domingo, 24 de abril de 2016

Guiné 63/74 - P16007: Brunhoso há 50 anos (7): Uma terra de artes (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

Brunhoso - Com a devida vénia


1. Em mensagem do dia 8 de Março de 2016, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), volta a falar-nos da sua terra natal há 50 anos.


Brunhoso há 50 anos

7 - UMA TERRA DE ARTES

Brunhoso não era somente uma terra rica e auto-suficiente pela variedade e quantidade de produtos agro-pecuários e florestais que produzia mas também pelos serviços que os seus artistas prestavam a essa comunidade agrícola laboriosa e a outras comunidades próximas.
Nesse tempo Brunhoso era conhecida como sendo uma terra de artes. Estas artes de que os povos dessas terras humildes falavam eram as artes mais utilitárias, que se confundem com os ofícios. Para vestir e calçar as pessoas e dar conforto e beleza aos lares havia as artes de alguns homens e de muitas mulheres:
As donas de casa que depois de transformarem num processo moroso que passava por várias fases a lã e o linho, em fio, só com as suas mãos hábeis ou com a ajuda dos teares ou das máquinas de costura, faziam as meias, os meotes, as saias, os saiotes, as blusas, as camisolas, os bordados, as camisas, as cuecas, as ceroulas, os lençóis, os carapins, as toalhas, as colchas, e outras utilidades, com a mesma entrega e a mesma dedicação com que tratavam dos filhos, das hortaliças e das flores nas hortas e do lar.

Senhoras trabalhando a lã
Com a devida vénia ao autor da foto e ao Blogue Aldeia de Castelões

Outras fazendas para roupas, diferentes da lã e do linho, eram vendidas pelos tendeiros de Campo de Víboras que periodicamente passavam pela aldeia com as mulas carregadas com peças de tecidos das mais variadas cores e qualidades.

Havia ainda os sotos em Mogadouro ou os dias de feira para compras semelhantes.

Havia três alfaiates que faziam fatos por medida.
Os homens, mais ainda os rapazes, estreavam geralmente os fatos no dia de Páscoa, costume antigo, talvez para celebrar o renascimento da vida, depois da Quaresma e da chegada da Primavera.

Havia quatro sapateiros que faziam sapatos novos de cabedal com brochas de quatro pancadas na sola do pé ou outras mais finas e arranjavam todo o tipo de sapatos;

Havia dois barbeiros, sendo um deles barbeiro-cirurgião, pois além de fazer as barbas e cortar os cabelos, sabia dar injecções, tratar das feridas, extrair carbúnculos, e tratar outros males de que as pessoas pudessem sofrer;

Havia duas parteiras, que tinham aprendido essa arte com outras mulheres mais velhas. Conheci melhor a senhor Cândida "Passarinho" mulher desenvolta, simpática, faladora, que se fechou muitas vezes no quarto dos meus pais, a sós com a minha mãe e uma amiga dela, para algumas horas depois o meu pai nos dizer, nem triste, nem contente, com o ar mais natural do mundo, que tinha nascido mais um irmão.

Para tratar das ferramentas, todo o tipo de apetrechos e equipamentos necessários à lavoura e ao bem-estar e resguardo de pessoas e animais havia os seguintes artistas:
Ferreiros, pai e filho, para tratar dos sachos, das picaretas, das enxadas, das relhas das charruas, dos arados, para arranjar ou fazer mesmo outras ferramentas e trabalhar o ferro para as mais diversas utilidades. Faziam aros de ferro que aplicavam ainda incandescentes, para se moldarem, nas rodas de madeira dos carros de vacas.
A forja do ferreiro era bem perto da casa dos meus pais, a cerca de 100 metros logo a seguir, separada por um terreiro, estava a antiga escola primária onde aprendi a amar as palavras escritas, a geografia e a história. Gostava de entrar na forja para ver o ferro a ficar incandescente e ver o ferreiro e o ajudante a moldar esse ferro em brasa com as marretas para construir ou arranjar ferramentas.
Para maior prazer meu e dos outros garotos da escola o ferreiro tinha um torno com que fazia piões de madeira que nos vendia por uma coroa, de freixo, de carrasco, de choupo e outras madeiras.

