sábado, 8 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P14985: Caderno de notas de um mais velho (Antº Rosinha) (38): é possível barrar a emigração a muitos milhões de jovens africanos sem perspectiva de vida? Nem Luís Cabral conseguiu fechar as entradas na Praça de Bissau...

1. Mensagem do Antº Rosinha:

[Foto à direita, o Antº Rosinha , ex-fur mil em Angola, 1961/62, topógrafo da TECNIL, Guiné-Bissau, em 1979/93, ex-colon e retornado, como ele gosta de dizer com a sabedoria, bonomia e o sentido de humor de quem tem várias vidas para contar ...]:

Data: 3 de agosto de 2015 às 19:46


Assunto: É possível barrar a emigração a muitos milhões de jovens Africanos sem perspectiva de vida? Nem Luís Cabral conseguiu fechar as entradas na Praça de Bissau.


Como é possível fechar a Europa aos jovens de toda a África, se não foi possível fechar as entradas de jovens de toda a Guiné-Bissau dentro de Bissau que é uma ilha?

Em 1980 eram tantos milhares de jovens na cidade de Bissau, vagabundeando na Praça, que Luís Cabral tentou fechar na Chapa Bissau, na estrada de Antula e na estrada que vinha de Bor, com polícias e camiões para recolher, registar os sem emprego e recambiá-los para as suas tabancas.

Eu já escrevi isto, mas agora serve para comparar exactamente tudo, mas tudo mesmo, aquilo que se passa hoje com toda, mas toda mesmo, a juventude africana, com aquilo que se passava nos anos a seguir à independência da Guiné para as mãos do PAIGC.

Isto é, toda a juventude Bissau-guineense, viu a demora em aparecerem os resultados prometidos e apregoados pelo Regime e pelos heróis da Independência e o instinto de defesa muito presente no povo africano não demorou, de uma maneira passiva, mas bem vincada, manifestou-se com uma autêntica invasão maciça da capital, vagabundeando o dia inteiro pela praça, sem qualquer preparação, sem discursos e sem armas, apenas com a sua presença, sempre em movimento, e isto diariamente até que o governo reagiu.

Luís Cabral, reagiu e caíu.

Mas já em 1980, milhares de guineenses sabiam que era preciso "fugir" mesmo da cidade de Bissau porque tal como hoje assistimos, todas as capitais africanas ficaram literalmente inabitáveis.

Não havia perspectiva de uma independência africana à «maneira europeia» sem se ter feito uma colonização europeia real em toda a África Subsariana.

Como tal aquela áfrica vai recorrer à colonização selvagem de árabes e de chineses.

A Europa vai pagar tudo com juros suportando as reclamações dos jovens africanos, pois é apenas a reclamar, aquilo que os africanos estão a fazer em Calais e no Mediterrâneo e em Ceuta.

Em Portugal há muitas reclamações há muitos anos, principalmente na freguesia de São Sebastião da Pedreira.

O primeiro ministro inglês e o presidente francês, estão na situação em que Luís Cabral estava em 1980, sem saber o que fazer com tantos «pretos».

Mas que porra, quem diria?

Havia pessoas que tinham a razão do seu lado, mas não tinham a força das armas.

Seria pior? Seria melhor? Pelo menos seria diferente.

Cumprimentos

Antº Rosinha
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Nota do editor:

Último poste da série > 7 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14583: Caderno de notas de um mais velho (Antº Rosinha) (37): Sempre houve emigrantes europeus para África, agora dá-se o inverso

Guiné 63/74 - P14984: Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas (18): Há festa em Ferrel e nasceu mais uma tabanca, de que será régulo o Joaquim Jorge, ex-alf mil, CCAÇ 616 / BCAÇ 619 (Empada, 1964/66)


Peniche > Ferrel > 5 de agosto de 2015 > Cartaz anunciando as festas (sempre grandiosas e muito concorridas) da vila (e freguesia) de Ferrel, que estão a decorrer entre 5 e 10 de agosto... Hoje, sábado, por volta das 16h, haverá a tradicional "burricada"... em homenagem aos tempos em que os ferralejos eram valentes almocreves, e o burro era um importante meio de trabalho...



Peniche > Ferrel > 5 de agosto de 2015 > Início das festas da vila e freguesai de Ferrel cuja origem (documentada) remonta a 1639... A padroeirta da terra é a Nossa Sra da Guia, tradicionalmente padroeira dos pescadores.


Peniche > Ferrel > 5 de agosto de 2015 > Início das festas da vila e freguesai de Ferrel  
>  Tradicional procissão com a imagem da padroeira, em que participaram diversas associações de ex-combatentes (caso, por ex,,  do Núcleo de Peniche  da Liga dos Combatentes, da AVECO - Associação dos Vetersanos Combatenets do Oeste, com sede ma Lourinhã).


Peniche > Ferrel > 5 de agosto de 2015 > Início das festas da vila e freguesai de Ferrel  
>  Tradicional procissão com a imagem da padroeira, em que participaram diversas associações de ex-combatentes... Do lado direito, de direito, de perfil, óculos e camisola azul, o "régulo da tabanca de Ferrel", o nosso movo grã-tabanqueiro Joaquim Jorge.



Peniche > Ferrel > 5 de agosto de 2015 > Início das festas da vila e freguesai de Ferrel  
>  Tradicional procissão com a imagem da padroeira > A capela local, seiscentista.




Peniche > Ferrel > 5 de agosto de 2015 > Placa. no adro da igreja, evocativa da luta do povo de Ferrel, os ferralejos, contra a tentativa de construção de um central nuclear no pós.25 de abril de 1974, e de que o Joaquim Jorge foi um dos líderes.


Lourinhã > Praia da Areia Branca > 5 de agosto de 2015 >  A Ilha das Berlengas, ao pôr do sol... Vista  á distância de 26 km, depois do regresso de Ferrel.


Lourinhã > Praia da Areia Branca > 5 de agostod e 2015 > Pôr do sol (1)


Lourinhã > Praia da Areia Branca > 5 de agostod e 2015 > Pôr do sol (2)

Fotos (e legendas): © Luís Graça (2015). Todos os direitos reservados


1. O nosso camarada Joaquim da Silva Jorge, ex-alf mil,  CCAÇ 616 (Empada, 1965/66), 1.  já me prometeu, por boca e por escrito, que vai as fotos da praxe para poder integrar, de pleno direito, a nossa Tabanca Grande...  


Ainda recentemente, a 3 do corrente, me mandou o seguinte mai


Amigo Luís Graça: Antes de mais quero pedir-te desculpa de ainda não te ter enviado a foto e os dados para a minha inscrição. Fá-lo-ei depois do dia dez porque até lá ando envolvido
com as festas de Ferrel.


Este ano o convívio da minha companhia, a CCAÇ 616, foi no passado fim de semana, dia 25 e 26 de Julho, no hotel Pax em Fátima. No sábado a partir das 14h00 começou a chegada da "malta". Às 19h00 na capela do seminário dos Missionários da Consolata foi celebrada a nossa Missa.
Seguiu-se o jantar com uma bacalhauzada bem regada que terminou com a partilha do bolo da Companhia.

Depois, no anfiteatro do Hotel, fizemos um serão bem divertido, com notícias dos companheiros que não  puderam estar presentes, com a organização do convívio do próximo ano [, 2016,] em que comemoramos os 50 anos do nosso regresso e com algumas oportunas intervenções, destacando-se a de um camarada que esteve recentemente em Empada e a de outro que tem uma neta missionária em Empada. 

O domingo de manhã foi ocupado com a continuação do convívio e visita ao Santuário. Seguiu-se o almoço com mais alguns companheiros que não puderem vir no sábado. Por volta das 16h00 começou a debandada para o regresso a casa.
Agradeço que me envies o email do [João] Sacôto, da CCAÇ 617.
Até breve! Um abraço do Joaquim Jorge

2. Comentário de LG:

No passado dia 5, 4ª feir, fui ter com o Joaquim Jorge, "régulo da tabanca de Ferrel"... A terra está em festa, toda esta semana, até 2ª feira, dia 10... Devo dizer vos, camaradas,  que fiquei impressionado com a grandeza dos festejos locais, que superam já as festas de Peniche, sede de concelho...

Há 50 anos Ferrel era uma terra de gente pobre, esquecida e até discriminada... Hoje a vila de Ferrel orgulha-se de estar na lista da frente das terras do concelho, graças ao emigração dos seus filhops e ao desenvolvimento da sua agricultura.

Assisti à procissão, ao fim da tarde, que teve também a participação do núcleo de Peniche da Liga dos Combatentes (LC), bem como da AVECO - Associação dos Veteranos Combatentes do Oeste, entre outras... O Joaquim esteve á frente do núcleo de Peniche da LC durante uns anos...

