domingo, 1 de maio de 2016

Guiné 63/74 - P16039: Atlanticando-me (Tony Borié) (13): O que não te mata, faz-te andar como um coxo

Décimo terceiro episódio da nova série "Atlanticando-me" do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66).




O que não te mata, faz-te andar como um coxo

Companheiros, hoje queríamos falar de coisas alegres, coisas que coloquem no nosso pensamento alguma diversão, que nos façam viver com alguma esperança, que nos façam esquecer a maldita guerra que lá vivemos, coisas que envolvam bom tempo com família e amigos, viagens, antigas paixões, amores, alguns de ocasião, recordações e exageros de juventude, mas... mas, ainda não vai ser hoje, talvez na próxima.

Falamos um pouco da guerra que lá vivemos, no nosso caso, e talvez muitos de vocês, talvez seja, “andar pela tabanca”.

A nossa geração fez a diferença, mas pagando um preço exorbitante, por exemplo, nesta última semana, ao abrir o computador, havia mensagens comunicando-me a hospitalização de dois “irmãos de guerra”, um aí em Portugal, o Alexandre, que foi “o nosso Alferes” no aquartelamento de Mansoa, outro aqui na Florida, o Jorge, de quem já escrevi a sua história de guerra, que serviu em Bissau, claro, além de nós que temos um pequeno problema de movimentação, mas é uma “avaria” que está a ser reparada, oxalá a “avaria” dos nossos “irmãos de guerra”, entre os quais se encontram os que já mencionámos, também possa ser reparada.

Este tempo em que temos estado “inactivos”, passamos o tempo, entre outras coisas, vendo fotos a preto branco, tiradas na então nossa Guiné, estão lá companheiros, quase todos, lá foram parar sem estarem minimamente preparados tanto física como mentalmente, aliás, ninguém pode estar preparado, pelo menos mentalmente para viver numa zona de combate, as privatizações eram tantas, os resultados eram devastadores, alguns de nós foram empurrados para as piores áreas, pensando muitas vezes que aquele momento, era o seu último, passando dias sem dormir, semanas sem tomar banho e, meses e meses pensando que não mais retornavam à sua aldeia, em Portugal, mas nós fomos treinados e mentalizados que estávamos a fazer a diferença, a libertar o povo da tirania, fazendo uma coisa boa para os outros. Nesta altura da nossa vida, esperamos sinceramente que fique provado, para as gerações vindouras, que estávamos errados, e que o povo da então nossa Guiné, encontre o seu rumo, possa finalmente viver independente, em paz e progresso, construindo uma nação onde os guinéus possam ter um futuro risonho, pelo menos sem fome e livres de guerra.


Quando voltámos para a Europa, voltando à vida civil, foi um desafio, para dizer no mínimo, porque quem vinha duma zona de combate, servindo o seu País, continuar a ser “desprezado” pela sociedade de então, pois emprego era para as pessoas e amigos do regime, nós andávamos vestidos conforme ganhávamos, por tal tal motivo, andávamos sempre com roupa velha, já coçada, alguma dada por amigos, foi difícil acostumar a não ver as pessoas nativas da Guiné, não ver as savanas e pântanos, a não se assustar quando se ouvia o barulho dos foguetes em qualquer romaria, pois o trauma do pensamento estava lá, causado pelas explosões, que alterou a forma como o cérebro funciona, pensando nós, que era a explosão de uma qualquer mina, fornilho, ou mesmo um ataque ao aquartelamento. Tudo isto companheiros, sem falar quando se estava num espaço público ou mesmo na taverna da nossa aldeia, ficávamos sempre a um canto com as costas para a parede, considerando todos, como um possível inimigo.

Mas nem tudo foi mau, também havia os momentos da chegada da coluna de alimentos, que trazia cigarros e álcool, da avioneta do correio, convívios forçados que criaram verdadeiras amizades de “irmãos de guerra” e, pelo menos para nós, felizardos que sobrevivemos, produziu no nosso pensamento efeitos prolongados, uma força interior, bastante forte, que não nos vai deter ou impedir de realizar qualquer coisa, mas as marcas, os resultados dessa vivência, desse tempo, de angústia e stress, estão a aparecer, pois a idade já é um pouco avançada e, nós dizemos algumas vezes:
"O que não te mata, faz-te andar como um coxo"

Tony Borie, Abril de 2016.
____________

Nota do editor

Poste anterior da série de 10 de abril de 2016 Guiné 63/74 - P15957: Atlanticando-me (Tony Borié) (12): Um mau dia

Sem comentários: