quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Guiné 63/74 - P15792: O meu coma: o corredor da morte (Mário Gaspar) - II (e última) Parte

1. Segunda e última parte do texto do Mário Gaspar sobre a sua experiência de internamento hospitalar  em março de 2002, quando foi operado ao coração... Tem hoje 4 bypasses. Esteve em coma, estve mais para lá do que para cá, É um herói, um duplo sobrevivente do "corredor da morte", na Guiné e na UTIC, no Hopsital de Santa Maria (*)

[Foto à esquerda: Mário Gaspar, ex-Fur Mil At Art e Minas e Armadilhas da CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68; lapidor de diamantes, reformado; cofundador e antigo dirigente da APOIAR - Associação de Apoio aos Ex-Combatentes Vítimas do Stress de Guerra]


(Continuação)

Guerra. Descia e montava minas que rebentavam e matavam. Guerra. As cores de todo o ambiente, eram carregadas, visíveis, sendo de destacar, o verde e o vermelho. Parece que o verde de floresta e o vermelho de san­gue.

Fomos então à propriedade do “senhor x”. Tinha vários chapéus-de-sol espalhados pela relva bem verde. O senhor estava sentado numa cadeira de praia, junto a uma piscina. Falei com ele mas tive que me lançar para a relva. Tinha bastantes dificuldades em me mexer. Ele parecia ser boa pessoa, queria­ ajudar-me. Não sabia quem era, alguém importante. Tinha muitos empregados. Era um espaço luxuoso. Um paraíso.

Perto dele, um outro indivíduo. Emigrante, percebi e de visita à terra, mas mais pobre. Vivia também com algum desafogo. Pronto também para ajudar. Não entendia que tipo de apoios, nem tão pouco quem apoiava e quem era apoiado. Eu não estava bem. Tinha de me lançar para a relva. Até que veio um outro indivíduo, percebi ser muito pobre, que só queria que ajudassem uma mulher. Foi encaminhado.

Saí dali e voei até Vila Franca de Xira. Depois Alhandra e passei pela passagem de nível desta estação. Um pouco à frente está Campo Grande, e logo à curva a Praia de Santa Maria de Sintra (a praia não existe, mas existe a Freguesia de Santa Maria de Sintra que foi onde nasci). Vem Sintra. Toda a viagem foi voando como se fosse um anjo. Vejo o meu pai revoltado dizer:
– Eles não deviam mandar o meu filho para a guerra. Ainda, por cima mataram­‑no. Está escrito na caderneta militar:
– “Morto a 12 de Outubro de 1967” e também: – “Baixa de Serviço: por Falecimento”. Eles não podem matar o meu filho. – Continuava ele, enquanto chorava.

Vi a minha mãe a olhar­‑me. Chorava.

A sala onde me encontro é grande, e localiza­‑se na entrada de neu­rologia, no Hospital de Santa Maria, aliás local onde nunca estive. Tem muitas camas. No fundo, ao meio, está uma porta estreita. Para lá chegar é necessário subir uns degraus. Entrada de um corredor diferente, o “corredor da morte”?

Eu estou em pé à espera da minha vez. Alguém com um aspecto sinistro se põe à minha frente. A sala possui muitas camas com doentes. Dou um empurrão a um tipo por entender que ele não deve ultrapassar­‑me. Sou tratado à sua frente, e para além de me lavarem colocam­‑me uma matéria florescente no nariz, lábios e orelhas, que em contacto com a pele me dá uma outra força anímica. Fico numa cama limpa.

Depois vou para Entre Campos, dando uma volta por Alhandra, Vila Franca de Xira, Praia de Santa Maria de Sintra. Sempre a voar. Fiquei preso no elevador, no cruzamento da Avenida da República com a Avenida das Forças Armadas, com bastantes dificuldades em me mexer. Pedi a um indivíduo se me ajudava, ou a carregar no botão para o piso que eu queria, ou que me emprestasse o telemóvel dele para falar com a minha família. Nem resposta me deu. Olhou­‑me, com o cigarro entre os dedos.

