quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Guiné 63/74 - P16861: Os nossos seres, saberes e lazeres (191): De novo em Bruxelas e a pensar nas Ardenas (4) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 20 de Julho de 2016:

Queridos amigos,
Dia de merecida folga, nada de compromissos para poder vagabundear pelos meus lugares míticos de Bruxelas e confrontar-me com algumas agradáveis surpresas de património até agora inobservado.
A estatuária é magnificente, aquele século XIX em que o rei da Bélgica era o proprietário do Congo refletiu-se em sumptuosidade privada, o rei Leopoldo tudo fez para pôr Bruxelas ao nível de Paris. Poucas capitais podem gabar-se do acervo de obras artísticas como Bruxelas. Mas a cidade tem outras dimensões cativantes de que não me farto de contar: a quinquilharia, a arte urbana, os parques.
É desse dia por minha conta que vos deixo aqui o relato. E nem vos conto o que levo nos sacos, os trastes que me dão tanto prazer.

Um abraço do
Mário


De novo em Bruxelas e a pensar nas Ardenas (4)

Beja Santos

Despeço-me a custo da Abadia de Nossa Senhora de Orval, fundada por monges beneditinos no século XI, a Abadia ganha esplendor no século XII e foi uma referência na vida monástica europeia até ao século XVIII, um caso especial de abadia cisterciense com agricultura desenvolvida, com fabrico de cerveja e queijaria, esta prosperidade foi reduzida a cinzas em 1793, era o tempo da Revolução Francesa. Percorre-se o seu museu e estão ali tesouros de espiritualidade, retive este crucifixo, virá da noite os tempos medievais e não resisti a fotografar um aspeto da farmácia, que foi referência na época. Acabou a visita a Orval. Sigo mais uma vez para a Basílica de Avioth, um caso ímpar, não é por acaso que lhe chamam a basílica dos campos, atravessa-se a floresta, um coberto florestal maciço e imprevistamente soergue-se a esplendorosa basílica, é aqui que se venera a mais de 900 anos a Virgem com o Menino.



Numa outra viagem aparentada com esta, aqui se fez larga referência a este monumento emblemático da arquitetura gótica. Foi edificada em meados do século XIII após o aparecimento considerado miraculoso de uma estátua da Virgem, hoje classificada como monumento histórico. Estamos no condado de Chiny a escassos quilómetros de Orval. No adro da igreja está uma edícula gótica flamejante, não vale a pena traduzir o intraduzível, la Recevresse, é considerada única no mundo, era o espaço que tinha por função receber as oferendas dos peregrinos sob a égide da Virgem com o Menino. Nossa Senhora de Avioth é considerada a patrona das causas desesperadas. O viandante circula emudecido, é uma pedra de areia que reverbera todo o edifício, não terá sido por acaso que todas estas imagens foram polícromas, tudo muito bem proporcionado: o coro, o transepto, o deambulatório, e o viandante vem cá para fora sentir como a luz do céu ensolarado, completamente límpido, doura o edifício da escadaria às agulhas, ali fica a meditar aquela estatuária misteriosa, os belos vitrais, vendo as gárgulas fantásticas. E vamos regressar a Bruxelas, está na hora, o viandante tem amanhã a cidade por sua conta.



 Manhã totalmente pedestre, regista-se em primeiro lugar algo que de há muito anda aprazado no coração do viandante, este conhece esta fachada com brasão de Portugal desde 1977, nessa altura o edifício ainda não estava qualificado. Foi um conceituado armazém de vinhos estrangeiros, a burguesia de Bruxelas, muito provavelmente na altura em que a Bélgica era a quinta potência industrial do mundo, não prescindia do Porto e do Madeira. A fachada foi lavada e os diferentes símbolos dos vinhos portugueses estão bem brunidos. Para que conste este marco do nosso europeísmo vitivinícola. Também era tempo de aqui se deixar registado um monarca por quem o viandante tem um grande apreço, Alberto I. Os alemães, durante a I Guerra Mundial, ocuparam praticamente todo o território belga. Todo? Uma nesga de sol belga resistiu, ali viveu Alberto I a aguentar a fúria alemã. Esta escultura tem dignidade, está prantada na escadaria que leva ao Monte das Artes, que cujo cimo se desfruta uma das mais belas vistas de Bruxelas. Em frente a esta estátua puseram uma miniatura em pedra com a rainha consorte, Elisabete, a senhora que deu nome a um dos concursos musicais mais prestigiosos em todo o mundo. Não me atrevo a mostrar a estátua, quase caricata, pior do que aquilo só o Duarte Pacheco perto da ponte que é um dos seus trabalhos de referência. São bem estranhos os pesos e as medidas com que imortalizamos os nossos ancestrais. E, por último, num quarteirão chique, o Grande Sablon apanhou o viandante uma fachada de recamado floral, vistoso como decorativo. E pumba, fotografia para revelar uma das dimensões da garrulice belga.




Quando se vagabundeia pelo centro da cidade, uma das surpresas são as peças escultóricas que aguentaram a pé firme a derrocada da belíssima arquitetura do século XIX, escultura que se impõe à arquitetura do vidro. Esta luta a cavalo tem proporções titânicas, mete respeito, tivesse o viandante uma máquina fotográfica de alto calibre e o paradoxo entre o classicismo escultórico e a envolvente de escritórios nesta cidade, em que o preço do metro quadrado é fogo, seria ainda mais gritante. Isto para abonar a tese de que a capital da Bélgica tem muito dos pecadilhos da Europa e guarda peças preciosas de património universal. O viandante já está cansado, palmilhou a gosto, se há repouso do guerreiro também há merecimento para o repouso do turista. E a cidade está enxameada de belos lagos, este chama-se de La Cambre, é soberbo nas suas sinuosidades, lagos maiores e lagos menores. Sabe-se lá bem porquê, este entardecer com céu esbranquiçado, um tanto sujo, lembra a pintura de um dos expoentes máximos do surrealismo, René Magrite. O viandante tira-lhe o chapéu, curva-se respeitosamente perante a cidade, antevê um jantar delicioso, amanhã é o último dia, o viandante promete surpresas.



(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 14 de dezembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16833: Os nossos seres, saberes e lazeres (190): De novo em Bruxelas e a pensar nas Ardenas (3) (Mário Beja Santos)

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