sábado, 31 de outubro de 2015

Guiné 63/74 - P15309: Historiografia da presença portuguesa em África (64): Cem pesos era "manga de patacão" para o camponês guineense, produtor de mancarra... Era por quanto venderia um saco de 100kg ao comerciante intermediário... Em finais de 1965 o governo de Lisboa garante a compra pela metrópole da totalidade da produção exportável da mancarra guineense e fixa o preço por quilo em 3$60 FOB (Free On Board)



Foto nº 1 > Desenterrando a “mancarra”. Tarefa difícil com o sol a pique nas costas dobradas. Esta mulher tem a vida facilitada pois não tem o filho encavalitado.


Foto nº 2 > A muito custo e apenas com a ajuda de um longo pau endurecido na ponta este homem vai tratando do seu chão de mancarra.


Foto nº 3 > Levando os molhos enfiados num pau.


Foto nº 4 > E acumulando-os para posterior transporte.


Foto nº 5 > A debulha na eira. Aqui com ajuda de cestos (“balaios”) e do vento separam-se os grãos das cascas.

Fotos (e legendas): Henrique Cabral / César Dias (2007). Todos os direitos reservados. Edição: LG

Fotos do nosso grã-tabanqueiro César Dias, ex-furriel mil, CCS/ BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71) e do Henrique Cabral.  Originalmente publicadas no sítio Entre Fogo Cruzado, numa entrada sobre Amendoim (mancarra), s/d. [2007?].

É uma magnífica página, esta,  concebida e mantida pelo Henrique Cabral, ex-fur mil da CCAÇ 1420/BCAÇ 1857 (1965/67), também ele membro da nossa Tabanca Grande (desde 9/12/2007), e que andou por meia Guiné (.Fulacunda, Mansoa, Braia, Encheia, Uaque, Jugudul, Bissorã, K10,Olossato, Cutia, K3 / Farim e Mansabá)...

Esta página (que merece uma visita!), Entre Fogo Cruzado,  "é dedicada à vida e costumes das  gentes [da Guiné]. Nela transmito aquilo que me foi dado observar, tentando chegar o mais próximo possível ao seu dia a dia, de uma vida tão difícil quanto a nossa, mas da qual a maioria de nós nem tinha tempo para ver, quanto mais pensar nisso. Sendo a nossa vida feita dentro do aquartelamento ou no mato, em guerra, o contacto com a população, para a grande maioria, restringia-se à nossa bajuda lavadeira - tendo em conta os muitos condicionalismos a que estávamos sujeitos e apesar da curiosidade que naturalmente tivéssemos".
 Alterámos a ordem das fotos, que documenta parte do processo da cultura da mancarra na Guiné na década de 1960. As legendas são do Henrique Cabral.


Ano
Mil toneladas
Mil
contos
Contos por tonelada
1960
24,0
78,8
3,27
1961
40,0
126,3
3,17
1962
38,7
133,3
3,44
1963
36,6
124,7
3,41
1964
34,0
119,2
3,50
1965
15,2
64,3
4,23

Quadro 1 - Exportação do amendoim (1960-1965)
Fonte - Adapt. de Dragomir Knapic - Geografia económica de Portugal: Guiné. Lisboa: Instituto Comercial de Lisboa, 1996, 44 pp., policopiado.


1. Recorde-se que o que já aqui escrevemos sobre a mancarra, o principal produto da Guiné até à independência (*):

(i)  em 1929,  a CUF - Companhia União Fabril obtém o reconhecimento alimentar do óleo de amendoim (ou mendubim, como então se dizia);

(ii)  esta decisão vai ter grande impacto não só na olivicultura nacional (, o "óleo fula" vai pressionar o preço do azeite) como na economia da Guiné, que passa a ser o principal fornecedor de matéria-prima, o amendoim; 

(iii) a CUF (, através da Casa Gouveia) detém o monopólio da exportação do amendoim  da Guiné, até à independência da Guiné-Bissau

(iv) entre 1930 e 1960 há um aumento gradual da produção e exportação: a. média de 1931-35 foi de c. 22,9 mil tonelafas e 15,2 mil  contos; a de 1955-60 de 34,2 mil toneladas   e 11,3 mil  contos;

(v) nos anos 60, é o principal produto de exportação da Guiné: representa 76% do total das exportações (em 1964), percentagem que vai decrescer para 61% em 1965;

 (vi) em meados da década de 1960, a área cultivada pelos produtores de mancarra atingia os 100 mil hectares, ou seja, um 1/4 do total da área cultivada da província!,,,.

(vii) a produção rondava as 65 mil toneladas; a produtividade era muito baixa: 600 kg / ha (2 mil kg /ha em casos excecionais);

(viii) em 1965, uma tonelada de amendoim exportado valia 4,2 contos   [ 1.589,91 €, a preços constantes de hoje] (Vd. Quadro 1, acima).

(ix) a cultura da mancarra era feita: (a) em regime de rotação; (b) sem seleção de sementes; (c) sem recurso a adubos ou estrume; (d) proporcionando fracos rendimentos aos produtores; e, por fim,  (e) exigindo grande esforço nas várias fases do ciclo de produção (sementeira, monda, protecção contra oso macaco-cão, colheita, armazenazem)...

(x) as principais regiões de produção eram as do leste da Guiné (Farim, Bafatá, Gabu) onde os solos são mais leves e a precipitação menor;

(xi) esta cultura era já considerada na época como muito lesiva do ambiente, pelo uso intensivo dos solos, a redução do pousio, as queimadas;

(xii)  o sistema de comercialização era altamente penalizante para os produtores;

(xiii) a mancarra punha em risco a segurança alimentar da população local;

(xiv) com a escalada da guerra e a "militarização" da população fula, há um decréscimo da produção;

(xv) é nessa altura que o governo da metrópole intervem fdixando o preço da produção da mancarra da Guiné destinada à metrópole  em  3$60 por quilo (para a campanha de 1965/66), um aumento de §15 / kg;

(xvi) desconhecemos o efeito desta medida no rendimento real dos produtores de mancarra: para chegar a Lisboa a 3$60 o quilo, o produtor guineense não deveriar receber mais do que um 1 peso; por isso, na altura 100 pesos era mesmo "manga de patacão": era um saco de 100 quilos de mancarra!  (**); uma família inteira a cultivar um hectare, no final, poderia ter um rendimento bruto... de 600 pesos (!).



Em face das condições muito especiais em que se continua a processar a produção e comercialização da mancarra da Guiné e enquanto se não finalizam os estudos necessários para dar cumprimento ao previsto no artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 44507, de 14 de Agosto de 1962, e que tudo indica conduzirão a uma substituição gradual da cultura do amendoim por outras mais apropriadas às condições geo-climáticas da província, foi entendido, em relação à próxima campanha, elevar o preço desta oleaginosa de $15/kg, a fim de atender aos excepcionais sacrifícios suportados pela agricultura da província. 

