quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Guiné 63/74 - P15357: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XXI Parte): Grande Hotel; Água IN; E agora para onde? e CCS, QG

1. Parte XXI de "Guiné, Ir e Voltar", enviado no dia 11 de Novembro de 2015, pelo nosso camarada Virgínio Briote, ex-Alf Mil da CCAV 489, Cuntima e Alf Mil Comando, CMDT do Grupo Diabólicos, Brá; 1965/67.


GUINÉ, IR E VOLTAR - XXI

1 - Grande Hotel 

Parece que lançaram mau-olhado em Mansoa, os tipos andam danados, o Ten-Coronel Lemos. 
Um olhar de simpatia para o comandante do Batalhão sentado no seu cadeirão com o outro coronel ao lado, o do ah, hum…. O velho Lemos, velho só porque tinha para aí o dobro da idade dele, que ainda era muito novo para outras, sabia há muito que a coisa só tendia para piorar, vinha nos livros das escolas militares, devia até ter ouvido camaradas que estiveram na Argélia, estava agora ali, no palco de Mansoa, na Guiné que lhe saíra na roleta no último terço da carreira. Só para piorar, isto não está a ter a saída que julgávamos vir a ter, e muito menos, a que queríamos. 
O PAIGC está mais atrevido, anda por aí, está cá dentro, parte mantenhas a toda a hora connosco, atreve-se a fazer coisas que antes só pensavam, estamos um pouco parados, se calhar. 
Uma simpatia, este Tenente-Coronel, o olhar para a chuva a cair, o outro coronel ao lado, o alferes a apetecer dizer-lhe mas a guardar para si, meu Tenente-Coronel, com todo o respeito, como diz o outro, é como na Figueira, nunca mais chegamos à água e quando lá chegamos já estamos cansados, temos é vontade de nos sentarmos.

Desandara para Bissau matar saudades. Uma volta pelos sítios conhecidos e ao princípio da noite entrou no restaurante do Grande Hotel, uma grande merda, porque de grande só se fosse nisso. Era como aquelas senhoras já de uma certa idade que ainda arriscavam uma racha quase até meio das coxas, meia de seda preta com costura por ali abaixo, o cabelo louro bem arranjado, a escorrer costas abaixo.

Foto do Grande Hotel de Bissau. Imagem da net. 

Pois o Grande Hotel era frequentado por algumas dessas senhoras, quase todas mulheres de oficiais superiores espalhados por tudo quanto eram gabinetes e de militares de outras patentes que não se sabia bem por onde andavam. 
Dos senhores frequentadores, o custo da presença impunha que fossem os maiores da terra, os maridos das senhoras e alguns civis brancos, muito poucos, cabo-verdianos ainda menos, os negros serviam às mesas. 
Era assim, com tão dignas presenças, o ponto de encontro mais selecto de Bissau, o local para levar lá alguém mais importante ou comemorar alguma data especial. Há uns bons tempos o Capitão Leandro tinha-o encarregado de levar ao Grande Hotel um jornalista, Amândio César1 de nome, que lhes tinha feito uma visita a Brá, tendo jantado com todo o pessoal da Companhia de Comandos. Amândio César era um conhecido e, para alguns, controverso jornalista com tendência e gosto pela escrita entusiasta. Tão apreciado era que alguma personalidade com influência, não certamente pequena, quisera aproveitar-lhe o jeito e convidara-o a passar para um livro a informação que a sua curiosidade e argúcia recolhesse nos bares dos Grandes Hotéis de Luanda, Bissau e Lourenço Marques. 
Tinha lido, na altura em que estava a frequentar o curso de comandos, um livro que o Capitão Saraiva lhe emprestara, “Guiné 1965: Contra Ataque”, da autoria do mencionado escritor. Livro excitante, com descrição pormenorizada e arredondada de feitos, em que o conceituado escriba relatava acções militares com tamanho empenho e minúcia que, a alguns e ao alferes também, levantaram dúvidas, que tratou de as tirar junto de alguns que estiveram nesses combates e que ainda se encontravam em Brá. 
Verificou com desgosto, diga-se, que essas testemunhas não tinham tido olhos para tão agudos detalhes. 
E quando no Grande Hotel, no intervalo de uma golada de cerveja, lhe pôs a questão exactamente como atrás se escreve, o escritor-jornalista, óculos de massa preta na testa a escorrer de suor, que o que entrava por algum lado tinha que sair, de pronto lhe retorquiu em linguagem futebolística, o alferes ou está a ver o Eusébio a marcar um livre, ou está a tirar a foto ao livre! Acha que consegue ver tudo ao mesmo tempo? E, no entanto, foi golo! E de seguida despediu-se, alegando ter que preparar uns trabalhos para enviar para Lisboa, pedindo-lhe ainda que renovasse os agradecimentos ao capitão pelo agradável acolhimento que tivera. 
Acontecera há já alguns meses esta peripécia, ainda a Companhia estava em Brá a todo o vapor. 

