quarta-feira, 13 de julho de 2016

Guiné 63/74 - P16300: Os nossos seres, saberes e lazeres (163): A estação de metro do Campo Grande: Uma obra-prima da arte pública urbana (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Dezembro de 2015:

Queridos amigos,
Todos sabemos que há manifestações artísticas de grande valor no metro de Lisboa.
Como conjunto impressionante de interpenetração entre um metro de viaduto, acessos e a envolvente dos viadutos vizinhos até ao parque de material e oficinas que integra a estação do Campo Grande, não acredito que haja obra que se compare, porque é intenso o diálogo que se construiu entre os exteriores e interiores da estação com os seus viadutos vizinhos, conseguiu-se um sentido plástico e simbólico, uma permanente comunicação entre o antigo e o moderno, é uma estação onde os passageiros se sentem bem, sentimento a que não é alheio o malabarismo dos cromatismos, as cores repousantes, a sensação de que há leveza num nó de transporte que tem o condão de ter as suas horas de congestionamento. É uma obra-prima que merecia ter rapidamente classificação artística e uma intervenção que lhe proporciona manutenção e visitas comentadas.

Um abraço do
Mário


A estação de metro do Campo Grande: 
Uma obra-prima da arte pública urbana

Beja Santos


Reza que a organização arquitetónica e plástica da estação e dos viadutos da estação do Metro do Campo Grande, desde a cor exterior e interior, aos azulejos, pavimentos, grades metálicas e painéis de betão em relevo e pilares dos viadutos, deve-se ao arquiteto Ezequiel Nicolau e ao artista plástico Eduardo Nery que fizeram daquele espaço público uma obra singularíssima. Esta obra começou a ser pensada em 1981, foi pensada e repensada, fizeram-se toneladas de estudos, admitia-se que o metro ia até ao aeroporto, que seria um metro de superfície, e que também andaria debaixo do solo, desistiu-se tal a complexidade, o enorme impacte ambiental de viadutos excessivamente elevados. E em 1993, aparecia esta belíssima estação, acolhedora, cheia de malabarismos cromáticos, o primeiro metro em viaduto, só muito mais tarde surgirá a linha vermelha.


O que aqui preside são as relações entre a altura e o comprimento, entre os vazios e os cheios, esta delicadeza requintada com cores descansativas, uma luminosidade quase doméstica e o desafogamento dado pelos óculos. Nada ficou ao acaso: o que vai das superfícies planas dos azulejos chega às figuras de convite, voltamos aos palácios, que os há e os houve, maior ilusão ótica em estações do metro de Lisboa não conheço, tudo parece enorme quando, afinal, este azulejar moderno é que transfigura as relações com o espaço em comprimento, altura e largura.


Eduardo Nery foi muito bem-sucedido com estas figuras de convite. As figuras de convite apareciam à entrada dos palácios e significavam que quem entra é bem-vindo. Mas Nery vai mais longe, fragmenta as figuras, há aqui como uma homenagem ao movimento artístico do cubismo e também do surrealismo. Nery observou a propósito do seu trabalho que a preocupação de evitar o sentimento de claustrofobia ou de esmagamento do teto do átrio, muito baixo o levou a escolher um azul claro, que suporta a cobertura da estação. É uma dialética azulejar entre o branco e o azul, uma constante nas doze escadas que ligam entre si o átrio e o cais. Tudo trabalho da Fábrica Sant’Anna.


Estas figuras de convite, diz Nery, ocorreram-lhe da sua experiência no domínio na colagem, “através da qual alterei ironicamente diversas reproduções de obras de arte do passado, conferindo-lhes um novo sentido plástico e simbólico, como acontece com estas quatro figuras do século XVIII, duas femininas e duas masculinas”, utilizadas para acolher quem chega e quem parte. Os óculos ocorreram-lhe da sua experiência na Op-Art. E foi muito feliz nesta deformação e interpenetração das figuras, deu um novo sabor ao geométrico e abstrato.


Arquiteto e artista plástico tiveram que se entender entre o cromatismo e as texturas dos viadutos e da estação, era preciso imprimir unidade e continuidade entre a cor rosada dos painéis em betão lavado, ligando entre si os ecrãs acústicos dos viadutos. Escolheram-se azulejos monocromáticos em seis tons, em faixas estreitas, tanto nos pilares dos viadutos como nas fachadas da estação. Enfim uma combinação entre vermelho, azul e branco, tudo a remeter para um interior e para a envolvente do metro.


Estamos agora no exterior, nos pilares do viaduto. Não sei se o engenho e arte de Nery não atingiram nesta intervenção a sua cota máxima. A ligação ao passado e a remissão para memórias do Campo Grande têm uma estrita lógica. Vemos aqui um cavaleiro e sabemos que muito perto está o hipódromo do Campo Grande. A simbólica da aviação não é delirante, basta pensar que um pouco mais acima está a Portela.


Este Campo Grande era um espaço de passeios, de exibição de moda, aqui havia um clube de ténis, o Visconde de Alvalade foi um dos fundadores do Sporting. Nery trabalhou aqui anos depois do metro estar a funcionar custa a crer que este portentoso trabalho tenha sido imaginado para ficar dentro de um parque automóvel, os poucos transeuntes passam por aqui indiferentes a esta obra-prima da azulejaria do nosso tempo.


Tínhamos o hipódromo, o aeroplano e depois veio o automóvel. Nery terá pensado em fixar neste painel o objeto mais visível da modernidade, na sua modalidade de carros de corrida. A ironia é o seu contraste com as carripanas que aqui parqueiam.


E os pioneiros da aviação, pois claro. Ao contrário do que muitos pensam, esta artéria era frequentada por gente chique, por aqui houve palacetes, moradias, uma burguesia endinheirada e até aristocratas lhe davam preferência vivendo da Alameda das Linhas de Torres e no Lumiar.


Perto da churrasqueira do Campo Grande temos uma mansão de grande porte, faz gaveto com o Campo Grande e a Alameda das Linhas de Torres, é um dos últimos vestígios de gentes com título que escolhiam este quase fora de portas para viverem onde o bulício era marcado pela passagem do gado que corria para o Entreposto Geral de Gados, no Campo Pequeno. Há quem não acredite, mas o Campo Grande foi formoso e espaçoso, era escolhido pelas suas sombras, os passantes admiram-se com as espécies arbóreas e a variedade de flores, andavam de barco no lago, era um quase termo da cidade. Ainda bem que nesta convulsão urbana o metro deixou uma estação extraordinária com azulejaria única. Os sinais de deterioração são bem visíveis e era tempo dos amigos de Lisboa pedirem a classificação do espaço, uma porta aberta para a preservação dos materiais e a convocação para chamar turistas: estão aqui alguns dos melhores azulejos da nossa contemporaneidade.
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Nota do editor

Último poste da série de 6 de julho de 2016 > Guiné 63/74 - P16277: Os nossos seres, saberes e lazeres (162): A pele de Tomar (12) (Mário Beja Santos)

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