Dentro deste condicionalismo: 

O Ministro do Ultramar e o Secretário de Estado do Comércio determinam que na campanha de 1964-1965, sem prejuízo do disposto no Decreto-Lei n.º 44507, de 14 de Agosto de 1962, sobre a circulação de oleaginosas alimentares do ultramar no espaço português - e em especial no referente à garantia de compra pela metrópole da totalidade da produção exportável da mancarra guineense -, o fornecimento das referidas oleaginosas se regule pelas regras seguintes: 

1.ª A produção da mancarra da Guiné destinada à metrópole será adquirida ao preço de 3$60 F. O. B. [Freee on Board]  por quilograma. Deste quantitativo será atribuída a quantidade necessária para abastecimento directo da indústria dos Açores. A província indicará a data a partir da qual é possível iniciar os fornecimentos; 

2.ª Não são fixados preços nem contingentes para as restantes oleaginosas alimentares de qualquer das províncias ultramarinas; 

3.ª Dentro destas regras, o Ministério do Ultramar e a Secretaria de Estado do Comércio diligenciarão, em toda a medida do possível, intensificar as correntes de comércio de oleaginosas alimentares entre a metrópole e as províncias ultramarinas, mantendo-se permanentemente informados, através de consulta recíproca, nomeadamente acerca de quaisquer operações que se projectem com o estrangeiro, por forma a harmonizar os interesses da exportação das províncias ultramarinas com as necessidades de abastecimento nacionais. 

Ministério do Ultramar e Secretaria de Estado do Comércio, 10 de Dezembro de 1965. - O Ministro do Ultramar, Joaquim Moreira da Silva Cunha. - O Secretário de Estado do Comércio, Fernando Manuel Alves Machado. 

Para ser publicado no Boletim Oficial da Guiné. - J. da Silva Cunha.

[Fonte: Diário do Governo - 1ª Série, n 282, de 14.12.1965, pág. 1661(***)
_______________________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 7 de janeiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14126: (Ex)citações (258): A prosperidade de Bafatá não se deveu tanto ao "patacão da guerra" como ao negócio da mancarra (Cherno Baldé)


(***)  Último poste da série > 5 de setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15075: Historiografia da presença portuguesa em África (58): Casamansa, setembro de 1858: apoio das autoridades portuguesas aos interesses franceses, objeto de hostilidade pelo "gentio local": portaria, de 30/9/1858, do visconde Sá da Bandeira, secretário de estado dos negócios da Marinha e do ultramar

Guiné 63/74 - P15308: Blogpoesia (422): Com trastes e trapos velhos... (J. L. Mendes Gomes)

Com trapos e trastes velhos…

por J.L. Mendes Gomes

Aproveitei uma trégua,
Subi ao sótão,
Peguei nos tarecos,
Trapos e vestes,
Enchi o meu barco
E avancei pelo mar.

Vieram piratas,
Subiram a bordo,
Ficaram perdidos,
Com tanto valor.

Assim me salvei.
Uma lembrança de sorte.
Tudo tem préstimo,
O valor duma vida
Para quem o quiser.

Me assusta este tempo
Que passa a correr.
Um ano passou,
Quase morria,
Não deu para viver…

Ouvindo Hélène Grimaud ao piano

Berlim, 25 de Outubro de 2015 | 8h19m

Jlmg
Joaquim Luís Mendes Gomes

[ex-alf mil, CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66; vive habitualmente entre Berlim e Mafra; autor do livro de poemas Baladas de Berlim, Lisboa, Chiado Editora, 2013, 229 pp.]
______________

Nota do editor;

Último poste da série > 18 de outubro de  2015 >  Guiné 63/74 - P15264: Blogpoesia (421): Quero lavar minha alma... (J. L. Mendes Gomes)

Guiné 63/74 - P15307: História da CART 3494 (12): A mobilização para a Guiné –CART3494 - O embarque em Lisboa [Base Militar de Figo Maduro] e o primeiro período de férias na Metrópole em outubro de 1972 [há quarenta e três anos] (Jorge Araújo)


1. O nosso Camarada Jorge Alves Araújo, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CART 3494, (Xime-Mansambo, 1972/1974), enviou-nos mais uma mensagem desta sua série. 

Camaradas,

Com um pequeno atraso em relação ao lançamento do tema «O nosso querido mês de férias», por razões operacionais, e por efeito de nova visita ao baú de memórias, donde recuperei meia-dúzia de imagens com mais de quatro décadas, permitiu-me partilhar convosco, não uma mas duas efemérides, simbolicamente relevantes, e que marcaram aquele meu/nosso tempo da vida militar, ou seja, a mobilização e respectivo embarque, e o primeiro período de férias passadas na Metrópole, iniciadas em 24OUT1972, faz hoje quarenta e três anos. 

A MOBILIZAÇÃO PARA A GUINÉ – CART 3494 
- O EMBARQUE EM LISBOA [BASE MILITAR DE FIGO MADURO] 
E O PRIMEIRO PERÍODO DE FÉRIAS NA METRÓPOLE 
EM OUTUBRO DE 1972 [HÁ QUARENTA E TRÊS ANOS] 

1. - INTRODUÇÃO

Eis mais duas efemérides que me proponho partilhar convosco, resumidas nesta pequena narrativa histórica. A primeira surge na sequência da respectiva mobilização ultramarina publicada na Ordem de Serviço do então RAP2, Vila Nova de Gaia, em 03JAN1972, com destino ao CTIGuiné, para completar o contingente da CART 3494, do BART 3873 [1971-1974], sediado em Bambadinca [P15230]. A segunda decorre do primeiro período de férias passadas na Metrópole, entre 24 de Outubro e 27 de Novembro de 1972, faz agora quarenta e três anos.

Trata-se, naturalmente, de duas memórias de significado antagónico. A primeira tendo por pensamento, não a sabedoria que o contexto impunha nem tampouco a experiência feita por episódios anteriormente vivenciados naquele território africano banhado pelo Atlântico, lugar de misteriosas e desconhecidas matas “com olhos”, mas, tão só, uma elevada crença onde as expectativas deveriam orientar os nossos comportamentos, no sentido de gradativamente ficarmos mais habilitados a jogar aquele “jogo”, em nome da defesa da vida.

Este valor humano [o de viver] não era só uma questão pessoal, incluía também os meus pares ex-combatentes [e vice-versa], onde os desempenhos concertados em cada actividade [missão/acção], com alguma audácia à mistura, deveriam ser cumulativos ao permitir a aquisição de novos saberes e novos comportamentos, aprendendo com cada uma das diferentes experiências, visando obter os melhores resultados possíveis, nestes se incluindo justamente os conceitos de superação e de transcendência, sinónimos de sobrevivência.


Lamentavelmente, no final, este objectivo colectivo não foi conseguido na totalidade.

A segunda como possibilidade de retorno às origens, ainda que com duração efémera traduzida em trinta e cinco dias, que passaram depressa, e com recurso a bens económicos próprios, visando repor/recuperar os deficits físicos e psicológicos por efeito de sete meses de intensa e exigente actividade militar numa zona de grande complexidade [como bem sabem todos aqueles que por lá passaram, antes e depois de nós], como era o exemplo do Xime.

De entre os registos historiográficos desse primeiro período destacam-se: a 1.ª emboscada à Ponta Coli [22ABR1972], a morte de Mário Mendes na Ponta Varela [25MAI1972], o Naufrágio no Rio Geba [10AGO1972] e os diferentes ataques ao Aquartelamento e ao Enxalé, todos eles já aqui referenciados com razoável detalhe.

2. – O EMBARQUE LISBOA-BISSAU EM 23MAR1972

Cumpridos os procedimentos administrativos que antecederam o embarque para o CTIG, como seja a vacinação obrigatória efectuada no Hospital do Ultramar, sito na Junqueira, Freguesia de Alcântara [Lisboa], uma unidade de saúde que, a par do Instituto de Medicina Tropical [IMT], funcionavam na dependência do Ministério da Marinha e Ultramar e que se destinavam a dar assistência médica aos funcionários civis e militares em trânsito, de e para o Ultramar Português, incluindo os casos com doenças tropicais e infecciosas. 