E agora aí estava outra vez, meses depois do tal jantar com o jornalista. Olhadela pelo salão já praticamente cheio, viu uma mesa para quatro a um canto. Sentou-se. 
A carne do bife? É melhor não? Então o quê, arroz de caril de frango, pode ser. O pão acabado de sair do forno, aos bocadinhos, a manteiga das Marinhas, talvez de meses, o olhar pelos comensais, animados nas conversas com as senhoras das mesas respectivas e a vir-lhe à lembrança o jantar que lá comera com um cabo guineense do seu grupo, há um ano atrás. Um dia destes vamos jantar ao hotel, ao Grande Hotel, ok? 
Ao Grande Hotel? No Grande Hotel nunca se sentou nenhum preto, meu alferes! Então vamos depressa, antes que vá outro antes de ti. Tens andado por todos os buracos, disparaste em tudo o que mexeu, do norte ao sul, em todo o lado, sem pedir licença, porque é que havias de a pedir agora para entrar no Grande Hotel? Vamos amanhã! Leva este Old Spice que está por estrear, põe no fim da barba para te acalmar as borbulhas, e a Couraça com esta escova para os dentes. 

O valente cabo apresentou-se à hora marcada junto ao quarto, em Brá, caqui amarelo que no Grande Hotel a guerra era mais fina, a boina preta a cair para o lado direito, a carapinha a sair-lhe de todo o lado, o lenço de seda negro ao pescoço, um espelho acabado de limpar nas botas, ao ataque para Bissau, Grande Hotel, olhos na estrada, Alegre. 
Quando entraram no salão, a esfregarem os olhos das luzes dos pingentes dos candeeiros, outros olhos, sentados, levantaram-se para eles, para baixaram outra vez para os pratos, a conversarem baixo uns com os outros. O salão estava com muita gente, mais de meio, dois ou três civis e oficiais superiores, à paisana, coronéis, majores, as mulheres, umas com pele nova, outras com muito creme em cima. 
O que o meu alferes comer eu também como, o camarada com os dentes de cima em cima do lábio de baixo, olhos pequenos muito vivos, viam tudo até de noite. Um arroz tem que ser aqui para este senhor, agora o que tem para acompanhar, frango? 
O empregado ajudou-os com as cadeiras, algum aperitivo antes, não, só pão e manteiga. Jantaram tranquilamente, os barulhos das conversas voltaram ao normal. À medida que os comensais iam saindo, reparou que invariavelmente desviavam para a mesa deles olhares pouco aprovadores, pareceu-lhe, mas nada mais que isso e também nada que o incomodasse. 

Agora estava só numa mesa, três lugares vagos que até davam jeito, as pessoas de pé a olhar para ver se demorava muito, estava ainda no início, e a comida não andava, enrolava, água, enrolava com água, o costume nestes últimos tempos. 
Uma senhora loura, vestido vermelho colado ao corpo, um pouco acima dos joelhos, como diziam que se usava agora na metrópole, aberto no peito e nas costas, sapato de tacão bem alto, lábios e unhas a condizer, deu entrada no salão. Senhoras a olharem, homens também, não era exagero nenhum dizer que até as vozes se calaram todas, ao mesmo tempo. 
Olha o alferes aqui, está à nossa espera, podemo-nos sentar, o cCapitão Marques, à civil, dentes a sorrirem. Já não se viam desde os tempos em que ambos frequentavam a esplanada do Hotel Portugal. 
O piano recomeçou a tocar o Danúbio Azul, o alferes para a frente com a cadeira, a senhora loura, com um perfume daqueles que se colam às outras peles, a abanar os cabelos, um dedo a passar pelos lábios, um espelho na mão e o capitão de olho a piscar-lhe e o alferes, de repente, a lembrar-se da história que lhe contaram, passada no aeroporto. Ela, toda loura, acabada de chegar a Bissau, a bambolear-se ao encontro do capitão, os olhos do maralhal todos em cima, os do capitão dentro dos ray-bans voltou-se para um mais entusiasta, gaja boa não? É minha mulher, quer que a apresente?
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Nota
1 - Amândio César Margarido Pires Monteiro, uma personalidade muito ligada ao antigo regime. Entre várias funções que desempenhou, foi ensaísta e crítico literário, dedicando parte da sua actividade à divulgação das literaturas brasileira e africana de expressão portuguesa, nomeadamente a angolana. Das suas estadias na Guiné publicou "Guiné" e "Em Chão Papel Na Terra da Guiné"

