sexta-feira, 8 de abril de 2016

Guiné 63/74 - P15951: Notas de leitura (826): “A Guerra na Picada, Moçambique 1970”, por Rodrigues Soares, Chiado Editora, 2014 (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Maio de 2015:

Queridos amigos,
Este livro de um furriel sapador a viver em Nangololo, no Planalto dos Macondes tem várias surpresas: gera uma atmosfera asfixiante com o relato destes picadores que "pescam" minas anticarro e minas antipessoais em quantidades astronómicas, não sei se houve outro teatro de operações com tanta mina semeada; ele irá passar férias com a família, a viver não muito longe de Quelimane, e apercebeu-se que aquela guerra do Cabo Delgado chegava completamente filtrada, indolor, às populações civis; e quando regressa de férias vai substituir um colega morto, e finda a história, ficamos de boca aberta sem perceber o que aconteceu para o autor se ter desenvencilhado de que o lia tão atentamente.
São mesmo coisas desta literatura memorial, o autor cansa-se e manda-nos às malvas...
Adeus, até ao meu regresso!

Um abraço do
Mário


Parece que todas as minas do mundo se juntaram no Cabo Delgado (2)

Beja Santos

Não escondo que entrei um pouco contrafeito nesta leitura, tem um arranque muito parecido a tantíssimo outros livros de guerra: os preparativos, a família, o namoro e os amigos, as andanças pelos quartéis até partir para África. Mas quando o Furriel Sapador Rodrigues Soares, do BART 2901, chega a Mocímboa, o relato ganha vibração, as minas tomam conta do autor e do leitor. Daqui até ao reencontro da família, em Moçambique, as minas preponderam no altar da guerra. Os picadores têm medo, chegam a chorar, o exército não preparara profissionais para andar na picada. E picar até à exaustão também requer um espírito de equipa e uma certa forma de destreza, como o autor testemunha:
“Logo que comecei a manobrar o ancinho, percebi que aquele manejo precisava de força física e eu não a tinha de sobra: mal bastava para me aguentar a mim e à espingarda que transportava comigo. Para além disso não conseguia manter-me vigilante ao rodar da picada e esquecer o que acontecia à minha volta. O facto de ter que avançar com atenção ao chão que penteava, bulia comigo. Temia, a qualquer momento, que caíssemos numa emboscada e eu com a arma às costas”. E lá vão naquele para arranca desgastante com os homens do ancinho a esforçarem-se. Os reabastecimentos decorrem nesta atmosfera infernal. E há as capinagens, o trabalho nunca falta.

Temos aqui um relato de um furriel sapador do Planalto dos Macondes. A vida no aquartelamento de Nangololo espelha a vida que qualquer quartel, as tensões da espera, os ruídos medonhos que emergem da mata, os trovões que parecem saídas de morteiro ou de obus, a vida dentro dos abrigos. É na picada que o autor modela com maior perícia as descrições enervantes que cabem no melhor thriller, mesmo quando se socorre de uma prosa acalmada:
“Uma coluna saída de Mueda para reabastecer o batalhão. O pelotão que partiu de Miteda para a ir buscar ao posto 14, a meio caminho entre Mueda e Miteda, sofreu uma emboscada e neutralizou um fornilho onde descobriu uma bomba de avião lançada pela Força Aérea. No que dizia respeito à plantação de minas, aquela pecada disputava a supremacia com a zona do Chindorilho, no percurso que ligava Mueda a Sagal.
No dia seguinte, o pelotão de sapadores foi incumbido de ir buscar o grupo a meio caminho entre Nangololo e Miteda.
Seriam seis horas da manhã quando abandonámos o aquartelamento e entrámos na picada formando duas filas indianas. Os ancinhos e as picas marcavam a passada, pareciam estandartes. Na cauda do grupo, preocupava-me o que se passava na frente do pelotão: era importante que tudo corresse bem.
De vez em quando lançávamos uma granada de morteiro na esperança de obter resposta do grupo proveniente de Miteda. Mas não havia sinal de vida. Ao final da manhã chegaram-nos ecos do ribombar de rebentamentos, sinal que o grupo de Miteda estaria ainda distante de nós”.