Entretanto, por efeito da aprovação do Decreto-Lei n.º 47102, de 16JUL1966, o IMT daria lugar à nova Escola Nacional de Saúde Pública e de Medicina Tropical [ENSPMT], continuando esta a estar inserida no complexo do Hospital do Ultramar. Depois do 25 de Abril de 1974, mais propriamente em 05 de Outubro desse ano, o Hospital do Ultramar passou a designar-se por Hospital Egas Moniz no âmbito das comemorações do centenário do nascimento do médico, neurologista e investigador português, natural de Estarreja, António Caetano de Abreu Freire Egas Moniz [1874-1955], galardoado em 1949 com o Nobel de Fisiologia ou Medicina, prémio partilhado com o fisiologista suíço Walter Rudolf Hess [1881-1973], “pela descoberta da relevância da leucotomia (lobotomia) pré-frontal no tratamento de certas doenças mentais”. 


Capas dos boletins de vacinas

De referir que o Nobel da Fisiologia ou Medicina, um dos prémios internacionais de investigação científica instituídos pelo sueco Alfred Bernhard Nobel [1833-1896] desde 1901, é atribuído anualmente pelo Instituto Karolinska, situado em Solna, arredores de Estocolmo [Suécia]. Este Instituto sueco, que foi criado em 1811 como centro de treino para cirurgiões do exército, chamava-se inicialmente Medico-Chirurgiska Institutet, sendo no presente a única Universidade de Medicina existente na Suécia. Ele está associado ao Hospital Universitário Karolinska, e daí ser considerado como uma das maiores universidades médicas da Europa.

Concluído o processo de vacinação sem efeitos secundários e expirados os dias de férias atribuídos no processo de mobilização, eis que é chegado o dia «D» – o da despedida – e, concomitantemente, o da partida aprazada para 23 de Março de 1972, uma 5.ª feira.

Depois de um jantar [bem acompanhado] no Restaurante-Cervejaria Solmar, nas Portas de Santo Antão [passe a publicidade], e uma noite sem dormir, obviamente, desloquei-me pelas 08:00 horas ao Aeroporto [Base] Militar de Figo Maduro, ali bem perto da minha casa em Moscavide, onde um Boeing-707 dos Transportes Aéreos Militares [TAM] me/nos aguardava, preparado para voar com mais um contingente militar de cento e noventa milicianos, entre oficiais, sargentos e praças, rumo ao aeroporto de Bissalanca, em Bissau.

Destes, a maioria seguia em situação de rendição individual, com o objectivo de substituir outros camaradas/combatentes por motivos diferentes: fim da comissão, ferimentos em combate ou, ainda, casos de morte. Esta última situação era dramática e altamente emotiva para quem dela tinha conhecimento antecipado.


Foto 2. Figo Maduro (23MAR1972). Grupo de familiares presentes na despedida para o CTIG (imagem pouco nítida). 

Foto 3. Figo Maduro (23MAR1972). Grupo de Militares escalando os últimos degraus rumo ao interior do transporte aéreo que, minutos depois, os levaria até Bissau.

3. – AS PRIMEIRAS FÉRIAS NA METRÓPOLE - DE 24OUT A 27NOV72

Durante os primeiros meses no Xime, onde cheguei algumas semanas depois de aí ter ficado aquartelada a CART 3494 vinda de Bolama, onde realizou o seu IAO durante o mês de Janeiro de 1972, não fazia a menor ideia de qual seria o melhor período para agendar férias, particularmente por ter/termos de cumprir, no mínimo, dois anos de comissão.

Aos poucos foram-se afinando as ideias sobre esse tema, entre Sargentos e Oficiais da Companhia, ficando definitivamente acordado que o primeiro grupo a marcar férias só o poderia fazer após estarem concluídos os primeiros seis meses de comissão, de acordo com as normas então em vigor. 

A gestão do tempo foi-se fazendo com maior ou menor dificuldade, e em finais de Setembro decidi considerar com uma excelente hipótese balizar o primeiro período de férias de modo a fazê-lo coincidir com o meu aniversário [10NOV]. E assim foi. Da análise ao competente plano de férias global, eu, o Espadinha Carda [furriel do 3.º GComb] e o Mendes Pinto [furriel do Serv. Mat.], acordamos viajar em grupo, reservando o voo para a Metrópole para 24 de Outubro (3.ª feira) e o regresso a Bissau para 27 de Novembro de 1972 (2.ª feira).

Dois dias antes fizemos a viagem Xime-Bissau por via marítima, ficando hospedados [se a memória não me atraiçoa] no Hotel-Cervejaria Miramar, a tal cervejaria das ostras «***** estrelas», em que cada travessa custava vinte e cinco pesos. 


Foto 4. Bissau (23OUT1972). O Mendes Pinto, o Espadinha Carda e o Jorge Araújo, mentalizando-se para a sua primeira viagem de férias na Metrópole.


Foto 5. Bissau (23OUT1972). Na marginal, junto ao monumento ícone da epopeia dos Descobrimentos Portugueses do século XV, inaugurado em 1960 em comemoração do quinto centenário da morte do Infante D. Henrique [1394-1460]. 


Foto 6. Bissau (23OUT1972). No jardim da marginal, depois de ter liquidado o valor da viagem de avião entre Bissau/Lisboa/Bissau, e ter na minha posse os respectivos bilhetes.


Foto 7. Bissau (24OUT1972). Aeroporto de Bissalanca (Marechal Craveiro Lopes), aguardando o momento de embarque.


Foto 8. Bissau (24OUT1972). Aeroporto de Bissalanca (Marechal Craveiro Lopes), a caminho do Boeing-707 da TAP, rumo a Lisboa, com três “necessaire”, um de cada elemento do grupo, oferta da Agência de Viagens.

Chegado ao aeroporto de Lisboa era aguardado pelos familiares mais próximos, seguindo depois para a minha residência em Moscavide. Os primeiros dias foram de completa readaptação aos espaços, particularmente no que concerne ao trânsito intenso na capital, aos semáforos e às passadeiras, aos cheiros, aos ruídos; em suma, a quase tudo.

Os dias passaram a ser, gradualmente, mais tranquilos, com os familiares a não perderem a oportunidade de colocarem questões sobre a realidade por mim vivida até então na Guiné, transmitindo-me, nessas ocasiões, os seus medos, expectativas e ansiedades, mas também procurando saber mais como era a sua gente, o seu ambiente, o seu clima, a sua organização social, os seus consumos, o que era perfeitamente natural e normal naquele contexto e naquela época. 

Os amigos, alguns mais velhos, que tinham já vivido experiências semelhantes nos diferentes cenários ultramarinos, davam-me conselhos, sugestões e outras dicas visando ajudar-me a ultrapassar eventuais dificuldades.

Fora deste ambiente, e uma vez que o ex-Alf. Mil. Maurício Viegas, também ele natural e Lisboa, e que havia chegado ao Xime em Junho de 1972 em rendição individual para comandar o 20.º Pelotão de Artilharia, sugeriu-me que visitasse os seus pais, residentes na Freguesia da Ajuda, facultando-me a sua morada, o que respeitei. Daí ter agendado um encontro com eles levando-lhes as naturais saudades e palavras de conforto e ânimo para resistirem ao tempo que ainda faltava para a conclusão da sua Comissão de Serviço, pois contabilizava à data uns escassos quatro meses.