Não consegui sair dali. Após verem­‑me levam-me para umas barra­cas (correspondentes às Barracas dos Tiros da Feira Popular – do lado da Avenida da República e do Teatro Vasco Santana).  Quem aparece, é o tal rapaz, um bom técnico de computador, fazendo peças de cerâmica e bolos. Coloca­‑me a tal matéria florescente no nariz, lábios e orelhas, que em contacto com a pele dá­‑me uma outra força, faz­‑me ter vida. Viver. Mas estou preso. Estou amarrado. Estou morto. Vejo mais uma vez a Sede da APOIAR na Avenida de Roma, 135 3.º, em corte, vista por cima.

Surge um médico preto a afirmar que afinal em relação à minha doença, a fibrose pulmonar (ao pó de diamante) e ao stress pós­‑traumático de guerra, estava pior, pelo que pensei em falar com o rapaz, o tal rapaz que faz bolos e peças de cerâmica. Poderia ajudar nalguma coisa. O meu pai gritava:
– Mataram o meu filho, quero o meu filho.

Volto à Guiné, e movimento­‑me pelo ar rapidamente, com a G3 em punho, matando mais guerrilheiros. O verde. Bem vermelho.  Depois vejo uma corneta. São os Correios localizados na Rua de São José, em Lisboa. Já havia lá trabalhado, ao serviço da DIALAP – Sociedade Portuguesa de Lapidação de Diamantes. Sou acompanhado também aí:
– Eu preciso de acompanhamento!

O porteiro que me dava a chave para eu trabalhar já lá não estava. Ali existia uma equipa grande e discutiam inclusive os vencimentos, considerando ganharem pouco. O psiquiatra preto que é guineense mandou vir a mulher da Guiné, e também a filha. No primeiro dia zangaram­‑se.  Pensava: – Como me podem ajudar, se eles não se entendem.

Ficou então estabelecido que a Rede Nacional de Apoio, esta apro­vada por Decreto Lei na Assembleia da República, por unanimidade, era eu Presidente da APOIAR. A Rede Nacional de Apoio funcionaria com 9 Psiquiatras de Angola, 9 da Guiné e 9 de Moçambique.

Volto novamente a Entre Campos, e ao entrar no prédio de gaveto da Avenida das Forças Armadas com a Avenida da República, vejo a Antonieta, Josefina, e outras personalidades históricas. Os rostos estão furados. As carnes carcomidas. Estão mortas.

Andavam a fazer publicidade a produtos alimentares num grande hipermercado. O local é o mesmo das barracas dos tiros:
– Ó freguês, vai um tirinho?

Nos locais onde sou acompanhado, principalmente pelo rapaz que uti­liza tal matéria florescente no nariz, lábios e orelhas. Aquela matéria aliviava as dores. Começam por me colocar mais pedaços, era matéria maleável e incandescente. Parece que andam a controlar a utilização daquela matéria que devia ter um valor incalculável. Fico mais aliviado das dores.

Fumo um cigarro, que apago logo, sendo visitado por um indivíduo que vem controlar aquele produto milagroso. Nada me diz. O rapaz, a partir de um determinado dia, começa a empurrar todo aquele produto para cima de mim. Com o fim de me comprometer? Ele continua a desconfiar. Fico com medo e grito:
– Ó da casa!

Alguém me tira daquela prisão que me atormenta e me corrói.  Faço outra visita ao “senhor x” que está debaixo do chapéu-de-sol. Num voo chego junto dele. Saboreia uma bebida. Falo­‑lhe. Não sei bem de quê, depois de eu próprio me lançar sobre a relva. Doía­‑me a barriga.