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2 - Água do IN

Falava-se no caso do Mamadú em todas as esquinas de Mansoa, que tinha sido o PAIGC que o mandara nessa missão, que o caso tinha sido um nó que o partido atara ao homem grande da tabanca para a população ver quem tinha os trunfos, que havia um libanês, com um comércio próspero, a vender para os dois lados, que sabia da história toda, que tinha sido um milícia que, por dinheiro que o libanês lhe passara para as mãos, o metera na tabanca. O libanês sempre na berlinda, fulano vira, sicrano também, quem eu, mas quem disse, afinal ninguém sabia, o comerciante ofegante a ficar cada vez mais pálido, ia desmaiando na sala de operações, em frente aos dois coronéis. 
À primeira vista tinha-se a ideia de que a população estava quase toda com a tropa, só com a ideia, claro. Mas a rede de informações das NT, embora incipiente, há já algum tempo dava indicações que as milícias de Mansoa, a grande maioria de etnia balanta, não eram de confiar. 
As informações, mais falsas que verdadeiras, continuavam a chegar a toda a hora ao batalhão. Passou ontem um bi-grupo por Jugudul, em Jugudul já há muito tempo que ninguém vê bandido, outra informação a chegar, reuniões todos os dias, uma agitação contínua. Os movimentos das NT continuavam, as colunas de reabastecimento e os patrulhamentos faziam-se normalmente em todo o sector, embora com os incidentes do costume, minas, emboscadas e flagelamentos, estes especialmente nocturnos, para além da habitual resistência que a guerrilha opunha às investidas das NT. 
É preciso sair, montar emboscadas, fazer nomadizações, qualquer coisa, o Tenente-Coronel ansioso, à espera que houvesse alguém voluntário para fazer tudo de seguida. 
O IN, sem grande esforço, está a fazer uma guerra inteligente, passa informações contraditórias umas atrás das outras, durante uns dias cala-se, nós aqui ansiosos, até agora praticamente tem sido tudo fogo de vista, meu tenente-coronel, um dos elementos do staff do batalhão a querer acalmar o ambiente. 
Fogo de vista para si, que está aqui resguardado, feridos e mortos para os que andam na mata, o tenente-coronel, furioso como nunca o vira, pingalim a estalar em cima da mesa, mapa, papeis, alfinetes, clipes, tudo ao ar, porra, já estou com pouca paciência! 
Mão pela testa, eu sou calmo por natureza, mas esta agitação está a dar cabo de mim, sempre à espera que comecem a cair morteiradas em cima de nós. Alferes, vai sair com o seu grupo. Se há informação? Claro que há, informações não faltam! 

Despejos de água aos baldes em cima deles, relâmpagos, estrondos de bombardeamentos para norte, a lua a jogar ao esconde-esconde, o pessoal ensopado até aos ossos, foram andando até clarear. Pararam para aí meia hora, começaram a pôr-se a pé e ele, o comandante do grupo, não conseguia, não sentia as pernas, frias, as únicas em todo o grupo que não obedeciam à sua ordem de marcha. Mãos a massajar, demorou tempo, lá se levantou com muito esforço, o Valente de Sousa a ajudar, arrancou, bamboleante, por ali fora. Pronto, acabou-se, tens que mudar o filtro, os óleos, olha, aproveita e muda tudo, tudo não, mas quase, a rir-se por dentro, a força a voltar, o frio no corpo a manter-se. 
Andaram, como se fosse um treino, para desentorpecer os músculos, os trilhos cheios de água, não se via nada, o Tenente-Coronel Lemos feito Águia no ar, montado no PCV, novidades? 
Águia, guias dizem que caminho não tem sinais recentes, mata ao lado também não, é água por todo o lado, nos trilhos, fora deles, por todo o lado água, água do IN. 
Ok, Diabo Maior, entendido, mostramos-lhes que vamos aonde queremos e quando queremos, retirem, ok, ok, Águia, afirmativo, terminado. Não podia andar mais, nem com a imaginação a trabalhar. Até a cabeça não queria andar mais. 