A coordenação da parte religiosa da festa está a cargo do Joaquim que é um homem muito querido e estimado na sua terra, pela sua generosididade e trabalho feito no campo da acção social e apostólica, da solidariedade, do voluntariado, do desenvolvimento comunitário...

Não deu, desta vez, para eu visitar as instituições locais a cuja história ele está ligado (associação cultural e recreativa, creche, centro de dia, lar de idosos). Além disso, é uma pessoa simples, hospitaleira e excelente conversador... É um regalo ouvi-lo contar histórias da Guiné. Fomos beber um copo com ele, depois da procissão... É, em todos os aspetos, um camarada que nos orgulha a todos, amigo do seu amigo, camarada do seu camarada...

Combinámos, depois do dia 10, fazer uma sardinhada, na nova "tabanca de Ferrel".. Estamos a montar a operação, e já temos data: 4ª feira, dia 12... O João Sacôto virá, de propósito, de Lisboa.  Outros camaradas, aqui do oeste (Louirnhã e Peniche) estarão também presentes... Do meu lado, já arregimentei o Eduardo Jorge Ferreira,  régulo da Tabanca de Porto Dinheiro, o Jaime Bonifácio Marques da Silva, o Pinto Carvalho...

Como diz o Joaquim, Jorge, recordar é viver e temos que aproveitar bem o tempo que nos sobra (ou resta)  para viver e recordar. Aqui ficam algumas fotos do dia 5, incluindo um magnífico pôr do sol que apanhei no regresso a casa. 

Guiné 63/74 - P14983: Parabéns a você (941): Henrique Martins de Castro, ex-Soldado Condutor Auto da CART 3521 (Guiné, 1971/74) e José Santos, ex-1.º Cabo Aux Enf da CCAÇ 3326 (Guiné, 1971/73)


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Nota do editor

Último poste da série de 4 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14968: Parabéns a você (940): José Nunes, ex-1.º Cabo Mecânico Electricista do BENG 447 (Guiné, 1968/70) e Rui Alexandrino Ferreira, TCoronel Ref (Guiné, 1965/67 e 1970/72)

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P14982: Memórias de Gabú (José Saúde) (55): Em memória do teu avô, major Brito



1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.

As minhas memórias de Gabu

Ao amigo Cláudio Brito
Em memória do teu avô, major Brito

Desculpa, mas humildemente tratar-te-ei por tu. Coisas da tropa. Não leves obviamente a mal esta velha retórica militar. Mas a verdade porém obriga-nos, em sentido quiçá figurado, remeter o nosso ego para um passado onde registamos momentos sempre inesquecíveis.

A Guiné foi um palco de guerra que nos remete para pensamentos literalmente ínvios, não obstante o local porventura palmilhados. Nas minhas memórias de Gabu tive a oportunidade de conhecer o então 1º sargento Brito. O “tio” Brito, como habitualmente era tratado, aliás, sempre foi, como um militar do quadro extraordinário.

Com ele partilhei alguns momentos sob um clima de guerra que nos era porventura adversa. Estava em Madina Mandiga integrado numa companhia pertencente ao meu, nosso, BART 6523. Dissequei, com ele, conversas transversais quando, a espaços, vinha a Nova Lamego com o intuito de tratar assuntos referentes à sua companhia deslocada algures em pleno mato guineense.

A vida remete-nos para um examinar constante daquilo que fomos, o que fizemos e o que nos resta para concretizar esta vivência no cosmos terrestre.

Cláudio, tive a oportunidade em saber “novas” do teu avô, ainda em vida, através do alferes miliciano ranger Barbosa. Um camarada que estava destacado numa outra companhia, sediada em Buruntuma, do nosso BART, mas que a data altura passou, também, pelo destacamento de Madina.

Disse-me este velho camarada Barbosa, companheiro da escola de Lamego e também conhecedor profundo desta velha especialidade, que o “tio” Brito, que estava reformado em major e residia em Coimbra. Manifestei, na altura, interesse de o contactar. Mas tudo se esvaziou num tempo sem tempo. 

Porém, a fatídica notícia do teu avô chegou-me um dia através do nosso blogue. Fiz então uma referência a um homem que sempre estimei e que faz parte do meu livro – GUINÉ-BISSAU AS MINHAS MEMÓRIAS DE GABU 1973/1974.

Cláudio Brito, amigo de uma outra geração, sendo o mundo na sua plenitude apenas uma pequena gota de orvalho que refresca, por enquanto, ideias que jamais se assumirão como caducas, prezo o teu afeto por um camarada, teu avô, reafirmo, que nunca esquecerei.

Aqui fica uma foto em que brindo com o meu velho camarada Brito, já em tempo de liberdade no palco de guerra na Guiné tendo em conta que a Revolução do 25 de Abril estabeleceu o fim da guerra em África, para sempre recordar. 


Um abraço, camaradas 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em: 


Guiné 63/74 - P14981: O segredo de... (22): O problema não eram os pecados, - os nossos segredos -. O problema acontecia quando quem mandava em nós desvendava os pecados (Domingos Gonçalves)

1. Mensagem do nosso camarada Domingos Gonçalves, (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68) com data de 31 de Julho de 2015:

Prezado Graça:
Saúde, e boas férias.

O problema não eram os pecados, - os nossos segredos -. O problema acontecia quando quem mandava em nós desvendava os pecados.

Vou contar dois casos.
Um pecado acabou por ficar no segredo dos deuses, apesar da desconfiança da divindade. Outro não.

O caso que ficou no segredo, foi o seguinte.

As valas de Guidaje
Com a devida vénia a SPM 0018 - CCAÇ 3

Estava eu em Guidage, com o meu grupo de combate, numa altura em que o capitão estava de Férias, quando chegou lá uma coluna para me entregar a ordem para participar numa operação que decorreria na madrugada e manhã do dia seguinte, na zona do Dungal.
A escolta da coluna ficaria em Guidage, mantendo a segurança do destacamento durante esse período de tempo.
Através de um furriel que vinha nessa coluna, o colega, alferes, que se encontrava a substituir o capitão, enviou-me uma carta pessoal, (secreta) em que me dizia para não participar na operação por diversas razões, que na altura me informou, em virtude das quais me aconselhava prudência reforçada. Li a carta e queimei-a.
Na madrugada do dia seguinte saí com o meu grupo de combate em direcção ao Dungal, após pouco mais de uma hora de marcha simulei estar perdido, demos umas voltas pelo mato, recolhemos bananas numa tabanca abandonada, regressando de seguida a Guidage.
Como era normal, redigi o relatório, que via rádio, seguiu para o batalhão.
Não sei como, nem porquê, quando o capitão regressou de férias chamou-me ao gabinete para saber o que tinha acontecido naquele dia. Menti-lhe, claro. Mas jurei por Deus, que estava a falar verdade. Deixo aqui, e agora, a confissão do meu pecado.

Sobre o outro pecado falarei em breve.

Com um abraço amigo,
Domingos Gonçalves
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Nota do editor

Último poste da série de 6 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14977: O segredo de... (21): O que custa(va) ser periquito numa terra como a Guiné (Ribeiro Agostinho, ex-Soldado da CCS/GG/CTIG)

Guiné 63/74 - P14980: Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas (17): Como leitura de férias, depois de "O Corredor da Morte" de Mário Gaspar, este ano, "Cabra Cega", de João Carrasqueira, pseudónimo de António Marques Lopes (Hélder V. Sousa)

1. Mensagem do nosso camarada Hélder Valério de Sousa (ex-Fur Mil de TRMS TSF, Piche e Bissau, 1970/72), com data de hoje 31 de Julho de 2015:

Caros camaradas
Dando seguimento ao apelo do Luís Graça para que se alimentasse o Blogue, durante as férias, dando até como sugestão que se 'enviasse um postalinho' ou 'aerograma', aqui vai a segunda contribuição.
Como já disse, tive direito a uns "dias de licença" e entre descansar e apanhar sol e água, aproveitei também para me dedicar a colocar algumas leituras em dia.
Conforme se pode comprovar pela foto anexa, para além da 'barriguinha', e do 'bronze de camionista', ressalta que estou a ler a "Cabra Cega" dum tal João Carrasqueira.
Já o ano passado também aproveitei para, nesta mesma ocasião, ler "O Corredor da Morte" do meu "quase conterrâneo" Mário Gaspar.

