terça-feira, 16 de agosto de 2016

Guiné 63/74 - P16392: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (5): O diagnóstico

Adão Cruz com meninos de Bigene
Foto: © Adão Cruz


1. Memória enviada pelo nosso camarada Adão Pinho da Cruz, Médico Cardiologista, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68), relatando uma consulta com diagnóstico bem difícil, tal a dificuldade de comunicação entre médico e doente.


MEMÓRIAS DE UM MÉDICO EM CAMPANHA

5 - O DIAGNÓSTICO

(Mais um conto da Guiné. Espero que saboreiem como eu saboreei)

O sol baixava a sua fogueira comendo a sombra à medida que a luz crescia. Como sempre, meti o corpo dentro de uma velha bata branca e dirigi-me ao posto de socorros, onde me aguardavam soldados e nativos para a consulta matinal. Hora respeitada. Ritual.
Logo que cheguei, os olhos caíram-me na figura de uma velha, cuja idade mirrara na secura das carnes. A pele parecia colada aos ossos, e a silhueta nem sombra dava. Os sorrisos esqueceram-se para lá da boca, e dois ninhos de rugas guardavam os olhitos faiscantes.
O “Manjaco”, nome da etnia de que era originário, um dos meus ajudantes nestas tarefas clínicas, alto e desengonçado, sempre feliz e afável, surgia acima de todas as cabeças.

- Manjaco, vamos ao trabalho.
- Dotô, manga pessoal, manga chatice!

Quando chegou a vez da velha, o Manjaco torceu o nariz, dando a perceber que era de língua difícil e de terra sem lugar, lá onde acabam bolanhas e começam mangueiros e coqueiros. Por universal defeito de raças e linguagens, as nossas falas não se cruzaram. O Manjaco olhou em volta, procurando intérpretes para aquele resto de corpo. Bateu o pé no chão para espantar a pequenada, debruçada na curiosidade.
- Maldita canalha, maldita velha qui só vem no chateanço. Tu, vem cá, e tu.

Os dois rapazes entreolharam-se como se mutuamente se desconfiassem. Um deles era mandinga e o outro não me lembro.
Puseram a velha a queixar-se. Ela sacudiu os ossos em imitação de tosse, ao mesmo tempo que apertava entre os dedos a pele seca da garganta. Numa espécie de dança, mexia o corpo para a frente e para trás baloiçando a magreza. Agitava-se em tremuras fingidas, emitindo uma espécie de grunhidos salpicados de baba, enquanto as mãos apanhavam o baixo-ventre ou se espalmavam nas hipotéticas ancas. O Manjaco ia observando toda aquela mímica com ar enfastiado:
- Ché! A velha é maluca!

Olhou de maneira inquisidora os dois moços, apontou para a velha, e já com a paciência a apagar-se, exclamou:
- Fala pá, fala maleita di velha.

Os dois esquinaram o olhar, torceram a boca, e a aflição somou as duas caras. O primeiro virou-se para o segundo e disse numa lenga-lenga:
- blá, blá, blá.
O segundo voltou-se para o Manjaco e traduziu:
-blé, blé, blé.

O manjaco encolheu os ombros, esboçou o gesto de quem nada percebeu, olhou-me de soslaio e exclamou:
- Dotô, isto estar grande merda!

De novo solicitada, a velha repetiu a cena escorrendo as palmas das mãos pelas pernas abaixo, esboçou um espasmo figurativo de dor, enroscou-se num ar felino e cravou os olhos desafiadores na cara do Manjaco. Disso é que ele não gostou. Com ar zangado, agarrou os dois rapazes pelos ombros, e numa última tentativa interpelou de novo:
- Tu ca sabi pá, tu ca sabi puto língua di velha, puxa por mimória, pá.

O primeiro virou-se para o segundo e disse:
- Blá, blá, blá.

O segundo voltou-se para o Manjaco e traduziu:
- Blé, blé, blé.

O Manjaco não atingiu e enraivou o anterior desabafo, espaçando as palavras:
- Dotô,… isto… estar… grande… merda!

Caracoleou então por entre queixas e deixas, desmontou os arrebiques da velha, denunciou a incapacidade dos intérpretes, e bufou de furor e impaciência. Tomou ele a iniciativa. Ensaiou uma cantoria zombeteira e atirou à cara da velha uma autêntica algaraviada. Furiosa, a mulher fez assomar ao nariz uma lágrima de ranho, fincou no chão os pés calçados de lama seca, olhou os dois intérpretes, fulminou o Manjaco, calou uns segundos de silêncio e voltou aos mesmos gestos e grunhidos, com força redobrada e descrição veloz, como cena de filme a correr em acelerado. Parou de repente, fitou de maneira desafiadora os circunstantes e cravou pela primeira vez os olhos em mim, como que a dizer: Então, já percebeste?

O Manjaco estava desorientado. Começou a dar uns passos curtos e outros compridos, rodopiou sobre si mesmo, volveu os olhos ao céu, e a despeito da vontade de estrangular a velha, voltou-se calmamente para mim e disse:
- Olha Dotô, corpo de ela tá todo fodido.
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Nota do editor

Último poste da série de 11 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16381: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (4): Joãozinho, nunca na vida te deixarei sozinho

4 comentários:

Adelaide Barata disse...

Depois de saborear este relato tão real como se lá estivesse, só me restou uma boa gargalhada e ao lembrar-me vou-me rir sempre da mesma forma.
Muito Obrigada por mais um excelente narrativa sua.

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas
Como história tem piada.
Porém, como realidade dá que pensar.
A mim falta-me o resto da história: afinal o que é que desgraçada tinha, para além de estar velha?
O diagnóstico, se calhar, também daria que pensar...
Um Ab.
António J. P. Costa

Juvenal Amado disse...

Penso que a moral da estória é a mesma de cá

"é da idade minha senhora"

Gostei

José Nascimento disse...

Eu também estou a ficar assim. É do PDI(Puta Da Idade)