terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Guiné 63/74 - P15640: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (34): De 1 a 10 de Junho de 1974

1. Em mensagem do dia 10 de Janeiro de 2016,  o nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), enviou-nos mais uma Memória, a 34.ª.


CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74

34 - De 1 a 10 de Junho de 1974

Almoçando com o inimigo

Prosseguem os encontros com os guerrilheiros do PAIGC e os contactos “diplomáticos” e de cortesia dos seus responsáveis com as autoridades militares de Aldeia Formosa e um pouco por todos os aquartelamentos do Sector. Estas e outras iniciativas do PAIGC geram momentos de regozijo nuns casos e focos de tensão noutros, criando uma atmosfera cada vez mais incerta à medida que se vão riscando os dias do calendário. Nota-se da parte da nossa tropa um certo distanciamento desconfiado, às vezes só uma aproximação pela curiosidade e, não raro, até algum desagrado por atitudes ou iniciativas demasiado ousadas, para não dizer mais, tendo em conta a nossa ainda legitimada presença no terreno. Esperava-se mais contenção da parte deles nesta fase crítica e ainda pouco clara do processo, e que até à entrega do território imperassem regras pré-determinadas e o bom senso, mesmo considerando que ninguém estava preparado para a presente situação. Devo referir, em abono do rigor, que não estou absolutamente seguro de, com isto, transmitir o sentimento geral naquele período concreto. Baseio-me na memória que me resta e em notas que transcreverei adiante. Todavia, não andarei longe da verdade tendo em conta o meu próprio sentimento e porque, mais importante, me podia assumir como um dos poucos que sempre estivera com a causa deles e com os seus ideais, embora me mantendo fiel e firme na função que me tinha ali. Ora, se até eu por vezes os achava demasiado ousados nas suas incursões, imagina-se facilmente o sentimento geral. Também é certo que nem todos manifestavam aquela quase insolência, e houve bons momentos de confraternização e genuína satisfação pelo encontro amistoso dos inimigos de antanho. Ainda assim, eu, o idealista com mau feitio, ainda gerei um incidente (por distracção ou indiferença) com um alferes de um bigrupo, relacionado com o arrear da bandeira do PAIGC junto à escola primária de Nhala, por não ter mandado pôr em sentido os nossos soldados ali presentes. E, noutra situação, ia gerando um conflito “diplomático” com um comissário Político, não fora a sensibilidade e diplomacia do nosso capitão de Nhala que o convidara para almoçar connosco, o qual, aceitando o convite, se sentou à mesa de pistola à cintura. O assunto ficou entre mim e o capitão, que não acedeu a fazer uma chamada de atenção ao convidado, convencendo-me de que eu sobrevalorizara a importância do caso. Convenhamos que tinha razão.

Transcrevo a sucinta mas fundamental informação da HU, intercalada das minhas notas e comentários. Começa com o registo banal da rotina diária (que nas datas seguintes me dispensarei de transcrever), mas dá bem a ideia da situação no terreno: as armas não estavam depostas e tudo estava em aberto.


Da História da Unidade do BCAÇ 4513: 

JUN74/01 – Forças do Batalhão e das Subunidades de reforço continuam, além dos patrulhamentos de defesa próxima dos aquartelamentos, a fazer a segurança dos trabalhos de Engenharia na estrada A. FORMOSA-BUBA e A. FORMOSA-R. CORUBAL.

- Realizou-se uma coluna a BUBA para transporte de víveres nomeadamente arroz para a população e militares.
- Esteve presente em A. FORMOSA o Exmo. Major ORNELAS MONTEIRO.
- O Comissário Político do PAIGC, BRAIMA BALDÉ, que tem permanecido em A. FORMOSA, deslocou-se a KANDIAFARA.


JUN74/03 – Regressou de KANDIAFARA, BRAIMA BALDÉ. Afirmou que de acordo com instruções recebidas do seu Comandante, não vai haver mais guerra, e que as NT poderão circular à vontade, e as populações poderão deslocar-se das localidades para cultivarem as suas lavras. Neste mesmo dia fez uma reunião com alguns elementos da população a quem distribuiu galhardetes e emblemas do PAIGC, assim como o livro “HISTÓRIA DA GUINÉ e ILHAS DE CABO VERDE”.