E pronto, para 'postalinho' já chega!
Abraços
Hélder Sousa

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Nota do editor

Último poste da série de 3 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14967: Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas (16): O rio que mais me impressionou na Guiné foi o Corubal (Abel Santos, ex-Soldado Atirador da CART 1742)

Guiné 63/74 - P14979: Notas de leitura (745): Um dia diferente, da autoria do ex-Alf Mil Médico Aníbal Justiniano da CART 494, extraído do livro "Missão Guiné 63-65 Companhia de Artilharia 494”, escrito por Augusto Carias, Adelino Gomes e Aníbal Justiniano (Coutinho e Lima)

1. Mensagem do nosso camarada Alexandre Coutinho e Lima, Coronel de Art.ª Reformado (ex-Cap Art.ª, CMDT da CART 494, Gadamael, 1963/65; Adjunto da Repartição de Operações do COM-CHEFE das FA da Guiné entre 1968 e 1970 e ex-Major Art.ª, CMDT do COP 5, Guileje, 1972/73), com data de 30 de Julho de 2015:

Caro Amigo Carlos Vinhal
Junto envio, em anexo, um texto com o título "Um dia diferente" que, penso ter interesse para ser publicado no nosso blogue.

Um abraço
Coutinho e Lima


Um dia diferente*

Dia 29 de Fevereiro de 1964

Um dia que nada significa para muitos. Um dia igual a tantos outros. Mas para alguém este dia é diferente, não é igual aos outros. Para ele, o dia 29 de Fevereiro de 1964 representa muito, a vitória da sua honradez sobre a desonra daqueles que eram seus subordinados, o regresso à terra que julgava perdida, uma vitória do Exército Português sobre os que têm trazido o desassossego, a fome, as lágrimas aos que vivem na Guiné Portuguesa.

Esse homem é um régulo, um português daqueles de antes quebrar que torcer, um português de alma e coração, apesar da sua pele escura, provando que não há distinção de raças entre os que amam Portugal.
Abibo é o seu nome. Desde há longo tempo que Abibo é o Régulo da área de Gadamael, junto da fronteira sul da Guiné Portuguesa com a República da Guiné.
Abibo é Alferes de 2.ª linha, representando a justiça e a paz entre os habitantes da sua tabanca. Ganturé é uma tabanca de beafadas, raça de trabalhadores que se deixaram seduzir pelas palavras enganadoras dos terroristas.

De um lado e de outro da estrada da fronteira, alinham-se as moranças de adobe, à sombra das árvores, dando-nos a ideia de uma aldeia metropolitana. Apenas os telhados de colmo nos lembram que estamos em África. Noutros tempos, era uma tabanca feliz, onde a vida dos seus habitantes se fazia num ambiente de fartura e alegria, onde a riqueza das colheitas do arroz e dos citrinos lhes dava uma auréola de confiança no futuro.
Abibo representava para todos a certeza da paz e da justiça entre a gente do seu regulado. Abibo Inchassó era conhecido em todo o território desde o Forreá à Península de Cacine. E admirado até pelos habitantes de outros regulados.

Este homem, um dia, viu-se perseguido dentro da sua própria terra. Os aliciadores terroristas lentamente foram minando o seu povo, seduzindo-o com promessas.
Abibo tentava mostrar a verdade ao seu povo, pondo uma barreira àqueles que o afastavam do bom caminho. Um dia, pressentiu que a sua vida perigava. Sentiu-se perseguido, tendo de abandonar todos os seus haveres e a sua própria família e acolher-se entre os seus amigos, entre aqueles em quem tinha sempre confiado.

Os meses foram passando. E, por força das circunstâncias, não foi possível tentar a recuperação de Ganturé. A nossa atenção era necessária noutras regiões.
Abibo, apesar de confiar no exército da sua Pátria, começou a pensar que não voltaria à sua terra. Ali estava ele em Bedanda, sofrendo a ausência dos seus familiares, dos quais apenas sabia que se encontravam na República da Guiné.
Ele, que entre os seus era fidalgo, que vivera sempre na fartura, dando àqueles que necessitavam arroz ou cola para viver, via-se agora despojado de tudo, vivendo das esmolas dos seus amigos.

Mas um dia Abibo soube que na sua tabanca estavam instaladas tropas. Os terroristas tinham sido desalojados, graças ao esforço de um punhado de briosos soldados portugueses.
Estes mesmos soldados quiseram ser eles a entregar-lhe o que por direito lhe pertencia. Quiseram prestar assim homenagem a outro português que também lutava pelo mesmo ideal: a paz e a tranquilidade no território português.

Vista aérea de Ganturé
Com a devida vénia a Panoramio

E no dia 29 de Fevereiro de 1964 a azáfama era grande em Ganturé.
Sabia-se que Abibo chegaria nesse dia pela manhã. Todos queriam expressar-lhe a sua admiração.
Qual seria a reacção do Abibo ao voltar a pisar os velhos caminhos que conduziam a Ganturé?
Todos nós que estávamos presentes – pessoal de Infantaria, de Cavalaria, Milícia fula – pudemos ver as lágrimas sulcando naquele rosto curtido pelo sol da Guiné e pelas amarguras suportadas, um rosto leal de alguém que tem mantido indefectível fidelidade a Portugal.
Ganturé tinha um ar quase festivo, apesar de se verem os sinais de destruição, de vingança, de raiva surda contra quem não tinha curvado a cerviz, mantendo o seu amor pela Pátria, contra tudo e contra todos. De um lado e doutro se ouviam as palmas e gritos de acolhimento de todos aqueles que tinham de algum modo contribuído para o seu sonho. Mas algo fazia descer um véu de tristeza nos seus olhos leais!

Aqui, a casa de Abibo, soberba vivenda de estilo europeu, agora quase arrasada pela malvadez dos que dizem defender a liberdade e a paz na Guiné; ali, as casas da seus irmãos, um dos quais fora prisioneiro e mandado abater pelos terroristas.
Quantas saudades dos dias passados, em que a tranquilidade reinava naquelas terras, em que o trabalho era a lei que as regia!
Mas ali estavam os defensores do solo pátrio, aqueles militares que lhe mostravam que as promessas feitas pelos portugueses não são palavras vãs, dando-lhe as boas-vindas, recebendo-o da braços abertos, como um irmão recebe outro irmão.

Tudo se fundia. A alegria do regresso e a tristeza provocada pelas saudades dos seus familiares, para nascer um sentimento de que uma nova era ia começar na sua tabanca, numa promessa de um futuro que faria esquecer dias passados.
Ele via nos olhos daqueles que o abraçavam a vontade necessária para fazer ressurgir uma nova Ganturé, se possível mais linda, mais harmoniosa, mais garrida, que lhe dissesse que ali também é Portugal.

E, quando lhe entregaram a Bandeira Nacional, símbolo querido da Pátria, para que numa cerimónia singela, mas significativa, a içasse na sua tabanca, enquanto a Milícia fula lhe prestava a guarda de honra, Abibo deixou que as lágrimas corressem, lágrimas de alegria que não serão esquecidas por aqueles que as viram.

Era bem um dia diferente para ele e para aqueles que amam Portugal.

Aníbal Justiniano

(*) - Este texto foi escrito pelo então Alferes Miliciano Médico, Aníbal Justiniano, médico da CART 494 e está incluído no livro “Missão Guiné 63-65 Companhia de Artilharia 494”, escrito por Augusto Carias, Adelino Gomes e Aníbal Justiniano.
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Nota do editor

Último poste da série de 7 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14978: Notas de leitura (744): “Autópsia de um Mar de Ruínas”, de João de Melo (4) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P14978: Notas de leitura (744): “Autópsia de um Mar de Ruínas”, de João de Melo (4) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Agosto de 2014:

Queridos amigos,
Acabou-se a narrativa de Calambata, romance memorável de João de Melo onde encontramos a tragédia da guerra e as facetas mais boçais do colonialismo. Há para ali aerogramas de intenso lirismo e descrições onde a senhora da gadanha triunfa em majestade. E despeço-me com uma citação:
- Prometes que ficas aqui à minha espera? O ferido disse vagamente que sim com a cabeça, nada era já importante; se algo de importante houvesse na vida, era estar-se vivo e certo de se ser ainda o único dono dela. O furriel desandou a correr, mas parou a dois metros do sítio onde o Gonçalves se afundava sem remédio. Como um barco, pensou, como um barco a ser devorado pela grande e definitiva tormenta. Recebeu ainda o seu olhar de animal abatido no último instante, recordou que tinha mulher e três filhos e quis fugir dali. Encostou a cabeça ao peito dele. Não corria o rio sonoro de um coração, corriam águas mansas; deslizavam cinzas e pequenos animais de agonia. O furriel descarregou os dois punhos sobre o peito do moribundo, ouviu-se o som das costelas partidas com a pancada, e nada mais, a não ser os olhos, perdurou no último sopro da respiração.
Estou a escrever-vos esta citação e comovo-me pelos meus mortos, os mortos de todos nós, não só no norte de Angola, mas naquele território de palmares, bolanhas, rias e florestas-galeria, a nossa inconfundível e transcendente Guiné.

