em portugues seria 'Cu fedorento' e com isso, esta tudo dito.

Na minha opinião e concluindo, isto quereria dizer que para ambos os contendores a mata de Xime/Fiofioli ou o Triangulo B2X (Bambadinca-Xitole-Xime) era o mesmo inferno, o tal 'bunda fede' que ninguem queria fazer parte, mas era obrigado, no cumprimento de ordens superiores.

Um abraço amigo,

Cherno Baldé