 Forjador
Imagem do Youtube

No terreiro da escola, os rapazes jogávamos ao pião, lembro-me que um dos jogos era lançar os piões sobre os dos outros para os danificar ou inutilizar. Para esse jogo, os piões bons, pela sua dureza, eram os de carrasco que dificilmente se danificavam, já os de choupo por vezes com uma ferroada certeira podiam rachar ao meio.

Noutro espaço desse terreiro as raparigas jogavam a macaca.

Havia carpinteiros de três áreas diferentes:
Os carroceiros ou carreiros que além dos carros de bois, faziam os jugos, os arados, os agrades, os trilhos para os cereais e outros;
Os carpinteiros da construção civil que montavam os soalhos, as vigas e as armações dos telhados;
Havia também dois artistas de carpintaria fina o que significa que além de outros trabalhos também fabricavam móveis, sendo um deles também fabricante de urnas.

Carro de bois
Imagem da internete

Havia duas parelhas de serradores que serravam manualmente as grandes ou pequenas árvores para fazer tábuas para os soalhos das casas, para os carros de bois e para as mais diversas aplicações. Era um trabalho muito duro que exigia muito músculo e muita precisão.

Havia um ferrador para aplicar as ferraduras nas bestas (gado asinino e muar) e nas vacas e bois;
Havia um capador que além de capar os animais também os curava de alguns males;

Havia os tosquiadores de carneiros e ovelhas que pelo mês de Maio faziam a tosquia da lã desses animais, que nesse tempo era muito bem paga pelos comerciantes;

Decorrentes da actividade agrícola havia:
Os segadores, quase todos os trabalhadores válidos que eram exímios na ceifa do trigo e do centeio:
Os gadanheiros que ceifavam a erva dos lameiros para fazer o feno para o gado comer nos estábulos sobretudo no Inverno.
Os limpadores de oliveiras que conheciam a melhor técnica para libertar essas árvores dos ramos em excesso sem as danificar.
No final da década 50 e no início da década de 60 do século passado vieram duas levas de alentejanos cada qual constituída por 6 trabalhadores para fazer a poda dos sobreiros, já que nesse tempo não havia em Brunhoso, nem nas redondezas trabalhadores habilitados para tal. Os da primeira leva, pela lenha extraída na poda com a qual fabricavam carvão vegetal, faziam esse serviço. Os da segunda leva fizeram esse trabalho pela cortiça que retiravam dos ramos cortados que depois vendiam para as fábricas para ser moída para várias aplicações.

Nas minhas andanças de garoto por montes e vales a guardar as vacas ou noutros afazeres, cruzei-me muitos vezes com eles. Eram homens simpáticos, pouco faladores, frugais, caçavam passarinhos com redes perto dos bebedouros deles, pediam aos lavradores conhecidos tomates, alfaces e batatas das hortas. Eram sóbrios, bebiam pouco vinho, o trabalho em cima dos sobreiros também não consentia abusos. Nem melhores ou piores mas diferentes dos meus conterrâneos, aprendi a apreciá-los pelas características enunciadas e por essa nostalgia meditativa que cresce na visão das grandes planícies, tão própria dos alentejanos.
Os tiradores de cortiça, seriam talvez dezoito (ainda hoje existirão no mesmo número) que sabiam tirar a cortiça com muita perícia, para não danificar o casco das árvores para futuras produções. Eram também solicitados para trabalhar noutras terras.