Um abraço do
Mário


Autópsia de Um Mar de Ruínas (4), por João de Melo

Beja Santos

João de Melo foi furriel enfermeiro, dividiu a sua comissão num destacamento perto de S. Salvador, norte de Angola, entre o apoio direto aos militares e os cuidados com os civis de duas sanzalas de Calambata. Tornou-se um bom observador social, mostra-se esclarecido quanto às relações de domínio entre colonizador e o colonizado, entre a polícia branca e o soba, conhece as doenças tropicais, vê a miséria, pressente nas entrelinhas a pressão dos guerrilheiros junto das populações. A todos os títulos, “Autópsia de Um Mar de Ruínas” é um livro referencial, há um cuidado inexcedível em registar os falares nativos, os usos e costumes, é magistral quando capta a atmosfera de repressão.

Vem aí a caminho uma coluna que é fundamental para a economia de quem vive da agricultura do café, e o autor dá-nos uma impressiva água-forte:
“A polícia branca de S. Salvador vinha a escoltar essa coluna, com os seus jipões azuis, descapotados e sujos de lama, trazendo homens fardados que apontavam as armas no capim.
Os homens tinham-se reunido no centro da sanzala, de braços cruzados no peito, na conversa ou no difícil silêncio; uns e outros mostravam apreensão por esse dia que chegava finalmente. Vender café e receber dinheiro de volta não podia meter cerimónia? Vestiam fatos puídos e remendados, esquecidos muito tempo no caixote das arrumações. Soba Mussunda usou mesmo uma gravata muito velha, talvez quase da sua idade, e o chapéu cinzento dos distantes tempos de contratado.
Madrugada ainda, puseram os sacos do lado de fora da cubata, emparedando-os em pilhas de diversas alturas que, em alguns casos, chegavam mesmo ao zinco ou atingiam a casa a todo o comprimento. Depois, o sol veio subindo nos morros. Bateu no zinco das casas com a bola de fogo que alumiava e ia deslizando vagarosamente. Também as senhoras andavam num remoinho, falando, sorrindo, imitando a felicidade da vida. Houve quem pusesse um rádio a tocar alto as músicas congolesas – canções batucadas e sacudidas que vinham mexer no corpo das pessoas e obrigavam a abanar as ancas e a gingar, gingar sempre (…).
Entrou, primeiro, um jipe da polícia. Logo de seguida, um camião vermelho, de três rodados. Deram a volta ao largo e foram parar em frente da casa do chefe Valentim que esperava à porta, de mãos na barriga. O povo observou os carros a enfileirar cuidadosamente, uns ao lado dos outros, os jipes intercalados com os camiões cobertos pelas lonas que pendiam dos taipais. Lá dentro, centenas de garrafas tilintavam, e os homens sorriam entre si, satisfeitos. As mulheres, não; compreendera imediatamente que o propósito desses brancos era arrancar mais um dia de negócio, levando de volta o dinheiro que traziam, recuperado das monstruosas bebedeiras”.

Começa o cerimonial da apreciação. Todos deram pela chegada do chefe da polícia secreta, limitou-se ao cumprimento de continência de Valentim. Os comentários dos comerciantes brancos são de puro desdém. Começam as negociações para comprar o café, os comerciantes oferecem quatro angolares por cada quilo, os africanos contrapropõem com seis, os brancos não saem dos quatro. Um deles comenta:
”E quem não estiver interessado, guarde o café em casa ou então junte-o, espalhe-o pelo quintal fora, misture-o com a estrumeira que lá tem”.
A contraproposta desce para cinco angolares. O árbitro será o polícia Valentim:
“Quem quiser vender por quatro e meio, vende; quem não quiser, que se lixe. Toca a trazer o café, gente. E eles obedeceram. Vencidos e calados”.

Seguir-se-á a orgia do álcool e os vários negócios em que os agricultores deixaram o seu precioso dinheiro. E regressamos à guerra, dias de marcha através dos pântanos. O cronista chama-se Renato, alguém que teme morrer, invoca a mãe, olha assombrado para a vastidão do território e o seu espetáculo de formas:
“Calambata é este promontório suspenso sobre formas pardas, ao qual trepamos dois caminhos em S e onde as viaturas derrapam na época das chuvas. Por ali passaram todos os mortos: passou a morte de Júlia, a mulatinha do sorriso verde, passaram as viaturas sinistradas pelas minas, os rapazes adormecidos, tapados com a lona mortuária. Era por ali que se regressava sempre, depois de todas as coisas terem acontecido muito longe, nos caminhos por onde não transita a memória, nem o esquecimento”.
Renato olha à volta, vê bambus, hortas de milho e mandioca, os lastros de abacaxi e das bananeiras, os canaviais de uma sanzala. É um momento patético. E de novo o escritor volta ao aerograma e aos chilreios do amor:
“À da Canda, amor, aos morros do Seixel vai demoradamente fixar-se a amargura das noites de guerra. Calambata é um morto que não morre mas adormece. Aqui o tens vivo, as mãos fechadas sobre a sua metralhadora. Pior do que estar de sentinela, pior do que tudo são as chamas ao longe, os olhos que me vigiam. Sente-se um homem espiado pelas próprias árvores, ouvindo carrilhões impossíveis na calada da noite (…). É o que escrevo aqui, sentado na noite. No sítio onde estou, amor. De frente para os morros que cercam o Calambata cercada de guerra pelo Norte. A pensar, amor, que há em mim um morto que não morre”.

E temos uma nova coluna em movimento, até que se ouve um estrondo, um Unimog explodira.  
“Voavam ferros e pneus e peças de motor: caíam corpos decrépitos, e uma fumarola negra, de um negro muito denso, abria-se numa espiral. Do capim em chamas, subiu logo o bafo de dezenas de metralhadoras”.
E fica-nos a ilusão do que o narrador morreu simbolicamente em nome de todas aquelas mortes que lhe tinham passado pelos olhos e ferido a alma. É uma morte universal com que o romancista trava combate:
“Amor, eu não sei se dói. Caiu-me a arma das mãos. O meu último pulmão enche-se de uma agonia de corais, como quando os navios encalham nas rochas. Sei que viram os médicos, os helicópteros: alguém chamará pelo meu nome, abre os olhos, abre os olhos, respira fundo, respira fundo”.

E o romance de João de Melo acaba como um pesadelo, os soldados andam à procura de Romeu, o agente da guerrilha, empurram e pontapeiam, tudo revistam. O soba apercebe-se que se avizinha uma tragédia, se Romeu não aparecer haverá fuzilamentos, e então oferece a sua vida:
“Respondo sempre na minha gente. Deixa viver esses homens, nosso arferes. Grande favor…”.
E então Romeu surge de uma sombra, explica que esteve no mato a montar armadilha, o alferes está fora de si, bate-lhe desalmadamente. Romeu é levado para a viatura, nunca mais voltará a Calambata.

João de Melo burilou um universo concentracionário onde se movem militares e civis num ponto do norte de Angola. Tragédia, agonia, o levantamento do homem, e aquele furriel enfermeiro em que o romancista se vêm ao espelho zela, solícito, tem um pé na guerra, outro na construção do desenvolvimento. Assombra a cultura registada, a perceção de que toda aquela beleza não pode iludir o mar de ruínas deixado pelo colonialismo.
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Nota do editor

Postes da série de:

27 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14934: Notas de leitura (741): “Autópsia de um Mar de Ruínas”, de João de Melo (1) (Mário Beja Santos)

31 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14954: Notas de leitura (742): “Autópsia de um Mar de Ruínas”, de João de Melo (2) (Mário Beja Santos)
e
3 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14963: Notas de leitura (743): “Autópsia de um Mar de Ruínas”, de João de Melo (3) (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P14977: O segredo de... (21): O que custa(va) ser periquito numa terra como a Guiné (Ribeiro Agostinho, ex-Soldado da CCS/GG/CTIG)


Messe de Oficiais do Quartel General em Sta. Luzia, hoje transformada em Hotel. Ainda dá para ver parte de uma mangueira das muitas que ladeavam os arruamentos.
Foto e legenda: © António Teixeira (2011). Todos os direitos reservados


1. Mensagem do nosso camarada Ribeiro Agostinho (ex-Soldado Radiotelefonista / Condutor Auto e Escriturário da CCS/QG/CTIG, 1968/70), com data de 30 de Julho de 2015:

Boa noite Camarigos
Após vista de olhos, habitualmente diária, acabei de ler a história do António Medina, que me fez lembrar uma passagem também secreta, na época, que vou agora descrever, e que se acham que interessa, podem publicar.