Na sequência do primeiro contacto presencial, aceitei a proposta de com eles almoçar, ficando também combinada uma sessão de slides [meus] visando uma aproximação à realidade por parte daqueles que, estando longe do seu filho, agora na condição de militar/combatente, gostavam de ver as suas paisagens, as suas gentes, as lavadeiras, as beijudas e outros ícones da cultura guineense, e que para mim era o contexto para onde teria de voltar alguns dias depois. 

Como um dos tios do ex-Alf. Maurício Viegas era pasteleiro [mestre de renome em doçaria], e o sobrinho comemorava mais um aniversário no dia 01DEC, pediu-me para ser portador de um bolo especial para esse dia de anos, confeccionado com uma substância que permitia aguentar os dias em falta até à chegada ao mato. No dia 26NOV1972, véspera da partida, lá fomos buscar o bolo ao Bairro da Boa-Hora, fazendo votos para que ele chegasse inteiro ao seu destinatário.

Embarquei no dia seguinte prometendo voltar, logo que possível, para um segundo período de férias.

Regressado a Bissau no dia 27NOV1972, 2.ª feira, desci à terra e tomei consciência de que as férias tinham acabado e que o principal objecto que teria em mãos, a partir de então, era outro, mais sério e problemático do que nunca.

Cheguei ao aquartelamento do Xime dois dias após a saída de Lisboa, ou seja em 29NOV1972, 4.ª feira, por volta das 17.00 horas. Mas, como tinha feito a totalidade da viagem ao sol [Geba], pois a embarcação civil navegava a céu aberto, logo sem sombras, essa noite foi passada num estado febril em crescendo. Antes, porém, tive a oportunidade de entregar ao ex-Alf. Maurício Viegas, o bolo de aniversário que me tinham pedido para lhe trazer. O dia seguinte foi passado na cama, aguardando que as drogas produzidas no Laboratório Militar, prescritas pelo meu camarada mezinho, ex-Fur. Mil. Enfº. Carvalhido da Ponte, fizessem o seu efeito.

O dia seguinte, 01DEC1972, 6.ª feira, voltou a ser um dia diferente, com muitas emoções/tensões, em função de nova emboscada [a 2.ª] à Ponta Coli. Sobre este acontecimento ver P9802. 


Foto 9. Xime (1998) – Estrada Bambadinca-Xime. O espaço à esquerda da imagem era designado por “Ponta Coli”, local onde ocorreram as duas emboscadas perpetradas pelo PAIGC ao efectivo da CART 3494 [4.º GComb], em 22ABR1972 e 01DEC1972, com baixas de ambos os lados.

[foto do camarada ex-Alf. Mil Acácio Correia, datada de 1998, e obtida durante uma visita realizada por um grupo de ex-combatentes da Companhia à Guiné-Bissau, com a devida vénia]. 

Concluída esta pequena narrativa histórica, despeço-me com amizade, prometendo voltar logo que possível com outras memórias da nossa passagem pelo CTIG. 

Fontes do ponto 2:
http://www.chlo.min-saude.pt/Hospital/Historia
https://pt.wikipedia.org/wiki/Instituto_Karolinska 

Com um forte abraço e votos de muita saúde.
Jorge Araújo.
Fur Mil Op Esp / Ranger, CART 3494

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
___________
Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:


sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Guiné 63/74 - P15306: Consultório militar do José Martins (15): Tabela de vencimentos auferidos (em 1963 e em 1965) pelos militares que cumpriam a sua comissão de serviço mas províncias ultramarinas


Tabela de vencimentos auferidos em 1965  pelos militares que cumpriam a sua comissão de serviço em África. Conforme a especialidade, cada praça recebia um prémio. A partir de agosto de 1965, o pré das praças foi aumentado para 680$00 (3,39 €) e 550$00 (2,74 €) consoante fosse 1.º Cabo ou Soldado, mantendo o prémio de especialidade.

(Fonte: José Martins, 2008, Adapt de Inácio Gois, "O Meu Diário: Guiné 1964/66: Companhia de Caçadores 674". Edição de autor. Mineira, Aljustrel, 2006, p. 211).



1. Consulta, por parte do editor LG, ao José Martins (*):

Zé, tens alguma tabela com os vencimentos + gratificações do pessoal militar no TO da Guiné ? É uma confusão, que ninguém se entende...Quanto ganhava um furriel mil at inf em 1963  e em 1974 ? E um 1º cabo trms ? E a tropa especial ?... É pedir-te muito... Ab. LG

PS - A única referência que eu tenho é o Decreto-lei  nº 44 864, de 26 de janeiro de 1963 (Fixa os vencimentos dos militares do Exército, da Armada e da Força Aérea em serviço nas forças armadas das províncias ultramarinas - Torna extensivas às províncias ultramarinas as disposições do Decreto-Lei n.º 41291 de Setembro de 1957). (****)

Segundo as tabelas anexas ao diploma legal, um  capitão do exército (inf,  cav, art, etc.) auferia, no TO da Guiné, 4500$00 (vencimento-base da metrópole) mais 2500$00 de complemento, perfazendo um total de 7000$00 (que hoje seriam 2.861,84 €, a preços constantes de 2014).

O alferes (inf, cav, art, etc.) recebia 2600 + 1750=4350 escudos (1.778,43 €, usando o conversor da Pordata). O furriel (de qualquer arma ou especialidade) auferia 3000$00 (1500 + 1500) (1.226,50 €)... As praças tinham um vencimento diário... Este diploma também previa já um subsídio de isolamento nas zonas fronteiriças da Guiné. (***)


2. Resposta pronta do Zé Martins: 

Capa do livro de Inácio Maria Góis - O Meu
Diário:  Guiné 1964/66: 
Companhia de Caçadores 674.
Edição de autor. Mineira, Aljustrel.
2006
De: 29 de outubro de 2015 às 22:18

Assunto:  Quem disse quem cem pesos era manga de patacão ? (*)....

Luís: O que tenho,  foi publicado em 31 de uutubro de 2008, há 7 anos, faz sábado, no poste  P3384. (**)

No livro do Inácio Góis [vd, capa à esquerda],  fala-se do nosso patacão, que para alguns era miserável, mas para outros era "fêmea" (dizia-se)...

Recorde.-se que o Inácio Maria Góis esteve na Guiné entre 13 maio de 1964 e 27 de abril de 1966: vinte e três meses e catorze dias,,,  Fez parte da CCAÇ 674 e e andou por  Fajonquito e Farim. Dia a dia, foi anotando o que se passava dentro dos aquartelamentos e fora deles,

No seu diário, editado em  livro (edição de autor, Aljustrel, 2006), na página 211, correspondente ao dia 24 de Julho de 1965,  sábado, tem uma nota referente aos vencimentos auferidos à época, e nos anos seguintes, pelos militares que cumpriam a sua comissão de serviço em África, eque reproduzo acima

A minha intervenção nessa tabela fica-se pela obtenção da Portaria n.º 362/2008 de 13 de Maio do Ministério das Finanças e da Administração Pública, que determina, no seu anexo, o Quadro de actualização dos coeficientes de desvalorização da moeda a que se referem os artigos 44º do CIRC e 50.º do CIRS.

Para o ano em questão (1965) o coeficiente é de 60,93. (***)Bom fim de semana.

Zé Martins


PS - Estive hoje com o Luis Marinho. Falamos de Companhias Africanas e das canções dos Gatos Pretos, descobrindo que, afinal, foi ele que escreveu sobre o livro sobre a Operação Mar Verde. Foi pena não ter relacionado a obra com o autor, pois teria levado o livro para autografar....