Vejo­‑me de repente perante o emigrante, tirando um cigarro do bolso, metendo­‑o de seguida na boca. Enchi o ambiente de fumo, até que chegam os meus irmãos José e o Ramiro. Via o meu pai, que chorava, enquanto a minha mãe me mirava com um olhar melancólico. À minha frente, está o meu filho, o Carlos, tem dois ou três anos. Vejo também o meu filho Alexandre, mas este com 27 anos.

Estou deitado na cama. Alguém se aproxima de mim. Quase cara na cara. Muito bonita a senhora. Afasta­‑se. Afasta­‑se. Afasta­‑se. Até desapa­recer por completo. A grande velocidade, velocidade da luz passa o Herman José, que para de seguida.
– Ando a pensar em clonar o Michael Jackson.
–  Muitos? Eu estou contra! – Respondo.

Herman José passa novamente a grande velocidade, dizendo estar tudo controlado, principalmente junto da fronteira. Mas o Michael Jackson não pode ser. Não é branco. Não é preto. Enfermeiros e Médicos olharam­‑me como se me acusassem. Será da utilização daquele produto que faz milagres?

Saí dali e fui a Vila Franca de Xira, depois até Alhandra, passando pela passagem de nível da estação, um pouco à frente está o Campo Grande, e logo à curva a Praia de Santa Maria de Sintra. Tudo em voo rasante. Vem Sintra. Passa o Herman.
– Há que clonar!

O meu pai reclama. A minha mãe olha­‑me com amor. O rapaz diz que me vai ajudar, porque entende de computadores, e vai juntar a História da minha Companhia, com uns bonecos parecidos com aqueles que a minha neta Raquel faz, e provar que eu estou vivo. Surgem uns indivíduos todos iguais. Carecas. Aquela careca típica, com cabeças parecendo cubos. Eram muitos, e militares. Clonagens?
Outros clonados, mais outros. O Herman passa a uma velocidade do Speed Gonzalez.

Não podem clonar o Michael Jackson. Somos brancos ou somos pretos. Vila Franca de Xira, Alhandra, Campo Grande, Praia de Santa Maria de Sintra. Voo fantástico.

Vejo algo como o paraíso encerrado em vidro. Entrei. Os soldados carecas de cabeça cúbica. Era tropa de elite e conheciam­‑me.

Ao fundo da sala uma porta estranha. Pequena. Quando chega a minha vez, e depois de uns indivíduos me analisarem, eu, que era dos primeiros, entro naquela porta carregada de uma luz bonita que não encandeava nem feria a vista. Uma luz mais pura e forte bate­‑me na vista. Atravessei um túnel, antes um corredor. Não estava a sonhar e vi um cenário que nunca imaginava existir: uma floresta multicolor; arco­‑íris; jardins que percorriam todo o espaço; plantas exóticas; relva e musgo; florestas; flores de uma beleza nunca vista; um rio de água límpida; cascatas; mares calmos bem azuis; um mar de areia cor de ouro.

Beleza celestial. Era um paraíso. Um paraíso difícil de identificar. Entro num corredor. Pode­‑se dizer ser um corredor de luz. Possui uma luz muito bela. Incandescente. Uma luz que para além de iluminar, corrompe o espírito e a alma.

Que beleza! Mundo que só poderia ser feito por um Deus maior, um ser superior. Num ápice afasto­‑me daquele mundo maior e regresso.  Estou livre. Vivo em liberdade. Afinal estou na enfermaria da UTIC, no Piso 6. Apalpo­‑me… Estou numa cama, do Hospital de Santa Maria. Um penso tapando o peito. As pernas estão igualmente ligadas.

Venho a saber mais tarde que é 27 de Março, e que fui operado ao coração (cardiopatia isquémica – quatro bypass), ficando em coma de seguida. Só me recordo de fazer o cateterismo. Estou repleto de tubos. Tenho hematomas nas costas da mão direita e a esquerda está cheia de tubos, devido ao soro.