Quando cheguei à Guiné, em rendição individual, desembarquei e fui apresentar-me nos Adidos em Brá.
Na secretaria foi-me dito que a Companhia, à qual ia destinado, tinha regressado à Metrópole havia dois dias (18-08-1968 no UÍGE), estávamos a 20-08-1968.
Então o Sargento da Secretaria perguntou-me se eu tinha carta de condução pois poderia ficar lá como condutor do Comandante, o que eu de imediato aceitei.

Foi preciso ir ao QG, a Santa Luzia, para pedir a minha colocação e lá fomos os dois. Em conversa com o chefe da Secretaria do QG, o Sr. Major Vilas Boas Mouzinho de Albuquerque, apercebendo-se de que eu tinha estado na Secretaria do Comando do RI 6 no Porto, disse que precisava de mim lá e que se arranjaria um condutor para o Sr. Comandante dos Adidos, outro que não eu.
Acabei por cumprir toda a comissão na secretaria do QG, que só foram 16 meses, pois soube contornar os obstáculos, como manda a tropa, desenrascando-me da melhor forma, mas isso contarei noutra oportunidade. Agora vamos ao tal segredo.

Um belo dia estava eu à porta da Secretaria, no corredor do QG, quando ia para entrar e vejo chegar, pela porta principal, um periquito (camuflado novinho ainda sem lavagem) cheio de pompa.
Fiquei ali parado a vê-lo passar cheio de cagança e reparo que era Capitão. Eu que trabalhava sem boina, fui ocupar o meu lugar na secretária, num gabinete só meu, com vista para a parada e refeitórios da CCS e da PM, por trás do balcão onde trabalhavam outros colegas que atendiam quem vinha do corredor.

Ainda não me tinha sentado quando ouço perguntar pelo soldado que estava há pouco ali à porta, pensei logo de quem se tratava, do periquito, pois eu não lhe bati a pala.
O Sargento que chefiava a parte do balcão, chama-me e eu apareço por trás da parede divisória dando de frente com o Sr. Capitão, que de pronto dispara:
- Oh pá, não me conheces? Não me respeitas?

Eu, já em sentido, peço-lhe desculpa e digo-lhe a todo o momento estamos em contacto com patentes superiores às nossas e é normal proceder assim.
Ele virou-me as costas a remoer qualquer coisa e foi-se.
Retomei o meu trabalho, que era o registo de toda a correspondência que entrava no QG, à excepção da Secreta, que era tratada pelo meu chefe directo, o Sr Major Mouzinho de Albuquerque, do qual tenho saudade e de quem gostaria de saber, pois me despedi dele com um grande abraço, deixando-o a chorar. Era da Póvoa de Varzim, mas não mais soube dele.

Estava eu a retomar o trabalho no registo de correspondência e de novo ouço a perguntar algo ao balcão, e o Sargento indica que é ali atrás que deve dirigir-se. Aparece-me outra vez, de repente, o periquito. Desta feita para me perguntar se eu tinha alguma correspondência relativa a ele próprio. Perguntei-lhe o nome e respondi-lhe que não tinha nada relacionado com ele, ao que ele me pergunta como é que eu sabia. Eu explico-lhe que normalmente fixo o que escrevo e com aquele nome não tinha passado lá nada. Ele replica que tinha urgência em tratar do assunto e de novo lhe digo que logo que apareça, eu despacho para a repartição a que vier destinada.
Ele lá sai a falar sozinho e eu, de imediato, procuro a correspondência que tenho na secretária e encontro um envelope que era mesmo o que ele queria e escondo-o no fundo da gaveta. Primeiro irei despachar todos os outros e depois vou pensar o que irei fazer com o dele.

Ainda estou a pensar no caso, quando de repente me aparece o Major, meu chefe, e o periquito de novo. O Major com todo o respeito, como era seu hábito, cumprimenta-me, pois estava noutro gabinete e pergunta-me se eu não teria a dita correspondência que o nosso Capitão pretendia.
- Meu Major, pois se o nosso Capitão ainda há pouco esteve aqui e eu lhe disse que não tenho.

Lá me recomendou que mal chegasse, despachasse de imediato, pois o nosso Capitão tinha muita urgência.
Mais tarde, com calma, lá analisei o assunto e como não havia registos que me comprometessem até ter chegado ali esse envelope, e como o assunto que já nem sei de que se tratava, não era tão importante, e só me comprometeria se o registasse, não o fiz. Rasguei pura e simplesmente.
O que custa ser periquito numa terra como a Guiné.

Foi caso único aquele rasgar de correspondência, mas atrasei vários casos, de alguns oficiais que entravam por lá dentro e ao deparem com um soldado disparavam com o: Óh pá tens aí este processo, ou esta correspondência, ou isto, ou aquilo?... Se tivesse passado, dizia que já estava em tal repartição. Se não tivesse passado, quando me chegasse às mãos, ficava mais uma ou duas semanas à espera, dependendo de onde me chegasse essa correspondência, se da Província se da Metrópole.

O respeito é muito bonito e alguns não tinham mesmo categoria nenhuma, apesar de terem galões a pesar nas suas responsabilidades. Mas depois dessas entradas desses oficiais, quando viravam costas, normalmente a seguir vinham com a cunha do meu Chefe, ao que eu já estava habituado e ao que sabia dar a volta.

Mais um segredo que fica contado. Façam o que entenderem.

Um abraço a cada um de vós.
Ribeiro Agostinho
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Nota do editor

Último poste da série de 2 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14962: O segredo de... (20): Fernando Brito (1932-2014), ex-1º srgt, CCS/BART 2917 (1970/72): quadro, em "folha de capim", do seu infortunado filho (, morto mais tarde num trágico acidenrte, em 2001), pintado pelo caboverdiano Leão Lopes, em Bambadinca, 1971 (Cláudio Brito, neto)

Guiné 63/74 - P14976: Memória dos lugares (312): Recordo, entre outros, o rio Ungauriuol, afluente do rio Cumbijã, onde fui alvejado pelo IN com uma 22 milímetros, e onde o N/M Gouveia 16 sofreu uma tremenda flagelação (Rui Santos, ex-alf mil, 4.ª CCAÇ, Bedanda e Bolama, 1963/65)

1. Mensagem de Rui Santos [ex-alf mil, 4.ª CCAÇ, Bedanda e Bolama, 1963/65]

Data: 3 de julho de 2015 às 20:29

Assunto:  Sondagem sobre ss nossos rios da Guiné

 Amigo Luís:

Percorri diversos, atravessei diversos, rios principais, afluentes e ribeiras, ou braços de rio, começando pelo Geba, foi aí que apanhei a primeira desilusão, era um país esquecido, lá "para baixo", no Atlântico, onde já tinha passado em 1961,  rumo a Luanda como civil, do Geba apenas isso,  o meu contacto com a Guiné.

Enviado para o sudoeste (Bedanda),  tomei contacto com o afluente do Cumbijã,  o Ungauriuol (nossa fronteira com o IN),  subi o Cumbijã em operações de vigilância, e destruição de canoas, para dificultar a vida do IN.

Pelo Ungauriuol recebíamos os batelões com os mantimentos, passei de canoa pelo rio acima e alvejaram-me com uma 22, claro que estou aqui ... não me acertaram, por vezes também recebíamos os mantimentos no cais de Cobumba, era a sete quilómetros do aquartelamento.

Neste afluente do Cumbijã, o Gouveia 16 foi flagelado terrivelmente, morrendo o rádiotelegrafista e ficando pelo menos 20 feridos,  dos quais 4 eram militares que faziam protecção ao NM-G16.

Mais para leste, numa missão que me incumbiram,  levei o meu pelotão pelas bolanhas, tarrafes, ribeiros, numa dessas travessias tive que me atirar á água (castanho esverdeado acinzentado opaco) para salvar vários militares de se afogarem, mergulhando para os ir buscar sem os ver... mas salvei-os graças a Deus, não me lembro do nome desse braço de rio ou mesmo ribeiro, pois a noite caiu e só queria tirar os meus soldados de uma possível retaliação do IN.

Mais tarde já em Bolama,  o canal de Bolama, os rios e ribeiros dessa ilha e o canal que separa a Ilha das Cobras da Ilha de Bolama, que atravessava na vazante, antes de minha filha nascer, eu e minha mulher embarcámos em Bolama no Bor e fomos pelo canal de Bolama, os outros canais cujo nome não me recordo e entramos no Geba com uma noite de temporal que tive medo por minha mulher, pois íamos sentados em cima de cordas junto da amurada e a chuva caía se Deus a dava.

Por aqui me fico,
Abraço
Rui G dos Santos
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Nota do editor:

Guiné 63/74 - P14975: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (IX Parte): Mais dois lugares è mesa; Bomba em Farim e Rumo a Barro

1. Parte IX de "Guiné, Ir e Voltar", enviado no dia 2 de Agosto de 2015, pelo nosso camarada Virgínio Briote, ex-Alf Mil da CCAV 489, Cuntima e Alf Mil Comando, CMDT do Grupo Diabólicos, Brá; 1965/67.