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3 - E agora para onde?

Em Mansoa desde princípios de Julho, com Setembro a entrar estava terminado o período de tempo de reforço ao Comando de Agrupamento de Mansoa, chefiado pelo tal coronel alto, de cabelos brancos, ar calmo. E a colaborar com o Batalhão comandado pelo Tenente-Coronel Ferreira de Lemos.


Os tempos em Mansoa, naquele final de 66, mantinham-se agitados. Muita informação, a ansiedade entre os militares andava à solta. E aumentava com a aproximação da noite, quando se tinha de proceder à rendição das secções na segurança à povoação. 


Furriel V. Sousa, 1.º Cabo Faria e 2.º Sargento Cordeiro (joelhos)
 

No grupo de comandos, de vez em quando, lá ia mais um, comissão terminada. Já não passavam da dúzia e meia de homens. E foi com esta dúzia e meia que regressou da área de Jugudul, por onde, diziam as fontes, andava o tal bigrupo da guerrilha. O regresso dessa acção, como toda a operação, aliás, feita debaixo de muita água, foi-lhe fisicamente muito difícil. Quando disse para a parelha da frente começar a andar, quando todos obedeceram e as pernas dele é que não, nessa altura concluiu que a comissão, como operacional, estava no fim. A crise de paludismo tinha-o deixado de rastos. 

Dias depois, o Tenente-Coronel Lemos chamou-o. Que tinha recebido uma mensagem do Comandante Militar a ordenar que se apresentasse no QG, no seu gabinete em dia e hora que indicou. 

No dia marcado, no QG em Bissau, dirigiu-se ao gabinete do Comandante Militar, Brigadeiro Reymão Nogueira, que já o conhecia bem de razões que não vêm agora ao caso. 
Mal o mandou entrar, talvez para aquecer a conversa, fez-lhe duas ou três perguntas sobre a situação em Mansoa. A seguir ouviu-o dizer que iria dar por finda a missão do grupo de comandos e que devia apresentar-se, dois dias depois, na 1.ª Rep. do QG, onde lhe seria comunicado o destino do pessoal. E para ele, alferes, dado o escasso tempo para dar a comissão por finda, talvez não fosse má ideia ficar adstrito à CCS do QG. 

No decorrer da conversa, sem perceber a que propósito, entraram cavalos no discurso do Comandante Militar. Que era oriundo de Cavalaria e que lidar com homens não era muito diferente de lidar com cavalos. Foi assim, de forma algo equídea que estava a sair da cena operacional.

Não acho que a história dos cavalos se me aplique, não me parece que seja uma questão a resolver com um molho de palha e torrões de açúcar, nem com 15 dias de licença nas praias de Bubaque, não que me fizesse mal, é mais vasto, não é só físico, é também um cansaço muito grande cá dentro!

Assim, a falar para dentro. Para fora saiu-lhe o que queria dizer. Que, para ele, não era muito importante o local onde iria ser colocado, importante, para ele, era regressar à metrópole, logo que acabasse os 24 meses de comissão.

E agora para onde? Para qualquer lado, Alegre, para Brá não, já não somos de Brá. A esplanada do Bento, àquela hora com pouco movimento, os dois sentados, uma cerveja para cada um, um miúdo a cuspir-lhe nas botas, a puxar o lustro, a pirueta da escova ao ar, o ar triunfante do garoto com ela na mão, a puxar o lustro outra vez, outros miúdos ao lado, nosso alfero, mancarra quer? 
E agora, se nos puséssemos a caminho de Mansoa? Subiram até à Sé, porque vais por aí Alegre? Não queria olhar, mas olhou para aquela casa, o portão, as escadas, a porta fechada, as janelas também, ninguém no jardim, tudo arrumado como se tivessem ido para férias.

Em Mansoa, prepararam-se para sair. Arrumar sacos, armas, tudo, a seguir ao pequeno-almoço, formatura do grupo frente ao Comando do Batalhão, para as despedidas aos Comandantes do Agrupamento e do Batalhão. 
Uma cerimónia simples para um grupo tão pequeno, o tenente-coronel a passar revista, a parar em frente de um, tu donde és, quanto tempo te falta. E depois de algumas palavras, o grupo a desfilar frente aos dois coronéis, em direcção às viaturas, alinhadas para Bissau. 
Óleos, Alegre, óleos? Então, força com essa chocolateira. 