 ____________________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 29 de outubro de  2015 > Guiné 63/74 - P15302: (Ex)citações (297): Quem disse que "100 pesos era manga de patacão" no nosso tempo? Em 1960, mil escudos (da metrópole) valiam hoje 428 euros; e em 1974, 161 euros, ou seja, uma desvalorização de c. 266 %... Recorde-se por outro lado que 100 pesos só valiam 90 escudos...

Quanto ao que o exército nos pagava...[Segundo o Sousa de Castro],  "puxando um pouco pela memória, eu como 1º cabo radiotelegrafista ganhava 1.500$00, sendo 1.200$00 por ser 1º cabo e mais 300$00, de prémio de especialidade." [, tudo somado, 1500§00 em 1973 =305,10 €].

´(...) Temos as memórias (e os papéis) do Jorge Picado [,ex-cap mil art]:

(...) "Apontamento que resistiu ao tempo, referente ao mês de junho [de 1970]: Total abonos:13900$00; total descontos; 8967$00; a receber 4932$00. Nos abonos estão incluidos 4000$00, relativos aos abonos de família (já tinha os 4 filhos), de março, abril, maio e junho. [de 1970]". (...)

(...) "Vencimentos a receber em agosto em virtude do aumento: março-julho [1970]: 10500$00;
Fev 1326$00; total 11826$00; descontos Cx Geral Aposentações; 710$00; Imposto de selo -12$00; a receber (líquido): 11104$00 [=3148,45€]...

(...) Em comentárioao poste, o J. Casimiro Carvalho, fur mil at cav, em 1972/74, diz que ganhava, "entre 5400$00 e 6240$00 (já em 1974) por mês". (...)



(**) Vd, poste de 31 de outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3384: Recordando os nossos vencimentos no Dia Mundial da Poupança (José Martins)

(***) 21 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14908: Consultório militar de José Martins (14): Restrições à consulta dos processos de casos disciplinares / justiça militar


(****) Vencimentos de oficiais. sargentos e praças do exército em 1963 (vencimento-base mais complemento ultramarino; no caso das praças, o vencimento era ao dia).







Praças de 1ª e 2ª classe



Fonte:  Decreto-lei  nº 44 864, de 26 de janeiro de 1963  (Clicar nas imagens para ampliar)

Guiné 63/74 - P15305: Inquérito "on line" (13): Os três Comandantes da Guiné (Mário Vitorino Gaspar)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Vitorino Gaspar (ex-Fur Mil At Art e Minas e Armadilhas da CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68), com data de 11 de Outubro de 2015:

E valerá a pena ser resistente, antes diria, combatente?

O tema 3 Comandantes, estando num período de 1967/68 foram dois:
- Arnaldo Schulz, que chegou em Maio de 1964 (ouvi falar dele…).

- O Spínola que chegou a Bissau em Agosto de 68. Muito simpático, educado ao descer do helicóptero, com o seu monóculo, de camuflado como combatente, tinha luvas e a varinha – devia parecer-se com aquele Senhor Oficial de Santarém, também de varinha ou ceptro que dizia na parada a um soldado após vislumbrar um fósforo no chão: “Tira-me este barrote daqui”! – pois o Spínola com essa chibata, quando o vi pela primeira vez, parecia-se muito com um Professor que tive na Primária – todos usavam – uma cana da índia que servia de apontador como para dar com ele na cabeça de um mal comportado.

Na primeira vez aparece um helicóptero e somos informados ser o Governador e Comandante das Forças Armadas da Guiné. Todos de férias numa magnífica terra africana, chinelos e calção de banho e, por que não, tronco nu?
Todo o mundo correu para os abrigos onde nada faltava desde um telhado de palmeiras, paredes de bidão com terra e mosquitos de volta do mosquiteiro e chão de terra batida. Mudar a vestimenta. Todos bem, só que com camuflados rasgados e rotos. Feita a segurança à pista lá está ele vestido como dito. Visto é diferente. A Companhia formada – não era Companhia por estar um Pelotão e uma Secção no destacamento de Ganturé – surge ele e a comitiva.

Do discurso recordo principalmente esta, após uns elogios à CART 1659:
- Vão todos vestirem-se como estavam quando o helicóptero sobrevoou Gadamael!

Todos surgiram, estilo Charlot, mas de calções, chinelos e cabeça ao vento. Foi então que afirmou:
- Não venho prometer nada, só mais sacrifícios e privações!

Um rebelde da Companhia disse:
- Mas fizemos o cais de Gadamael e disseram se conseguíssemos seriam 18 meses de Comissão!
- Meu filho mais carências e privações! – Ao mesmo tempo que batia ora com a chibata na mão ou endireitando o monóculo…

Colocaram-se em posição para irem ao destacamento, e foram. Houve qualquer problema com um elemento da comitiva que, julgo queria ir na viatura. E ele não gostou. Fui escrever aerogramas e cartas para a mesa enorme e forte – Messe de Sargentos – feita de caixas de munições – tudo do melhor. E as cadeiras? De baloiço, pois! Era uma Estância de Férias.

O tempo passara. Sinto algo se passa nas minhas costas e volto a cabeça e ponho-me de pé. Lá estava Spínola que me toca no ombro para me sentar. Olhou para o cozinheiro da Messe e ouviu-se num tom de voz paternal:
- Meu filho, estás muito magro! O que andas a fazer?

O Lima (nome do Cozinheiro da Messe), acrescentei:
- Por causa da irmã da canhota!

Ainda me fez umas perguntas. Simpático, não digo que não.

Voltou a Gadamael mais tarde, verificando estarem os camuflados todos velhos falou com o 1.º Sargento Barreira para pedir camuflados novos para Bissau. Julgo ter sido neste período muito difícil – inúmeras Operações e o PAIGC não atirava granadas com cavilhas do Lança-Roquetes. Caiu-me uma a poucos metros de mim no “Corredor da Morte”. Estratégia militar? E para com as populações civis? Nem a parte militar como a humana – considerando estarmos numa guerra – considero que os abandonos de aquartelamentos de Sangonhá e Cacoca (que estavam no final da comissão), como o aparecimento de Gandembel – em pleno “corredor da morte” – e com mais tarde abandono de Mejo, Ganturé e Gandembel para que te quero!

Com a simpatia de querer que a população fosse aproximando, centenas e centenas de naturais que viviam em Conacri, Gadamael cresce de dentro para fora e abrigos melhorados, outros arranjados e o caso de um abrigo-caserna, fui eu o arquitecto fica no interior e a defesa começa a fazer-se em valas. Guileje e Gadamael Porto ficam ali à mão de semear.

Regressei e passados uns anos encontrei o Spínola na esquina da Avenida de Roma com a Avenida EUA. Viu-me e estendeu a mão e cumprimentou-me.

NOTA: Carlos e Luís como vejo que os votantes dizem acreditarem no General Spínola, curiosamente penso o contrário dele, Quanto a Arnaldo Schulz penso não ser um bom militar.


O General Bettencourt Rodrigues, ouvi falar dele.
Curiosamente existia uma figura nas Companhias que era o Furriel Miliciano PSICO – estava lá mas não era mencionado na História da Unidade da CART 1659. Não sei se sucedia o mesmo em todas as Companhias que tiveram um Furriel Miliciano da PSICO.
Se pretenderem a minha opinião sobre Spínola, é só pedir (sabem à partida que só tenho de me referir àquele militar que conheci, e considero que não sabia a realidade da Guiné.
O troféu de trazerem muitos indivíduos de Conacri para o nosso lado foi péssimo.


