quarta-feira, 17 de agosto de 2016

Guiné 63/74 - P16395: Os nossos seres, saberes e lazeres (169): Eu fui ao Faial e não vi os Capelinhos (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Março de 2016:

Queridos amigos,
Ainda me pedem colaboração para as coisas que têm a ver com a política dos consumidores. Sempre que reclamam a minha presença dos Açores, não sei dizer que não, forjou-se uma ligação profunda desde que por li andei a dar recrutas, entre 1967 e 1968. Fiz grandes amizades e gosto muito da afabilidade açoriana. Foi mesmo uma "visita de médico", mas deu para registar impressões que me são muito gratas e aqui estou a partilhá-las convosco. Hoje em dia não há maior satisfação que me pedirem sugestões sobre o quer ver nessas ilhas de bruma, de verde constante e acachoada das ondas em fragas e penedios, e poder desfiar propostas para visitas e passeios, não escondo que sou um cicerone altamente comprometido com estas venturas e desventuras arquipelágicas.

Um abraço do
Mário


Eu fui ao Faial e não vi os Capelinhos (1)

Beja Santos

Tratou-se de uma visita de médico, só faltou ida e volta no mesmo dia. O pretexto foram as comemorações do Dia Mundial dos Direitos do Consumidor, a celebrar na Horta. Com os organizadores, acordei em partir de Lisboa ao nascer do dia, já que havia paragem obrigatória de algumas horas em Ponta Delgada, aqui vivi seis meses, fiz amigos, tenho lembranças indestrutíveis. Decorre uma exposição de um dos meus escultores preferidos, Ernesto Canto da Maya, um modernista sem rival, deixou-nos pares amorosos inultrapassáveis. Era segunda-feira, esperava encontrar o Núcleo de Santa Bárbara aberto, a deceção foi mais que muita, ainda pedinchei uma visita excecional, negada. Pude comprar imagens de obras expostas, vejam, caso não conheçam, como este senhor que triunfou em Paris lavrou obras-primas em terracota. À entrada do núcleo de Santa Bárbara imortalizaram um dos seus referenciais em bronze. Para que conste.




Quanto a Canto da Maya, missão cumprida. Houvesse tempo e ia visitar a exposição sobre a história do chá em S. Miguel, pelo livro que comprei é evento cultural com várias estrelas. E atiro-me à cidade, recordo o aspirante a oficial miliciano que calcorreou estas ruas, que se enamorou destes sítios onde predomina a rocha vulcânica que dá estas harmonia de preto e branco dos passeios elaborados ao melhor gosto da calçada portuguesa.



Mudei de passeio atraído pelo anúncio de uma refeição a 2€ em tempos de crise. Estou habituado a ver sopa e sandes a 3,40€, o fast food a cerca de 5€, este é o menu mais barato que até hoje vi.


Atalhei por uma transversal a caminho da Igreja Matriz, era um dia de céu forrado, se tem muitos inconvenientes tem também a vantagem de olharmos para os interiores dos prédios e ressalta o seu conteúdo. Umas boas décadas atrás que eu não via este vitral, associado ao nome de uma empresa lendária da região, a Corretora. Bisbilhotei para o interior dos escritórios, uma bela arquitetura cheia de vidro e latão, tudo fechado, oxalá que um dia reapareça para fruição pública, eu estava ali especado a pensar nos dias prósperos destes escritórios, com guichês e balcões bem ataviados e lembrei-me da redação do jornal O Século, outra beleza, felizmente intacta, no edifício que é hoje o Ministério do Ambiente.



Outra lembrança perdurável é a flora, há pouco menos de meio século só pude conhecer a micaelense, deslumbrante nos seus jardins e parques. É certo que estamos em Março, que aqui chove abundantemente e humidade não falta, aqui são-se perfeitamente as árvores, os arbustos e as plantas de quase todo o mundo. Era um dia baço mas as flores estavam resplendentes para me receber.



Há também arquitetura religiosa manuelina noutros locais, caso de Vila Franca do Campo, mas a Matriz de Ponta Delgada tem direito ao que há de mais significativo. Estes elementos exteriores excedem em importância todo o miolo do tempo que tem, no entanto, um pequeno e atrativo museu, quando disponho de tempo ali vou em revisitação, não sei que por artes ali estão expostas uma casula e uma dalmática que vieram de Inglaterra, ao tempo em que o protestantismo triunfou. Virei-me no Largo da Matriz, mesmo em frente à porta lateral, não havia visita a Ponta Delgada que eu não visitasse um camarada da Guiné muito especial, o oftalmologista José Luís Bettencourt Botelho de Melo, foi ele que me limpou os olhos depois de uma mina anticarro em que andei em bolandas, em Outubro de 1969. Olhei com nostalgia, já não há consultório em frente a esta porta lateral, há muito que ele me dobrou os 80 anos, não tenho coragem de lhe ir bater à porta na rua Bruno Tavares Carreiro, era uma insensatez e indelicadeza sem limites dizer-lhe que venho com os minutos contados.


E pronto, regressei ao aeroporto, espera-me um voo Lajes-Horta, mas não resisto em fixar esta azálea, um verdadeiro cíclame, passa-se algo de estranho e labiríntico nas minhas recordações, neste preciso instante em que tirava a fotografia lembrei-me de um juramento de bandeira, nos Arrifes, em Dezembro de 1967, mandaram-me fazer o discurso e falei das criptomérias e nas azáleas, na doçura da natureza açoriana, tratei as coisas militares como meras adjacências. A verdade é que o amor incondicional às terras açorianas já estava entranhado. E para todo o sempre.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 10 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16377: Os nossos seres, saberes e lazeres (168): Visita à Igreja do Convento de Jesus, de Setúbal (Mário Beja Santos)

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