GUINÉ, IR E VOLTAR - IX

Mais 2 lugares à mesa

Regressado de uma saída qualquer, com o estômago roído de saudades de um frango assado com batata frita, pediu ao Alegre que o largasse no Portugal. Viu-os cá fora sentados na esplanada a observarem a Praça cheia de movimento àquela hora. Estavam ainda nos cumprimentos e o “Carlos Morais” a chegar, acompanhado pela jovem.

A “Helena”, deslumbrante, já mais ambientada com o calor, perturbava. Todos repararam, uns a disfarçarem mais que os outros, que vinha de acordo com as noites quentes, um vistoso vestido claro, de seda ou do género, a cair-lhe muito bem, seguro nos ombros brancos, o decote em vê, o sutiã cor de carne a espreitar lá de dentro. E a brancura da pele, rara por aqueles lados, um ou outro talvez até já nem se lembrasse que havia mulheres com aquela cor.
Dentro da sala de jantar, alguma cerimónia nos lugares, nada de admirar, era a primeira vez que os 4 tinham companhia. Fico aqui, o Carlos com a mão numa cadeira. Em frente deles, a Helena tinha o Vilaça de um lado, e do outro o Gião com os olhos minúsculos dentro dos óculos da cor e da grossura do fundo de uma garrafa de champanhe. Ficaram de pé, à espera que o Vilaça chegasse a cadeira da senhora para a mesa, depois sentaram-se todos, devagar, os cuidados com as cadeiras, guardanapos nos colos, as cerimónias todas.

Quando ainda eram quatro, não tinham sentido qualquer necessidade de marcar os lugares, iam-se sentando à medida que iam chegando. A entrada em cena de uma senhora obrigou-os a alterar os procedimentos. Não que tivessem tido necessidade de fazer uma reunião para o efeito, apenas concordaram que a presença da “Helena” alterava tudo, obrigava-os a cuidados que antes não eram necessários. Cada um senta-se onde lhe der na gana, desde que nós fiquemos com os olhos virados para a rua, não é? E atenção à língua!
Passaram a ser seis. Nos primeiros tempos as cadeiras estiveram sempre ocupadas, coincidências, claro. Quando algum falhava apareciam outros, uns conhecidos e outros nem tanto, grandes cumprimentos como se tivessem andado todos na mesma turma, perguntas e mais perguntas, o pessoal sentado a levantar-lhes os olhos, os conhecidos não sabiam donde a perguntar-lhes está ocupada?
No fim do jantar saíam para a praceta, conversavam ainda um bocado antes de cada um seguir aos seus destinos.

“Passou mais uma semana sem que tivesse recebido notícias tuas. Começo a ficar preocupada com o teu silêncio. Espero ainda receber carta até terça-feira de manhã mas já não tenho grandes esperanças de que isso venha a acontecer e vejo que terei de esperar mais uma semana inteirinha que me parecerá interminável.”

No quarto tentava pôr as cartas em dia, depois de amanhã era dia de S. Avião, a correspondência mais importante a apertar, queria saber datas de férias. Férias? Ainda nem pensara como descalçar a bota, o que fui arranjar! 

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Bomba em Farim

Uma das mulheres do Camará à porta de armas, que o marido, não dava dinheiro há manga1 de tempo, tinha que pagar arroz, ele não dá dinheiro, nosso alfero! E porque vens falar comigo, eu não sou teu marido, fala com o Tomás!
Mas, nosso alfero, ele não vai a nossa casa, meninos não têm que comer, eu não tem que dar!
Como te chamas, qual é teu nome? Binta? Nome lindo, e quantos pesos bó2 precisa?

Um dia normal, igual a tantos outros. Aplicação militar de manhã, banho, carreira de tiro, almoço, uma sorna a seguir. Lá para as quatro, frente a Brá, exercícios com as equipas, progressão das parelhas por lances, projécteis nos troncos das palmeiras quando mostravam o quico, eles outra vez aos ziguezagues, granadas ofensivas para cima, reunir as equipas para o regresso. No caminho em direcção ao aquartelamento, alguns mais descontraídos, já relaxados, a conversa a alargar-se, uma granada ofensiva para cima, para lhes lembrar que nas guerras não há descansos. E nove deles para o hospital, dar trabalho ao pessoal de enfermagem, para retirar um a um, os pequenos estilhaços e areias que lhes tinham calhado em sorte.
À noite, crosse até à entrada de Bissau, pelas margens da estrada, a cantarem, eu vi a BB na avenida marginal, a andar de lambreta, mas que lasca bestial, toda nua, nua, nua, toda nua, volta à rotunda, para trás até Brá, eu vi a BB3.
Para o quarto de banho, para o chuveiro, para onde há-de ser? E depois, tens alguma ideia? Ideias, Vilaça, não me fales em ideias, às vezes são tantas que até atrapalham.

Um dia, curso terminado nem há uma semana, tinha tido uma que, passados meses, ainda o moía. Fora até uma carreira de tiro que tinham improvisado, uns quilómetros para lá da base aérea. Pegara na G3, um cunhete ainda fechado, sozinho, jeep na esgalha, como de costume. Mirara os alvos, garrafas de cerveja, de uísque, latas e mais latas, umas pelo chão, outras penduradas nos arames, umas atrás das outras. Do cunhete sobrara a caixa de madeira, pisava cápsulas, pelo chão mais de cinco mil de certeza, as que tinha gasto mais as que por lá tinham ficado de sessões anteriores. Depois, mais calmo, com o final da tarde a aproximar-se, sentara-se no jeep, arma com o cano a deitar fumo no banco de trás, ouvidos a zunirem, de regresso a Brá, uma brisa a dar-lhes. Arma no quarteleiro, para limpeza completa.
No dia seguinte, acordara com a voz esganiçada do Sany, capitão Saraiva quer falar com nosso alfero.
Encontrou o capitão no gabinete às voltas com o relatório do final do curso. Os bons dias que dera não tiveram resposta, se calhar não ouviu, embrulhado com a papelada, nada que fosse da especialidade do Saraiva.
Viu-o levantar-se, o olhar de poucos amigos, e o que ele tinha para lhe dizer.
Uma G3 na mão, o capitão disparou, quem foi o asno que fez esta merda? Olhou para a arma, era a sua! Um pequeno lanho na ponta do cano, sem tapa chamas.
Não foi um asno, fui eu, a arma é a minha, não, não há dúvida, é mesmo a minha, admitiu depois de ter passado os dedos pela racha.
Ora bem, os olhos do capitão, como é que o alferes quer resolver isto? Vou pagar, tem que ser, olhos nos olhos.
Pagar vai, isso está fora de dúvidas, agora vamos ver como quer pagar, não é?
Aqui há sempre alternativas, responde o capitão. A expulsão ou um par de chapadas, a escolha é sua! Chapadas, expulsão?
A expulsão é pública, sabia-o bem, já a fizera a um cabo. Os grupos formados em sentido, o clarim, o cabo em frente, a tremer todo, saco de objectos pessoais no chão, escolta ao lado, a nota de expulsão em voz alta, o chefe de equipa a arrancar de uma vez o crachá, os distintivos, o lenço, a entrega da guia de marcha para o QG, a escolta a conduzi-lo à porta de armas, esta a fechar-se, tudo seguido.
O par de chapadas devia ser em privado, mas mesmo assim, chapadas? Na cara?
Quem lhe costumava dar umas chapadas era o pai, há uns bons anos já. Depois, que se lembre, só lhe foram aos focinhos nas aulas de boxe, claro.
Não, não sabia o que fazer, as alternativas não eram fantásticas. Vou pensar, meu capitão.
Aqui e agora, alferes. Ficamos os dois, à espera, até se decidir.
Ao lembrar-se como tudo terminara saiu-lhe uma gargalhada. O Saraiva a passar-lhe algodão e água oxigenada, o nariz a ferver, um abraço e o convite para jantar no Grande Hotel.
Ideias, Vilaça, não me fales em ideias!

Ao sair do banho, tinha visitas, o capitão Rubim passava os olhos pelos títulos arrumados na estante.
Há bocado, em Farim, num batuque com muita gente, a tabanca em peso e alguns militares nossos também, um gajo qualquer lançou para o meio deles um saco com granadas de mão, defensivas e ofensivas, à mistura com pregos, bocados de metal, garrafas, eu sei lá que mais. Acabou o batuque, foi tudo pelos ares!