Encontrei esta relíquia entre os destroços

Mário Vitorino Gaspar
Furriel Miliciano Atirador de Artilharia e MA
____________

Nota do editor

Último poste da série de 20 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15274: Inquérito "on line" (12): A Guerra da Guiné e os seus comandantes que, de derrota em derrota, propiciaram a vitória final ao PAIGC… (Manuel Luís Lomba)

Guiné 63/74 - P15304: Notas de leitura (771): “Tráfico no Rio Geba”, por Estevão Sousa, Edições Vieira da Silva, Dezembro de 2014 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Janeiro de 2015:

Queridos amigos,
O narcotráfico entrou no imaginário da literatura de aventuras. Um guineense, Manel da Costa, escreveu um livro bem curioso, a que aqui já se fez referência elogiosa. O próprio Gérard Villiers se sentiu entusiasmado pelo narcotráfico e Buba N'Tchuto, escreveu o escaldante Féroce Guinée, bem elaborado para o género literário em causa.
Este livro de Estevão Sousa tem escrita ágil mas não é convincente, lembra uma daquelas comédias de Gervásio Lobato ou Marcelino Mesquita em que tudo está bem quando tudo acaba bem, depois de muitas peripécias e jogos de enganos. E dá que pensar como a Guiné-Bissau continua a interessar pelas piores razões.

Um abraço do
Mário


Tráfico no Rio Geba, por Estevão Sousa

Beja Santos

O narcotráfico na Guiné-Bissau tem sido matéria de livros em vários idiomas. Surge agora “Tráfico no Rio Geba”, por Estevão Sousa, Edições Vieira da Silva, Dezembro de 2014. O autor avança com os seguintes dados curriculares: estudou em Tomar e aos 15 anos foi com os pais para Angola; fez um curso de Geologia e Mecânica dos Solos tendo ingressado na Junta Autónoma das Estradas de Angola; já em Portugal, fez um curso de Gestão e Administração de Empresas, exerceu funções de chefe de escritório, gerente comercial e diretor administrativo em duas empresas da cidade de Coimbra.

Trata-se de um romance de aventuras em que o narcotraficante encontra a redenção conjugando os esforços com uma população que vive perto de Bafatá para destruir o império de um poderoso barão da droga. Redigido numa prosa ágil, muitas vezes a descambar para a facilidade, em que os personagens nem sempre aparecem desenhados com plausibilidade, temos a história da família Mascarenhas que se pavoneia entre a Quinta da Marinha e Albufeira, casal e dois filhos; o menino é estroina e faz boas noitadas na roleta do Estoril; Dona Anunciação, a mulher, espatifa o tempo e o dinheiro em lojas de roupa e chás a meio da tarde; a menina Leopoldina queria casar rica, quanto aos estudos, tinha-se ficado pelo primeiro ano da faculdade numa universidade privada. A proveniência do dinheiro do clã era um grande mistério. E subitamente este ramerrão de um doce nada fazer na absoluta impunidade desmancha-se. O Mascarenhas comparece a uma reunião entre Albufeira e Olhos de Água e é intimidado a acompanhar dois sujeitos patibulares até ao aeroporto, metido num jato rumo à Guiné-Bissau.

Já nos trópicos, o Mascarenhas, atónito, percebe que vai à presença de Mohamed Jacob, o barão da droga. Num sketch intermédio, apercebemo-nos que a vida dos outros Mascarenhas está no plano inclinado, não há acesso a dinheiro, o menino Toninho está cada vez mais encalacrado com dívidas e a menina Leopoldina é multada sistematicamente por excesso de velocidade e já pensa em pôr os seus serviços como acompanhante. E estamos nos arredores de Bafatá, o barão da droga quer que o Mascarenhas lhe pague o que lhe deve, este revela total surpresa, toda a mercadoria fora vendida em Amesterdão a Godofredo Van Der Gaag, era a este que competia enviar-lhe o dinheiro. O barão entra em fúria, manda os seus capangas aplicarem um duro corretivo ao que ele julga ser um credor em falta. Era neste local que Mohamed Jacob armazenava a coca que recebia da Colômbia, do Peru e da Bolívia, alguma vinda através do Senegal, mas a maioria subia o rio Geba até Bafatá. Entrementes, o Mascarenhas safava-se da prisão e consegue escapulir-se para o mato, andou por ali a correr desenfreadamente entre os cajueiros, encontra uma moça jeitosa, Ignis, explica-lhe o sucedido, a rapariga leva-o até à tabanca onde os narcotraficantes são odiados, o Mascarenhas acompanhado por Ignis e o irmão vão até à ilha de Orango, nos Bijagós.

Na Quinta da Marinha, instalara-se o caos total, o Toninho, para ganhar uns cobres presta-se a ser transportador de droga, e como por pura casualidade vai até Bafatá, o negócio é cocaína. A menina Leopoldina começa o seu mister de acompanhante no hotel Ritz como acompanhante de Godofredo, entretanto chega Mohamed Jacob e vão todos até ao Bairro Alto. O barão da droga descobre que ela é filha do Mascarenhas e começa uma aventura de perseguição em que um táxi acaba por ser todo esburacado mas a Leopoldina chega a casa sã e salva. O casamento dos Mascarenhas já era uma causa perdida e portanto faz todo o sentido o Mascarenhas apaixonar-se pela Ignis que fazem amor permanentemente e vão até ao sétimo céu. Dona Anunciação não perde tempo e oferece o seu coração a um funcionário da Judiciária reformado e viúvo.

Chegou a hora do ajuste de contas, Mascarenhas vai até Amesterdão enfia um balázio no joelho de Godofredo e regressa a Bafatá para a grande operação de destruir o poderoso bunker do barão da droga. O Toninho continua a trabalhar como pombo-correio e acerta com um boliviano o transporte de uma carga colossal de cocaína para Bafatá. Godofredo, com a perna engessada e com duas canadianas, resolve ir a Cascais falar com o Castilho, o patrão do Toninho, andam surpreendidos com o silêncio da barão da droga, decidem voar até Bafatá. À hora aprazada, dá-se o assalto à fortaleza e armazém de droga, não fica pedra sobre pedra, dentro de uma caixa forte descobre-se toneladas de dinheiro. A polícia guineense vem diligentemente prender os narcotraficantes.

Como manda a moralidade destes romances de aventuras, há gente maldosa que se vai redimir e há energúmenos que vão ser severamente punidos. O Mascarenhas e o Toninho vão viver os seus idílios nos Bijagós e até fazerem investimentos em Bubaque. Dona Anunciação informa o senhor Cintra que o Mascarenhas lhe dera o divórcio, e pulam os dois de contentes. A menina Leopoldina foi a Milão com o namorado, que é industrial de calçado, está a fazer-se uma rapariga séria. Parece um romance de Gervásio Lobato. O Mascarenhas até pode dizer ao antigo inspetor da Judiciária que se regenerou: “Meu caro senhor Cintra, com certeza que ouviu cobras e lagartos a meu respeito, mas posso-lhe garantir que a maior parte das coisas que lhe contarão não correspondem à verdade e a prova do que lhe estou a dizer é o facto de ter contribuído, em larga escala, para desmantelar a rede de narcotráfico do rio Geba, na Guiné-Bissau”. O Cintra replica: “Meu amigo, a partir de agora subiu muitos degraus no meu conceito. Sim, senhor. E quem é que nunca errou? O que é preciso é emendar os erros, como o senhor fez. Parabéns”. Todos cumpriram: a polícia guineense meteu aquela escumalha no chilindró; o Mascarenhas e o Toninho arrependeram-se e mudaram de vida, D. Anunciação anda a curtir o seu amor, a menina Leopoldina descobriu a segurança com um industrial do calçado. E nunca mais se falará nesse hediondo tráfico de cocaína pelo rio Geba acima.