Descortiçamento
Com a devida vénia a Green Cork

Havia os albardeiros que além das albardas, fabricavam os atafais, as belfas para as mulas, meleias para as vacas, e outros artefactos. Os albardeiros além de trabalharem para a aldeia, montados em mulas percorriam todo o Nordeste Transmontano e ainda parte da Beira Transmontana . Ficavam alguns dias em cada aldeia, dependendo do trabalho que houvesse para fazer arranjos ou obras novas e em seguida mudavam-se para outra. Segundo testemunhos que recolhi por vezes chegavam a andar mais de um mês nesses trabalhos de terra em terra. Os albardeiros pertenciam todos, menos um, a uma família numerosa, cujo pai instruiu todos os filhos varões, penso que cinco, nessa arte. Eram homens fortes e grandes trabalhadores que deram fama a Brunhoso e às suas gentes por toda a zona, num raio de mais de 100 quilómetros.
O que não pertencia à família foi também ensinado pelo pai dos outros e era igualmente um bom profissional. Posteriormente, em meados da década de 50, os albardeiros deixaram de calcorrear as aldeias e passaram a fazer as feiras onde vendiam as obras feitas e recebiam também encomendas de outras obras ou de arranjos.

Os pedreiros, que com tanta perícia construíam as paredes dos edifícios da aldeia e os muros de muitos terrenos. Resta acrescentar que todos estes artistas praticavam também a arte milenar da agricultura.

Tudo isto se passa entre a minha meninice e a minha entrada na adolescência. Nesse período de tempo, quando em 1961, regressam dois soldados que tinham cumprido quase três anos na Índia onde estiveram presos quando a União Indiana invadiu esses territórios e foram recebidos com muita comoção e alívio por toda a aldeia, começa a guerra colonial em Angola que rapidamente atinge também a Guiné e Moçambique. Brunhoso tem um excesso populacional como nunca teve pois o Brasil seu destino tradicional de emigração está em crise e há alguns anos que impede a entrada de emigrantes.
Quando se descobre a França como destino de trabalho, embora em condições de partida clandestinas e difíceis é como uma válvula de escape que se abre e que os homens de todas as idades, artes e profissões aproveitam indiferentes aos riscos pois se nesse tempo não havia fome na aldeia, havia muita gente já no limiar da pobreza.

Pelos seus soldados mobilizados para a guerra do Ultramar as pessoas têm as mesmas saudades, que sentem pelos seus familiares emigrados com mais alguns receios que vão aplacando com choros, rezas e promessas. Felizmente não houve mortos ou feridos, nesses três destinos. Com a partida dos melhores trabalhadores do campo e de muitos artistas que lhe davam suporte, a agricultura tradicional irá morrer no espaço de poucos anos. Finalmente essa sociedade tradicional nas suas vivências, nos seus meios de produção, nos seus métodos e nos seus valores entra na era da globalização.
Nos processos de mudança há sempre uma crise e um choque a que nem sempre as pessoas e as sociedades conseguem resistir. No ano de 1960 viviam em Brunhoso 600 habitantes, actualmente vivem 200, e eu penso que por razões políticas regionais esse número está inflacionado.

A globalização, esse fenómeno mundial que o progresso económico e os meios de comunicação criaram, está a acabar com todas as sociedades tradicionais, nem sempre muita justas na distribuição da riqueza, mas infelizmente por ser movida pela ânsia do lucro das grandes empresas industriais e financeiras, que dominam os governos das nações, a globalização está a criar ainda uma maior miséria entre os povos e a destruir os rios, os mares, os solos, as florestas, enfim a ecologia que está na base da saúde mundial.
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Nota do editor

Último poste da série de 15 de março de 2016 Guiné 63/74 - P15860: Brunhoso há 50 anos (6): Uma terra rica e auto-suficiente (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

6 comentários:

JD disse...

