quarta-feira, 9 de março de 2016

Guiné 63/74 - P15834: Os nossos seres, saberes e lazeres (144): O ventre de Tomar (8) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Fevereiro de 2016:

Queridos amigos,
Aqui se fala de panos bordados, de uma figura maior da pintura surrealista e abstracionista, Marcelino Vespeira, de lojas de velharias, de casas de reparação de roupas e de panejamentos floridos imaginem que fui à Casa Costa, onde pontifica o senhor Zezinho, o mais velho comerciante de Tomar e ali ficámos à conversa acerca do modo como ele exerce a responsabilidade social-empresarial oferecendo largas vitrinas para pôr mensagens de procura-se e oferece-se, de lançamentos de livros e festanças regionais.
É todo este encadeado de singularidades que me enche a alma e que gera esta estreitíssima relação com uma cidade e a sua envolvente, talvez porque todo este poderoso casco histórico tresanda ao mundo verdejante que serpenteia o Nabão.

Um abraço do
Mário


O ventre de Tomar (8)

Beja Santos


Lojas de reparação de roupa, lojas de bordados, lojas onde se fazem mantas, fardas, equipamentos, lojas em que do velho se faz novo, como este pano que parecia sem préstimo mas aquela bordadeira que tem as mãos afogueadas mostra que há outra coisas para além dos lenços dos namorados quem vêm do Minho, veja-se esta ternura de uma artista que faz colchas com restos de tecidos e tudo brilha, que pega em cortinas em estado ruinoso e as borda, com finura. Isto é um prodígio de talento, assim penso.


Consola-te com os teus erros, ó fotógrafo-amador, querias um altar todo iluminado e ele sai-te escuro para realçar a Senhora da Piedade, uma Mãe agigantada abraçando, com o maior sofrimento do mundo, aquele filho que lhe foi resgatado e que em breve se encaminhará para os céus. O que me deslumbra, desculpem lá esta curtíssima vaidade, é a perfeita iluminura do que é essencial esbatendo na sombra o puro acessório. Mãe esplendente, a quem ordenaram o supremo desígnio; como por ironia deram-lhe a graça com a mais horrível dor que a uma mãe se pode oferecer.


São dos mais belos azulejos portugueses, bem sei, mas o que me atraiu foi a mísula, nunca certamente lhe prantaram uma imagem ou um tocheiro, aquela alvura da pedra toda ricamente trabalhada é um corpo único, por desconformidade entre a pouca luz do dia e o clarão expelido pela câmara resultou assim uma mísula esplendente, uma luz que parece acompanhar bem de perto a Senhora da Piedade.


Tive a dita de visitar várias vezes a retrospetiva de Marcelino Vespeira (1925-2002) que esteve patente no museu do Chiado entre Junho e Setembro de 2000, e adquiri mesmo o soberbo catálogo da obra pujante deste singularíssimo artista que foi amigo de José-Augusto França. Este óleo pode ser desfrutado pelos tomarenses, está no núcleo da arte contemporânea. Chama-se “Parque de insultos”, obra de 1949. Escreveu o investigador David Santos neste catálogo: “Riscadas sob uma superfície apressadamente tratada, as figuras de Parque de insultos dividem-se entre a condição animal e humana e o delírio surreal erotizado da sua manifestação plástica. Simultaneamente, esta obra marca o início de uma fase que se prolongará até ao final de 1950 em que Vespeira abandona o processo tradicional da pintura a óleo”. Sou regular peregrino desta casa bendita onde é possível usufruir contacto com grandes mestres, ali estão grandes obras de que Tomar se deve orgulhar em poder contemplar quase todos os dias.


É um estabelecimento onde preponderam as cores berrantes, ali se vende o novo mas também se repara, quando entrei uma jovem senhora manejava um daqueles ferros de engomar à antiga, pedi licença tinha uma certa fome de coloridos da nossa raça, panos feitos e panos para acabar, e zás, tive a fortuna de enquadrar o todo misturado.



Não escondo o meu pendor pelos trastes velhos, por incontornáveis velharias, bules sem tampa, chávenas sem pires, santos abandonados. Há um senhor que me recebe habitualmente, não tem ilusões que eu venha para comprar, dá-me sugestões de cantos e recantos que lhe parecem sugestivos para imagem de jornal. Desta vez dividimos a iniciativa ao meio, gostei daquele tampo cheio de imagens santas num abandono sagrado, algumas delas muito mal tratadas, havia mesmo um Sagrado Coração de Jesus com a cabeça rachada, mas fotografei-os como se estivessem em descontraída conversa. O anfitrião falou-me neste Santo André, não se pode negar que é uma imagem singular, vejam bem a convicção que lhe emana do olhar, indiferente àquele braço direito decepado, a sua fé está para além do tempo, é bem provável que se prepare para sair da loja e rumar até à Escócia onde será crucificado naquela cruz que se chama de Santo André, e que até já vi em mosteiros gregos. E daqui abalo para o calor da manhã, chegou a Primavera, há já ramos a florescer, deu-me no goto em descer até à pedreira, não a povoação em si mas àquele rasgão na terra de onde sai a matéria que embelezou Tomar, pondo-a nos píncaros da Lua.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 2 de março de 2016 Guiné 63/74 - P15817: Os nossos seres, saberes e lazeres (143): O ventre de Tomar (7) (Mário Beja Santos)

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