Quando passaram a ponte, voltou-se, viu Mansoa a afastar-se, a ficar para trás. Depois dos cinco meses em Cuntima, 16 nos Comandos, já nem se lembrava de quantas operações, só contou de início, quase tudo golpes de mão, algumas emboscadas e nomadizações, um sem número de contactos com o, quase sempre, competente IN, um morto, o Soldado António Silva, 9 feridos sem gravidade, nem numa emboscada caíram. Há infernos piores, mas no meio deste era difícil ter tido melhor sorte. 

Uma das últimas operações, em Buba, 'Olinda' de código, de grande importância estratégica, segundo rezava a ordem de operações, quando se ia para lá era de escacha-pessegueiro, o grupo a entrar-lhes pela porta dentro, outra vez sem ninguém dar por eles, nem convidados nem nada, não os quiseram receber a bem, o carago a quatro, para não dizer pior. 
A guerra, já que tivera de ser, fora feita, assim. E parabéns ao IN e um sentimento de respeito também, que para os combatentes as guerras são sempre justas. E cansaço, muito cansaço!

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4 - CCS, QG2

Entre, entre, o Capitão Valente, a caminho dos 60, valente no físico pelo menos, para aí 90 quilos. Sentado, óculos na ponta, montes de papelada, Parker 51 na mão, entre, que está aí a fazer à porta? 
Alguns dos seus homens ficam à sua responsabilidade directa, vão prestar serviços aqui no que se entender, dos restantes tem que tratar na 1.ª Repartição, disseram-lhe lá, não foi? 
O nosso alferes fica como meu adjunto no comando da Companhia e acumula com a responsabilidade da cantina, ok? 
Meu capitão, não tenho qualquer experiência na gestão de messes nem de cantinas, nem sequer simpatia pela actividade, e agora, encrencas é que não me dão jeito nenhum. 
Bem, para já, aqui quem manda fazer o serviço é o Capitão Valente, que é este senhor que está a falar consigo, sentado nesta cadeira. E falta de experiência até pode ser bom, nosso alferes. Com a sua idade, que experiência é que tem, ora diga lá? Aqui na CCS do QG, faz-se o que é preciso, com os militares que cá temos. Experiência, experiência! Temos que a ganhar alguma vez, olhe, gajos com experiência em messes e cantinas, aqui são aos pontapés, um alferes que esteve aqui ganhou tanta experiência que em meia dúzia de meses já sabia mais que eu, tive que o mandar fazer uma viagem, a experiência que ganhou aqui nas cantinas deve estar a ser-lhe muito útil agora. 
Fecho de contas diárias, existências e movimentos dos géneros, entradas e saídas ao mês, relatórios de fecho até ao 5.º dia útil do mês seguinte, contactos com os fornecedores mais pequenos, os maiores ficam à minha responsabilidade, entendido? 
A olhar para o grande Capitão Valente, se calhar Mansoa seria melhor, amanhã a que horas, meu capitão? 
Às horas do regimento, porquê, não lhe dá jeito? 
Então, com a sua licença, meu capitão, até amanhã. 
Assistiu ao desembarque do grupo, à escolha das camas, as parelhas a manterem-se, a arrumação dos materiais, o habitual nestas andanças. Alegre, dá cá as chaves do jeep. Entrou pelo bairro residencial do QG, onde fica a casa do Alferes Neves3, aquela ali, junto à piscina?

Com licença, posso? Viva, um tipo que nunca tinha visto, de Minolta na mão, deitado na cama. Manaças4 da 4.ª, tudo o que seja transportes aqui na Guiné tem que passar por mim! Disseram-me ontem que eras tu o novo morador! Conheço-te por causa dos jeeps, isso é que foi bater recordes, tanto jeep gripado em tão pouco tempo, e o Major Gama como uma barata, todo lixado! É pá, tiveste sorte, aqui é tudo malta fixe! Onde ficas? No quarto lá de dentro tens duas camas vagas, escolhe uma.