Não votei. O acto eleitoral tinha sido a 17 de Março. Vou todos os dias ao Piso 8 fazer o penso. Todos me falam quando se cruzam comigo. Não os conheço. Um dia peço para visitar a sala onde estive em coma. O médico que diariamente me faz o penso é sósia daquele militar de cabeça cúbica.

Um dia ao transportarem­‑me na cadeira de rodas para fazer o penso no piso 8 colocaram­‑me o Processo Clínico nas mãos. Tentei ler para veri­ficar se estava lá algo sobre o tal produto, ou algo que me incriminasse. Não tinha óculos e fiquei sem saber aquilo que me intrigava: Tudo aquilo por que passara teria alguma verdade?

Pensava que tinha andado a tomar droga. Se não me prenderam é por­que não cometi qualquer crime. Vim a saber terem avisado a minha família que eu não escapava porque estava muito mal. Ia morrer.
Meu filho mais velho, o Carlos Pedro,  contou­‑me que no dia 19 de Março, dia do pai havia­‑me dito ao ouvido, quando eu estava todo entu­bado:
– Pai, o pai é forte e é capaz… É um combatente!

Acordei deste coma induzido, o meu filho Carlos Pedro perguntou:
– Pretende saber de algo para si importante, passado nestes dias? – Respondi com a pergunta:
– Quem ganhou as eleições, e pela vez não votei, e o Benfica tem algumas possibilidades de ser campeão?

Respondeu que tinha sido o PSD e coligado com o CDS-PP e que o Benfica ainda tinha hipóteses.
Tentei dizer, primeiro ao meu amigo Diogo, aquele mundo por onde viajara:
– Esquece!

Outros responderam do mesmo modo. Estou confuso, os Médicos falam em 10 dias, e para mim existe o espaço entre o 12 e o 27 de Março de 2002. Quanto aos Correios, existem na Rua de São José, tendo verificado há pouco, descendo do Marquês Pombal. Estão localizados do lado esquerdo. Curiosamente nunca lá passara. E os mortos vivos, figuras históricas?

O último nº da revista APOIAR,
96, nov/dez 2015, disponível aqui
em formato pdf
Não vi a minha neta neste período, mas ela que fez 3 anitos a 28 de Março, curiosamente disse a
primeira vez que me viu:
– É o avô. Tem dói­‑dói no coração por causa da porcaria do tabaco.

Dias depois da baixa o meu filho Alexandre foi comigo ver o filme de Pedro Almodôvar, “Fala com ela”. Foi ele que escolheu o filme.

O “senhor x”, o “rapaz, o mágico dos computadores”, o meu “voo sobre as terras”, a “raiva do meu pai”, a “acalmia da minha mãe”, “minha neta”, a “matéria florescente”, o “tipo que não ajuda quando fico preso no elevador”, “a razão dos médicos pretos”, a “clonagem”, o “regresso do meu filho mais velho à infância”, a “aproximação de uma figura feminina bonita”, “os vivos mortos”, “os três locais de tratamento”, a visão do “Paraíso”, o “corredor da morte”, e o “regresso à vida”.

Principalmente o regresso à guerra, são questões que necessitam de explicação. A verdade é que estive no “lado de lá”, à entrada do famoso túnel, o tal “corredor da morte”, ou “corredor da luz”.

Ou terei entrado mesmo no “corredor da morte”? A verdade é que depois saí daquele paraíso, para a vida … Voltei à guerra, que me corrompeu as entranhas, no “corredor da morte” e estive novamente no “corredor da morte”.

Recordei, com uma certa ansiedade, os anos passados. Logo na primeira oportunidade – com a mente vazia – escrevi este episódio.

Estivera reunido no dia 11 de Março reunido com o Major Mário Tomé, representando o Bloco de Esquerda. Pedira-lhe um copo de água.

______________

Nota do editor:

1 comentário:

Luís Graça disse...

Mário, és um herói, um resistente, um sobrevivente!... Um abraço fraterno, LG