Foi logo à espera, regressaram extenuados e desiludidos, tanto esforço para nada. De manhã regressaram, caía uma chuva diluviana. E surgiram as minas, depois da descida de um morro:
“Manhosamente colocada na berma do charco, a mina parecia esperar a sua presa, uns metros à nossa frente. Aquela era mesmo uma mina, uma PMD 6 com duzentos gramas de explosivo dentro de uma caixa de madeira. Estávamos perto do local onde sofrêramos as primeiras baixas. Dei uns passos em frente e mirei atentamente a berma do charco. Temi a aproximação: aquela mina podia estar rodeada da sua corte”. Com prudência, irá fazê-la explodir. São as minas, a tensão permanente na picada, que captam o leitor. As minas são o avassalador sinal da morte nestas colunas de reabastecimento. E as descrições a certa altura tornam o macabro plausível: “Até ao posto 14, os homens detetaram e neutralizaram duas minas anticarro e quatro antipessoais, reforçadas. Entre os postos 14 e 15, foram desativadas dez minas anticarro e duas antipessoais”.
O planalto parecia uma sementeira de morte, ouvem-se os gritos dos sinistrados, barafusta-se com o rádio que não trabalha e a demora nas evacuações pode significar a morte do ferido.

Os meses vão passando até que um dia o nosso autor vai de férias, vai se encontrar com a sua família em Moçambique, vai de Nangololo até Porto Amélia, depois Nampula, escalando Nacala, parece uma viagem interminável, e chega a Mutuali, tem os pais e o irmão Manuel à espera. É um reencontro muito difícil, terá acarretado desilusões. O furriel sapador vai-se apercebendo que os civis se esquivam a falar da guerra: “Mal informados, liam e ouviam dizer que o inimigo se resumia a um bando de bandoleiros, coisa pouca, apesar da guerra todos os dias produzir as suas vítimas, durar há seis anos, movimentar milhares e milhares de homens". Em Moçambique, os brancos apresentavam em relação ao negro uma postura de superioridade. Percebia-se isso, embora os colonos portugueses fossem tolerantes e demonstrassem uma maneira singular de cativar os nativos, coisas com que os seus vizinhos da África do Sul não se preocupavam. Um sábado, depois de jantar, o pai fez questão de o levar a arejar as ideias, terá considerado que ele necessitava de mulher, o que irá acontecer. Recebe uma carta de Nangololo dando-lhe tristes notícias. E regressa via Nampula. Estivera ausente 48 dias, vai encontrar Nangololo em estado febril, com bulldozers a movimentarem-se desventrando a mata, aumentando o comprimento da pista, chegaram mais peças de artilharia. Confirmam-lhe a morte de um querido amigo, o Coutinho, ia numa Panhard, acionou uma mina anticarro, morreu assado entre a picada Miteda-Nangololo. E é no quartel que lhe comunicam que iria substituir o falecido Coutinho até chegar um substituto.

E abruptamente, este relato que se encaminha para as 500 páginas suspende-se, o leitor não compreende o que se passou, porque se põe termo a esta guerra na picada, mesmo que o autor diga na nota final que optara por relatar os acontecimentos tal qual decorreram. É coisa intrigante mas não é incomum, não são poucos os livros de memórias que se suspendem quando é suposto haver muito mais para dizer. Há mesmo autores que escrevem um livro sobre um ano da comissão e anos depois surge outro livro respeitante ao segundo ano da comissão, sem se dar uma explicação ao leitor. Enfim, ínvios são os caminhos da literatura de guerra…
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Nota do editor

Poste anterior de 7 de abril de 2016 Guiné 63/74 - P15948: Notas de leitura (825): "A Descolonização da Guiné-Bissau e o Movimento dos Capitães", de Jorge Sales Golias (a lançar na 5ª feira, dia 14, em Lisboa): pré-publicação de um excerto por cortesia do autor: A perda da supremacia aérea – Março de 1973

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