- Na direcção do SALTINHO, foram ouvidas pelas 16h30 alguns rebentamentos. Posteriormente veio-se a saber que a Tabanca de MADINA tinha sido atacada pelo PAIGC. [Sublinhado meu].


JUN74/04 – (...)

- Realizou-se uma reunião deste Comando com o Comissário Político BRAIMA BALDÉ, em que o mesmo deu uma panorâmica da distribuição dos diferentes Comissários Políticos por algumas zonas do TO, assim como tinha sido incumbido de confirmar a continuação do cessar-fogo tácito e alertar a população civil para não provocar nem arranjar problemas com os militares. Mostrou-se absolutamente sincero e extraordinariamente seguro de que tudo se virá a processar com a independência da Guiné.


JUN74/05 – Pelas 10h00 aproximou-se de A. FORMOSA, instalando-se a 100 metros do arame farpado, um bigrupo armado do PAIGC. Aproximaram-se do arame três elementos desse bigrupo, o Comandante HONÓRIO SILVA, e dois alferes. Imediatamente foram transportados ao Posto da Polícia de Informação Militar, onde posteriormente se reuniram com este Comando.

Durante a reunião os elementos do PAIGC declararam que vinham contactar com a tropa europeia, o que não foram autorizados e, além disso, apresentavam os cumprimentos do Comandante da Frente Sul. Após esta reunião, em que lhes foi dito que o seu procedimento não era correcto, pelo facto de se aproximarem de A. FORMOSA com um bigrupo armado, os mesmos retiraram novamente para KANSABEL.

(...)

JUN74/10 – Em A. FORMOSA realizaram-se as comemorações do 10 de Junho, que constaram de uma formatura geral das forças disponíveis e sediadas em A. FORMOSA, e uma alocução sobre CAMÕES. Estiveram também presentes delegações das várias Companhias destacadas do Sector. Após esta cerimónia e, com a presença das Autoridades Militares, Administrativas, Tradicionais e muita população, procedeu-se à inauguração do Reordenamento de COLIBUIA constituído por 40 casas, uma mesquita e uma escola.


Das minhas memórias: 

10 de Junho de 1974 (segunda-feira): Dia Camões

Desta efeméride, celebrada pela última vez (e certamente pela primeira vez também) pelo meu Batalhão em Aldeia Formosa, mostro a seguir algumas fotografias assim como do Reordenamento de Colibuia, inaugurado no seguimento daquelas celebrações.

Foto 1: Aldeia Formosa, 10 de Junho de 1974. Chegada das autoridades locais à porta-de-armas do quartel, para assistirem à celebração do Dia de Camões.

Foto 2: Aldeia Formosa, 10 de Junho de 1974. O Major Dias Marques, 2.º Comandante do BCAÇ 4513, dá as boas vindas às autoridades locais.

Foto 3: Aldeia Formosa, 10 de Junho de 1974. Formatura e alocução alusiva ao Dia de Camões.

Foto 4: Aldeia Formosa, 10 de Junho de 1974. No final da cerimónia, momentos de descontracção com uma beldade local a apresentar cumprimentos ao Comando do Batalhão e outros oficiais. Da esquerda para a direita: Ten Toscano (salvo erro); Cap. Mil Luís Marcelino (de óculos); Cap. Mil Brás Dias; Ten Cor Carlos Ramalheira, Comandante do Batalhão; Major Dias Marques; Cap. Jorge Cerveira e um capitão que não recordo.

Foto 5: Aldeia Formosa, 10 de Junho de 1974. Da esquerda para a direita: Alf Mil Mota (3.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 – A. Formosa), com a sua sempre bem-disposta irreverência, - repare-se nas botas por engraxar; Cap. Mil Brás Dias (1.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 – Buba); Cap. Mil Luís Marcelino (CART 6250 – Mampatá); Cap. Mil Guerreiro Dias, já falecido, (3.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 – A. Formosa).