Como um vinho frisante, o livro de Estevão Sousa lê-se em toda a sua leveza e digere-se bem. A capa do livro é muito impressiva, sugestiva.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 26 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15292: Notas de leitura (770): “As Naus", por António Lobo Antunes (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Guiné 63/74 - P15303: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XIX Parte): Chegou a 3.ª Companhia de Comandos e Pesadelo

1. Parte XIX de "Guiné, Ir e Voltar", enviado no dia 21 de Outubro de 2015, pelo nosso camarada Virgínio Briote, ex-Alf Mil da CCAV 489, Cuntima e Alf Mil Comando, CMDT do Grupo Diabólicos, Brá; 1965/67.


GUINÉ, IR E VOLTAR - XIX

1 - Chegou a 3.ª Companhia de Comandos 

Jeeps e Mercedes, tudo pintado de camuflado, G3 novas, e o que é que isto nos reserva, escrito nas caras deles, novas também, boinas a estrear na cabeça, de tecido camuflado para ser tudo a condizer, olhares dentro dos óculos escuros. Tudo, tudo novo a estrear, tudo camuflado. Apresentaram-se uns aos outros no cais, os tarecos nas mãos com destino a Brá, para as instalações deixadas pelos velhos.
Bem-vindos à Guiné, que tudo vos corra bem, felicidades.


A vida em Mansoa continuava animada, o IN e a selecção de futebol na primeira linha dos pensamentos. Emboscadas, patrulhamentos, um ou outro tiro, só de longe.

O grupo a caminho da Bissau, para mais uma saída, marcada para o dia seguinte. Uma Mercedes à frente, outra a fechar, o jeep no meio. Já tinham passado Nhacra há muito, estavam próximos de Bissalanca, o jeep a andar mais devagar, calor a vir do motor, cheiro a queimado, olhou para o Alegre, a boina na cabeça, as fitas verde e vermelha a baterem-lhe na nuca, o jeep a andar ainda mais devagar, então vais parar, o Alegre com a cara a ficar vermelha, meu alferes, o jeep não responde, não me digas Alegre, meteste óleo, meti ontem, meu alferes. Capot no ar, as mãos a sacudir a fumarada, e agora, caraças?
Qualquer dia dá-lhe o badagaio, pensara há tempos, tanto pisar no acelerador e tanto pensamento nisso, era inevitável, o ME-14-04 pifou, gripou mesmo. Envolto numa grande fumarada, rebocaram-no até Bissau. E em Brá, quando lhe virou costas, parou e voltou a olhar para ele. Fiel companheiro há cerca de um ano, não o podia abandonar assim, sem o tocar mais uma vez. Quando se chegou a ele, com o motor ainda a fumegar, viu esfumarem-se também recordações que ambos tinham vivido.
Em Bissau, entregaram-lhe outro, isto também gasta óleo, é bom não se esquecer, a linguagem polida do major do serviço de material do QG.

Em Brá, os novos continuavam os treinos. Na mata em frente, ouviam-se disparos e os gritos dos instrutores. Aulas de aplicação militar a tiro, para habituarem os ouvidos às chicotadas. Na parada encontrou-se com o Capitão Alves Cardoso.
Então, quando é que saem? Precisam de alguma coisa?
Preciso mesmo, leve-me alguns na próxima saída do seu grupo, ok?

Adulai Jamanca, o 1.º à esquerda e Lifna Cumba, o "Joaquim" ao centro, em Brá, antes da saída

Ajustar pormenores da acção 

Base aérea de Bissalanca. Com a devida vénia ao blogue especialistas da BA12. 

Seis horas, na Base Aérea de Bissalanca, o grupo com 4 equipas.
Helis no ar, sobrevoaram Mansoa, o Oio, o pequeno Olossato lá em baixo, sempre em rota para Noroeste, em direcção à fronteira com o Senegal.


A formação a desviar-se para a esquerda, Ganturé dum lado, Binta à direita, começaram a baixar, a bolanha, saltar, corrida para a mata. 

Estávamos na zona de Bigene. Notícias recentes insistiam em referir aumento da actividade IN no corredor Sano-Sinchã-Fangor-Canja. O objectivo do grupo era nomadizar na zona durante cerca de 48 horas, procurar indícios de actividade IN. Deram com alguns trilhos e um, com marcas de movimento, pareceu-lhes adequado para ali passarem a noite, emboscados. 
Duas ou três da madrugada, um restolho. Uma cobra mordeu uma das pernas do Lifna Cumba, mais conhecido entre eles por Joaquim. Com a ajuda de uma lanterna, localizada a mordedura, o enfermeiro deu-lhe o soro anti-ofídico depois de ter lavado e desinfectado a ferida. 
A partir daquela altura, se alguém estava com sono, acordou mesmo. Ninguém dormiu, a atenção redobrou. Após a chegada do sol calcorrearam as margens daquele trilho que acabou por os levar a uma picada. Atravessaram-na e continuaram a andar para norte em direcção à fronteira. Por volta do meio-dia, de um Dornier que os sobrevoava, receberam a ordem para voltarem para trás em direcção à estrada Ingoré-Barro, que antes tinham atravessado, e que aguardassem a recolha. Horas mais tarde o grupo foi recolhido, por uma força do BCav 790.

Na estrada Barro-Ingoré, a aguardar coluna de regresso, com o alferes Rogério Coutinho (frente direita) e mais dois elementos da 3.ª Companhia de Comandos (atrás à direita)

Locais diferentes, quase sempre o mesmo, apenas para marcar presença num dos santuários do IN. Macacos, casas de mato abandonadas, gado, trilhos pisados. 

Depois foi o regresso a Mansoa, pele gasta de tanta porcaria e tanto banho. Joaquim Lifna Cumba, em último plano, sorridente. O susto já tinha passado.
____________

Nota
1 - Comandante da 3.ª Companhia de Comandos

************
 
2 - Pesadelo 


Uma povoação junto ao mar, o dia nevoento, o vento a soprar forte, a ronca do farol, a sirene dos Socorros a Náufragos, as mulheres dos pescadores, todas de preto, mantos negros das cabeças até às costas, a correrem descalças para a praia, aos gritos, um velho louco chamado Pilau a gritar para os céus, uma pistola de madeira, uma camisa verde, a bicicleta com o nome dele pintado no quadro, a brincar sozinho no quintal, o pai a deixá-lo na casa dos avós, a desaparecer ao longe na Lutz2, o nascimento do irmão, a azáfama do parto no quarto dos pais, a madrinha, o tio e a avó, o espelho interior do guarda-vestidos a partir-se, os ditos delas da má sorte que os espelhos partidos trazem, a entrada na escola, a vontade de fazer chichi, a vergonha de pedir para sair da sala, o tinteiro da carteira na mão, a transbordar de chichi roxo, o professor Martins zangado, aos berros, os outros a rirem-se, os calções a molharem-se-lhe cada vez mais, a mãe a dar-lhe palmadas no rabo enquanto lhe dava banho, seu porco, o padrinho a dar-lhe uma moeda de 2$50, uma mulher a lavar as escadas de pedra com um sabão amarelo, não passes agora que escorregas, ele sempre a teimar, a mãe a fazer-lhe pontaria com não sei quê, a acertar-lhe na cabeça, a corrida para a farmácia, a gritaria, o senhor Monteiro a limpar-lhe a ferida com álcool. 
Vontade de fazer chichi, barulhos de vozes, muito longe dali, um mal-estar sem descrição, água a escorrer pelo corpo, dentes a bater, um frio de arrepiar, o lençol todo molhado para trás, calor, a tiritar de frio outra vez, lençóis até ao queixo. 