Caro Francisco,
Antes do mais quero agradecer-te o magnífico e esclarecedor livro, que fizeste o favor de me comprar e entregar em Monte Real. Estou em dívida, e não passo de mentiroso, enquanto não cumprir a promessa de te entregar uma garrafa de bom vinho alentejano,
Agora o comentário:
Já me consta, que durante o próximo encontro do grupo Bilderberg, haverá um ponto da agenda dedicado ao gajo do Brunhoso que anda a divulgar que os "excelentes" alimentos das multinacionais, afinal, são assassinos. Não te preocupes, que para os despistar, aqui de Cascais junto-me ao teu clamor. Quase me apetece sugerir, que o Brunhoso procure uma reabilitação económica e social, pela produção sem sementes manipuladas, distribuição e venda de alimentos ecológicos, e como esse pessoal não terá a ambição monopolista de crescer desmesuradamente, antevejo sucesso para a iniciativa.
Porque não começarem os reformados, se não houver gente válida disponível, a criar uma espécie de cooperativa de produção e comercialização de produtos alimentares sádios?
Vou acabar sublinhando que muito aprecio os teus escritos de memórias sobre a tua terra, que infelizmente se apaga devagarinho, ao contrário da minha, onde, atraídas pelo barulho das luzes, chegam cada vez mais gentes do interior. Definha o país e a qualidade de vida.
Um grande abraço
JD

Bispo1419 disse...

Caro Francisco:
Depois deste acutilante e assertivo palavreado do "nosso" Zé Dinis, em que brilha a sugestão dos velhotes reformados se dedicarem à agricultura biológica, o que dizer?

Para já digo que me dedico a tal tipo de agricultura; vamos lá, aí a 10% (ou menos!). O resto fica para uma filha que faz disso profissão e que, de vez em quando, me aparece para algum financiamento das suas actividades. Com todo o gosto o faço, até porque beneficio dos seus produtos.

Quanto ao resto, só quero dizer que "adorei" este teu registo sobre a tua terra. Estilística e culturalmente, "encheu-me as medidas"!

Abraço
Manuel Joaquim

Anónimo disse...

Francisco Baptista,

Obrigado pelo teu belíssimo texto, que ilustra de forma genuína o que se passa com os povos e a globalização, entre muitos outros ensinamentos que queiramos tirar.

Um abraço,
BS

Anónimo disse...




José Dinis, Manuel Joaquim e Belarmino Sardinha, meus caros amigos e camaradas, o meu muito obrigado pelo apoio que me dais, pelo esforço que procuro fazer, para que o Portugal interior não seja esquecido e abandonado. Brunhoso, a aldeia onde me criei e que me marcou para sempre, pela sua geografia, pela beleza das suas paisagens, pelas qualidades e o carácter das suas gentes é para mim uma terra única, como para cada um de nós há ou houve uma mãe única e especial. Não tenho dúvidas que de norte a sul ao longo de todo o país interior há milhares de vilas e aldeias na mesma situação de quase abandono e relativa desertificação.
José Dinis, não estás em dívida, tu és um grande amigo e um pequeno favor ou grande paga-se com amizade somente.
Um abraço. Francisco Baptista
Sei que a minha voz, não passa de um lamento, que não chega aos poderes políticos e institucionais mas talvez motive alguns camaradas a visitar essas terras cada vez mais esquecidas mas tão belas na sua diversidade. O litoral tem muita beleza com as suas grandes e pequenas cidades, os seus monumentos e as suas praias, mas existe muita beleza nas colinas, nos montes, nos rios, e nas planícies do interior.

Anónimo disse...

Mais uma lição sobre os hábitos e costumes do povo de Brunhoso e das aldeias próximas. São imagens reais sobre uma acomodação perfeita das gentes das aldeias transmontanas às características do seu meio ambiente.

Agradeço-te estes "desenhos" da ruralidade de Brunhoso, que tão magistralmente nos continuas a fazer.

Um abração

Carvalho de Mampatá.

ze manel cancela disse...

Caro Baptista.Continuo a "beber"e com prazer,os teus textos,sobre os costumes da tua
terra noutros tempos.Podes ter a certeza que não vou demorar muito tempo
a passar em Mogadouro,e é claro a Brunhoso.Até lá um grande abraço,e continua....