Tabanca de Farim morucunda

O Dakota aterrou lá de noite, com os faróis das viaturas a iluminar o campo. O hospital está a abarrotar, vai por lá um pandemónio.
Tem o dia de amanhã para preparar o seu grupo. Vai até àqueles lados, uns dias.
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Notas:
1 - Crioulo: muito
2 - Crioulo: você
3 - Brigitte Bardot, actriz francesa muito famosa na altura.
4 - A PIDE, em mensagem por rádio existente nos arquivos de Salazar na Torre do Tombo, escrevia que, no dia 1 de Novembro de 1965, cerca das 20 horas, fora lançado um engenho explosivo para o meio dos africanos que se encontravam num batuque em Farim. A explosão teria provocado 63 mortos e feridos, na sua maioria mulheres e crianças. Foi detida uma meia centena de pessoas. Confissões obtidas levaram à detenção de um tal Issufo Mané, que declarou pretender atingir alguns militares. Para o fazer teria recebido 14 contos de Júlio Lopes Pereira, o qual, por seu lado, actuara por indicação do chefe da Alfândega de Farim, Nelson Lima Miranda. E este teria vindo a declarar que a bomba fora lançada a mando da direcção do PAIGC. (AOS/CO/UL- 50-A, Informações da PIDE, 1965-1966, 86 subdivisões, pasta 2, fls. 636, 637, 638, 641 e 642).

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Rumo a Barro

A caminho de Bula, atravessaram o Rio Mansoa em João Landim, meteram-se outra vez a subir até embarcarem em S. Vicente, Cacheu acima, numa LDM5. Sentados no convés, a dormitarem, um marinheiro de ordenança a perguntar, quem é o comandante do grupo, ah aquele ali, é alferes, tenente ou quê, cumprimento militar para o alferes, de quico em cima dos olhos, a passar pelas brasas.
O marujo, cheio de maneiras, como se estivesse num Hilton, o senhor comandante tem muito gosto em convidar o senhor alferes para almoçar.
Uma pequena sala de refeições, mesa redonda para os dois, pão e manteiga na mesa, grumete a servi-los, de travessa na mão, um luxo! Não havia dúvida, o pessoal da marinha tratava-se bem.

Pés na margem, Unimogs à espera, todo o pessoal em cima das viaturas a caminho de Barro.
Toilas, Alferes Toilas, é assim que sou conhecido aqui. Mas, espera aí, já te conheço, porra, estive contigo em Buba, lembras-te? Não? Duma vez em que andamos perdidos a noite toda, naquele tarrafo6, lodo por todo o lado, nem conseguimos entrar, não te lembras?
Estava a ver que não te lembravas! Como vai isto? Por aqui, até agora, tudo ok. Em Bigene é que as coisas têm estado mais para o aquecido. A PIDE está lá, prenderam lá uns gajos, aquilo está tudo minado, os turras estão infiltrados em todo o lado, pá!

O Sargento Valente alojou o grupo num sítio precário como era tudo ali. Uma rua e pouco mais, algumas casas de tijolos e cimento, um comerciante libanês que vendia tudo e a tabanca atrás.
Aproveitou para dar uma volta pela pequena povoação com o Alferes Toilas. Este, enquanto ia partindo mantenhas7 com pessoal que se cruzava, aproveitava para perguntar se tinham visto pessoal novo a chegar nestes dias. Não, alfero, cá tem8 chegado, o negro descalço. Atenção Mané, vê lá, se pessoal novo chegar avisa alferes, correcto?

Povoação de Barro. 
Foto: © Coronel A. Marques Lopes. Com a devida vénia.

Na manhã do dia seguinte, ao nascer do sol, despedira-se do Toilas. Vamos dar uma volta por aí. Arrancaram para Bigene, pouco mais de uma dúzia de quilómetros a pé, pelas margens da picada.


Tudo calmo. Bigene à vista, um Barro um pouco maior. Foram entrando, espaçados, em coluna por um, como era hábito, com os nativos a olharem para eles.
Capitão Rosas, baixo, atarracado, para o forte, a caminho dos 40. Boa ideia terem vindo, os gajos ontem estiveram aqui. Umas morteiradas e rajadas de metralhadora. E depois rajadas também de dentro. Uma hora e tal que durou esta merda!
Sim, de dentro também! Sei lá como entraram, entraram, como quer que saiba?
Não, felizmente, dois feridos ligeiros só, nada de grave, com estilhaços de uma morteirada para além daquela casa, ali. Tinha lá um pelotão alojado!
A PIDE está cá, parece que um gajo de Farim está a falar, temos metido uns gajos dentro.

Os gajos, ah, senhor capitão, a comer à vossa mesa, ah? Agora sente-se capitão Rosas, sente-se, se não cai... o pide, camisa de caqui de cor indefinida, cabelo a cheirar a Panténe, a entrar no posto de comando da Companhia, Venha comigo, o capitão para o alferes recém-chegado, vamos ali fazer uma visita, com este senhor. Venha, venha daí, vamos conversando!

Uma casa ampla, flores em vasos à entrada, pequena horta nas traseiras.
"Panténe" a abrir o portão, o capitão com o alferes atrás, duas ou três escadas.
Uma senhora de trinta e poucos, graciosa, cabo-verdiana, mão na porta, surpreendida com as visitas. Meu marido está no banho, vou-lhe dizer, voz de medo, o pide, desconfiado, a olhar para o capitão. Nós entramos, com a sua licença, minha senhora.
Mas ele está no banho, eu vou chamá-lo, não demora!
Uma sala espaçosa, mesa, as cadeiras, mais duas grandes para a preguiça, motivos africanos, estatuetas de pau-preto, coisas assim. Bons momentos devem escorrer aqui, os dois, as tardes a irem-se na calmaria, a imaginação a falar com ele.
O administrador do posto de Bigene, algemado com as mãos atrás, cabelo ainda a escorrer, um equívoco, senhor agente, só pode ser, a mão do pide nele.
Deixa apertar a camisa, Sony, tira as sandálias, calça o sapato, a senhora ajoelhada, aos soluços, lágrimas pela cara abaixo.
Bem boa, ah, mesmo no ponto, não digam que não marchava já, cá fora o capitão, gorduroso, os olhos pequeninos.
Que merda! Mão na cara, a limpar os perdigotos. Um cheiro a uísque, uísque estragado, azedo.
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Nota
8 - Não

(Continua)
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Nota do editor

Poste anterior da série de 30 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14951: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (VIII Parte): "Hotel Portugal"; "Um guia" e "Artigo 4.º do RDM"

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P14974: 3 anos nas Forças Armadas (Tibério Borges, ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2726) (4): Cacine

1. Parte IV de "3 anos nas Forças Armadas", série do nosso camarada Tibério Borges (ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2726, Cacine, Cameconde, Gadamael e Bedanda, 1970/72).


3 anos nas Forças Armadas (4)

Cacine

Tinha um pequeno porto que já não me lembro a função dele pois as LGD’s faziam o seu descarregamento na praia.

O interior do quartel era composto duma avenida ladeada de palmeiras que incutia um ambiente próprio de zona equatorial. Desde a margem do rio até à saída do quartel, desembocando na aldeia, o panorama arborizado inspirava-nos de modo a abstrairmo-nos do monstro que era a guerra. Para além das palmeiras havia muitas árvores de fruta, bananeiras, mangueiras, laranjeiras e muitas outras. O nosso quartel era um lugar aprazível e a restrição de entrada do pessoal da tabanca não era rigoroso pois por volta das 16 horas lembro-me de lhes comprar mancarra (amendoim) do qual fazia o meu lanche acompanhado com uma cerveja. Nos dias de batuque na tabanca também íamos ver e tomar parte. Havia um comerciante que abastecia a população e até onde se ia muitas vezes. O administrador do posto, um cabo-verdiano, fazia parte do convívio e lembro-me que no fim da comissão nos preparou umas boas refeições de frango de caril. Ele vivia com a mulher.

O nosso convívio com a malta do pelotão era intrínseco criando-se uma forte amizade baseada nas circunstâncias da guerra e onde os longos convívios faziam brotar uma certa espiritualidade de onde nascia o saber ouvir o outro desfilando na memória do tempo rasgos de facetas de vidas duras passadas na terra de origem. Os problemas individuais desfilavam como contos de histórias e uma vez foi a sério e chegou longe demais. A namorada escreveu a informar que o namoro acabara. Longe, isolado, sem nada poder participar e ouvir directamente o que se passava a imaginação alcançava situações à maneira dele e foi de tal ordem que se abordou da beira rio e desvairado começou a disparar a G3. Já não me lembro quem foi ter com ele onde o imprevisto poderia acontecer mas que resultou em bem.


Cacine era o local onde se passava cerca de dois anos envolvidos na mística da guerra. Os nossos aposentos deviam ser precários que nem me lembro como estávamos acomodados. Todos os meses fazíamos rotação entre Cameconde e Cacine. Por isso devíamos andar sempre com a roupa atrás de nós.