A ida para o Gerês, naqueles tempos nem luz tinha, uma casa antiga e grande. O medo do escuro, o irmão doente, o ambiente mais escuro, uma noite quente, as janelas, todas as que estavam viradas para a serra, a abrirem-se com um sopro de vento. 
Depois a mudança para uma casa linda e cheia de sol. A escola, a paixão pela professora mal a viu, o primeiro livro de leitura, os rabiscos, as letras a desenharem-se, a primeira carta de amor para a Marília no meio do livro, a mãe a folheá-lo à noite, o encontro da carta com as mãos da mãe. O que é isto? 
Para a cama já, imediatamente! O pai a chegar mal disposto, a entrar no quarto com a carta na mão, então é isto que andas a aprender, seu malandro, o cu das calças do pijama cortado às fatias pelo cavalo-marinho. 
A noite aos ais, dentro dos cobertores, pela manhã arrastado até à escola pela mão, a conversa do pai com a professora, vermelha a ler aquelas indecências, mas é a letra do menino, quem lhe ditou esta pouca vergonha, o pai a sair todo sorrisos para ela, cara feia para ele, estás tramado, a professora com uma cara tão zangada a dizer para a classe que eram tantas as poucas-vergonhas escritas que nem as podia ler e a palmatória a cair numa mão e na outra, vezes que nem contou. 
O pior estava para vir, não acabara ainda o castigo. Vá ao quadro de honra, risque os pontos que tem neste período, já! Era uma vez o 2.º episódio do Ladrão de Bagdad, a desaparecer à medida que os pontos iam ficando debaixo dos riscos. As brincadeiras com os Dantas e com o “Merda-Seca”, as bolas de todos os tamanhos, as pistolas de pau e de barro, as corridas, o baloiço alto, parecia o trapézio do circo que vira uma vez, o baloiço a ganhar balanço, a corda a partir-se, ele e o baloiço a caírem em cima do arame farpado espalhado pelo chão, o sangue a escorrer dos buraquinhos, todo, outra vez a mãe a lavá-lo com água, sabão e palmadas. 

Vozes outra vez, uma luz difusa, noite talvez, o corpo todo picado de dor, costas e tudo, um calor de escorrer águas, lençol fora, dentes a bater.

Numa tarde quente, viu-se a subir sozinho para a Casa do Povo, ninguém lá dentro, uma sala abandonada, montes de papéis espalhados pelo chão, no meio uma fotografia grande de um homem com bigode, de cabelo escorrido, farda castanha, Adolfo Hitler escrito em baixo, quem será? 
Outra vez de cama, quente na cabeça e frio no corpo, o jornal com fotografias de muita gente junto de um caixão, oh mãe quem é este que diz aqui que morreu? 
O Chefe do Estado, o Marechal Carmona, não sabes ler? 
Dias quentes e abafados, os domingos passados em Quintã, na quinta dos Noronhas, os relatos dos jogos de hóquei em patins, Emídio Pinto, Raio, Edgar, Jesus Correia e Correia dos Santos, os golos na baliza dos espanhóis, Zabalia, Trias, Más, Rocca, Puigbó, os ruídos das interferências do rádio, é muito longe, pai? 

Gritos, pareceu-lhe ouvir, um rádio roufenho, golo de quê, Portugal não sei quantos, Inglaterra, uma voz que não era estranha, a esperança é a última coisa. 

O liceu, os dias passados entre as aulas e as viagens da camioneta do Gerês, as tardes a matrecos no Carvalhal, as aulas, os soquetes das meninas, os namoricos imaginários, os olhos presos na televisão do café, a única em toda a povoação e redondezas, que maravilha, como se pode ver ali tudo que se está a passar agora? Os jogos do Benfica com o Barcelona e o Real Madrid, as taças ganhas no meio dos vivas ao Benfica e ao Costa Pereira, ao Ângelo, Germano, Eusébio, aos Cavéns, ao capitão Coluna, o José Augusto numa ponta, Simões na outra, Bella Guttman de pé no banco, o Santamaria a chorar, o Di Stefano à beira do Gento, metro e meio de um gajo a correr como o carago, colado à linha da esquerda, manda-me esse galego para canto, um espectador com um Kentucky, enrolado numa mão, a fazer fumo, boina na cabeça que não deixava os outros verem. 
A Florbela Queiroz em biquíni na piscina, o Henrique Mendes de laço, a Simone e a Madalena Iglésias, a Paula Ribas, o Galarza a falar espanhol com um piano, o Robin Hood com um frade ao lado a assaltarem um coche, o Danger Man a chegar de descapotável ao cimo de um monte, lá em baixo as luzes de Hong-Kong a iluminarem a baía, um carro sozinho a andar com o Homem Invisível ao volante, o Santo do Roger Moore, o pai do Litlle John, do Adam, do Hoss gordo, dos Cartwrights todos, a música a incendiar a pradaria, o papel a arder, Bonanza a aparecer com eles a cavalo. 
E, num dia, outras coisas, um capitão chamado Galvão tomou o Santa Maria, o Pandita Nehru ocupou Goa, Damão e Diu, o Artur Agostinho a contar como se lá estivesse, a brava resistência das gloriosas tropas portuguesas, as chacinas das populações no Norte de Angola, tudo a seguir e ao mesmo tempo, nós todos a olhar, calados, o arrepio pela espinha, uma vontade de lá estar também, o Salazar a falar com os óculos na ponta do nariz, as tropas a desfilarem, o assalto ao quartel de Beja feito por um tal Varela Gomes. 
Lisboa, os cheiros da cidade, Mafra ao longe, o Convento, guerras com cartucho de bala simulada, com alfinetes nos caracóis, melão com verde branco, crosses em fato zuarte quase até à Ericeira, 10 dias de licença, guia de marcha para Angra do Heroísmo, alcatra com vinho de cheiro, formação da recruta, 3 ou 4 meses depois de muita maluqueira, a notícia, para a Guiné, uns dias de férias outra vez na terra, numa despedida um amor súbito a abrir-se. 
Vozes desconhecidas, os olhos pesados, caras enormes em cima dele a mexerem os lábios, devo estar a sonhar, tanta coisa junta, um de bata branca com uma seringa, o que se passa, a cabeça, o peito, as costas, o corpo todo a doer, a escorrer suor até nos pés. 
Há dois dias que está assim, ouviu longe. Fala alto, deve estar a delirar, ouviu um a dizer, vamos levá-lo para Bissau, para o hospital. 
____________

Nota
2 - Motorizada alemã

(Continua)

************
____________

Nota do editor

Poste anterior da série de 22 de outubro de 2015> Guiné 63/74 - P15280: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XVIII Parte): Extinção da Companhia de Comandos do CTIG; Mansoa e Valium