Um conjunto de vivendas térreas, todas pequenas, dispostas em roda, de frente para a messe, a piscina logo ali, meia dúzia de passos abaixo. A vivenda que lhe tinha sido destinada tinha uma única porta, à entrada um quarto grande, duas camas, uma de cada lado, encostadas às paredes, um armário em frente, uma aparelhagem Akai, de um deles, com gravador de bobines. Depois, um pequeno corredor, armários nas paredes dos dois lados, o quarto de banho em frente, à esquerda outro quarto, duas camas, como no da entrada, encostadas às paredes, um luxo. 

Escolhe a cama, o amigável Manaças. 

Agora, a minha nova morada é aqui, até ao fim, os olhos a passarem pela estante-armário vazia, os tapetes de fio indígena no chão, a mesinha de cabeceira com um candeeiro, as paredes a cheirar a tinta fresca, tudo muito melhor do que esperava. Abriu o saco verde de lona, virou-o para baixo, sacudiu-o em cima de uma das camas, duas camisas de manga curta, dois pares de calças à civil, as meias da guerra, as poucas coisas que tinha, ora vamos arrumar esta tarecada toda, dez minutos, tudo nos sítios, o espaço nas prateleiras da estante iria enchê-lo com os livros que trazia no caixote. 
O outro saco, as botas para fora, o par de sapatos para civil e militar, os dois camuflados, o que restava arrumou tudo em pouco tempo.

(Continua)
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Notas:
2 - Companhia de Comando e Serviços do Quartel General, em Santa Luzia, Bissau
3 - Nome fictício
4 - Nome fictício
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Nota do editor

Últimos 10 postes da série de:

20 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P15024: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XI Parte): Mornas e Segundo Encontro com o RDM num mês

27 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P15044: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XII Parte): Guia em fuga; Um descapotável em Bissau e Entram os Alouettes

10 de setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15098: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XIII Parte): Conversa em Brá e Nunca digas adeus a Cuntima

24 de setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15149: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XIV Parte): Fuzileiros, Páras e Felupes; O que se terá passado em Catió; Casamento com data marcada e Ponto da situação em Brá

1 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15186: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XV Parte): ME-14-04; Partir mantenhas; Buba, outra vez e Vamos ser independentes

8 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15221: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XVI Parte): Cabral no Oio; Uma carta e Galinha à cafriela

15 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15254: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XVII Parte): Fima, enfermeira do Partido; Cassaprica e Correspondência

22 de outubro de 2015> Guiné 63/74 - P15280: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XVIII Parte): Extinção da Companhia de Comandos do CTIG; Mansoa e Valium

29 de outubro de 2015 Guiné 63/74 - P15303: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XIX Parte): Chegou a 3.ª Companhia de Comandos e Pesadelo
e
5 de novembro de 2015 Guiné 63/74 - P15330: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XX Parte): Hospital Militar 241; Mamadú; Fuga? e Só água fria por baixo

4 comentários:

Anónimo disse...



No final da minha comissão, estive 7 meses em Mansabá. Para além de ter sido bem recebido por toda a gente da Cart. 2732, tal como eu com o mesmo tempo de comissão, lembro-me de ter havido uma emboscada, perto de Cutia, a uma coluna que o capitão tinha formado com secções de diferentes pelotões em que não participei que sofreu um morto e qutro feridos graves, um do meu pelotão. Mais algumas recordações de que já falei. De Mansoa não recordo muito apesar de por lá ter passado algumas vezes pois lembro-me bem da ponte, com suportes em arco, se não estou em erro, que tínhamos que atravessar na direcção de Bissau. Terá sido talvez até a única ponte que conheci na Guiné.
Do pouco conhecimento que tive de Mansoa, nesse tempo, fins de 71, princípios de 72, fiquei com a ideia, talvez errada, que lá se vivia numa paz relativa um pouco parecida com Bissau que não ficava muito longe. Nesse tempo em Mansoa estava um batalhão de cavalaria, tropa com mais aprumo e cagança, do que a infantaria , que era a tropa mais civil de todas. Lembro-me de entrar no bar de oficiais enorme, bem construído e equipado, muito diferente dos bares abarracados ou messes de Buba ou Mansabá. Pareceu-me que era um sítio agradável para jogar uma partida de dados, king ou sueca e beber uma cerveja ou outra bebida. A não ser em Bissau nunca vi tantos alferes juntos na Guiné. Apesar da diferença de armas, já falada, e de algum suposto elitismo dos meus camaradas de cavalaria, confesso que fui recebido com simpatia e é até natural que me tivessem pago alguma cerveja.
Trago estas impressões á baila, que até poderão estar um pouco erradas, em confronto com o clima de guerra que lá se viveu em anos anteriores como escreve o camarada Virgínio Briote. Falando do texto no seu conjunto, feito de partes, é interessante e muito bem escrito.
Gosto também da descrição dos jantares do Grande Hotel e do atrevimento do nosso camarada em ter lá levado o camarada africano. Isso só demonstra que além de corajoso no mato, também eras corajoso em Bissau. Pessoalmente nunca gostei muito da selva de Bissau.