O desporto era sempre um motivo para estarmos activos e o futebol era o que era mais requerido por todos. Um desporto barato porque são muitos atrás de uma bola cujo preço a dividir pelos que jogam e a sua duração dá como resultado uns tostões a cada um.


Formar equipas não era difícil entre mais de meia centena de pessoas porque a outra estava noutro lado. A disputa entre sectores era aliciante. E depois de um bom desafio de futebol um bom banho de água tirada por uma bomba sabia bem. O balneário era público feito de bidões enchidos a partir dum Unimog. Cada sector tinha o seu balneário.


De Fevereiro ao Natal de setenta o tempo passou-se. A alternância entre Cacine e Cameconde dava para variar um pouco. Quem estava em Cacine fazia os patrulhamentos até Cameconde e quem estava em Cameconde fazia-os para além em direcção à fronteira com a Guiné Konacry. A alimentação constava muitas vezes de peixe pescado na zona ou de carne arranjada por caçadores locais e até de elementos da milícia. Eram alturas de convívio em que faziam parte o comerciante local assim como o PIDE.

Ao longo do ano e conforme a estação sabia bem fazer as refeições ao ar livre debaixo duma boa sombra. A companhia dividida em quatro pelotões de 25 soldados entre os quais 12 cabos, 12 furriéis e 4 alferes juntava-lhe o pelotão das Daimlers. Sargentos havia 3. O capitão era o Magalhães. O nosso capitão foi do melhor que se pode arranjar no exército português. Fomos e voltamos todos e nesta pequena frase está tudo resumido.



Já não me lembro bem quando tirei as minhas primeiras férias as quais foram passadas em S. Miguel. Apanhava-se a avioneta para Bissau e daqui um avião da TAP para Lisboa e depois S. Miguel. Pormenores já não me lembro. Não me recordo por exemplo o preço da avioneta para Bissau nem a passagem para Lisboa e S. Miguel. Sei que ganhava naquela altura cerca de sete mil escudos. Transferia cinco mil para os Açores dos quais dava mil aos meus pais. Ficava com dois mil para as minhas despesas. Tinha que pagar a lavadeira, as bebidas fora das refeições, a mancarra e sei lá que mais. Fui duas vezes para Bissau através dum artigo do RDM que me dava 5 dias indo para o hotel que já nem sei o nome. Em Bissau percorríamos a cidade entrando nas esplanadas onde a cerveja era servida com um prato de sobremesa com camarões. À noite o serão era passado num quartel onde se jogava o bingo. Havia bons prémios tais como frigoríficos.

Passar a tropa no mato ou na retaguarda fazia a diferença. Neste contexto os nossos miolos começavam a fazer muitas perguntas. O por quê disto assim! Com que direito a situação desta guerra gerava um conjunto onde muitos seres humanos se debatiam consigo próprios a respeito da sua existência e para que servia ela. Defender a pátria ou interesses de alguns que se serviam da pátria para fins obscuros que no fundo não passava de dinheiro e bem estar à custa da vida de seres humanos. Olhando a história ela está eivada de guerras e o homem não aprende a viver sem ela. É a lei da selva, a lei do mais forte, os que não têm consciência, sobrepondo-se aos que a têm. Espero bem que um dia os dirigentes políticos sejam obrigados a passar por uma instituição religiosa para formarem a sua consciência para não ouvirmos de muitos políticos que têm a consciência tranquila quando o mais comum dos cidadãos sabe que é exactamente o contrário. Esta relatividade tem que ser bem definida. Deve ser proibido países serem governados por um Hitler, por toda a espécie de ditadores mesmo por um Bush.

Mas voltemos a Cacine para falar dum pelotão de milícias. Era uma tropa civil que na Guiné servia para fazer a picada dos caminhos e trilhos por ode se passava. Eram detectores de minas. Por acaso enquanto estive nesta guerra não me lembro de alguma mina ter sido despoletada. Dos 23 meses que ali estivemos, estive dois de férias e dois a tapar buracos em outras duas companhias. Mas neste pelotão havia de tudo um pouco. Havia os revoltados mais conscientes da situação que chegavam ao ponto de serem vergastados por lutarem por uma justa causa mas que na altura ponham em risco a sua sociedade. Era a ditadura. Os chefes da tabanca sabiam com quem estavam a lidar e colocar em risco de vida uma população ou alguns deles era periclitante sair fora da visão Salazarista. Sei dum caso em que foi bem vergastado. No entanto havia outros tipos de seres humanos e deixei bons amigos sendo um deles o Salifo Dabó.


Era um meio de subsistência ser-se integrado nesta tropa civil porque nunca soube como se vivia em lugares destes sem uma agricultura. Uma vez dei comigo num terreno onde estava a trabalhar um nativo tentando retirar alguma coisa da terra depois de fazer uma queimada. Um terreno cheio de tocas de árvores queimadas. Ele estava irritado e zangado. Mais para os arredores e mais longe dos espaços da tropa havia aquilo que antigamente parecia terrenos de muita fruta.

A milícia era um pelotão de nativos que por eles iam passando as mais diversas companhias e certamente já cansados de andarem a repetir a mesma lição dezenas de vezes.


 A população vivia em palhotas no aldeamento ao lado do quartel, para o interior do terreno. O contacto é coisa que se vai fazendo e adquirindo no bom ou mau sentido consoante a mensagem que transmitimos. Muito longe da mentalidade objectiva do tempo estava eu, formado numa congregação religiosa, transmitindo uma sã cordialidade de modo a conseguir um bom relacionamento com as pessoas. Não foi fácil nem possível, tirando algumas excepções. O diálogo era sempre à base da desconfiança. Os mais velhos e responsáveis pela população, os religiosos e homens do povo, esquivavam-se e normalmente não apareciam. Falar com eles era pior que ter uma audiência com o presidente da república. Por isso, fora desse ciclo mas certamente com a prevenção deles, apareciam as crianças e jovens. Em todas as situações do planeta as crianças são sempre as mais espontâneas e certamente por isso as que mais sofrem.

Esta “bajuda”, termo para rapariga ou menina, era filha dum milícia que lavava a minha roupa.

Algumas mulheres dos milícias apareciam com as suas crianças às costas. Fui nomeado para estar à frente deste grupo apesar de não ter isso muito em conta pois eles tinham o seu dirigente.


O meu amigo Salifo Dabó com a sua irmã

O meu amigo Salifo Dabó, um milícia e três bajudas


Makissa, uma criança filha dum milícia, penso que pai da moça que me lavava a roupa, já não me lembro, e que dediquei muita da minha atenção. Com autorização do capitão e dos pais levava-a para o quartel onde a mimava com o que havia de comestíveis, chocolates, e bebidas gasosas etc. A transpiração era um dos cuidados a ter. Dava-lhe banho, levava-a para a messe dos oficiais e estava connosco parte da tarde.

Hoje pergunto onde estará essa criança. Será que é viva? Sabe-se que após a independência foram mortos, por vingança, muitos dos milícias espalhados por toda a Guiné. Se alguém souber do paradeiro da Makissa, eu gostaria de saber.



Outra coisa curiosa que aconteceu em Cacine foi a visita duns jornalistas, penso que alemães, acompanhados por uma patente militar e sempre debaixo de olho e que me entrevistaram com uma série de perguntas que já nem me lembro sobre a situação da guerra. A Makissa estava comigo nesses momentos. Outra situação que gostaria de saber por onde anda a reportagem desses jornalistas.

Estávamos a esfregar as mãos de contentes porque estava a chegar o fim da comissão quando nos aparece um major com um plano maquiavélico para fazermos uma operação bem para o interior e para sul. Foi coisa que ainda não nos tinha acontecido. Não nos queriam deixar sair de Cacine sem um rebuçado destes. Todo o aparato foi montado e não sei quantos pelotões saíram mato dentro com um esquema que o capitão tinha em seu poder. Pormenores não me lembro mas certamente comunicados a nós sem fazer a mínima ideia da realidade do terreno. Alguém sabia o caminho e como tal lá nos embrenhamos por atalhos durante horas. A dada altura chamaram-se lá da frente com mensagem passada ao de trás. Era uma mina anti pessoal que era preciso desmontar. Lembro-me de ter nas minhas mãos o detonador. A dada altura paramos. Uma avioneta percorreu o espaço por cima de nós. Mais tarde resolveram ir buscar-nos de batelão. A maré já estava vazia e foi longe que nos deixaram entrando lodo dentro, patinhando, de modo a chegarmos ao quartel.


Texto e fotos: © Tibério Borges

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 23 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14921: 3 anos nas Forças Armadas (Tibério Borges, ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2726) (3): De Bissau para Cacine