Foto 6: COLIBUIA, 10 de Junho de 1974. Inauguração do Reordenamento de Colibuia. Na imagem, um dignitário que não sei identificar, faz uma pose para o fotógrafo no decorrer de um diálogo com o Comandante do Batalhão, à esquerda do enquadramento.

Foto 7: COLIBUIA, 10 de Junho de 1974. Outras individualidades assistem ao diálogo com o Comandante do Batalhão.

Foto 8: COLIBUIA, 10 de Junho de 1974. À direita na fotografia, de óculos escuros, o Cap. Mil Vasco da Gama, Comandante dos Tigres de Cumbijã, CCAV 8351.

Foto 9: COLIBUIA, 10 de Junho de 1974. Corte da fotografia anterior

Foto 10: COLIBUIA, 10 de Junho de 1974. Animação musical após a cerimónia.

Foto 11: COLIBUIA, 10 de Junho de 1974. Animação musical após a cerimónia.

Foto 12: COLIBUIA, 10 de Junho de 1974. A imagem da simplicidade, humildade e desamparo: mãe e filha, duas belezas agora “reordenadas” em Colibuia. A criança põe a mão no ventre: será fome ou será dor? Se precisar, quem vai ser o “fermero” a acudir-lhe após o regresso das tropas a casa?

Foto 13: COLIBUIA, 10 de Junho de 1974. Aspecto parcial do reordenamento.

Foto 14: COLIBUIA, 10 de Junho de 1974. A escola recém-inaugurada.

Foto 15: COLIBUIA, 10 de Junho de 1974. Retrato de grupo que julgo ser do pessoal que construiu o reordenamento com o Comandante e 2.º Comandante do Batalhão ao centro.

Foto 16: COLIBUIA, 10 de Junho de 1974. Provavelmente já de saída, da esquerda para a direita: Cap. Mil Brás Dias, Cap. Mil Guerreiro Dias, Ten Toscano (creio), Cap. Mil Luís Marcelino e Alf Mil António Murta.

(continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 5 de janeiro de 2016 Guiné 63/74 - P15582: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (33): De 14 a 31 de Maio de 1974

4 comentários:

Luís Graça disse...

Camaradas, mais uma vez chamo a atenção para o grande valor documental e historiográfico destas notas e destas imagens... Espero que o António nos continue a surpreender e não se deixe levar pela eventual tentação de autocensura... Incentivo-o a mandar-nos, para publicação para os documentos que tiver em seu poder, relativos a este período do pós-25 de abril de 1974... Quebo / Aldeia Formosa tinha um grande significado para ambas as partes, não admira por isso que tenha havido momentos de tensão nos primeiros contactos com as NT e com a população, por parte do PAIGC...

São preciosas as notas e legendas que acompanham as fotos. Bem hajas, António.

Antº Rosinha disse...

10 de Junho de 1974, dia do Camões, dia da raça, dia de Portugal, comemorando no Quebo, com a população e a tropa portuguesa, (45 dias após o 25 de Abril)podemos imaginar a reação dos combatentes do PAIGC para com aquele comportamento do povo.

Há muitos anos que o PAIGC temia não a tropa portuguesa, mas a descrença do povo, naquela luta de «libertação»

As fotos deste post, com aquele povo com ar confiante nos «Tugas», imagine-se o que aquela gente teve que passar às mãos cabralianas e ninitas.

Cumprimentos

Anónimo disse...

Não me vou repetir. Subscrevo as palavras do Luís Graça, quanto ao papel do Murta na narração dos últimos dias da nossa presença.

Continua Murta.

Um abraço.

Carvalho de Mampatá.

José Carlos Gabriel disse...

Palavras para quê?
É um historiador Português.
Só lhe falta convencer-se que pode editar um livro destes
acontecimentos porque qualidade e matéria não lhe falta.
Um grande abraço do camarada e amigo.

José Carlos Gabriel