Um abraço Francisco Baptista

Carlos Vinhal disse...

Socorrendo-me da HU da CART 2732, complemento o comentário do camarada Francisco Baptista:
"Dezembro 06
Pelas 11h15 01 GCOMB REF 01 SEC + 01 SEC/PEL MIL 253, efectuou coluna auto a MANSOA a fim de transportar militares. No regresso, em MAMBONCÓ, foi emboscado por GR IN estimado em 50 elementos, armados de RPG, granadas de mão, armas aut lig e Mort 82 durante 20 minutos. O IN instalado a 2 metros da estrada; alguns elementos armados de RPG saltaram à estrada a fim de alvejarem as viaturas. 01 GCOMB do DEST CUTIA saiu em socorro imediato. De MANSABÁ saiu igualmente 01 GCOMB em socorro. NT reagiram pelo fogo de todas as armas pondo o IN em fuga. A Artilharia de MANSABÁ e a FAP apoiaram as tropas emboscadas a pedido das mesmas.
NT sofreram 01 morto, 11 feridos graves evacuados para BISSAU, 09 feridos também evacuados, 08 feridos ligeiros. 01 Unimog 404 destruído, 01 Unimog 411 parcialmente destruído."

Acrescento eu que morreu no local o Soldado Manuel Vieira e passados dias no HM 241 de Bissau o Soldado José do Espírito Santo Barbosa.
Um dia muito negro para a CART 2732 a poucos dias de terminar a sua comissão de serviço.

Carlos Vinhal
Fur Mil Art MA

Anónimo disse...

Caro Francisco.

Mansoa era um local de alta importância estratégica naqueles anos e nos seguintes, como sabes bem. A cerca de 60 Kms de Bissau era uma barreira defensiva da capital. O Oio era já ali, o IN, sabe-se, andava lá dentro da povoação, conhecia as nossas movimentações e com base nelas montava emboscadas e procedia a flagelações. Em 66 jogava-se muito no bluf, a informação era numerosa, quase sempre falsa ou largamente ampliada. Foi o que pretendi transmitir e, aliás, tinha sido com base nessa informação que o Comando Militar do CTIG destacou o grupo para lá. Que me lembre, aqueles 3 meses em Mansoa foram os mais calmos da minha actividade operacional.

Obrigado pela tua achega, Francisco. Abraço do V Briote

Anónimo disse...

Na verdade, Mansoa era um local de alta importância estratégica como o camarada Virgínio Briote afirma. Por ali passavam todas as colunas de abastecimento e não só, para Bissorã, Olossato, Mansabá e Farim.
Quanto ao facto de se viver "uma paz relativa", como pensa, com uma certa razão o camarada Francisco Baptista, naquele tempo e no meu, Fev/Mar de 1970 a Fev de 1971, até certo ponto era verdade. Eu mesmo, depois dos 30 anos de "esquecimento" daquelas minhas vivências, também cheguei a essa conclusão, principalmente depois de conhecer a HU do BCaç 2885, acabando por concluir que tinha sido um "sortudo" ao ir "parar aquela CCaç 2589", que tinha entrado num período de "relativo sossego". Mas o ano anterior desse BCaç e da "minha futura CCaç" tinha sido dos diabos.
Verifiquei que, no meu tempo, os ataques a Mansoa eram provenientes unicamente do Sector ENE-E (ZICOMCHEFE ou Sara) e de longe, mas para isso foi preciso que no ano anterior tivessem "limpo" todo Sector W-N-NE (ou seja de Infandre até ao Rio Olom, afluente do RMansoa a E da povoação. Quando o BCaç chegou, Mansoa era atacada pelo W, quase na cofluência do RBraia com o Mansoa e o IN cambava o RMansoa na zona S de Infandre para atacar Rossum e Uaque!.
Enfim, a guerra como sabemos ia mudando, agravando-se ou acalmando conforme os anos, talvez também conforme "as disponibilidades de meios do IN".
Abraços
JPicado